Sérgio Mário Wrublevski
Pensar radicalmente a questão da metafísica tem se mostrado um dos grandes desafios intelectuais do nosso tempo. Ao longo de 25 séculos, as diversas formas de pôr e de repropor criticamente a questão no-lo atestam. Se a crítica à metafísica se avoluma nos últimos trezentos anos, apontando para a inexorabilidade de tal questionamento crítico, como uma passagem decisiva para todo questionamento filosófico-espiritual essencial do nosso tempo, cada vez mais torna-se clara a importância de compreender a questão ela mesma na sua envergadura, no seu enraizamento histórico, nas diversas alternativas e pseudo-alternativas. A superação da metafísica não consiste, obviamente, num querer fixar-se num sistema filosófico ou desvencilhar-se de algum, e sim num responsabilizar-se, aqui, agora, no contexto histórico em que vivemos, em colocar a questão da unidade e da verdade no seu caráter fundamental e suficiente em sua fundamentação, a partir e nos questionamentos múltiplos e singulares da existência histórica do homem. Sem este sentido da verdade se manifestando em toda a sua exigência a partir e para a experiência humana, nós, homens, estaríamos desprovidos do bem mais importante, e tudo o mais perderia o seu significado. Nesse cipoal de dificuldades que uma autêntica superação da metafísica hoje significa, pode, desde o início, ajudar uma imagem que Heidegger, depois de ter se ocupado durante décadas com este questionamento nos sugere: A superação da metafísica não poderá ser uma experiência ingênua de superação, liquidação de um sistema construído por algum gênio do pensar. Ela é antes uma experiência de convalescença de uma atitude doentia no espírito, que nos fica clara apenas quando aprendemos a superá-la1. Também o segundo Wittgenstein nos lembra da tarefa autêntica do pensar como superação de diversas doenças que nós mesmos teremos que aprender a superar para dispormos de saúde vigorosa, própria do vigor de espírito do homem.
A crítica da metafísica exige inicialmente que tenhamos presente a estrutura fundamental e típica do questionamento conhecido com este nome, “metafísica”, bem como os tipos mais característicos de metafísica, com os quais se dá a possibilidade de confronto e de superação.
A – Origem e significado do termo “metafísica”
Como já é de amplo conhecimento histórico, o termo “metafísica” provavelmente foi usado pela primeira vez pelo editor das obras de Aristóteles, Andrônico de Rodes no 1º século a. C. Nessa edição Andrônico usa a divisão da filosofia, comum no tempo do helenismo, em lógica, física e ética, e coloca 14 cadernos de Aristóteles, que não se encaixam em nenhuma destas três disciplinas, “depois das questões de física” (meta ta physiká), por tratar-se de questões afins àquelas tratadas na obra “Física” (Ta physiká), mas também diversas destas. Nessa edição tais questões não são colocadas apenas depois da questões de física, mas também depois de um livro sobre o céu (De caelo), sobre a geração e corrupção (De generatione et corruptione), sobre questões meteorológicas (Meteorologica), sobre questões acerca da alma (De anima), e obras de biologia e zoologia.
Essa tese de um significado apenas locativo da preposição “metá” (depois das obras de física) não explica por que tal obra teria sido colocada justamente depois das obras de física. Historicamente há, inclusive, uma probabilidade, não de todo isenta de dúvidas, de ter havido uma edição do 3º século a. C., com o título Metaphysikà, formada de 10 livros.
Uma primeira tentativa de explicar o título metafísica com um significado não apenas locativo-editorial foi realizado por Alexandre de Afrodisia (II-III século d. C). Segundo este comentador de Aristóteles, este último teria chamado de metafísica a ciência denominada “sabedoria”, que seria também uma “ciência teológica”, porque está depois da física, segundo a ordem relativa a nós2. Alexandre usa aqui uma famosa distinção feita por Aristóteles entre as coisas que são anteriores “por natureza”, i.é, por si, absolutamente (ou seja, os princípios e as causas, porque são a condição de inteligibilidade das outras coisas), e as coisas que são anteriores “para nós” (ou seja, as realidades sensíveis, porque são acessíveis primeiramente à nossa experiência sensível). Por isto a regra metodológica a ser seguida parte daquelas coisas anteriores para nós, para alcançar aquelas anteriores por natureza, ou, dito de outro modo, parte do mundo da experiência para alcançar as causas primeiras3. Aqui se esboça um entendimento do “metá” que não significa um “depois” meramente locativo, e sim uma anterioridade de princípio, apreendida no que é mais próximo a nós (no médium da experiência sensível), e para além dele (através de uma inteligibilidade manifesta em si mesma como elucidação da experiência sensível)4. Aqui entendia-se a “física” como uma episteme voltada para seu objeto, ou seja, para a natureza (physis), que é uma realidade apreensível pela sensibilidade humana, e é objeto da experiência. A física precede a metafísica, enquanto esta última tem por objeto as causas primeiras, que são realidades supra-sensíveis.
Para Alexandre, metafísica, no sentido de Aristóteles, é a ciência do ente, na medida em que ela não tematiza um determinado ente (on ti) ou somente uma parte do mesmo como as demais ciências, mas o “ente como tal”, e é ao mesmo tempo teologia, na medida em que na investigação dos primeiros princípios e causas deste ente não se pode regredir infinitamente. Assim, a natureza deste “ente como tal” pode aqui, então, ser melhor caracterizada. Para Alexandre fica claro ser o conceito aristotélico do ente como tal orientado exclusivamente pelo ser das coisas naturais, i.é, pela existência atual de tais coisas fora do nosso pensar. Com isto Alexandre tira conclusões do que, em Aristóteles, é apenas uma orientação: de que o ente como tal é o ser substancial de uma essência.
Os filósofos neo-platônicos (III séc. d. C.), baseados numa passagem em que Aristóteles chama a ciência investigada de “ciência teológica”5, interpretaram-na como uma ciência que vem depois do físico, entendido o “meta” no sentido de “sobre” ou “para além de”. Baseados em passagens de Aristóteles6, eles identificam a metafísica como uma ciência teológico-ontológica: a metafísica, porque estuda as realidades primeiras, é chamada de teologia, mas, uma vez que as realidades primeiras são as únicas capazes de explicar o ser na sua totalidade, a metafísica é uma ciência que estuda o “ser enquanto ser”; é, pois, como a própria expressão “ser enquanto ser” diz, universal, voltada à totalidade do ser. Dito de outra maneira: Porque a metafísica se ocupa do “ser enquanto ser”, isto é, do puro ser, ela se volta, antes de tudo, ao ser que é ser antes de todos os seres, i.é, ao ser exemplar, supremo. Enquanto ciência que busca as causas primeiras e últimas do ente enquanto ente, tem a ver com o ser do ente, ou seja com o divino.
Resumindo essa tradição, podemos reconhecer ter Aristóteles desenvolvido um conceito de metafísica como ciência que vem “depois” da física no sentido de que esta investigação se movimenta a partir das realidades mais próximas a nós, i.é, a partir da experiência sensível, para buscar as causas primeiras. Somente depois de termos constatado que as causas primeiras são anteriores às causas da física, podemos concluir ser a metafísica uma ciência da realidade supra-sensível. Mas uma vez que a física é subsumida pela metafísica, esta, além de ciência do supra-sensível, é também ciência da totalidade do real, pois as causas primeiras, para serem verdadeiramente primeiras, devem ser causas da totalidade. Existe, portanto, em Aristóteles uma coincidência entre a metafísica como ciência da totalidade do real, i.é, do “ente enquanto ente”, e a metafísica como ciência do supra-sensível, i.é do divino, chamada por Aristóteles de “teologia”. Isto não significa que o ente enquanto ente coincida com Deus, pois o sentido no qual o ente enquanto ente é objeto da metafísica é bem diverso do sentido no qual Deus é objeto da metafísica. O ente enquanto ente é objeto da metafísica no sentido do qual se buscam os princípios e as causas primeiras7; Deus é objeto da metafísica no sentido de que é uma das causas primeiras do ente enquanto ente8. Causas (aitiai) no sentido aristotélico não são alavancas de um movimento mas momentos de responsabilização por uma questão.
Esta duplicidade de significados do termo metafísica tornou possível usar o termo para indicar seja uma doutrina acerca da totalidade do real, entendendo-se aqui a busca das causas primeiras e últimas do mundo da experiência, do que é e está sendo, seja uma doutrina focada no supra-sensível, que busca, em contraposição à experiência sensível, a esfera da realidade que é como condição de possibilidade da esfera sensível.
Até agora não nos fica claro de onde provém filosoficamente a necessidade desta duplicidade de significados que o conceito “metafísica” recebeu em Aristóteles. Trata-se de uma compreensão genuína do pensamento de Aristóteles ou do pensamento helenista ou neo-platônico? Qual a evidência dessas duas direções de investigação, e que questionamento mais radical elas intencionam realizar?
B – Enraizamento histórico da metafísica aristotélica
Essa duplicidade de significados da investigação filosófica, sempre a partir de uma interpretação de Aristóteles, inaugurou uma tradição de indagação filosófica que haverá de estruturar a coluna vertebral do pensamento filosófico chamado “metafísica” durante séculos, em suas múltiplas tentativas de re-proposta, superação e transformação. Antes, no entanto, de sondar um confronto com esta tradição posterior, talvez seja oportuno trazer aqui alguns elementos da tradição anterior, a partir da qual a tradição metafísica, sob o viés aristotélico, se constituiu. Nessa relação de identidade e diferença com outras propostas acerca da questão fundamental da filosofia, talvez possa ficar mais clara a questão fundamental nas suas possibilidades e limites, mas também em relação ao tempo em que a questão como tal se coloca.
No tempo inaugural do pensamento filosófico podemos brevemente recordar aqui a direção do pensar de Heráclito e de Parmênides.
Para Heráclito todas as coisas se co-pertencem, e se interpenetram permanentemente. Elas necessitam de uma força de integração que se dá como caminho de comunhão e contraposição, unidade a partir da diferenciação, e, a partir da diferenciação novas possibilidades de unidade. A unidade de integração dos opostos dá-se como caminho positivo de ser, e negativo de não-ser, expansão ascendente e retraimento descendente. O sentido positivo de ser por ele mesmo não é alcançável a partir de fora dele mesmo, seja como derivação dos opostos, sejam como indução a partir do não-ser. Se o caminho do ser vier a se unilateralizar, perde paulatinamente sua força de estruturar um sentido de renovação do mundo. É, pois, nessa acolhida instantânea e cada vez inesperada de um sentido positivo, mediatizado pelo não-ser que se dá o salto para a possibilidade de integração com o oposto, e que encontra possibilidade de crescimento no próprio retraimento e desintegração9.
Também em Parmênides encontramos o pensar como um caminho descrito como um vôo intempestivo, no qual o pensador deverá integrar o caminho do ser com o não-caminho do não ser. “É somente ser, não-ser não é”. Este caminho de integração não conduz apenas para cima, como fluência positiva de integração. Deverá se confrontar também com o caminho para baixo, como desintegração, iniqüidade, escuridão, retraimento, sem desfigurar-se numa formalização abstrata do caminho do ser, nem sucumbir a uma racionalização insidiosa do caminho do não-ser. Trata-se de um caminho que conduz através dos seus múltiplos níveis do pensamento da unidade sempre mais profundamente para o confronto com a negatividade, diluição e retraimento em toda a sua multiplicidade. O caminho positivo de integração entre Ser e não-ser reúne em si esta multiplicidade, a conduz para a identidade do puro ser e a entrega de novo para o âmbito, no qual a questão da unidade tem sempre menos valor. Por fim surge o mundo do homem cotidiano que dispõe tão-somente de uma infinidade de entidades.
Na passagem do pensamento originário de Heráclito e Parmênides para o pensamento clássico da metafísica aristotélica, Platão costuma ser lido como o iniciador do formalismo metafísico posterior. Esquece-se muito apressadamente que Platão foi discípulo dos heraclitianos, e que Aristóteles talvez já articule os gonzos da planície do pensamento do helenismo grego e latino. Apresentar a diferença qualitativa entre o pensamento de Platão e o aproveitamento histórico que Aristóteles realizou com a ressonância do pensamento de seu mestre é um dos grandes desafios ainda por serem realizados.
No centro e ápice da reflexão acerca da essência da cidadania (justiça) seja como tarefa social-política, seja como tarefa individual-social de cada cidadão, Platão reflete acerca da gênese do pensar em relação com as diversas formas de saber, sejam elas realizações de um saber do uso e vida (sócio-político), seja de um saber dianoético (científico). Cada vez trata-se de um âmbito investigado segundo sua ordem interior. Esta ordem interior não se mostra sem trabalho da experiência humana de competência, mas também não é derivada de uma apreensão empírica. Esta ordem interior à coisa diz propriamente a natureza, a essência de uma coisa. Onde se fundamenta esta essência?
O saber de um certo âmbito de competência humana é um saber com seu próprio médium de evidências. Ele surge como um olho para determinadas “vidências”, as quais, encadeadas umas com as outras, formam uma dinâmica de responsabilização pela evidenciação como um todo. Uma tal e-videnciação busca ser uma responsabilização última e plena pelo “sendo”, como um âmbito de ser, i.é, pelo “sendo” na sua fundamentação última, definitiva. Se todo o saber está sempre referido ao seu fundamento, à sua causa (aitia), Platão vê o princípio do bem como uma possibilidade ontológica anterior tanto ao saber na sua evidenciação como anterior ao fundamento ou causa do saber em questão.
Esta atinência do bem10 diz então atinência a uma originariedade do saber, anterior a toda instrumentalização e fundamentação. O princípio do bem encadeia, assim, a originariedade e nascividade do conhecimento como uma totalidade, colocando numa consonância a experiência sensível e a configuração inteligível, de tal modo que na figuração originária o homem vê uma esfera para além da realidade, não na direção de uma derivação e sim da originariedade. Neste sentido a filosofia de Platão é uma filosofia da idealidade originária, porque nela são concebidas idéias originárias, segundo as quais a realidade terá de se conformar. É a realidade “figurativa” que funda a apreensão sensível da realidade. Trata-se de uma dimensão originária e de uma dimensão derivada, ambas oriundas do processo genético do conhecimento entendido como co-nascimento criativo do homem com o real e do real com o homem.
Essa essencialização do conhecimento entendida como positividade de ser a partir do não-saber numa evidenciação cada vez bem encadeada de cada ordem, repercutindo em outras ordenações, tematiza a gênese complexa, cada vez livre e originária do conhecimento e nada tem a ver com uma articulação de mundos orientada por um logos geral como se a questão da gênese de cada saber e do conhecimento como um todo pudesse ser reduzida à articulação de ordens e à conservação de uma lógica pré-determinante de tudo.
Aristóteles nos diz que a grande questão do pensamento filosófico de todos os tempos é colocar adequadamente a questão do “ser em todo o sendo”. Ser para Aristóteles não deve ser entendido aqui no sentido de um ser particular, como por ex. a substância. Ser significa antes o manifestar-se do ser no sendo de modo a ser vigência do essencial. Este é o sentido originário da palavra grega ousia. Ser significa, então, tudo do qual se pode dizer que “é”, ou que “era” ou que “será”, desde que manifestando-se como vigência de ser para um determinado sendo. Falando disto ao qual é atribuído o ser, se pode dizer que isto é o “sendo” (on), entendendo com este termo, justamente, isto que é. Nem o ser nem o sendo são propriamente. O ser é propriamente o que faz ser o sendo na sua essência. Isto é tematizar “o ser enquanto ser”, enquanto manifestação “como tal” (aplws), por si mesma (katháutò), isto é, sem ulteriores qualificações.
O ser enquanto ser não deve ser compreendido, portanto, como uma doutrina em si mesma, mas como o modo de tematizar o ser de tudo o que é, “enquanto ser”, de tal modo que a experiência humana seja pleno ser. Tematizar a experiência na sua totalidade, i.é, a experiência integral, significa tematizar tudo o que é “enquanto ser”, não como uma sua parte, como o fazem as ciências particulares, mas na sua inteireza11. Cada ciência revela o sendo sob um certo aspecto. Cada aspecto, ou cada “parte” da experiência é algo que é, é um sendo, mas tematizar o sendo enquanto sendo, i.é, sem ulteriores qualificações, significa tematizar todo o sendo, em qualquer aspecto, do qual se possa dizer que é, ou seja, que antes de tudo manifeste o ser de todos os sendos. Com a expressão “sendo enquanto sendo” se aponta não somente para isto que todos os sendos têm em comum, mas a todos os seus aspectos, seja aqueles que eles têm em comum, seja aqueles em virtude dos quais eles se distinguem um do outro. Que o sendo enquanto sendo para Aristóteles compreenda a experiência, e portanto não seja um tipo particular de sendo, vale também para o sendo por excelência, i.é, para Deus.
C – A superação da metafísica em Eckhart
Embora a unidade estabelecida por Aristóteles entre a metafísica entendida como ciência do ente enquanto ente e entendida, ao mesmo tempo, como teologia racional, tenha se mantido no âmbito da tradição neo-platônica, seja no âmbito da Escolástica Medieval (como também seja na sua versão árabe e judia), Mestre Eckhart pode ser considerado um dos mais audazes críticos e inovadores desta forma de interrogação fundamental para a humanidade ocidental. Eckhart inovou resistindo à forma como a metafísica clássica que o aristotelismo, igualado historicamente ao platonismo, tinha passado para a tradição filosófica-teológica ocidental. Eckhart realizou esta resistência crítica, relendo mais rigorosamente Platão, descobrindo a inovação que o pensamento de Dionísio Aeropagita significava. Mas foi no confronto com Tomás de Aquino, representante maior da escolástica dominicana de viés aristotélico, que Eckhart trabalha a superação desta forma de metafísica.
Como é bastante conhecido, Tomás se apropria da tradição da filosofia, ou seja, da metafísica como “scientia divina”, ciência de Deus, e o faz de tal modo que, mesmo sem desenvolvê-la sistematicamente, consegue fazer dela algo original e próprio. Sua metafísica está embutida na sua obra principal “Summa Theologica”.
Enquanto as diversas ciências pressupõem de seu objeto que ele é e o que ele é, pertence à metafísica mostrar que seu objeto é, e o que ele é. Para isto Tomás desenvolve uma análise reflexiva natural do conhecimento, na qual a divisão dos conhecimentos e ciências será clarificada a partir da metafísica ou filosofia primeira. No contexto dessa tarefa Tomás distingue uma hierarquia de ordens que a razão pode reconhecer e criar.
Antes de tudo, a razão distingue uma ordem existente nas coisas naturais, objeto de uma ciência especulativa, que, seguindo os passos de Aristóteles, Tomás chama de “filosofia natural” (Ta physiká). Logo após, em segundo lugar, a razão distingue uma ordem a ser instaurada no próprio ato da razão e nas suas concepções articuladas no médium lingüístico. Com esta ordem tem a ver a “filosofia racional”, articulada através da lógica, dialética e retórica. Também a matemática é colocada como tendo o modo da “filosofia racional”, na medida em que cria ordens tendo como objeto o ser objetivo. Uma terceira ordem racional surge entendida como o âmbito dos atos fundados na vontade livre. Este tipo de ordem racional deve ser apresentado pela “razão prática” e pela “filosofia moral”. A razão na leitura das coisas externas distingue ainda uma quarta ordem que se dá como a ordem na produção de artefatos.
Assim, consequentemente dentro de sua tradição reflexiva, Tomás entende a metafísica como pertencente à “filosofia natural”. Para além do âmbito dos entes naturais, ele constata a existência de outros âmbitos e outras espécies de ser, como por ex., o conceito “nada”, que é “algo apreendido pela razão” e como tal é “sendo” (S. Th. I, 16,3,2). Deste modo, conclui Tomás, pode-se constatar ser o objeto da metafísica o ente como tal, abrangente de suas partes e de seus âmbitos parciais. Como última e primeira filosofia, a metafísica não somente pressupõe as demais ciências, mas também as inclui em si e é ela que julga não somente os princípios mas também as conclusões das demais ciências. Ela é fundamento primeiro e último do saber humano, e por isto foi chamada de “sabedoria” (S. Th. I/II, 57, 2, 1). Assim Tomás reconhece ter reconduzido o ente enquanto “algo que é”, através de seus princípios de essência e ser, ao ser existente divino. Permanece manifesta a mesma duplicidade do conceito de metafísica característico da metafísica aristotélica.
A partir dessa pequena amostragem, podemos reconhecer Tomás de Aquino, como também seu mestre Alberto Magno, como grandes sistematizadores da metafísica aristotélico-platônica. Como mestre da Ordem Dominicana, Eckhart não podia não confrontar-se com tais sistematizações, mas se empenha em superar uma tal concepção racionalista e formal, propondo uma concepção e uma nova e mais radical experiência da verdade, que, à primeira vista, surpreende tanto os homens escolásticos como os homens modernos.
Na concepção eckhartiana o homem não é mais entendido como uma substância, formada de um princípio formal referido a uma materialidade, nem Deus é o último motor imóvel, último fundamento de um sistema analógico de modos de ser e existir, nem o mundo é interpretado em contraposição a um outro mundo no além. No cristianismo histórico a desvalorização teológica da era atual e da vida entendida numa distância que o próprio Deus cria recebe sua interpretação a partir de motivos apocalípticos judaicos, gnósticos e neo-platônicos como uma vida que será realizada somente no além (no “reino de Deus”, no “céu”, ou depois da morte). O modo como a relação de transcendência e imanência de Deus é pensada – de uma absoluta incomensurabilidade até a identidade (ipsum esse) – prefigura a valorização positiva do mundo como de uma criação divina e também a sua desvalorização como lugar do pecado e do abandono de Deus. Aqui aparece tanto a tendência de um desprezo cristão e fuga do mundo como de uma responsabilização pelo mundo, podendo decair inclusive num devocionalismo para com o mundo, num “mundanismo”. As tradições do conceito pejorativo de mundo se desenvolvem de um lado como dialética de distância e estranheza de mundo, e de outro lado com proximidade e confiança no mundo. Já o quarto evangelho se distingue por desenvolver a tensão entre Deus do amor e Deus distante do mundo; a situação do crente num mundo hostil ao mundo da fé se dá marcada por uma dialética de mundo originário e próximo e perda de mundo, concreção transformadora do mundo sem ser do mundo e sem julgar a “liberdade do mundo”.
Na concepção eckhartiana homem, Deus e mundo surgem originariamente numa mesma gênese fundamental e universal. Deus e homem não são entendidos como duas entidades separadas e contrapostas: uma no além, outra no aquém. O homem só surge da unidade com Deus e Deus só é através da unidade com o homem. Central para Eckhart é o pensamento de que a realidade verdadeira do homem é e só pode ser apreendida na realidade eterna do uno, e isto significa para além e numa unidade anterior à realidade do homem e à realidade eterna de Deus. A explicação do homem enquanto criatura finita, contingente, exige a colocação de Deus como infinito, necessário, e esta oposição e separação não diz a gênese do homem e de Deus a partir da e na radical unicidade do uno. Enquanto entendermos Deus como a meta mais elevada, as criaturas têm sua riqueza e distinção a partir de diferentes comparações analógicas e fundadas no ente mais elevado. Nesse processo de identidade e diferenciação “Deus” é apenas o valor mais alto da escala de comparação analógica.
No sermão “Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum”12, Eckhart toma a radicalidade da pobreza evangélica como exemplar da gênese do homem na sua possibilidade fundamental e universal. Assim, negativamente, o homem não pode viver nem para si mesmo, nem para a verdade (de um mundo), nem para Deus. Positivamente o homem deverá esvaziar-se de “Deus” e apreender uma verdade que é imediata fruição eterna. Ali o homem “deve querer e desejar tão pouco como queria e desejava quando ainda não era”.
O homem verdadeiramente pobre é aquele que “nada quer, nada sabe, nada tem”. Mas o fim da vontade própria não pode significar conformar-se com a vontade divina, como usualmente se entende. Quem pensa assim, constata Eckhart, não é um homem pobre, pois já sabe em que consiste a vontade de Deus, sem entender, como diz Eckhart, nada da verdade divina. Trata-se ainda de um eu ensimesmado, que se recolhe no seu próprio intimismo.
O homem na sua possibilidade fundamental e universal deverá viver “de tal forma que nem sequer sabe que não vive para si, nem para a verdade, nem para Deus” .
Assim urge distinguir duas modalidades de agenciamento do saber/conhecer:
1) O homem sabe (a partir de uma colocação construída pelo homem) que não vive para si, para a verdade e para Deus. É o homem que sabe que não dispõe deste saber, como finitude de uma infinitude.
2) O homem não sabe que não vive para si, nem para a verdade, nem para Deus.
Nesta segunda possibilidade não se trata de um saber acerca da carência do saber, mas de um não-saber que é condição de possibilidade para que a captação finita se dê imediatamente, i.é, sem a mediação fracionada do si próprio, de cada relacionamento do mundo e da fundamentação abissal de tudo. Trata-se de uma experiência de unidade de homem, mundo e divino que o homem experimenta como “irrupção” instantânea e infinitamente diversa de toda mediação fracionada. A integração destes 3 momentos na unicidade é descrita por Eckhart como fruição eterna, pura receptividade do que instantânea e absolutamente se dá e se retrai na sua imensidão. Esta pura e absoluta receptividade se assemelha ao puro criar de Deus cada vez se dando a partir do nada como pura gratuidade, esplendor e absoluta singularidade.
Deste modo através da teologia mística dos padres orientais e de Dionísio Aeropagita Eckhart aprendeu a resistir ao formalismo da metafísica de viés aristotélico-boeciano-tomasiano para redescobrir as possibilidades fundamentais e abissalmente universais da metafísica de Platão.
Rio de Janeiro, 23/03/2009.