Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia da Religião – III

20/04/2021

 

Quem é isto propriamente, Deus? Albert Görres (continuação).

Diante da situação do mundo, a pergunta do nosso tema somente pode receber a seguinte resposta, a saber: Deus é aquele, cuja obra (o mundo e seus habitantes) nos faz suspeitar de algo ou de alguém com mau caráter. Ele fez o homem à sua imagem e semelhança? Fez o homem suficientemente inteligente para voar até a Lua, Marte, Vênus; com complicadíssimos métodos, decifrar as leis e as conexões ocultas da natureza e pôr à sua disposição suas forças; esperto o suficiente para descobrir as conjunturas complexíssimas da matemática; mas tão burro e opaco para consigo mesmo que, muitas vezes, para o sentido do seu ser e a sua meta, nem sequer consegue ter um maior interesse do que para o futebol, show de televisão e dinheiro; tão mau que nega os direitos, os mais elementares do seu próximo e os viola de modo o mais cínico e egoísta possível; tão fraco e seduzível que qualquer coisa é capaz de levá-lo a cometer crimes por cobiça, vaidade, orgulho ou sede de prazer; tão sem coração que mesmo os piedosos, os mais piedosos facilmente “suportam” a miséria do seu próximo. [Deus dá quase para cada uma suficiente razão para compreender os vocábulos que indicam o santo e o divino ???]; mas nos faz cegos com aquela ausência de espírito, aquela indiferença espiritual e falta de gosto pelo espírito, que nos faz devorar revistas, televisão, jornais etc., ao passo que para aquilo que nos diz respeito fundamental e essencialmente não restam nem forças, nem tempo, nem interesse. Ele é um deus mau, pois ele é passivo. Nós o acusamos de omissão, de não agir nos ajudando. Ele fica olhando como os recém-nascidos são carbonizados pelos efeitos da bomba de napalm; como os pais surram as crianças até a morte; como milhões de pessoas morrem de fome. Ele contempla como homossexuais e solitários desesperam. Não intervém, quando a liberdade e a dignidade dos povos são esmagadas pela ditadura desumana da força ou são corrompidos pela ditadura “suave” dos meios de comunicação, dirigida pela dominação dissimulada do poder e do interesse escuso. Ele se esconde no seu silêncio e deixa que a maioria das pessoas comuns deixe corromper a presença divina numa espécie de histórias de fantasmas. Ele entrega gente miúda, sem defesa, à arrogância e ao arbítrio dos intelectuais e dos fabricadores comerciais de opiniões. Ele entrega a vida instintiva dos adolescentes aos interesses e lucros dos negociantes de sexo. Ele não impede que a indústria farmacêutica faça da matança dos ainda não nascidos um negócio rentável. E, mesmo se fosse verdade que ele por causa da nossa salvação tivesse se tornado homem como um de nós, isso não impede que os professores  desmitologizem essa maravilha, de tal maneira que, para a gente, pequeno homem da rua, do cotidiano que aliás deve se tornar santo sem Bultmann, quase nada mais resta da maravilha, a não ser um tumultuado vai-e-vem de trocas de presentes no natal e de resto um sepulcro entre outros sepulcros. Ele nos envia o seu Filho único. Mas ele deixa que a sua boa-nova se torne tão difícil de ler através das nuvens de tradição, para muitos contraditórias, confusas, de sorte que apenas aos poucos privilegiados resta a possibilidade de aclarar essas escuridões. Este Jesus Cristo se compadeceu dos pecadores corruptos, que ainda eram suficientemente sadios para poder distinguir entre o bem e o mal. O que faz ele porém por aqueles corrompidos pela sociedade, embrutecidos e imbecilizados; pelos que tem cabeças feitas pelas tagarelices dos mestre-escolas da sociedade; pelos abandonados, por aqueles que não alcançaram a sua palavra ou que estão confusos, perplexos para  capta-la? Ele fez alguma coisa para os funcionários corruptos da alfândega e das finanças, pelos publicanos,  para as prostitutas, como nos relata o Evangelho; mas o que faz ele hoje para os superficiais, os justos da presunção autojustificativa, pelos soberbos, pelos cínicos, o que acontece para os que sempre querem ter justiça ao seu lado, pelos que tudo sabem? O que faz ele para os psicanalíticos e sociólogos? Quem se compadece dos fariseus e escribas, dos letrados? Não somos também nós dignos de compaixão, nós burros, pobres cães?

Assim, para muitas pessoas, o silêncio de Deus em relação às pessoas dele se afastarem é um sinal de que esse Deus sente apenas uma infinita indiferença para com elas, indiferença que elas também pagam com a mesma moeda. A Deus se sente pessimamente. A teologia do nosso sentimento segue uma fórmula simplória: uma criação má deve ter um mau criador. Um Deus mau, no entanto, é insuportável e absurdo. Logo não pode haver um Deus no sentido antigo. Este, infelizmente morreu, com razão. Em todo o caso, se pode pensar num fundo ou fundamento impessoal metafísico, além do bem e do mal. No fundo, é indiferente se nós a esse fundamento chamamos de matéria, ser, transcendente, evolução ou acaso ou um qualquer outro nome erudito e inflacionado. Sobre um fundo ou fundamento impessoal, portanto, que nem conhece, nem ama ou nem odeia, a gente nada pode dizer; mas também ele nada tem a nos dizer, como nós a ele. Ele não apenas se cala; ele por natureza não diz nada. Aqui não se nega de modo algum que possam existir pessoas que encontrem paz e satisfação em honrar tranqüilamente o insondável. Existem outras pessoas, no entanto, que  não conseguem se livrar da inquietação de que o legítimo receptor de sua reverência e gratidão, de sua adoração e de seu serviço, deve ser o insondável, do qual elas de todo o coração se sentem tentadas a duvidar.

Se deixarmos que o nosso pensamento siga longamente tais caminhos, trilhados por muitos pacientes  na psicanálise, então um dia chegará o tempo em que somos convocados a fazer o que muitos pacientes no tratamento psicanalítico sentem necessidade fazer: que nós, uma vez de novo, tomemos nas nossas próprias mãos os nossos sentimentos e comecemos a pensar. O primeiro pensamento claro nos dirá: Deus não pode, de modo algum, ser assim como nós o sentimos: um alguém mesquinho, miserável, indisposto a ajudar ou incapaz de ajudar por ser fraco; um alguém que exige o que ninguém consegue dar; um carneador de homens, um torturador sádico de doentes, de fracos e de crianças – tal Deus só pode ser produto da fantasia das nossas mais escuras horas, nas quais projetamos sobre um fundo oculto e silencioso as nossas próprias tentações e possibilidades. Esse Deus é formado falsamente  à nossa imagem e semelhança. À pergunta quem propriamente é Deus, nós somente podemos encontrar ou ouvir uma resposta se nós nos decidirmos a fazer da nossa razão um uso radicalmente racional e a renunciar a todo o resto daquela superstição tenaz mitológica, que amontoa sobre a divindade um caráter excrescente. O Deus da nossa superstição deve morrer. Aquele Deus, sobre o qual caem as sombras das nossas projeções e o qual nós temos como mau, é nossa invenção; ele não existe. Caráter excrescente é o homem e somente ele.

Eu não acho razoável pensar de Deus assim (Nota do tradutor, i. é, com o caráter excrescente projetado por nós???), e, assim, isso não é permitido. Nós não devemos nem caluniar nem detrair os nossos semelhantes, co-irmãos; o que, porém, é de direito ao homem, deveria sê-lo também de Deus. Eu penso que Deus somente pode ser divino e portanto de modo nenhum deplorável e grudado aos modos de ser que somente podem ser deduzidos da miséria da pessoa humana e que somente ocorrem em miseráveis. Somente pessoas “carentes” são más (Nota do tradutor: carência = privação = pessoas carentes – não no sentido social – mas sim como o modo de se compreender o ser do homem, a finitude como carência! ???). Seja Deus quem for, seria absurdo pensá-lo como se fosse um deplorável fracassado, como um deficiente metafísico, um velho tirano mal dotado, como foi pensado por exemplo por Sigmund Freud, jovem. Deus não pode também ser uma máquina automática de anistia. Justamente, se ele é a bondade em pessoa, ele pode perdoar mesmo a um Hitler ou a um Eichmann, sim até a ti e a mim, se admitirmos que necessitamos de perdão; mas ele não pode dizer que tudo está bem, assim como nós somos. Ele deve rejeitar com o vigor infinito da divina negação o erro, a mentira e o mal, quando e na medida em que este mal é negação e repressão da verdade, do direito, do amor e do bem. Esse vigor infinito do mal, aliás, azeda a nossa vida, enquanto o mal está em e junto de nós.

Em seu livro Eu vejo o homem futuro, Julian Huxley escreve: “A hipótese-Deus hoje não é mais defensável cientificamente. Ela perdeu o seu valor aclarativo e pesa intelectual e eticamente sobre o nosso pensar. Ela não mais convence nem consola; livrar-se dela transmite um profundo sentimento de alívio… Quando nós enfim, uma vez, com o suspiro de alívio, tivermos lançado para fora do nosso depósito de idéias uma peça de mobiliário superenvelhecida, deveremos colocar no seu lugar algo novo”. Todo psicoanalista conhece esse suspiro de alivio sobre o qual fala Huxley. Ele segue a erupção dessa evasão da prisão da pertença infantil indigna ao adulto, confundida com a fé, da qual é apenas caricatura. Debaixo desse alívio superficial, se esconde muitas vezes – talvez isto seja regra – aquele outro alívio de estar finalmente livre da carga pesada do Deus mau, ao qual até agora se sentiu comprometido e amarrado através do dever da fé, imposição do pensamento ou convenção. O caminho para dentro da dúvida, do agnosticismo e ateísmo conduz frequentes vezes  por sobre um trecho meio ou totalmente consciente, no qual a gente se empenha desesperadamente em agarrar-se a aquele Deus mau, ao qual propriamente a gente só retribui desprezo, ódio e rebelião. Se, porém, nessa situação, um homem é atingido pelo simples pensamento de que Deus só pode ser divino, então ele ganha a chance  de se ater a esse pensamento. Com isso, ele não se torna livre do peso da questão pelas trevas do mundo. Mas, talvez, ele possa ganhar a coragem de lançar-se e mergulhar de corpo e alma para dentro da inacessibilidade, não mais do Deus mau, mas do Deus santo, que reservou para si, a tarefa de esclarecer a escuridão do seu desígnio e da permissão somente na luz de nossa morte. A espera desse esclarecimento, dessa iluminação única, definitiva e completa, essa espera a que o homem tem que ter atinência, chama Cristo de confiança. Lá onde uma pessoa pega nas próprias mãos o seu coração para abraçar a grande e nobre generosidade dessa confiança, ali acontece uma nova ressurreição do Deus morto no seu coração. Tal ressurreição tanto é um acontecimento cotidiano no nosso mundo, como o é a morte de Deus nas linhas das publicações sensacionalistas de moda. Aliás, tal acontecimento, se dá em regra, sob a exclusão da publicidade. Aqui e ali são admitidos um ou mais testemunhas, e de vez em quando até a um psicanalista é lhe permitido experienciar junto tal evento, se ele está aberto e disposto para isso.

Aqui não é possível descrever a pluriformidade dos problemas religiosos e seus motivos, que vêm de encontro ao psicoterapeuta. Mas a mim me parece que o que foi aqui descrito se encontra como um modelo comum em todas as experiências psicanalíticas, sempre de novo. Deus não pode ser conhecido, nem crido, nem amado, nem confiado, enquanto aquele degrau necessário de um Deus semelhante ao homem, que carrega junto da imagem de Deus tudo que há de questionável no homem, não for superado e ultrapassado por um Deus divino. Este passo único é talvez o um e o único necessário que o homem deve aprender, o homem que hoje, num modo maduro, adulto e responsável intelectualmente quer não somente crer, mas amar a Deus.

Frel. 7

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