- Usualmente, e isso principalmente também na espiritualidade, recomenda-se muito e com insistência a fazer e fazer, isto e aquilo, a trabalhar no duro para se ter eficiência. Essa insistência fala tanto do trabalho que causa ojeriza pelo trabalho em quem quer aprender. Em contraposição a esse modo ‘trabalhista’, voluntarioso de entender a vida espiritual costuma-se acentuar que a Vida Espiritual é obra da graça, gratuita, portanto, que não adianta a gente se matar. Já que aqui tudo recebemos, sim mesmo a possibilidade de receber recebemos, é mais importante a gente confiar na graça de Deus e se soltar, ser natural, espontâneo, e nada de técnica, de artificialismo, nada de empenho.
- Essa questão na espiritualidade recebe o nome, tirado da teologia tradicional, de questão da graça suficiente. E pergunta: quanto o ser humano deve fazer e quanto Deus faz, no relacionamento Deus e Homem. Com outras palavras se pergunta: no jogo de troca do dar e receber, qual a parte devida ao homem e qual a parte devida a Deus. Essa questão que é discutida, depois de se expor a questão da graça santificante (graça da filiação divina), não tem muito a ver com a questão da Vida cristã. É uma questão, i. é uma busca falsa.
- No nosso encontro de espiritualidade às terças-feiras, uma parte do tempo usaremos para esclarecimento, no sentido mutatis mutandis, de como foi discutido no encontro feito com frei Dorvalino, nos dias de Carnaval. Esclarecer não é outra coisa do que deixar claro o que é confuso e turvo, o que não é translúcido. Não é explicar, reduzindo a coisa ela mesma à outra coisa que não se torne clara a partir dela mesma e nela mesma. Por isso, é antes de tudo, nos confrontar conosco mesmos, no que já sabemos da espiritualidade, para que não entulhemos a causa ela mesma do espírito debaixo das nossas pré-compreensões e dos nossos pré-conceitos padronizados à imagem e semelhança da nossa minoridade. Uma outra parte do tempo, gastaremos, fazendo leitura dos textos clássicos da Grande Tradição da Espiritualidade cristã, no nosso caso dos textos de Mestre Eckhart (Sermões alemães) e de São Francisco e tudo isso sempre de novo referido à Sagrada Escritura. E tudo isso, todo esse trabalhar como práxis. E é necessário saber que a maior práxis do Espírito é teoria, que em latim se diz: contemplação.
- E esses exercícios são tidos como tentativas de aprender o aprender o modo de ser do espírito da espiritualidade cristã. Isto com outras palavras é formação permanente.
- Um dos pontos essenciais da compreensão vigorosa do que seja espírito e espiritual na espiritualidade cristã é partirmos sempre de novo e novos do a priori essencial da Vida cristã que adequada ou inadequadamente, como recurso de uma perplexidade, recebeu o nome de encontro. Por ser recurso de uma perplexidade, o termo encontro pode ser substituído por termos como amor, charitas. Ágape, Minne (Eckhart) etc., mas em todas essas nomeações, os nomes nada dizem a não ser que a coisa ela mesma deve ser entendia a partir dela e nela mesma. Esse modo de ‘abordar’ um assunto, na linguagem da espiritualidade cristã, se costumou formular, em dizendo: a compreensão aqui só se dá na evidência da Fé para a Fé e na Fé como Fé.
- Tudo isso, longe de nos tranqüilizar, a nós que cremos, nos deve desestabilizar da compreensão usual da Fé para nos livrar para a paisagem aberta sob o céu aberto da plenitude da realidade chamada Cristidade, em mil e mil possibilidades criativas das realizações da Boa-Nova, através do tempo e espaço.
- Ao retomarmos a leitura dos textos dos sermões alemães do Mestre Eckhart, reiniciemos a nossa leitura com o sermão 59 (60 somente é compreensível, se já lemos o 59).
- Uma observação inicial para a postura adequada (epistéme; scientia; sabedoria), diante dessa nova realidade: Não considerar a Fé como menor saber, contra saber, ao lado do saber, mas sim como sabedoria. Mas atenção sabedoria não é isso que eu sei sobre sabedoria, mas sim a essência do saber. Por isso, o complexo de superioridade ou de inferioridade por causa do saber mais ou menos, melhor ou pior, impossibilita a sabedoria, a não ser que a sabedoria ela mesma me leve a ver claramente que essa impossibilidade é cegueira e orgulho de mim mesmo para comigo mesmo. Muitos são felizes e não o sabem: eu não sabia que era feliz; outros são felizes e o sabem, mas o seu saber depende do saber ou não saber que são felizes. Mas quem é feliz o é, seja que saiba, seja que não saiba, é feliz por ser feliz, simplesmente.
- Quem é tocado pela realidade da Fé, começa a ver no uso e na vida que o simples fato de existir, anterior a todo o saber, a toda a consciência, vivência e ações não é ocorrência impessoal, neutra, coisal sem vida, sem alma, sem espírito, mas pré-sença plena, cheia de mistério, um abismo insondável e inesgotável do dom que me amou primeiro. É o que Mestre Eckhart chama de a situação na qual eu era antes de eu ser. É algo espantoso que nós não o vemos com maior facilidade, o que é o mais óbvio ao ver simples e imediato. Ou melhor, nós o vemos sem mais nem menos, mas não o sabemos.
- O ser espírito nós o somos gratuitamente. Pelo fato de ser, somos espírito. Mas isso é entendido de modo muito defasado.