LTC 11,41-45 – O Capítulo
Verão-inverno 1208 – O Humanismo Franciscana: o tipo de pessoa gerado pela dimensão religiosa franciscana.
RECEBERAM ALGUNS NA COMUNIDADE, E COM ELES, NO TEMPO ESTABELECIDO, VOLTARAM A SANTA MARIA DA PORCIÚNCULA. Como acontece o encontro de pessoas tão diferentes? Qual o papel de Francisco junto a estas pessoas? Se está descrevendo a experiência de uma comunidade originária. Todos se reúnem em Santa Maria dos Anjos; está iniciando a Ordem. Porciúncula é pedacinho, porçãozinha. Na Sagrada Escritura porção é herança. O Filho pródigo fala com o Pai que quer ser independente e pede a sua “porção”, a sua parte. Santa Maria dos Anjos é o lugar onde São Francisco deu aquela guinada que quase se materializa na capelinha. Ele sente aquele pedaço como a herança de um todo, o lugar onde começou a participar de uma grande comunidade nova. Porciúncula, Santa Maria é pedacinho do povo de Deus. É propriedade do povo de Deus.
São Francisco reunia em capítulo seus frades aqui. Capítulo é convocação onde a todo mundo é lembrado o que significa cabeça (caput – capítulo), o que significa Ordem, princípio coordenador que deve conduzir. Capítulo é momento e lugar de lembrança daquilo que é cabeça, capital, mais essencial, mais fundamental, mais radical para o grupo chamado Frades Menores. Se trata de uma convocação, um chamamento, uma recordação essencial que abstrai de todas as outras finalidades, para ter só esta: recordar o essencial.
Capítulo é um evento, um acontecimento de reunião: união de novo. Trata-se de um grupo unido desde o início no projeto de vida; mas aos poucos a itinerança, os afazeres, as lutas e tanta coisa, fizeram com que essa união ficasse menos união; então é convocada a reunião para retomar a união de novo, no nível radical, nível de raiz, nível de uma recordação que é principal, capital. Portanto, não se trata de uma convocação para uma determinada intenção subjetiva; é uma convocação que vem a partir e a favor do nosso ideal. O que convoca para o Capítulo é sempre o ideal, que no fundo é o interesse, o móvel de todos, a partir de onde o grupo tem o seu sentido, faça o que fizer.
Os antigos germanos chamavam a convocação da assembleia do povo de Ding; na reunião do povo se decidiam as sortes, não pessoais, mas do grande destinar-se do povo; o lugar onde se reuniram se chamava: thina, da qual vem as palavras coisa, casa, utensílios; a ligação destas palavras com thina mostra como para eles tudo que usavam devia estar atrelado com aquela reunião, devia ser concreção, materialização que sugava seu sentido e força da assembleia. Capítulo não é reunião para acertar interesse pessoais; é convocação para um destinar-se que para o povo de Deus é o seguimento de Jesus Cristo.
Os frades que se reúnem são pessoas de diferentes experiências, histórias e costumes. O texto não fala das dificuldades que essas diferenças traziam; havia grandes dificuldades; mas não são mencionados porque se acentua o convívio; não o convívio gostoso, sem dificuldades mas o convívio ideal. Ideal significa, convívio para o qual todos estão convocados. No tempo de convocação as dificuldades devem ser esquecidas; não para se alienar, mas porque quando as dificuldades são muito lembradas, se esquece coisas importantes e sobretudo se esquece o nosso destinar-se. O povo de Israel tinha o ao jubilar que era uma convocação geral a todo o povo, uma espécie anistia em que se esqueciam as dificuldades particulares e de grupo, para lembrar a aliança que unia e convocava a todos. Isto é o destinar-se geral.
Assim tempo de Capítulo é momento de esquecer mágoas, ressentimentos e se revigorar naquilo que é mais essencial, que é o destinar-se de nossa vocação. São Francisco reunia na planície de Santa Maria dos Anjos os frades por terem como projeto subir a montanha, como menciona o Sacrum Comercium, subida em que há machucados, medo, briga para escolher o caminho melhor; mas todas essas arrestas no momento da convocação são esquecidas, para lembrar aquilo que todos, pelo fato de ser religiosos, já estão querendo: voltar e crescer na disponibilidade total, muito dedicada e cheia de cuidado para a vocação, para o projeto de vida que é a nossa “porção”, nossa herança, nossa porciúncula.
Amavam-se com entranhado amor… certo dia… Como é o amor de caridade destes frades? É caridade fraterna cheia de suavidade: caridade fraterna não é somente caridade de amizade. É viver no povo de Deus mutuamente fomentado pelo amor dele, isto é, pelo calor e vigor de Jesus Cristo encarnado. Na medida que seguimos Jesus Cristo esta força se torna cada vez mais vigor de suavidade, é unção de Deus: penetra no universo e na humanidade e cria suavidade. Suavidade é uma força benéfica que trás a paz, um assentamento bem firme, uma dimensão verdadeira, eterna, que não está nas coisas que passam.
Usualmente entendemos Deus, eu e próximo como três objetos do nosso amor, um ao lado do outro. Nesse caso, no fundo, estamos dizendo que devemos amar a Deus, ao próximo e a si, com a medida do nosso eu. Temos, portanto, o esquema: Eu amo: a Deus; ao próximo; a mim mesmo;
No entanto, o que Jesus diz e o que São Francisco realizou está numa ordenação bem diferente. Quando se diz: amar a Deus de todo o coração… esse ato de amor está referido a mim, sou eu que devo amar, mas num engajamento tal que se trata de um dispor-se total, abandonando tudo, todas as nossas medidas, numa vontade absoluta de em tudo fazer a vontade de Deus, à imitação de Jesus Cristo que foi obediente ao Pai, até a morte na cruz.
Amar a Deus assim é a essência do seguimento de Jesus Cristo, a essência da Vida Religiosa Franciscana. Mas para quem assim se dispõe radical, total e absolutamente a amar a Deus com todas as fibras do seu ser, todo ele é a presença do amor que Deus tem ou melhor do amor que é o próprio Deus. Isto significa que toda a medida, toda compreensão, todo 0 modo de amar a mim mesmo e ao próximo não vem de mim, mas sim de Deus, na medida em que eu me abro a Ele de todo o coração, de toda a mente. Assim percebemos que amar a Deus não está no mesmo nível do amar a mim mesmo e ao próximo, pois ele é o fundamento, a medida do meu amor para comigo e para com o próximo. Temos, portanto, o esquema:
Amar a mim – + – amar ao próximo
Amar a Deus
Se amar a Deus de todo o coração no sentido absoluto é seguir a Jesus Cristo obediente ao Pai até a morte na cruz e se esse tipo de relacionamento, esse encontro absoluto com o Deus de Jesus Cristo é a essência da Vida Religiosa, então o total engajamento dela como seguimento radical e absoluto, abandonando tudo, pais, parentes, amigos, trabalhos, é a condição de possibilidade para poder realmente amar a si (isto é, se realizar como homem) e ao próximo (isto é, promover a sua realização humana).
E todo e qualquer trabalho, por mais engajado que seja para a própria realização e para a promoção, libertação do próximo, sem a busca absoluta do amar a Deus, não é amar ao próximo no sentido estrito do Evangelho. Isto não significa que não seja de alguma forma participante desse mesmo amor, mas não é a busca temática e radical do grande mandamento.