Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

V – Encontro com Jesus Cristo pobre e humilde

10/02/2021

 

LTC 5,13-15

Outono de 1205

O Crucificado A descoberta da “Senhora” Pobreza

A missão

DA PRIMEIRA ALOCUÇÃO DO CRUCIFIXO. A palavra usada em latim pode significar crucifixo e crucificado. Aqui é melhor traduzir com crucifixo; em seguida, porém. o texto sempre fala de “a imagem do crucificado”.

E COMO, DESDE ESSE MOMENTO ATÉ A MORTE, PORTOU A PAIXÃO DE CRISTO EM SEU CORAÇÃO. Portar é mais que trazer. Por exemplo: um porta-bandeira; não traz abandeira, ele porta. É muito importante entender que Francisco carrega como honra, como uma glória, carrega como se fosse um porta-bandeira a paixão de Cristo em seu coração.

O título deste capítulo parece anunciar algo novo que vai mudar a vida de Francisco. Agora começa algo diferente em nível e qualidade, válido para a vida toda. até a morte. Até este momento Francisco teve grande valentia. Agora começa a chorar! O que está acontecendo? Está começando a “revelação”.

O texto mostra um crescendo de busca e revelação: *-> Francisco vê nos pobres os enviados de Deus a ele, e ele, pelo amor de Deus, os ajuda: os pobres são meio: os pobres entregues a Deus e por ele a Francisco. *-> Francisco imita-experimenta o que pobre experimenta; começa a gostar dos pobres por- que eles são os preferidos de Deus; estão entregues a ele, o Deus misericordioso; aí Francisco ensaia uma experiência de vida pobre: Francisco pobre entregue a Deus. *-> Francisco descobre que o próprio Senhor dele é pobre crucificado; Deus entregue a Francisco, como aquele que amou primeiro!!! Aí Francisco consegue realizar seu projeto de levar uma vida pobre.

O SENHOR MOSTROU-LHE QUE PROXIMAMENTE. Ao traduzir “brevemente” pensamos em tempo; “proximamente”, pelo contrário, sinaliza que 0 que vem agora é o próximo passo dentro desta caminhada.

LHE SERIA DITO O QUE DEVERIA FAZER. É a terceira vez que 0 texto diz isto! De novo aqui, “deveria fazer” em latim é “oportet”: deveria fazer o que era conveniente fazer dentro desta caminhada.

ARROTAVA ALGO DAQUELE SEGREDO NOS OUVIDOS DAS PESSOAS. O original latino é assim, bem forte. Francisco estava tão cheio de expectativa que não cabia em si; embora não quisesse, lhe escapava. Arrotar na nossa civilização é coisa feia, mas em outras como na China, na Ásia arrotar é um gesto de civilidade. Como é isso que quando vem a visita do Senhor, Francisco não cabe de contentamento e assim deixa escapar. O que chamamos de intimidade e interioridade indica mistério, sobriedade. Ele procura esconder, mas para todos? Quando se tem uma coisa muito íntima e muito preciosa só se conta para os companheiros da caminhada, porque os demais não entendem, e ridicularizariam aquilo que é a coisa mais preciosa da pessoa. De fato quanto mais uma experiência tem profundidade humana de interioridade, quanto mais é incomum, tanto mais não deve ser exposta ao público. Existe neste nível um não comunicar, que é comunicação mais profunda. O publicitário simplesmente não entende e estraga, e hoje, talvez, o publicitário tem uma capacidade enorme de estragar tudo; mesmo quando o aceita muda o jeito. O tipo “Sílvio Santos” estraga tudo aquilo que é importante para 0 humano profundo.

FARIA NA PRÓPRIA PÁTRIA NOBRES E GRANDES COISAS. O fato de querer fazer coisas nobres e grandes não é propriamente exibição ou orgulho. No fundo expressa a ambição de realização. de autoidentidade. É que nós sempre estamos com essa ideia que não se pode¡ não se deve fazer coisas grandes; tem que ser modesto. Mas se um cavaleiro quer fazer grandes coisas não é para se mostrar. Você gostaria de ser útil, mas um pouquinho só? Todos querem trabalhar, ser útil grandemente! Esse “grandemente não é propriamente orgulho, mas uma espécie de largueza.

FOI-LHE DITO EM ESPÍRITO QUE ENTRASSE NAQUELA IGREJA E ORASSE. Engajado em toda essa busca, um dia Francisco, diante de São Damião (devia ser uma igreja velha, caindo aos pedaços), chega ao ponto de dizer a si mesmo: “Entra nessa igreja!”. Que experiência é essa “em espírito”? Espírito aqui é aquele faro, aquela disponibilidade que todos têm dentro de si, e que deve ser cultivada como faísca divina. Imagine uma pessoa que cultiva intensamente esta atitude: estará sempre disponível, disposta, tentando escutar, lutando contra suas opiniões particulares e egoístas, tentando limpar-se e continuamente abrir-se para aquilo a que está sendo chamada; essa pessoa com o tempo realmente adquira uma compreensão, que não é simplesmente informação mas uma clarividência, uma evidência concreta que leva a pessoa a dizer: “Aqui tenho que fazer desse jeito”. Todos nós temos um pouco dessa experiência.

Espírito” é um instinto de clarividência assim, que se transforma em alegria por ter descoberto uma dimensão nova. Por isso Francisco tem certeza que Jesus Cristo falou. Nós, por medo de engano, ficamos no vago na compreensão dos fenómenos de Deus. Na baixada fluminense. porém, o pessoal desenvolve um sexto sentido para perceber se o cara que se aproxima é de bem ou de mal. Assim no humano há um sensorial, um faro que o medieval chamou de “espírito”. Na Vida Religiosa estamos sempre procurando critérios de classificação para saber como agir corretamente. Aqui está sendo dito que quanto mais cultivarmos essa prontidão, quanto mais estivermos buscando sinceramente, nossa alma fica clarividente. Então, sempre me é dito em espírito o que devo fazer.

Hoje, estamos poluídos por uma porção de saberes psicológicos pelo que fazemos resistência a este sensorial intuitivo-religioso que todos têm; ficamos como computador que só escuta aquilo a que foi programado. Por exemplo, se num retiro para a profissão, um frade, após anos de busca, tem a percepção do “aqui estou”, e por isso sente uma alegria enorme: isso não é euforia (como a psicologia classificaria), mas verdadeira percepção religiosa.

Se este sensorial está em nós, então é tarefa desenvolvê-lo; por ele teríamos como superar tanta coisa que amarra na vida e mantém disperso. Um mecânico, só escutando, capta se um motor está bom ou não: isso não é subjetivo, mas “estudo” pelo qual ele capta o real. O texto está convidando para aumentarmos a responsabilidade da busca; rezamos-estudamos para solucionar problemas sem a atitude de “pesquisa científica”: quando achamos, paramos a busca e quando não achamos, paramos desanimados, quando talvez seria o momento bom para a “descoberta”. Trata-se de descobrir uma maneira de trabalhar a Vida Religiosa como mecânico trabalha-escuta um motor. Não temos consciência de que é tarefa nossa cultivar e desenvolver pelo “estudo” o faro “religioso” como uma ciência. Se não desenvolvermos este sensorial, nós religiosos estaremos renunciando a uma preciosidade única nossa. Deixamos tudo para fazer a caminhada religiosa, e no entanto vamos “a olho”, e quando estudamos, estudamos teologia, psicologia, filosofia, e aplicamos para a área religiosa os métodos destas ciências, esperando que elas se tornem especialistas em algo em que cada um é convocado a ser especialista. Estes textos são manuais para este trabalho.

PÔS-SE FERVOROSAMENTE EM ORAÇÃO. Não é o mesmo que dizer “pôs-se em fervorosa oração”. Francisco pôs-se a rezar valentemente, fervorosamente, independentemente se a oração saiu fervorosa ou não, boa ou não; isto é, o texto está novamente falando da disposição de Francisco.

DIANTE DA IMAGEM DE UM CRUCIFICADO, O QUAL PIEDOSA E BENIGNAMENTE LHE FALOU DIZENDO. Usualmente pensamos que falar e dizer são a mesma coisa. Na realidade, porém, eles se diferenciam, como quando dizemos: “Falou e disse!” Dizer” é sempre referindo a outro, como quando digo: “Vai buscar um copo d’água”; este é dizer, é comunicação. “Falar” não é simplesmente fenômeno de comunicação, significa estar plenamente aí presente, como quando estou com disposição diante do Senhor e falo: “Aqui estou!”, essa atitude os antigos chamavam de “falar”. Falar, portanto, é a atitude de colocar-se a disposição, de doar-se. Por isso: “falou” e além disso, “disse”.

A fala do Crucificado é uma fala piedosa e benigna e Francisco é perpassado por um frêmito; em seguida o texto não fala da restauração da Igreja, mas do pranto de Francisco! Na fala do crucificado Francisco experimenta algo que antes não experimentava. Este é o segredo, a essência-núcleo do homem interior, que está escondido naquele acontecimento. Toda fala do itinerário religioso, é uma fala “secreta”, cheia de mistério, e exige percussão para a profundidade que está oculta em cada fala. Francisco ouve as palavras do crucifixo, mas escuta mais fundo, escuta o “secreto”: por isso vira pedreiro e restaura igrejas, mas tomado por frêmito e chorando: o fazer de pedreiro é perpassado pelo toque do “secreto”. Pela sensibilidade desenvolvida que capta a dimensão religiosa, Francisco pega o secreto-mistério presente naquela fala em toda a sua força, mas não pega o conteúdo. Este terá que ser compreendido pouco por vez, redespertando o secreto-mistério e a partir dele sempre de novo fazer. Descuidando perderia a dimensão religiosa e o sentido religioso do seu fazer. Não dá para dizer o que é o segredo, mas dá para dizer o como, como sempre de novo se diversifica e renova.

Uma pessoa “escancarada”, sem profundidade, ao ouvir “vem e segue-me”, entende muito empiricamente, como a quem Jesus disse: “Deixa que os mortos sepultem os mortos”; ele respondeu: “Como não sepultar os mortos?”. É como o religioso que tem por trabalho fazer contabilidade; se ele não tiver sensibilidade para o segredo de seu viver religioso, daí a um tempo se pergunta que sentido tem ser um religioso que faz contabilidade? O religioso, no próprio fazer contabilidade, deve manter viva outra coisa (sem sublimações): o Encontro com o Senhor de sua vida. Quando não se cultiva mais o “segredo”, o Encontro, a Vida Religiosa não tem mais sentido e o religioso passa a fazer o que todo mundo faz, perdendo seu específico.

A fala de Cristo não é simbólica, é fala mesmo! É a intensidade da busca conduzida pela afeição que dá chance à fala. Pela busca Francisco cresceu na percepção e então começa a perceber o que antes não ouvia. É este o pivô da experiência religiosa. Ter o crucifixo “falado” ou ter sido “voz interior” de Francisco é a mesma coisa, embora este tipo de preocupação não seja da dimensão religiosa, mas da científica-objetivante.

A experiência de Francisco é uma experiência religiosa. O aparecer, o falar de Cristo, o ouvir são experiências privativas de Francisco ou nós também as temos? Como nós ouvimos, nos aparece, nos fala? Quantas vezes Francisco passou na frente de S. Damião e não entrou? Por que esta vez sim? Quantas vezes já entrou e nada ouviu; por que agora ouve? Francisco ouviu porque foi por longo tempo afinando e limpando o ouvido (caridade com pobres, experiências junto aos pobres, vida com os leprosos), sempre rezando e pedindo a Deus que lhe iluminasse o caminho. Este pedir é importante.

Há também o movimento contrário: o apagar-se aos poucos da capacidade de ouvir. Ter ouvido realmente e por falta de cultivo a afeição foi aos poucos se apagando: o que antes se ouvia, deixa-se de ouvir! A audição tem que ser conservada com vigilância, senão corre-se o risco de confundir essa voz com a nossa própria vontade.

FRANCISCO NÃO VÊS QUE A MINHA CASA SE DESTRÓI? O Crucifixo fala a Francisco e Francisco fica doido de alegria: “Puxa, o meu Senhor me falou!”. É o Encontro com o seu Senhor! Todo encontro é uma entrega: Deus me amou primeiro e se entregou por mim. Neste capitulo 59 há uma guinada; não se percebe bem o quê, mas há. Francisco foi atingido pelo crucificado e este atingimento nunca mais desapareceu. O que aconteceu? De que se trata? O que é que fará Francisco chorar, jejuar? O que ele está sentindo? Qual a palavra chave que faz Francisco chorar? Chorar é estar comovido: o que o faz vibrar? O mesmo fenômeno acontece com Francisco quando celebra o Natal e Eucaristia. A palavra chave não aparece no texto; aliás em nenhum texto aparece a palavra chave do texto! A palavra chave que não aparece no texto é “entrega”.

Francisco vê Jesus Cristo que se entregou a nós, sem colocar nenhuma condição; se entregou a nós, não a Deus por nós! Francisco experimentou o que um pobre sente quando pede por amor de Deus e sentiu o amargor da entrega. Agora vê Deus entregue a nós! “Ele já se tinha entregue a mim!”. Aí Francisco entrega até as roupas ao pai para ficar “um” na entrega a Deus. Entrega é uma das palavras chaves da Vida Religiosa, sem qualquer resquício masoquista.

Vida religiosa: afeição a Jesus Cristo pobre humilde = entrega

TRÊMULO E ATÔNITO. Esse “trêmulo e atônito” é típico do fenômeno do enamoramento. Francisco diz: “Ele falou consigo”. Nas histórias do cartunista Shutz há uma em que Charles Brown ficou todo gamado por uma menina de cabelos vermelhos com quem nunca falou. Ficava então esperando na escola que ela saísse, fingia que ia pegar o mesmo ônibus para que a menina falasse com ele. E então um dia ela lhe falou: “Bom dia”. Charles Brown, com o seu cachorrinho Snoop, saiu pulando e gritando: “Ela falou comigo! Ela falou comigo!”. É mais ou menos este o sentido de “trêmulo e atônito”. Francisco buscava intensamente o Grande Senhor; este Senhor já o visitou e agora, quase vindo de encontro, lhe “fala”.

ENTENDEU QUE CRISTO FALAVA DAQUELA IGREJA. O conteúdo da missão em si não importava muito, pois Francisco tinha boa vontade: o Senhor mandasse o que quisesse, ele faria. Ele fica trêmulo de contentamento e emoção não porque mandou restaurar a igreja, mas porque foi o Senhor quem mandou. Se o Senhor tivesse mandado plantar repolho, Francisco ficaria igualmente trêmulo e atônito. Francisco é um “executivo”: busca entender e faz o que é mais próximo de praticar, no particular, por isso começa logo a restaurar S. Damião. Nós gostaríamos de começar pelo universal-geral: restaurar a Igreja. Se houve equívoco na escuta, numa ação assim vai aparecer o unívoco. Mas o ouvir de Francisco não foi equívoco, foi o particular-próximo-agora que se abriu mais tarde para o universal. Todo fazer começa em casa; é aqui e agora: isto caracteriza a experiência religiosa. No ouvir está incluído o fazer. Por isso a dimensão religiosa tem voto, compromisso, fidelidade comprometida.

É DE BOA VONTADE QUE O FAREI. Este é o estranhamento e o “estupefato” de Francisco: topou em novidade-revelação. O “aqui estou” é a resposta a dimensão nova que vem surgindo. Não há por parte de Francisco questionamento sofisticado: “Será que Ele está mandando reconstruir a igrejinha ou restaurar a grande Igreja de Deus? Porque se for para restaurar esta igrejinha, não vale a pena eu me esforçar”. A visita do Senhor. o encontro, incendia a disposição para a missão por ser a missão parte essencial do “encontro”. Sempre que há encontro há missão. Então por ser encontro com o Senhor crucificado, o que é a Igreja para este Senhor? É a continuidade de sua obra salvífica. Francisco encontrando-se com o Senhor Crucificado encontra-se com sua Igreja e se coloca a serviço dela para restaurá-la.

POR ESTA ALOCUÇÃO. A “locução” é uma palavra dirigida abordando e considerando; é um apelo, um convite, um desafio. Por exemplo: “Vem e segue-me!” É uma alocução.

SENTIU VERDADEIRAMENTE EM SUA ALMA QUE FOI CRISTO CRUCIFICADO QUE LHE HAVIA FALADO. Temos a tendência de acusar os medievais de mistificarem tudo e de tornarem tudo sobrenatural. Aqui está um exemplo de que não faziam isso, pois o texto diz que Francisco estava diante do crucifixo tão de cheio dentro desta busca, tão engajado que recebeu a visita do Senhor, e que ele sentiu em sua alma que fora o Cristo que falou. Nem neste momento nem em outros o texto diz que Francisco tenha “visto” Cristo. Para este texto tanto, faz se é Cristo em pessoa que apareceu ou se é Francisco que interpretou. Isso não interessa, porque medieval pensa: “Cristo pode ter aparecido diretamente ou através de uma imagem ou através de uma interpretação, mas o apelo, a convocação, é real.

FAÇA CONTINUAMENTE ARDER UMA LÂMPADA. Manter viva a memória da paixão do Senhor, manter viva a memória do seu encontro com o Senhor. “Meu Senhor vive! Preciso de algum modo permanecer na presença dele!”

DESDE AQUELA HORA SEU CORAÇÃO TORNOU-SE TÃO VULNERADO E LIQUEFEITO PARA A MEMÓRIA DO SENHOR. Vulnerado: sensível, como ferida é sensível, exposto a toque. Liquidificado: vibrando todo, sem recantos de dureza. Este texto fala do segredo, que é aquilo que tocou o coração e que depois moveu toda a vida de Francisco. Aumentar o grau de reverência para este segredo torna-nos mais dóceis a sermos tocados pelo segredo escondido. Jung diz que toda pessoa tem uma espécie de segredo-talismã que só a pessoa e o seu absoluto sabem, e no qual a pessoa se refugia toda vez que há alguma ameaça. Para Francisco este núcleo é a “Senhora Pobreza”. Parece que este capítulo revela “o segredo de Francisco”, este núcleo-talismã.

Francisco descobriu que o seu Senhor é um Crucificado, é um sofredor, é pobre. A compaixão começa a mover Francisco. Na alegria da descoberta ele parece não achar mais sossego até que não consiga de alguma maneira participar dos sofrimentos de Cristo. Alimentos, jejum, cinza… são solidariedades de quem está apaixonado, exercícios de identificação ao Crucificado. Francisco aos poucos vai compreendendo porque o seu Senhor fez isso: porque ama as suas criaturas. Francisco fica admirado e chora e não consegue mais levar vida de boa comida, sossego, conforto…

Os passos da afeição de Francisco podem ser resumidos assim: * afeição de ser cavalheiro. * sonho: mais ainda quer ser cavalheiro do Senhor das Apúlias: interpretação-equívoco. *-> sonho: há outro senhor maior do que aquele: interpretação melhor. *-> começa a servir este Senhor e descobre que os pobres sempre apelam para ele e dá esmola por amor a Deus. * visita do Senhor: intensifica sua afeição pelos pobres pois eles são os preferidos do Senhor, quer imitá-los: teste de entrega a Deus-Senhor. *-> o crucificado fala: Francisco descobre a entrega anterior do seu Senhor a ele. * a afeição torna-se cada vez mais intensa até o ponto de chorar.

A busca da determinação da vontade discipular no Itinerário de Francisco iniciou como busca de um ideal, no qual o eu dele buscava a sua realização. Nessa época inicial o ideal é um ideal que ainda não tem a característica do encontro com um Tu Absoluto: é antes um prolongamento do eu, um realizar-se do eu como tal; mas 0 ideal de cavalheiro, e mesmo, no início, o ideal de ser servo e cavalheiro do Senhor não tem algo de “impossível”, isto é, não tem a doçura do enamoramento que caracteriza o Encontro com um Tu Absoluto. Nesse sentido a Visita do Senhor, como a fala do crucifixo, marcam uma passagem já preparada e preanunciada antes, passagem de um salto qualitativo: 0 que antes era amargo se transforma em doçura e vice-versa. Com o Encontro com o Crucificado tudo muda: não se trata mais de busca da realização pessoal. Trata-se de Encontro: todo o ser de Francisco é atingido, vulnerado, transpassado, e liquidificado pelo amor que não é dele, mas de um Tu absolutamente outro e anterior, um tu que incompreensivelmente amou primeiro, não porque Francisco é bom e merece, mas sim porque Ele o quer, Ele o ama e lhe pede que aceite o seu amor (característica “esmola”).

A doçura, o gáudio, a luz desse encontro que atinge e derrete (fere e liquidifica) o âmago (coração) do ser de Francisco não assinalam um sentimento, uma vivência de Francisco, mas sim assinalam a liberação, o desencantamento de uma energia nuclear causada pelo toque do Encontro. Essa nova energia é um novo sentido, um novo querer, uma nova inteligência que se torna agora disposição, vontade boa, o móvel, o motor de Francisco: por (propter = proximidade) amor do (genitivo subjetivo) Senhor crucificado.

Isto significa que as “penitências”, os “excessos”, as “disciplinas” de Francisco depois do encontro com o crucificado não são mais treinamento, nem ascese, mas sim identificação. Não se trata mais de realização de um ideal do eu, mas sim de engajar todo o ser, todo o sentimento, toda a vontade, todo o entendimento para se fazer vontade do Senhor crucificado.

Numa vida (Itinerário) assim per-feita (per-fazida) na vontade (dinâmica) do Deus crucificado podemos encontrar e rastrear os vestígios, isto é, traços estruturais onde se nos revela o que é e como é o Deus anunciado por Jesus Cristo, isto é, o que é o amor de Deus e Deus de Amor.

TROUXE OS ESTIGMAS DO SENHOR. Francisco recebeu a visita do Senhor; esta abriu uma nova dimensão; deu-se o encontro. Agora ele dá mais um passo; o seu coração ficou liquidificado; liquidificado para quê? Para a recordação, para trazer sempre de novo ao coração a memória da paixão do Senhor. Em outras palavras, a alma de Francisco ficou inteiramente sensível para a recordação da paixão do Senhor de tal maneira que se tornou o segundo crucificado, fisicamente também.

Que experiência é esta de trazer os estigmas do Senhor em seu coração corpo ao longo da vida? Francisco foi ferido! O que 0 comovia tanto? o que é esta ferida? O Senhor estar entregue a nós! Vendo o crucificado, uma pessoa poderia ficar indignada: é uma forma de atingimento; outra poderia ficar horrorizada. Francisco fica comovido, fica emocionado, chora, pensa na paixão e começa a imitá-la. Os estigmas no fundo são manifestação de toda uma atitude de busca e engajamento de Francisco, depois de ter recebido a visita do Senhor. Ele queria ser cavaleiro, depois entendeu que deveria ser cavaleiro do grande Rei, Deus. Aí entendeu que esse Rei é o Crucificado. E isso o comoveu tanto, que todo aquele ímpeto de ser cavaleiro, todo aquele ímpeto de busca, agora o coloca na imitação do Crucificado, na participação e na identificação.

Portanto não é simplesmente uma espécie de compaixão e tristeza por lembrar, no sentido piedoso. Francisco está enxergando uma coisa inteiramente nova no Crucificado. No capítulo anterior fala-se de pobres, e que cada vez mais se dedicava aos pobres, vivia no meio deles, foi atrás do leproso, começou a se familiarizar com os leprosos e agora vem o Crucificado. Tudo o que o atraia nos pobres no fundo é um outro Pobre, o grande Pobre.

DESDE ENTÃO SE AFLIGIA TANTO NA MACERAÇÃO DA CARNE… POR ISSO, NA HORA DA MORTE, CONFESSOU TER PECADO MUITO CONTRA O IRMÃO CORPO. Isso é para ser compreendido. mas não imitado! Francisco pede desculpa por ter exagerado contra o seu corpo. Francisco reconhece que exagerou! Mas não diz: “Eu errei”, pois se tivesse que recomeçar faria tudo igual. O primeiro amor é sempre um pouco voluntarista. A maturidade leva para maior equilíbrio.

CERTA VEZ… PLANGENDO E UIVANDO (ao invés de chorando e lamentando). Choro é sempre uma emoção, e emoção acontece quando algo toca. Neste toque aparece nítida a outra dimensão. O chorar de dor e de raiva não é de grande profundidade, mas o chorar de gratidão tem profundidade enorme. Um dia um frei estava no confessionário; uma mulher se apresentou chorando. O que tinha acontecido? A mulher não sabia, e começou a contar: era uma prostituta que estava a caminho do viaduto para se jogar e passando diante da Igreja São Francisco na terça-feira, quando é distribuído o pão dos pobres, uma criança se aproximou e disse: “ Tia pega para ti”. A mulher ficou pensando por um momento e chorou. Esta mulher escutou o secreto, o Mistério. O confessor pensou em São Francisco e lhe disse: “Vai falar com o crucifixo”.

Pode haver uma época em que tudo é compreendido “para fora”, em função de alguma coisa; por exemplo “acionar” a Eucaristia para a comunidade; esta atitude se encaminha para um processo de esvaziamento e perda do mistério; ai a Eucaristia deixa de ser o segredo-mistério. Uma época que não tem mais ouvido para o segredo, ela funcionaliza tudo; então pega um rito que visualiza o secreto e joga fora como algo incompreensível. Há grupos tentando recuperar a força dos ritos religiosos, deixando-os como são em seu arcano. Quando há o esgotamento do secreto-mistério, quem ainda tem um pouco de sensibilidade vai atrás até onde o acha: é por isso que até intelectuais vão atrás do espiritismo, do misticismo oriental, do sincretismo religioso e das seitas esotéricas.

Neste choro Francisco não vê tanto Jesus Cristo morrendo e entregando-se ao Pai, mas o Pai e Cristo entregando-se a nós. Jesus Cristo dizendo: podem fazer comigo o que quiserem mas eu vos quero bem!

Francisco tem a mesma emoção diante da Eucaristia, entregue a nós nas mãos do sacerdote; diante do Menino Jesus, entregue e nós no Natal.

Presépio

Entrega Eucaristia = amor do Pai Entrega é o modo de Deus se dar a nós

Cruz Pobre e humilde é variante de entrega

COLOCAVA CINZA NOS ALIMENTOS. A mãe não consegue comer com gosto enquanto o filho está para morrer. Estas atitudes de Francisco não são um campeonato para Ver quem é mais espiritual; não tem nada a Ver com desprezo do corpo ou recusa dos prazeres (primeiro movimento: combato o prazer, por isso não como), como aparecerá em fontes mais tardias e em certa espiritualidade: dimensão moral e às vezes moralismo.

É assim: vendo a paixão do Senhor Francisco não consegue mais ter prazer na comida (segundo movimento: não consigo ter gosto, pois o meu Senhor está crucificado, por isso não como) e por isso coloca cinzas, jejua. Este é um fenômeno da dimensão religiosa. Francisco com isso mostra ter grande limpidez que surge do Encontro. É fascinado por este jeito de Deus de se dar a nós: amor como entrega. E não é esta a grande possibilidade de Deus e do humano, atrás da qual vai o homem religioso: entregar-se? A profissão religiosa é então estar no exercício para ser entregue como Deus é entrega.

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