Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Terceiro encontro “Psicologia e Formação”

25/03/2021

 

Nota inicial

Esse relatório foi feito por frei Mamede, que tentou, nesses 4 dias em que estudamos 6 horas cada dia, anotar como pôde, à mão, tudo que falamos nas nossas reuniões, depois digitou o relatório e antes de enviar a todos os participantes do encontro, o fez “corrigir” na linguagem dele, por alguns dos participantes que fizeram uma espécie de revisão. O que resultou de tudo isso não é um texto historiográfico que reproduz o que física e realmente foi dito foneticamente. Frei Mamede, porém, não é robô-gravador. Por isso, as suas anotações, que, aliás, são muito fiéis, são interpretações, de tal sorte que o texto já está filtrado. Filtrado através da compreensão de frei Mamede, do seu uso das palavras, da impossibilidade sentida por ele de reproduzir ipsis verbis o que se disse, devido a diversos tipos de defeitos de comunicação, tanto física como pela inadequação da fala de quem pronuncia suas idéias. Todas essas contrariedades, em vez de ser interpretadas como falhas ou deficiências, no estilo do relatório que nos é caro, são consideradas como pertinentes e motivadoras da dinâmica de reflexão. Se quiséssemos um relatório da exatidão objetiva a modo da excelência da historiografia, teríamos simplesmente gravado tudo em disquetes.

O nosso Terceiro encontro, como o foram os dois encontros antecedentes, é um encontro fraternal comunitário para estudar, i.é, entrar para dentro da dinâmica do empenho e desempenho de busca do nosso inter-esse. A nossa comunicação, as nossas trocas de idéias, os nossos desencontros de opiniões diferentes, muitas vezes até ideologizadas, mas também os nossos acertos, insight, mútuas confirmações de concordância entre duas ou mais pessoas sob a iluminação da exclamação ‘aha!’, contraposições até agressivas de posicionamentos, um defendendo sua idéia, outro atacando a idéia do outro, em cabeçadas irracionais de teimosia e dogmatismo, etc., etc., tudo isso acontece, surge a partir de e está até ao pescoço enterrado no e impregnado do nosso inter-esse. Interesse (leia-se sempre inter-esse) é ser no, é a partir e dentro do que sempre já estamos e somos: a vida, a saber, o ser humano. Todos os nossos desejos, nostalgias, cobiças, ambições, conquistas e fracassos, euforias e depressões, em suma, todos os nossos empenhos e desempenhos da vida humana são realizações da realidade previamente dada, a partir e dentro da qual vivemos, nos movemos e somos: o ser da vida humana. Por isso, o que denominamos de interesse de cada um de nós, captado de modo estreito e apoucado como meu interesse, particular, individual seja ele nobre ou egoísta, seja ele aberto ou fechado, comunicativo ou ensimesmado, é no fundo sempre comum, de todos, pois os interesses privativos e particulares não são outra coisa do que a minúscula ponta visível de todo um abismo da imensidão, profundidade e vitalidade da possibilidade e impossibilidade de ser, no qual todos, participamos. O nosso encontro anual, este o do terceiro ano desde o início, tem por tema A diferença entre o psicológico e o espiritual; a diferença entre a terapia e a direção espiritual. Este tema é o âmbito visível que oculta no seu fundo mil e mil implicações aparentemente confusas, não analisadas, inconscientes na linguagem cara aos psicólogos analíticos, mas também demasiadamente certas, seguras, claras e distintas, fixas, dogmatizadas e fundamentalistas. Mas, todas essas implicações e suas explicitações são expressões de boa vontade. Da boa vontade do empenho e desempenho, i. é do studium da busca do sentido ou senso fundamental do ser da vida, dado não como este fato, aquele fato, mas como o toque de origem, como o apriori da abarloação do abismo da possibilidade de ser que hoje costumamos chamar de existêncialidade, ou melhor, facticidade. Isto significa: tudo quanto aqui apresentamos e discutimos dentro do âmbito do nosso tema, sempre de novo nos desviando para outros momentos do nosso interesse, já opera na intencionalidade interna. Portanto, no bojo do que dissemos e não dissemos no encontro, todas as nossas pressuposições, − quer na ‘simplicidade” e na “ingenuidade” ou na espontaneidade da vida cotidiana, quer no exercício das nossas cientificidades como profissionais estudados, − contêm em si um fio condutor do sentido ou senso do fundo do ser da vida humana. A revisão do relatório de frei Mamede que nos ofereceu de modo historiográfico os múltiplos dados do nosso encontro, já por ele redigidos de algum modo na direção da ordenação da sondagem do fio condutor do sentido fundamental, foi feita, guardando enquanto possível a forma primeira, para tematizar, i. é, para trazer à fala o fio condutor da recondução ou do retorno ao sentido ou ao senso de fundo de todas as nossas posições, no nosso caso, principalmente de formadores, psicólogos, cientistas naturais, filósofos e teólogos, conhecedores da espiritualidade cristã. Por isso, nem sempre as pessoas que no relatório tomam palavra, disseram ‘ipsis verbis’ o que ali está relatado. Muitas vezes o que uma pessoa pensou e disse está na revisão atribuída a uma outra pessoa. Mas todas essas aparentes artificialidades, não são propriamente recursos de expressão ou meio instrumento para expressar dramaticamente ou vivamente o pensamento. Mas sim a tentativa de um esforço para seguir realmente o fio condutor da lógica da vida. Aqui o modo de relatar, segue o modo como na vida tentamos compreender os fatos, empenhos e desempenhos da facticidade do nosso inter-esse.

“PSICOLOGIA E FORMAÇÃO”

ASSUNTO: DIFERENÇA ENTRE O PSICOLÓGICO E O ESPIRITUAL E DIFERENÇA  ENTRE  A TERAPIA E A ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL

ARARAQUARA (SP) 12 A 15/11/05 – PARTICIPANTES: 28

Horário: 7h30 café – 8h30 trabalhos – 10h cafezinho – 10h30 trabalho – 12h almoço – 14h trabalho – 15h30 cafezinho – 16h00 trabalho – 17:15h Missa… jantar.

No dia 12, na parte da manhã, enquanto frei Marcos e a equipe de Goiás não chegavam, tentamos nos aquecer na reflexão, lendo um dos artigos propostos como leitura de fundo do nosso encontro. Antes da leitura se fez uma rápida colocação, dentro da qual se tentava ler o artigo, como preparação, para quando frei Marcos vier, nos acionarmos sob a sua coordenação. Essa colocação tinha mais ou menos o seguinte teor:


12/11/05: 8:30hs

Regina: Frei Marcos e a turma de Goiás vão chegar hoje somente depois do meio dia. Nós que aqui já estamos, vamos aproveitar essa manhã, para fazermos o aquecimento na reflexão, tentando juntos ler assim por cima, um dos três textos que vão servir de pano de fundo para as discussões. Os textos são artigos, todos tirados da Revista da Faculdade de Filosofia São Boaventura, Scintilla, n. 2. São eles: Rombach, Heinrich, A Fé em Deus e o Pensar científico[1], pp. 145-163; FERNANDES, Marcos Aurélio, Ciência e Fé: ensaio em busca de uma identidade na diferença, pp. 11-45; Spengler, Jaime, Pascal: Fé e Ciência, pp. 47-65.

Hermógenes: No último encontro em Cocalzinho, tínhamos escolhido como tema desse ano Os estudos na Espiritualidade. A opção para esse tema surgiu da constatação, feita no último encontro, do fato de todos termos a dificuldade de estudar para valer a espiritualidade. Quando se trata de cursos de diversas ciências positivas e da aquisição de habilidades para determinados fins práticos e de utilidade público-pastoral, a consciência da importância dos estudos entre nós é unânime e as pessoas que fazem os cursos estudam para valer, para tirar títulos de graduação, pós-graduação e doutorado. Quando se trata, porém, da espiritualidade, das coisas de Deus, das assim chamadas coisas espirituais, o nosso empenho, portanto, o estudo possui pouco volume, pouco interesse, e se há ali empenho é mais em direção à vivência prática, ao sentir, ao praticar a piedade, a moral, a experiência. Por isso, ao nos perguntarmos de que se trata quando falamos, tanto, todo o tempo do espiritual, da vida interior, ficamos perplexos, pois as nossas explicações teoréticas acerca desses assuntos são tiradas de conhecimentos das ciências como psicologia, antropologia, filosofia. E nos justificamos: aqui, trata-se da vivência da Fé e sua experiência; aqui é necessário crer e viver e não tanto, saber e investigar.

Essa questão aparece na praxe de nossa vida na formação inicial e permanente, de diversas maneiras. No entanto, ela está presente de modo bastante acentuado na assim chamada vida espiritual cristã, mormente na Vida religiosa Consagrada, quando, ao nos defrontarmos com as dificuldades da vida espiritual, da vocação e dos confrontos existenciais da vida, logo as interpretamos como problemas psicológicos e recorremos à psicologia, a seus especialistas e a seus métodos psico-terapêuticos. Ao observar esse fato por último mencionado, frei Marcos propôs em vez da formulação do tema desse ano Os estudos na Espiritualidade a formulação mais definida A diferença entre o psicológico e o espiritual e diferença entre a terapia e a orientação espiritual.

Tudo isso aparece de modo contundente na observação, feita há anos, em Rondinha no Instituto Filosófico São Boaventura da Província franciscana (OFM) – Paraná, de quando da visita do Frei John Walker, então Superior Geral da OFM. Ao falar aos frades estudantes de Filosofia (junioristas ou professos de votos simples) disse: “Estou cansado de receber sempre de novo a mesma resposta, ao pedir aos meus confrades que aceitem a tarefa do estudo e da formação espiritual dos noviços, como Mestre no Noviciado: ‘Não posso, não sou capaz, pois não fiz curso de especialização na espiritualidade ou de outros estudos necessários’. Meu Deus, o que fizeram então, o que estudaram e estudam todos esses 20, 30 e mais anos, em que viveram e vivem ainda diariamente na realização de “coisas e causas” espirituais e franciscanas, nas orações, meditações, na vida fraterna comum, nos exercícios espirituais e na participação aos cultos divinos e nos trabalhos pastorais?”

Usualmente, a nossa mentalidade de fundo se defende ou se explica, perante essa falta de estudo na espiritualidade e da sua coisa argumentando, mais ou menos assim: “A nossa causa é diferente das coisas do mundo. Conosco, trata-se do reino espiritual e interior. Das ‘coisas’ de Deus, da experiência suprasensível, invisível aos nossos olhos, do sobrenatural. No caso de nossa formação inicial e permanente na espiritualidade, jamais podemos entender os estudos no sentido secular dos estudos feitos no mundo para a promoção do saber, competência e da sua eficiência nas escolas do ensino fundamental, secundário e superior universitário. Como diz, portanto, São Francisco, nós jamais podemos negligenciar o espírito de oração e devoção, ao estudarmos o que devemos estudar para podermos atuar no mundo de hoje etc., etc., etc., blá, blá, blá. O que realmente acontece é o seguinte: o nosso estudo (i. é, empenho) ou dito com outras palavras, a dinâmica da ação de busca e do seu engajamento nos trabalhos necessários e úteis para maior compreensão, maior estima e maior vontade das ‘coisas de Deus’ está entrando ou já entrou na entropia. E aos poucos também o desejo, o gosto e o interesse de trabalhar na assimilação e na intuição das “coisas e causas” do espírito humano e das suas dimensões diminuem cada vez mais. E mesmo nas coisas materiais, somente estudamos para o nosso uso pastoralista caseiro, de tal sorte que hoje, nem se quer temos ânimo e gosto de trabalhar para valer, embora possuamos a possibilidade financeira e física de fazer os cursos superiores de filosofia, teologia e de outras disciplinas auxiliares para o desempenho da nossa tarefa vocacional. Donde vem a compreensão que está na nossa mentalidade que cria todo esse modo de ser e pensar acerca da vida de estudos tanto nas disciplinas seculares como nas espirituais? Como pensamos a relação entre os estudos das ciências e da Filosofia e outros estudos afins com a formação espiritual, com o empenho no vigor e na clarividência do que denominamos vida da Fé cristã?

Os textos dos artigos propostos como leitura de fundo para as nossas discussões tratam dessas nossas questões acima mencionadas, a partir de uma colocação teórica muito mais de fundo e de origem, marcados com a questão do relacionamento entre Razão e Fé, que na nossa época tomou a forma da questão de relacionamento entre ciências e coisas de Deus. A partir de comentários, explanações, informações e discussões desencadeados na leitura desses textos, vamos cada qual, dentro e a partir da “profissão e vocação” de cada um(a) de nós aqui presentes, portanto, das pessoas que vêm da psicologia, pedagogia, da física moderna, da espiritualidade, teologia e filosofia, sondar o fundo teorético do nosso saber, tomando como fio condutor de nossas discussões o tema: a diferença entre o psicológico e o espiritual e a diferença entre a terapia e a orientação espiritual.


12/11/ 05: 8,30-12 H

De manhã conseguiu-se ler todo o primeiro artigo, da autoria de Rombach,  A Fé em Deus e o Pensar científico. Com o intuito de ao menos termos lido todo o texto assim materialmente, lemos parágrafo por parágrafo, cada vez uma pessoa lendo alto numa seqüência em círculo, outros escutando, simultaneamente também lendo o que escutava na apostila que tinha à mão, interrompendo-se após cada parágrafo a leitura, para explicação de termos desconhecidos, estranhos ou de significação específica ou se destacando o pensamento ali contido, sem, porém, entrar propriamente em discussões mais detalhadas que nos afastassem dessa leitura elementar, quase material de primeiro contacto.

Até o almoço, conseguimos passar todo o texto de Rombach, de modo por cima, mas bem calcado. Acentuou-se que esse tipo de leitura material é de grande importância, para que depois quando começamos a refletir o tema, tenhamos presente de modo concreto-material onde nos agarrar, de tal sorte que não disparemos para todos os lados inocuamente e avoadamente, sem progredirmos passo a passo e concretamente na compreensão mais real do assunto. Na reflexão, quanto mais alguém é capaz de ler assim materialmente e isso com cordialidade, várias e repetidas vezes, tanto mais se penetra no tema de modo certeiro. Usualmente ao ‘dialogar’ podemos fazer quais dois bodes. Ao se encontrarem em direções opostas sobre uma pinguela, ficam dando com cabeça de idéias fixas pancadas de mesmo jeito e na mesma direção, sem fazer o feed back de suas pressuposições ou disparamos em conversas inócuas a modo de todo mundo discutir, sem perceber que se está discutindo de modo inteiramente equívoco, cada qual colocando como significado de um mesmo termo suposições diferentes. Esse tipo de defasagem nas nossas reflexões e debates vêm quase sempre de não nos prepararmos o suficiente numa espécie de concentração ao redor de um exercício de cunho material (aqui ler literal e materialmente um texto várias vezes). A nossa mente, igualmente ao nosso corpo, se antes não fizermos exercícios prévios adequados de aquecimento, não consegue assim de repente, ainda fria, seguir e abrir caminhos de uma boa reflexão.

Como o resumo do conteúdo do texto, lido nessa manhã, temos os seguintes itens:

A nossa “consciência” epocal contemporânea está dividida em duas partes, por abismo de uma fenda, tida por intransponível, entre a realidade da “Fé em Deus” e a realidade do “Pensar científico”. Se rastrearmos a proveniência dessa fenda abissal, chegaremos ao início da nossa epocalidade, quando se deu a assim chamada ‘revolução copernicana’ com o surgimento das ciências modernas da natureza, cujo fundo teórico unívoco e dominante aparece no modo de ser das ciências físico-matemáticas. Houve entrechoque entre essa concepção do mundo e da vida a partir e dentro dessa visualização físico-matemática e a concepção do mundo e da vida a partir e dentro da mundividência que se estabeleceu dentro da assim chamada Fé cristã ou Fé em Deus. É o famoso e famigerado conflito entre representantes da Igreja católica e corifeus das ciências em surgimento, como Copérnico, Kepler e Galileu, conhecido como a luta entre o heliocentrismo e o Esse conflito escondia no seu bojo uma questão: tanto na “Fé” como na “Ciência” aqui materializadas como a posição geocêntrica institucional da Igreja e como a posição heliocêntrica da “ciência moderna em surgimento”, se davam a sedimentação e o enrijecimento defasados das suas respectivas inspirações originárias. O conflito, em vez de levar tanto a “Fé” como a “Ciência” ao exame de revisão em retorno de cada qual à sua intenção e experiência de origem, e ali buscar uma compreensão do relacionamento das duas colocações, disparou em direção ao endurecimento interno de cada posição. Isto levou ou à separação irredutível entre Fé e o Pensar científico ou às tentativas infundadas e confusas de uma síntese a modo da Filosofia cristã nos moldes manualísticos de uma neoescolástica dogmatizada.

Em vez de buscar uma síntese e procurar uma ponte de ligação entre as duas partes, radicalizar a fenda e ir até lá onde iniciou a separação, é o que propõe Rombach. Se seguirmos esse caminho, chegaremos a descobrir que a separação se deu devido à própria Fé e sua Teologia que ao radicalizar de tal maneira a identidade absoluta de Deus, nos revelou uma realidade em si, cuja diferença em referência a outras realidades que não fossem Deus era tanta que a partir de outras realidades não haveria a possibilidade de um acesso a Deus, i. é, à realidade da Fé. Essa radicalização, a partir e dentro da Fé, longe de ser uma rejeição ou afastamento de Deus, era a expressão da mais íntima e suprema estima e do absoluto respeito para com Ele no amor na positividade de afirmação da sua presença. No momento em que essa presença pregnante da Fé começa a perder a sua vigência, e é esquecida, surge a separação. E todo o empenho de busca se concentra em se realizar na positividade da absoluta afirmação do Mundo, de suas possibilidades e suas implicâncias. Surge assim a impostação da modernidade e o seu a-teísmo, não como negação de rejeição ou de repulsa contra Deus, mas sim como a autonomia da positividade de uma nova impostação diante da totalidade do ente, portanto no todo da realidade Deus, realidade Homem e realidade Universo. Abre-se assim a possibilidade das ciências modernas como abordagem universal e seu método de processamento na realização da realidade, dividida na dinâmica da busca das ciências naturais (realidade Universo = natureza), das ciências humanas (realidade Deus e realidade Homem = espírito ou o humano) e da ciência primeira, que pesquisa a cientificidade de todas as ciências, quer naturais quer humanas: a epistemologia cuja estruturação básico-fundamental aparece nas ciências lógico-matemáticas.

Nessa nova perspectiva da dominação vigente da dinâmica de busca universal enquanto impostação científica que atinge o todo do ente, a questão do relacionamento Fé em Deus e o Pensar Científico não é mais abordada no nível de confronto da diferença e identidade de duas concepções ou visões do mundo e da vida, ou de ideologias ou crenças de dois diferentes grupo de pessoas, uma chamada mundividência cristã e outra mundividência científica. Tudo é agora avaliado e medido sob a dominância da cientificidade da impostação científica. Aqui a ciência é uma ação humana de processamento e transformação de todo o ente na realização da realidade. Aqui não se trata de interpretação da realidade. Não se trata da coisa em si dada de antemão a ser contemplada e descrita fielmente. Trata-se sim de um gigantesco projeto do processo de transformação a partir e dentro de uma interpelação produtiva da realidade. Ciência é projeto de antemão lançada como hipótese que a partir de um posicionamento prévio. A partir dali, tenta processar tudo que lhe vem de encontro dentro desse próprio projeto. E o faz para confirmar, averiguar, constatar a validez do lance projetivo ou da hipótese, ou no caso de não confirmação, voltar ao primeiro lance do projeto, e ali refundar, relançar nova, ou novas hipóteses, cada vez mais, melhoradas, mais abrangentes, mais duradouras etc., reduzindo tudo à homogeneidade do asseguramento da coerência e lógica da hipótese lançada. De tal modo que nesse imenso sistema da nova humanidade e do seu saber, não haja nada que não esteja assegurada pela homogeneidade da realização da realidade na sua imanência absoluta. Por causa desse posicionamento de autoasseguramento as ciências se chamam ciências positivas, e o protótipo atual dessa positividade é a precisão do tipo das ciências lógico-matemáticas das ciências naturais que se chama exatidão. Por isso, as ciências naturais se chamam também de ciências exatas. E tudo isso de tal modo que hoje todas as ciências humanas mostram a tendência de adotar a cientificidade das ciências exatas como medida e valia de sua cientificidade[2].

Rombach, em vez de combater em nome das ciências humanas e das coisas da Fé essa dominação totalitária do modo de ser lógico matemático das ciências naturais, busca no próprio bojo, no mais íntimo das ciências modernas uma “teoria” que pode ser entendida como radicalização ou identidade nuclear da cientificidade positiva ou melhor positivista das ciências naturais, denominada por ele de “teoria das dimensionalidades” que é variante qualitativamente mais profunda da “teoria dos conjuntos” em Husserl (Mannigfaltigkeitslehre). Nessa teoria das dimensionalidades encontra-se, conforme a sugestão de Rombach, a nova “ponte” entre a Fé e o Pensar científico. “Ponte” que propriamente não é nenhuma síntese, nem passagem, nem transformação nem evolução, mas a “solução” denominada “identidade da diferença” do relacionamento entre A Fé em Deus e o pensar científico, entre a experiência e o experimento, entre espírito de geometria e espírito de finura, entre as ordens do corpo, do espírito e a ordem da caridade em Pascal[3].

Assim o artigo nos propõe uma nova concepção da cientificidade que segundo Rombach não está mais sob o domínio da concepção ingênua, tradicionalista e obsoleta da Ciência, mas um novo “paradigma” da cientificidade, livre das amarras de mundividências, ideologias e infindos –ismos, mas que é o próprio movimento, a própria dinâmica dos multifários desvelamentos do ser na sua inesgotável e insondável cordialidade da vitalidade e riqueza na sua possibilidade abissal.

E para ilustrar esse modo de ser da nova cientificidade, na qual p. ex. a dimensão da Fé vem à fala na sua logicidade, metodologia e efetivação toda própria, com outras palavras, na sua plena cientificidade própria, Rombach evidencia alguns fenômenos da existência religiosa como p. ex. a experiência da autojustificação, a recepção assumida da culpabilidade como salvação etc.

Dentro dessa leitura, ao esclarecer provisoriamente alguns pontos ou termos ocorridos na leitura, surgiram alguns pensamentos que são de alguma forma afins com o conteúdo do texto que a seguir enumeramos assim de modo avulso:

Sobre a questão do heliocentrismo e geocentrismo. A Igreja com seu bitolamento e fechamento diante das novas descobertas da astronomia condenou o heleiocentrismo em favor de geocentrismo. Aqui, Rombach afirma que a situação histórica dessa oposição já se tinha deslocado da sua situação originária. O que movia originariamente a questão, o pivô da questão não era propriamente se a terra girava ao redor do sol ou se o sol girava ao redor da terra. O núcleo da questão desse confronto estava na tentativa de, tanto na Fé como na Nova Ciência, cada qual manter límpida e viva a lógica e a coerência da busca da profundidade, a partir e dentro da qual cada uma delas fundava a verdade do seu ser.

Para a nova ciência natural, o que valia como o ponto de decisão não era tanto o fato do heliocentrismo, mas que o heliocentrismo como fato, era mais coerente e lógico do que o geocentrismo como fato, dentro do todo do lance hipotético, cujo projeto a partir e dentro do qual, todos os fatos do universo físico pudessem ser ordenados e ligados mutuamente dentro de previsão, cálculo e cômputo dos relacionamentos e equações matemáticas. Para a teologia (que é tida como ciência da Fé) a preocupação era apenas guardar límpida e logicamente a interpretação coerente da realidade que se dizia divina, portanto, realidade das palavras de Deus, da Bíblia.

Nesse relacionamento entre o reino da Fé e o reino das ciências, a indevida extrapolação, i. é, o contrabando, a exportação e importação de momento(s) de um reino para o outro, somente impede e retarda o progresso. O que aconteceu com Newton que ao introduzir na Física o espaço absoluto como o fundo de referência no qual toda a indicação de lugar e tempo deveria ser relacionada, tentou salvaguardar o dogma da onipresença de Deus, criando o lugar de mediação entre espírito puro e matéria. Essa introdução de uma mundividência ou ideologia de fundo teológico na ciência exata bloqueou por muito tempo o progresso da física e astronomia.

Esse modo de ser preconizado por Rombach na assim chamada teoria das dimensionalidades como sendo o modo de ser insinuado na compreensão nova das ciências pode aparecer p. ex. na compreensão originária e defasada da excelência nas disciplinas do ensino e da pesquisa nas ciências. Por isso frei Hermógenes trouxe como exemplo o que foi dito num colóquio acadêmico realizado na Faculdade São Boaventura entre pessoas da área da gestão e administração, da medicina, da economia e da filosofia. Resumindo o colóquio foi dito mais ou menos o seguinte: O substantivo a excelência indica a qualidade de uma coisa ser O adjetivo excelente é nele mesmo superlativo, mesmo que se possa dizer: “excelente, mais excelente, excelentíssimo”. ‘Excelente’ e ‘excelso’ vêm do verbo latino excello, excellsus, excellere (fórmula arcaica). Excellere se compõe de duas palavras: ex e cellere. Ex- é um prefixo que indica o movimento de ir-para-além; Cellere significa erguer-se, se levantar: refere-se, pois, à ação, à dinâmica da superação. Conota, portanto, o estar aberto sempre de novo à melhoria. É, pois, a qualidade do movimento de ação, o vigor de buscar, cada vez mais, o melhor de si: é o gosto, a paixão da alegria expansiva de ser. É a jovialidade de ser. Nesse sentido, a excelência indica a vitalidade, a cordialidade de ser. Por isso excelência, cada vez, em cada disciplina deve ser entendida como a jovialidade de ser de cada disciplina, na plenitude cordial e viva do próprio de cada disciplina. Essa compreensão original da excelência pode ser esquecida e substituída por um valor menor, o de busca do primeiro lugar no ranking de competividade de uma determinada efetividade e produtividade. Assim o conceito de excelência se estreita e se bitola. O estreitamento, com o tempo, pode-se virar contra a própria efetividade e produtividade, de tal sorte que o empenho humano cujo característico é o vigor da jovialidade de ser, i. é, a excelência, se transforma numa angustiada e angustiante acribia de cálculo e medição de si, sempre se medindo com os outros numa corrida sem rumo do primeiro lugar. Segundo o que foi dito, se conclui que cada disciplina científica tem o seu ser, e conforme seu ser deve definir a sua excelência. As ciências positivas partem de um fundamento já dado como posto, (daí o nome ciência positiva) com sua definição, conceitos fundamentais determinados, e seus métodos. Esse fundamento é por assim dizer o posicionamento inicial do lance projetivo hipotético que cria o horizonte a partir e dentro do qual se processam os posteriores passos de averiguação da validez da hipótese, e assim a partir dali construir, para cima, todo um sistema de conhecimentos assegurados, concatenados entre si numa rigorosa coerência lógica. Dito de outro modo e em repetição, esse fundamento, já posto, é por assim dizer, um projeto que a ciência lança sobre a realidade, como hipótese de trabalho. Esse lance é sempre de novo examinado, em diversos e sempre renovados experimentos. Assim, o lance primeiro é testado na sua validade e eficiência, de tal sorte que, na medida em que se dá a averiguação positiva, vai confirmando a validez da sua colocação posta inicialmente, passando-se da hipótese à teoria. Mas na medida em que os experimentos não confirmam a validez da hipótese, volta-se à sua colocação primeira, para ampliar, aprofundar, recolocar ou purificar a hipótese, buscando para a colocação positiva de início uma fundamentação mais vasta, mais profunda e mais purificada de interferências indevidas de outras colocações ou de extrapolações. Esse movimento de retorno das Ciências positivas para o lance inicial do seu projeto, como ao fundamento da sua positividade para re-fundação e aprofundamento da sua base, se dá nas ciências positivas, quando o todo do seu sistema entra em crise. É no aprofundamento da sua colocação primeira que se dá propriamente o progresso de uma ciência. As ciências, portanto, jamais são um sistema fixo de conhecimentos definitivos, mas são variegadas concatenações em diferentes ordenações e constelações de hipóteses e suas averiguações em constante retorno para a renovação e refundação da hipótese primeira que deu a origem a uma determinada ciência. É nessa dinâmica do todo vivo de sistemas abertos em mútuas implicâncias que cada ciência constitui seu ser, sua definição, seus métodos e modos de vir à fala como excelência.

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A partir dessas reflexões, ficamos trocando idéias assim sondando por cima por que, ao estudarmos, − cada qual aqui reunidos, − o que pertence ao nosso ofício, não sentimos na nossa pele a proximidade e urgência de abraçar os estudos de uma forma bem mais existencial como minha coisa.

Regina: Não estudamos a espiritualidade devidamente como seria próprio para a vocação e profissão que abraçamos. Não é porque se estuda para passar para os outros?

Hermógenes: E se os outros não escutam o que eu quero passar?  Como fica?  A questão do estudo pode ali virar coisa ou causa da existência humana, i. é, da minha vida? À pergunta feita no Evangelho ‘Quem é o meu próximo’ Jesus responde, contando a parábola do bom samaritano e pergunta: “Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Responde o mestre da lei: “Aquele que usou de misericórdia para com ele” (Lc 10,25-37). Que tal supor que o outro mais próximo e mais real, o primeiro outro, o mais necessitado a quem devo cuidar sou eu mesmo? Para que esse “quem-eu-mesmo” se torne cada vez, sempre de novo e para sempre um eu mesmo. Mas um eu-mesmo como o de Deus, que sempre e em toda a parte, e cada vez de todo o coração, de toda a alma, e de toda a ‘diánoia’ usa, ou melhor, está no uso de misericórdia. E misericórdia não na acepção de compaixão e pena de um ser superior para com a miséria de um ser inferior. Mas miseri-córdia como amor apaixonado de um Deus incarnado.  Misericórdia entranhada de um radical novo amor de Deus que feito Homem Crucificado se sabe que no amor não há superior e inferior, mas todos, de preferência o próprio Deus por saber à Caridade, se sabe dando o seu próprio, o melhor de si humilde,  livre e gratuitamente, como um mísero pedinte, a esmolar do outro que o outro lhe conceda a benevolência de aceitar a doação do seu amor. Quando estudar se torna minha causa, minha coisa e percebo que o outro, o mais real e o mais próximo sou eu mesmo a mim mesmo, e que amar o próximo é querer e fazer para todos os outros, o que eu faço e quero a mim mesmo como o primeiro outro, o mais próximo de mim, então se começa a entender o que significa a responsabilidade existencial de tornar-se o próximo do outro, de tal sorte que, tudo que faço para mim mesmo, é o empenho cada vez mais cordial e trabalhado da disposição de ser Deus-Misericórdia. Esse studium fundamental da existência cristã pode nos dinamizar e agilizar para que estudemos para valer tudo que vem de encontro como tarefa e desafio do nosso destinar existencial.

Corniatti: Vida Religiosa vira um grande estudo.

Lucas: Qual idéia de ciência diz que filosofia, espiritualidade não é ciência…

Hermógenes: Talvez aquela ideologia que se aninhou na ciência e a define como sendo unívoca, cuja cientificidade deve ser pautada segundo uma única idéia fixa padronizada de ciência, a modo de uma objetividade da exatidão ‘à las’ ciências naturais de um feitio? E que não conhece a nova concepção multifária da ciência como ciências? Mas aqui para poder captar o que Rombach fala da nova concepção crítica da ciência moderna é necessário aprender a ver. A esse ver, Rombach chama de experiência.

Hugo: Teologia não é exata. Se quiser sê-lo, não pode dizer qualquer besteira?!?

Hermógenes: Teologia por ser mais vasta, mais profunda e mais vital na propriedade da dimensão a partir e dentro da qual se movimenta, não pode ter nem se contentar com a precisão de uma ciência que se move na dimensão de cálculos, cômputo e medição do tipo de exatidão. O rigor do saber teorético é de precisão toda própria. Aqui na busca do rigor de precisão exige empenho e atenção toda própria, que não se adquire através dos exercícios na exatidão matemática. O que na teologia pode parecer indeterminado e confuso ou demasiadamente fixo e não esmiuçado pode ocultar, se bem examinado, precisão e rigor que a exatidão matemática desconhece. Mas no nosso caso, entre nós, pode ser e o é na maioria dos casos, inexatidão e confusão de dimensões, por nem sequer alcançarmos na teologia, na ciência de Deus, o próprio do rigor e precisão do toque originário que cria e estabelece o seu fundamento.


12/11/05: 14H

Hermógenes: O que entendemos por problema “psicológico”?

Lucas: Vem da pessoa mesmo. Da sua cabeça.

Corniatti: Ciência é o real. Psicológico é o inventado.

Regina: Psicólogo, ele mesmo, não diagnostica tão facilmente um sintoma de psicológico. Leigo é que fala com muita facilidade do psicológico.

Hermógenes: É o jeito popular de falar. Psicólogo sabe que o psicológico pertence a uma ciência toda própria. Mas o que será que a linguagem popular quer indicar quando fala: isto é psicológico? Ou quando dizemos que podemos aprender muito mais psicologia do romance de um Machado de Assis ou do relato da experiência de um sertanejo do que da ciência Psicologia? Desconfio que aqui, o psicológico cá e o psicológico lá, indicam duas coisas bem diferentes. Piada: um homem deitado no divã, a relatar ao psicólogo que um jacaré o persegue. O médico lhe receita um calmante. O paciente nas seguintes sessões se queixa que o jacaré se achega cada vez mais perto dele. Novas receitas de calmante, cada vez mais forte. Depois de um longo tempo de terapia, o paciente se cura e não mais aparece ao consultório. Um dia, ao encontrar com a esposa do paciente, lhe pergunta pela saúde do marido. A viúva, vestida de luto responde: Doutor, o jacaré o comeu. Quando há pouco frei Corniatti, laconicamente ‘definiu’ a ciência como real e o psicológico como inventado, talvez quisesse dizer que no uso popular do adjetivo ‘psicológico’, identifica o ‘psicológico’ com o fantasiado, imaginado, subjetivo, e não objetivamente real. Mas quando um psicólogo diz ‘psicologicamente falando’, está dizendo a partir e dentro da ciência chamada psicologia. Trata-se de alguém que tem plena consciência de que está engajado no modo de ser, pensar, sentir e querer da comunidade humana, chamada científica. As pessoas que chamamos de leigos nos assuntos científicos não estão isentos da pertença à comunidade humana científica, pois hoje ciência é possibilidade humana epocal, se não necessária, ao menos densamente pregnante e urgente, historicamente. Aqui a expressão ‘leigos no assunto’ quer apenas dizer que não somos oficialmente especialistas no assunto. Por isso frases, ditas frequentemente por nós, como essa: “A gente estuda tanto Sagrada Escritura, tanto Psicologia, Filosofia, Teologia e depois me vem uma mãe de família pobre quase analfabeta e faz uma reflexão tão profunda e viva! Ou o que adianta estudar tanto, se a coisa vai de modo muito mais simples, sim “simples como Francisco”[4]  revela uma superficialidade e imaturidade tão grande que aqui não há condição nem para entender a simplicidade sofrida, lutada, conquistada na vida pela mãe pobre e analfabeta, nem o desafio de empenho e desempenho, do sofrimento e luta na busca e sua defasagem na sedução do poder e sua tentação, da existência humana da comunidade hodierna e epocal chamada Humanidade da era científica.

Corniatti: Na VR tem os estudados e os não estudados.

Hermógenes: Frei Dorvalino disse que um confrade seu estudante de teologia falou que era má aplicação de recursos ir às missões ‘ad gentes’ porque aqui no Brasil, em casa, se precisa mais de missionários do que lá fora. Um irmãozinho, sem estudo, com toda a admiração e inveja comentou: “O que não faz o estudo!” Há, pois, estudo e estudo, e é importante que nós, os estudados e os não estudados,  enterrados até o pescoço na humanidade científica, estudemos a nosso modo o que significa, e de que se trata, quando falamos da necessidade, da inutilidade, dos perigos ou das vantagens dos estudos.

Uma criança do ensino fundamental, hoje, sabe infinitamente mais sobre átomo do que Aristóteles. Chamamos o saber e o mundo criado pela humanidade científica de nosso mundo moderno hoje. E o que a gente faz no cotidiano que nem sempre é tido como científico e é chamado por isso de pré-científico, está impregnado do modo de ser e pensar do mundo científico. Por ex. ao dirigir carro estou me movendo inteiramente no mundo científico operativamente. Bem antigamente, quando eu era clérigo estudante de Filosofia em Curitiba, um casal de caboclos do interior estava internado na Santa Casa, onde eu também estava por causa de uma cirurgia no joelho. A irmã enfermeira me contou rindo o seguinte: O doente era marido e a esposa vinha como acompanhante. De manhã bem cedo, quando a irmã enfermeira foi fazer primeiros curativos, a esposa se queixou que fez de tudo para apagar a lâmpada lá em cima no teto, jogou travesseiro, jogou água, mas não conseguiu apagá-la. Quando a irmã apertou o botão de contato na parede, ficaram boquiabertos pelo milagre. Nós rimos de pessoas assim “simples”, achando-as ingênuas e ignorantes. No entanto, não se trata nem de ingenuidade nem de ignorância. Trata-se da identidade e diferença de mundidades. O espanto do casal que está inteiramente fora do sistema científico da rede elétrica, longe de ser simploriedade, ingenuidade ou ignorância, é uma racha, uma aberta (nesga do céu que as nuvens, se abrindo, deixa ver no dia nublado), prenúncio da possibilidade de começar a ver um novo mundo no seu lance inteiramente novo. Inteligência de uma pessoa não depende tanto da habilidade em funcionar dentro de um sistema ou saber tudo ou muito das padronizações e estruturações de um determinado sistema. Inteligente é quem é capaz de ser tocado, ser ferido pela racha de fundo de um sistema. Nós que funcionamos tranquilamente dentro dos percursos do sistema elétrico e sabemos tudo ou quase tudo do sistema em que operamos e vivemos, não sabemos nada saber em que consiste propriamente o fundo, o mais fundo, donde deslanchou todo esse sistema que possibilita que uma lâmpada elétrica se acenda. O decisivo é como e com que acordo, isto é, com que  acordação estamos despertos para a questão do fundo do nosso saber: problema do estudo na nossa formação.  Para perceber como estamos cercados do clima da cientificidade das ciências naturais, experimentemos dizer o que nesta sala não é científico. Se você disser que é você, e o gato, a planta, a pulga que mora no cachorro etc., porque são vivos, então experimente examinar como você entende todos esses seres orgânicos e vivos. Não é assim que todas as nossas interpretações do que seja vida, seja vida vegetal, animal, anímica, espiritual, divina são mediadas pela compreensão elementar do que seja energia a modo das ciências físicas da natureza? Portanto como pro-ductos das ciências naturais? Por que será que hoje em dia, em exposições de ikebana, se ouvem exclamações como essa: “puxa que flor bonita! Parece artificial?!?


12/11/05: 3:30hs

Chegam Marcos e a turma de Goiás. Começamos sob a coordenação de frei Marcos ler outro artigo acima mencionado, tirado da Scintilla, da autoria dele que se chama: Ciência e Fé: ensaio em busca de uma identidade na diferença, pp. 11-45.

Marcos: Trabalhei aqui a teoria da ciência que Rombach tematizou com seus alunos. Talvez o primeiro passo é a gente ver o que entendemos por concepção ingênua de ciência e concepção crítica da ciência.

Hermógenes: O que aqui se denomina concepção crítica da ciência é insinuada pela teoria das dimensões que falamos de manhã, ao lermos o artigo de Rombach.

Marcos: A concepção ingênua da ciência é a que temos usualmente, tanto os leigos como os próprios cientistas. É algo como cama de Procustes.

Hermógenes: Que coisa é essa a cama de Procustes?

Marcos: É cama inventada e usada por um bandido, personagem mitológica da mitologia grega, chamada Procustes ou Procrustes. Chamava-se também Damastés ou Polypémon. Procustes possuía uma hospedagem à beira de uma estrada perto da cidade de Mégare e atraia os viandantes a descansarem e dormirem na sua hospedaria. Suas camas eram todas de dois tipos: de um tipo, a saber, camas compridas e iguais; de outro tipo, a saber, camas curtas e iguais. A hóspedes altos, ele os colocava em camas curtas. E os ajeitava, encurtando-os conforme a medida da cama, cortando-lhes os pés. A hóspedes baixos, ele os colocava em camas compridas. E os ajeitava, esticando-os conforme a medida da cama. E se orgulhava que as camas da sua estalagem, de antemão estavam na adequação exata para toda e qualquer diferença dos seus usuários. Dois tipos de camas aqui sugerem os binômios,[5] p.ex. como alto e baixo, grande e pequeno, pesado e leve etc. Os opostos parecem dois, mas na realidade, um extremo é outro extremo oposto do igual. Como a inércia é o 0 do movimento. O que aqui parece dois, na realidade é um, no sentido de uma única medida igual unidimensional a partir e dentro da qual se dão os extremos. Medida fixa e dogmatizada, para a qual, tudo que não lhe é afim, é eliminada, e o que lhe é afim, lhe é adequada, na medida em que o corta ou estica conforme a funcionalidade a partir e dentro da medida igual, preestabelecida.

Esse modo de ser da unicidade unidimensional se traduz e aparece na concepção ingênua da ciência, quando usualmente, cientistas ou não, pensamos que há a ciência, i. é, a ciência é uma e una no seu todo, na sua cientificidade, de tal sorte que há somente um conceito de ciência. Certamente existem várias ciências, há diferenças e especializações. Variam segundo os objetos correspondentes, os quais elas explicam. Mas no ser ciência, na cientificidade, todas as ciências têm e se não tiver ainda tentam adquirir a excelência científica, tendo como modelo único e único modo de ser o modo de ser das ciências naturais físico-matemáticas, que se transforma em medida única na medição da cientificidade das ciências. Esse modo de conceber a ciência encontra-se, p. ex., na concepção empirista na física; na concepção materialista na química; no relativismo, ou historicismo na historiografia; psicologismo, biologismo e por fim fisicismo na psicologia. Todos esses –ismos são no fundo crenças ou mundividências que operam na concepção ingênua, fixa e unicista da ciência, tendo o modelo das ciências naturais como a medida única e absoluta e optimal na avaliação da cientificidade de todas as outras ciências.

Hermógenes: Vamos ver estes ismos como estão na ‘cabeça’ de cada um de nós, e como atuam na maneira de julgar e avaliar o grau de cientificidade de nossos conhecimentos (um momento de silêncio para esse tipo de rastreamento).

Corniatti: Todos os ismos para mim são coisas negativas.

Hermógenes: Temos como evidente que 2 + 2 = 4. O lógico e o matemático dizem: é evidente que essa equação não muda. O Psicologismo no tempo de Edmund Husserl (o fundador da moderna fenomenologia) dizia: o juízo 2+2=4 é um juízo e como tal um ato psíquico. Assim a figura ideal, cuja estrutura é aparentemente imutável se dá no e depende do ato psíquico. O ato psíquico se dá e depende da vida biológica do homem. Enquanto biológico, o ato psíquico, que configura a estrutura lógico-ideal 2+2=4, está sujeito à lei da evolução. Assim, mais tarde no futuro, quando a evolução humana tiver atingido um grau digamos supremo, essa estrutura lógico-ideal poderia talvez mudar? Mas essas mudanças evolutivas não são outra coisa do que degraus de processos de evolução, no qual o estado de coisa do ente hoje chamado ser humano passou do estado físico-material para biológico, do biológico para psico-anímico, do psico-anímico para racional, de tal sorte que ao partir da incrustação na pura coisidade da pura materialidade, nos clareamos a partir da irracionalidade de uma imersão na vida biológica, para um lusco-fusco de uma tentativa ainda dormente de ‘consciência’ incoativa como vida psico-anímica, para aos poucos alcançarmos e adentrarmos o acabamento evolutivo de racionalidade de um iluminismo e esclarecimento da consciência humana, cuja expressão, a mais legítima e autêntica é a ciência moderna, na sua configuração e estruturação a modo das ciências naturais físico-matemáticas. Assim, as estruturações lógico-matemáticas como p. ex. 2+2=4 podem evoluir nelas mesmas. Tornam-se cada vez mais diferenciadas, refinadas, de-coisificadas, na direção de desmaterialização e des-substancialização. E isto, a ponto de se transformarem em puro movimento de estruturações das estruturações, tanto para a maximalização das estruturas como para a sua minimalização, numa afinação infinitesimal de cálculos de cálculos de cálculos cada vez mais certeiros, reconduzindo tudo e todos os momentos de todas as coisas a uma pura presença homogênea de relações de cálculos a modo matemático. Assim tudo se torna um e igual em todas as coisas.

Aloízio: Psicologismo ou biologismo?

Hermógenes: É psicologismo que vira biologismo, biologismo que vira fisicismo, fisicismo que vira puro movimento de cálculo e relações lógicas da ação de asseguramento da certeza e homogeneidade dos cálculos.

Marcos: Talvez o que a gente usualmente, digamos na concepção ingênua da ciência, entende por ciências são resíduos destes ismos. E a consciência da gente acaba moldada pelos diversos -ismos.

Débora: Isso quer dizer que o sujeito fica voltado para si mesmo e não para o todo. Fica compartimentado.

Hermógenes: Sujeito, nessa afirmação de Débora, seria a ciência na sua concepção ingênua de si mesma? Compartimentado então significaria que fica fechada em si, de tal modo que se considera como a ciência? Nesse caso é um saber que não se sabe a não ser como absoluto. Como seria então a ciência voltada para o todo? Não seria, em vez de a ciência, ciências na livre e cordial soltura de relacionamento mútuo, na expansão e no recolhimento vivo, da sintonia universal?

Marcos: Sujeito voltado para si mesmo, compartimentado é uma ciência tomada como visão do mundo, mundividência, uma crença ideológica. Isso vai tomando corpo no nosso dia-a-dia, e isso mesmo dentro da vivência da Fé.

Hermógenes: Talvez possamos chamar o que acima foi descrito como a concepção ingênua da ciência de cientificismo? Não seria então essa mundividência chamada agora cientificismo que cria também a concepção ingênua de mundo científico e mundo não científico? Nessa concepção o que ou quem é do mundo científico é real, verdadeiro, melhor e possui a excelência de alguém ilustrado, esclarecido, racional, ao passo que o mundo não científico é qualificado de primitivo, irreal, subjetivo fantasioso, irracional, ignorante e atrasado!?

Joaquim: Tive um tempo problema de ouvido. Ao conselho de uma pessoa sábia e ciente nas coisas da terapia caseira, usava água oxigenada. Estava indo bem. Influenciado pelo conselho de quem está assim por dentro da atualidade e atuação da medicina científica, senti-me um tanto irresponsável pela minha saúde, e submeti-me à terapia científica, com sua bateria fantástica de exames e aplicações de antibióticos. Tudo isso, na hora aliviava. Mas depois tudo voltou de novo. Por fim, eu voltei à água oxigenada e foi melhor.

Marcos: Num encontro sério de representantes da Formação na Vida Religiosa, ouvi uma longa e aborrecida exposição de Teologia estatística. O que significa aqui a palavra estatística e sua realidade e realização, numa ciência cujo caráter próprio se chama Teo-logia? Que tipo de ciência precisa de estatísticas? As estatísticas como ciência estatística pertence à  especificação de que ciência? Diante dessa confusão e extrapolações que se dão dentro da concepção ingênua da ciência, se sente a necessidade de esclarecer o conceito de ciência numa compreensão mais crítica e real. Por que, na opinião usual e pública, quem é de humanas não é científico, só os que são de física e química e de estatística?

Hermógenes: Conheci um professor que ensina numa faculdade de administração em Santa Catarina e ensina ciências naturais no colégio. Ele afirma com orgulho que conhece muito bem a teoria de relatividade de Einstein e da teoria dos quanta, e que a partir dos seus conhecimentos certos das ciências exatas, consegue provar que existiu a criação do mundo por um criador, e que as ciências exatas hoje conseguem provar a existência de Deus. Quem não aceita essas provas científicas acerca das coisas divinas e das coisas que a Igreja ensina é um ser irracional. Essa pessoa, aliás, é um catolicão. Certamente Geraldo vai protestar, dizendo que essa pessoa pode ser tudo, um grande “crente”, mas jamais alguém que entende realmente o que é científico. E a gente pode também dizer que essa crença, provavelmente pouco, ou melhor, nada tem a ver com a Fé, no sentido cristão. Quando um confrade meu que estuda filosofia e faz doutorado em Plotino ouviu essa pessoa dizer que ao ensinar ciências naturais aos jovens no colégio, com esse modo de mostrar que as ciências provam as verdades da Fé, está formando cristãos futuros, esclarecidos e modernos na Fé, me disse baixinho: com todo o respeito, esse senhor está corrompendo os jovens teoreticamente, tanto em referência às ciências como em referência à religião.

Marcos: E pensa que está prestando um serviço à Fé. Vamos ver os preconceitos desta visão ingênua.

A seguir, um trecho do seu artigo Ciência e Fé: ensaio em busca de uma identidade na diferença.

Marcos: Os preconceitos que caracterizam a concepção ingênua da ciência. Os preconceitos aqui significam conceitos prefixados de antemão. São eles: “a) que ciência é uma forma de consciência fixa e imutável; b) que, se existe uma historicidade da ciência, então esta consiste num aumento dos conhecimentos; c) que existe só um tipo de ciência e que, se existe pluralidade de ciências, esta pluralidade é decorrente puramente da diversidade de objetos; d) que no caminho do aumento dos conhecimentos os erros se distinguem claramente dos acertos e que as contradições e os equívocos estão excluídos; e) que o conhecido pela ciência não pode sofrer uma reinterpretação radical; f) que as ciências podem ter como pronta sua cientificidade, sem precisar de rever e reinterpretar a si mesmas; g) que a ciência, na sua essência, não muda”.

Tendo esses preconceitos, que caracterizam a nossa compreensão usual e ingênua da ciência, no fundo, contrastemos com esse fundo, as características da concepção crítica da ciência. São elas: “a) não há nenhum conceito fixo de ciência, nenhuma forma de “ciência como tal”, mas ao contrário, a forma total da ciência pode ir se transformando com as suas próprias descobertas; b) no progresso científico, não há um aumento unívoco e unitário do conhecimento, uma vez que os critérios do que é conhecimento mudam justamente com o progredir no conhecimento; c) não existe um conceito de ciência imutável e aplicável a todas as ciências em particular, e os seus conceitos fundamentais da cientificidade variam de sentido, de ciência para ciência (“experiência”, “fundamentação”, “demonstração”, “teoria” não são o mesmo em cada uma das diversas ciências particulares); d) assim como há uma pluralidade de ciências, também pode haver uma pluralidade de métodos nas ciências em particular, partindo-se de diversos arranques; e) toda ciência permanece, até nos seus fundamentos mais profundos, em questão; f) as ciências se transformam não somente nos seus fundamentos e nas decisões prévias condutoras de seus projetos, mas também nas condições historiais e sociais em que se desenvolvem (“percepção”, “experiência”, por exemplo, transformam-se ao longo da história e da sociedades); g) também as pressuposições, as decisões prévias e os fundamentos das diversas ciências se transformam historialmente”[6].

Ao redor desse texto, teceram-se explanações, apresentaram-se exemplos e ilustrações, de modo avulso, primeiramente acerca da concepção ingênua da ciência e seus preconceitos; depois sobre as características principais da concepção crítica da ciência. A seguir avulsa e fragmentariamente alguns pensamentos, representações e exemplos ocorridos ali.

Marcos: Ocorre frequentemente a idéia de que a ciência é fixa e imutável. Isso aparece na Historiografia, quando se toma um pre-socrático e tenta valorizá-lo como um dos primeiros a falar de teoria atômica, portanto como um precursor da física atômica, apesar de ainda tão primitivo; quando se vê na alquimia medieval a ciência química no seu estado ainda bem inicial. Um caso típico desse preconceito é quando o positivismo interpreta o mito, a religião e a filosofia como estágios primitivos em evolução e aperfeiçoamento em direção à ciência moderna, partindo do seu estado primitivo o mais irracional para o pleno desenvolvimento racional na ciência atual. Tal concepção pré-conceituosa da ciência é ciência que não chegou e nem chega à clareza total de si mesma. Nas aulas de história da filosofia medieval a gente explica, explica e tenta tirar esse tipo de pré-conceito dos alunos. Dá uma canseira e decepção, quando um ouvinte, logo depois de tal esclarecimento, se refere à Idade Média como idade das trevas!

Hermógenes: O pré-conceito que afirma ser a ciência a palavra definitiva, a medida suprema da verdade, entendida como certeza da objetividade, se mostra em avaliações cotidianas, as mais banais e corriqueiras.

Regina: “Creme dental de efeitos comprovados cientificamente” vende mais.

Aloízio: Aqui aparece uma ‘cabeça’ cuja concepção da ciência  é a que diz: a ciência é a última palavra.

Hermógenes: O nosso professor de física, matemática e astronomia, frei Onésimo Dreyer era cobra nas ciências naturais. Era de uma inteligência clara, de reação rápida. Era muito irônico, sem ferir a ninguém. Numa das suas aulas de astronomia, ao nos expor a grandeza e  limpidez das relações lógico-matemáticas que ordenam o universo, ele o fez de tal modo que ficamos impressionados com a beleza da matemática. Então nos observou brincando que nos Estados Unidos, onde ele se formou, nas exposições de arte, os curadores da arte, colocam junto das obras de arte, o seu preço de venda. Assim os espectadores podem dizer: “Quanto custa esse quadro. É caríssimo! Oh que beleza! Tal científico é como preço de valoração de todas as coisas.

Corniatti: Em Guaíra, onde trabalhei, numa loja de tecidos, panos bons e baratos não vendiam. Outros, inferiores, mas mais caros, vendiam bastante. O problema aqui, nesse exemplo anterior, não é tanto que o científico é a última palavra na avaliação das coisas, mas que o povo associa o caro com bom, e barato com imperfeito. Embora eu substitua o caro com o científico, esta qualificação passa a ter o mesmo efeito como a qualificação “caro”.

Hermógenes: Não é assim que na física, novas descobertas obrigaram a mudar o próprio conceito de física?

Geraldo: A teoria da relatividade está fazendo 100 anos. Fez a física ser revista nas suas raízes.

Jovem de Goiás: A ciência nasceu da visão ingênua. O erro foi ficar nisso.

Hermógenes: O termo “ingênuo” é ambíguo. Pode primeiro significar “alienado”, defasado. Mas pode também significar “inocente”, “nascivo”, “não prevenido”, “sem pré-conceito”. A ciência recebe ou tira seus dados básicos da vida. Vida aqui compreendida como a prejacência da imensidão, profundidade e vitalidade criativa do abismo da possibilidade de ser. Chamamos essa presença prévia ao surgimento, crescimento e consumação de ciências de dimensão pré-científica. É a dimensão do que nós sem pensar muito chamamos de vida cotidiana.

Marcos: A vida cotidiana é a matriz da ciência. Só que vem a ciência e vê este momento da vida como ingênuo e como subdesenvolvimento de si, i. é, da ciência ela mesma.

Hermógenes: Hoje, no ensino, na aprendizagem e na pesquisa das ciências, fala-se muito da qualidade total ou da excelência. O substantivo a excelência indica a qualidade de uma coisa ser excelente. O adjetivo excelente é nele mesmo superlativo, mesmo que se possa dizer: “excelente, mais excelente, excelentíssimo”. ‘Excelente’ e ‘excelso’ vêm do verbo latino excello, excellsus, excellere (fórmula arcaica). Excellere se compõe de duas palavras: ex e cellere. Ex- é um prefixo que indica o movimento de ir-para-além; cellere significa erguer-se, se levantar: refere-se, pois, à ação, à dinâmica da superação. Conota, portanto, o estar aberto sempre de novo à melhoria. É, pois, a qualidade do movimento de ação, o vigor de buscar, cada vez mais, o melhor de si: é o gosto, a paixão da alegria expansiva de ser. É a jovialidade de ser. Nesse sentido, a excelência indica a vitalidade, a cordialidade de ser. Trata-se, pois, do ser humano pleno. Exemplos: satisfação da criança mamando. No calor, tomar banho e grunhir como foca satisfeita com a água. Essa compreensão original da excelência pode ser esquecida e substituída por um valor menor, o de busca do primeiro lugar no ranking de competividade de uma determinada efetividade e produtividade. Assim, o conceito de excelência se estreita e se bitola. O estreitamento, com o tempo, pode-se virar contra a própria efetividade e produtividade, de tal sorte que o empenho humano cujo característico é o vigor da jovialidade de ser, i. é, a excelência, se transforma numa angustiada e angustiante acribia de cálculo e medição de si, sempre se medindo com os outros numa corrida sem rumo do primeiro lugar. Essa busca do primeiro lugar aparece na concepção ingênua da ciência nos pré-conceitos, haja vista p.ex. ser a única medida válida, ser a última palavra, ser a absoluta valia perene e imutável, princípio e meta de todas as tentativas da busca da certeza das ciências.

Geraldo: O pensador chinês Chuang-Tzu nos admoesta que quem exerce e exercita a arte de arco e flecha deve somente atirar em si mesmo na sua agraciada finitude. Se assim não mira a plenitude da jovialidade do seu ser no atirar, mesmo acertando o alvo, não acerta e assim não faz o que pode livre e cordialmente, porque divide e objetiva a sua energia em função de obter o primeiro lugar na competição.

Marcos: A concepção ingênua da ciência concebe o progresso da ciência como aumento cada vez mais crescente de quantificação de conhecimento. E mesmo que se busque, digamos, escalação potencializada de qualidade (cf. qualidade total!), mesmo que haja rampas e degraus de aumento progressivo de excelência, tanto quantitativo como qualitativo, há uma univocidade homogênea, é um avançar na mesma linha, de mesmo jeito. Aliás, a própria idéia de progresso já é problemática. Recuos, rupturas, bloqueios, saltos, evasão, titubeios, ambigüidades e retraimentos são excluídos dessa idéia de progresso. Uma concepção dessa bitola não percebe que o verdadeiro progresso na ciência só se dá na crise de seus conceitos fundamentais. Progresso deve ser sempre parafrentex, evolução, jamais revolução ou eversão de todos os valores.

Uma irmã: É isso mesmo, depende do conceito de progresso. Se for aumento na quantidade, não. Se for aumento de qualidade, sim.

Marcos: Quantidade e qualidade são atributos do mesmo sujeito (leia-se sub-iectum). A pergunta é esta: se o próprio sujeito muda? Talvez no que os gregos chamam de física e no que os medievais, e depois nós hoje chamamos de física não haja ligação de univocidade, de evolução ou de involução. Trata-se de totalidade-mundos, cada vez finito-completo, todo próprio na identidade da sua diferença e na diferença da sua identidade, cujo inter-relacionamento não mais pode ser visto a partir e dentro da univocidade unidimensional da concepção ingênua da ciência.

Hermógenes: Todos nós vemos o sol se levantar. Dizemos o sol está nascendo. Essa visão está no todo da paisagem ali aberto, tendo todos os seus momentos-elementares, cada qual na sua diferença, a pregnância de fundo da tonância de fundo, quais configurações variegadas de um vitral medieval, – cada configuração em diferentes modos e densidade – participando do e concretizando o colorido de fundo do vitral. O cientista diz: Sol não está levantando não. Tudo isso é uma ilusão ótica, causada pela rotação da terra ao redor do sol. Aqui se abrem duas paisagens do modo de ser bem diferente e distinto. Qual dos dois é verdadeiro? Por que nós temos a tendência de logo padronizar a primeira paisagem de subjetiva, menos real, fantasiosa e a segunda de objetiva, real e verdadeira? Alguém que vê sol nascendo na sua ambiência da totalidade da cotidianidade pré-científica esta “fazendo” astronomia? Posso ver essa concepção pré-científica como astronomia no seu estágio primitivo. Quem opera na concepção cientificista, i. é, na concepção ingênua da ciência “vê” também o sol nascer. Mas reconduz, i. é, reduz, não somente o sol que nasce, mas toda a paisagem do universo, inclusive a si mesmo que se acha nesse nível subjetivo e primitivo, à paisagem físico-matemático, inclusive esse sujeito que  lança o projeto hipotético a modo das ciências naturais e o próprio projeto com todos os seus conteúdos. Como seria a realidade, quando tivermos conseguido reconduzir tudo, inclusive o homem e seus projetos à imensa rede de objetividade cuja única realidade é a realização de funcionalidade de movimentos da mútua relacionalidade, portanto da dinâmica de moléculas, átomos, partículas sub-atômicas, de quanta etc. numa composição e decomposição infinitesimal?

Ao falar dessa dimensão pré-científica, frei Arcângelo Buzzi gosta de dizer que o pai sopesava, ponderava aipim com a mão. Esse sopesar com a ponderação da mão coincide no seu modo de ser com o modo de ser do cálculo de uma balança?

Geraldo: Nos mercados de Belém. Pescador pesa o peixe com a mão. Ao lado tem balança para quem quiser conferir.

Hermógenes: Bem aqui depende de como a gente “vê” o balouçar e o ponderar do sopesar e o equilíbrio do movimento mecânico da máquina de cálculo. É uso e é possível comparar esses dois modos de pesar sob o horizonte único e geral da busca de excelência na exatidão de cálculo e averiguação objetiva. Mas é também possível rastrear para dentro da ‘interioridade’ do modo de ser do sopesar e do modo de ser do cálculo de exatidão, e sondar o ponto de salto, a partir do qual surge todo um mundo da paisagem da vida pré-científica e também o mundo do sistema de cálculo matemático.

Marcos: Há uma só cientificidade? O que é experiência no âmbito das ciências naturais não é o mesmo nas ciências humanas. E o que é demonstrar na psicologia ou na história não é o mesmo das ciências naturais. Ou será que cada cientificidade tem o seu tipo de demonstração?

Débora: Ultimamente a física vem apoiando a psicologia.

Hermógenes: Dá para dar um exemplo?

Débora: O subjetivo é não ciência. Não ponderável. Hoje a física vai ficando subjetiva também – como medir o vazio? Assim acaba corroborando com a psicologia.

Marcos: Nivelou por baixo. Pela inexatidão…

Geraldo: A física é exata, embora medir seja interagir.

Marcos: Medir, na psicologia e medir na física é o mesmo?

Débora: Hoje não se tem nada puro. Não é mais mecânica e eletrônica, é mecatrônica. Uma ciência apóia ou se apóia na outra.

Geraldo: O físico foi o arrogante do século passado.

Marcos: O que é medir para a física e para a psicologia? Muda só o elemento trabalhado? Uma mede a natureza, outra mede o homem? Hermógenes: E dá a impressão que o ser da medição é igual. Não é assim que a psicologia ficou física e esqueceu a alma?


13/11/05: 10H

Marcos: Nosso tema é a diferença entre o psicológico e o espiritual, entre a terapia e a orientação espiritual. Porque psicologia é ciência, o tema se deslocou para a questão ciência. Quando se separarem os lugares comuns da área, voltaremos ao nosso tema. Estamos lendo Rombach. No final da tarde de ontem estávamos questionando a fixidez na concepção de ciência. Vimos que imaginar a ciência como crescimento unívoco é defasado. Ela faz saltos. E também medição não é o mesmo em todas as ciências. Cada uma tem seu jeito de medir. A pré-compreensão ingênua e usual da ciência diz entre outras coisas expressas nos pré-conceitos acima mencionados que ciência é um conhecimento claro e distinto; unívoco, buscando como ideal conhecimento definitivo, certo, onde todas as inseguranças, ambigüidades,  irracionalidades e inconseqüências lógicas serão eliminadas. Não haveria em tal colocação qualquer coisa de imprecisão dogmática, uma fixidez sem agilidade, liberdade e finura de uma vitalidade da existência humana? Assim como há uma pluralidade de ciências, há também uma pluralidade de métodos. Nas ciências as coisas nem sempre estão claras e distintas. Às vezes há uma nebulosa de problemas. Assim também as soluções não são tranqüilas. No âmbito das ciências há contradições. É por isso que elas podem ser questionadas e revistas.

Hermógenes: Pensamos que ciência é um conjunto de conhecimentos certos. Que vai se concatenando e ampliando. Isso é uma concepção ingênua da ciência.

Marcos: A própria matemática hoje não tem uma univocidade tranqüila. Parece assim que a própria matemática já se libertou deste dogmatismo do século.

Geraldo: A física é uma coisa! Uma coisa turbulenta – cavalo selvagem! Crê que um dia tudo vai serenar numa síntese maior. Como o artista que burila a pedra até sair a estátua. Por exemplo, a radiação pode ser eletro-magnética e corpuscular. Pensava-se que fosse claríssimo isso. De repente se viu que o corpuscular pode ser tão pequeno que é “como onda magnética”. Cria-se um modelo vai-se até o fim. E então todos os modelos se esgotam.

Marcos: Já nas ciências humanas isso é mais claro. Isto é, o tempo todo o pessoal está se contradizendo um ao outro. Agora, não dá para dizer que as ciências “exatas” não têm contradição.

Hermógenes: (Dirigindo-se para Geraldo) é permitido dizer que na exatidão da Física, as contradições são mais ‘grosseiras’ ou “a grosso modo”, ao passo que nas ciências humanas elas são infinitesimal e pluridimensionalmente  mais finas, diferenciadas?

Geraldo: Na física, havendo dois contraditórios, um engole o outro.

Débora: Na psicologia também. P.ex. Freud entende energia psíquica como libido (leia-se energia sexual). Jung como força da vida. Jung assim operou uma ruptura com o conceito de energia psíquica tido por Freud como libido. No entanto, a psicologia no seu todo não mudou por isso. Cada um ficou na sua.

Hermógenes: Talvez possamos distinguir entre a opinião dos psicólogos e a teoria da psicologia que eles seguem como ciência. Permanecendo estritamente no exame desse último item, não poderíamos dizer que entre Freud e Jung, não houve propriamente uma ruptura na teoria, na pré-compreensão teorética do que se deve entender por energia. Não poderia ser assim que Jung, continuando na mesma compreensão do que seja energia, a liberta do seu uso em Freud que a contraiu exclusivamente para vitalidade sexual, e considerou todas outras vitalidades como modificações sublimadas da energia sexual, do libido. Jung ao definir o libido de Freud como energia vital, ele ampliou a compreensão da energia sexual, mostrando que na maneira como Freud coloca o libido, a energia sexual como energia fundamental, a partir da qual, em suas diferentes modificações através de sublimação, se constituem e se configuram outras energias da vida como arte, religião etc. existe um equívoco na escolha do libido como energia fundamental. Pois toma como fundamental, uma determinada e específica concretização da energia fundamental. Como alguém que quer explicar várias ramificações de uma árvore, tomando como base, como raiz, um galho grosso; sem perceber que esse galho grosso, já é uma das, digamos três principais ramificações de tronco, aqui denominadas religião, arte e sexo que de modo próprio, se constituem concreções do vigor que vem do tronco, que por sua vez se fundamenta na raiz e no seu vigor (energia vital). Mas nessa operação de amplificação da compreensão da libido para a energia vital, tanto Freud como Jung e outros não tematizam a compreensão da energia, deixam-na vaga, indeterminada, dando-nos a impressão, a nós leigos no assunto, tanto da psicologia como da física, se aqui não estamos lidando com a compreensão da energia que é a mesma da física, quando a física na sua dinâmica teórica fala de modelo corpuscular (infinitesimalmente minúscula), do modelo ondulatório, do modelo quanta etc. etc.

Débora: A psicologia é um mosaico. Não existe uma psicologia só. Existem várias.

Hermógenes: Ser assim pela natureza, a partir da sua “essência”, teoreticamente variegada e pluriforme, não será isso a cientificidade da psicologia?

Débora: Exatamente.

Hermógenes: Mas os psicólogos realmente pensam assim?

Débora: Tem-se a Fé de que um dia chegaremos à única psicologia.

Hermógenes: Com isso, Débora afirma que no fundo, não admite a pluralidade essencial e radical, i. é, a partir da raiz, na psicologia. Pois segundo a sua explanação, essa diversidade multifária é apenas uma imperfeição do processo de evolução da psicologia, que tem como seu ideal, único válido, chegar ao sistema único e definitivo: um dia chegaremos lá.

Marcos: Pensar que um dia chegar-se-á a uma só psicologia está dentro da concepção ingênua da ciência.

Corniatti: É que por trás da ciência tem o homem que tem seu jeito de existir. Mas aqui surge a pergunta: o que quer dizer “por trás da ciência tem o homem que tem seu jeito de existir”?

Hermógenes: Essa pergunta é decisiva para uma compreensão teorética mais precisa da questão que estamos ventilando aqui. Pois, ciência como está sendo tratada é a própria concreção da existência humana.

Geraldo: (Olhando com a mira inquisidora para Leila) A psicologia de Gestalt não quer ser a única?

Leila: A pessoa em cada época e cada vez tem suas necessidades. Aí, cada vez se serve de uma corrente: comportamental, behaviorista…

Hermógenes: Leila, na sua habilidade terapêutica plurigestáltica, esquivou-se elegantemente da pergunta direta do físico Geraldo. Que tal ver a teoria que está seguindo como psicóloga da Gestalt? Os pressupostos da ciência denominada Psicologia de Gestalt, enquanto ciência na sua cientificidade.

Mamede: (Tentando ‘sacar’ de Corniatti – cujo forte é resumir em uma sentença lacônica, a modo de definição – mais explicitação da colocação densa na sua implicitação). Como Corniatti sentiu a interpretação da Leila de sua fala que “o homem tem seu jeito de existir”?

Corniatti: A pessoa tem um jeito de estar na vida que é o jeito de dar sentido. O jeito que ela está num momento tem o todo da existência dela. Uma pessoa pensa que o amar é retribuir e receber a retribuição; outra pensa que é pura doação. Cada atitude trai a concepção de existência da pessoa. Quem está na de retribuir, não fica, por ex., em cima de um texto difícil, que não lhe retribui logo entendimento.

Débora: Os psicólogos diriam logo que a concepção do Corniatti é existencialista. Se aqui estivesse um psicólogo comportamentalista, o seu pressuposto seria comportamental.

Hermógenes: Imaginemos que somos todos psicólogos. De diferentes escolas. Objeto de pesquisa nossa como psicólogos é a psique humana. Todos nós, porém, somos mais do que apenas psicólogos. Somos e fazemos uma porção de coisas para além, ao lado e para aquém do  nosso ‘ofício’ de psicólogos. Na nossa mente, além do nosso saber profissional, temos diferentes tipos de saber e experiências. Tudo isso, tudo que vivemos, somos, está presente quando exercemos a nossa profissão e lidamos com seres humanos na terapia. Vivendo nos nossos afazeres, correndo de cá para lá, de lá para cá, preocupados com isso e com aquilo, não tendo senão esse espaço e tempo do nosso instante presente. O que queremos, o que é que estamos fazendo, quando reunidos aqui em Araraquara, estamos indagando em que consiste ciência moderna, na qual está o fundamento da teoria e práxis da nossa profissão como psicólogos? O mesmo podemos dizer, da nossa profissão como sociólogos, físicos, estudantes, professores, mães e pais de família, religiosos, sacerdotes, jovens, da segunda e da terceira idade, sãos e doentes, masculinos e femininos, brancos, negros e amarelos etc. O que fazemos? O que sabemos? De que se trata, quando dizemos que somos psicólogos, físicos, educadores, sacerdotes? Tudo isso, pois, e muito mais, tudo, não é fenômeno humano?

Débora: Cada qual faz o que pode, a partir do seu ponto de vista. Cada um com e no seu, sabendo que não esgota o humano.

Marcos: As ciências sejam elas naturais ou humanas partem de um determinado conceito do humano e da realidade também.

Hugo: Ouço dizer muitas vezes que o humano muda conforme a mudança das matrizes mentais.

Corniatti: Muda a partir de propósitos.

Vander: Cada teoria, um modelo. Qual modelo é o real?

Marcos: Quando está no nível de terapia, prática, técnica é viável, não há tanto problema. Questão se torna mais apertada e difícil, quando se trata da teoria. Por qual teoria responsabilizamo-nos nós, quando estamos no exercício da nossa profissão, no meio de todos esses afazeres acima mencionados?

Débora: Eu fui escolhida pela minha teoria. É a teoria que escolhe a gente. Por ser o ser humano o objeto da psicologia, por isso é difícil ser ciência objetiva, pois o ser humano aqui é sujeito e ao mesmo tempo objeto da sua busca.

Hermógenes: A Física parece tratar de matéria, mas no fundo, em tratando da matéria, está se tratando, i. é, esta sendo uma modalidade de o homem ser. Seja qual for a ciência, no fundo, tem por inter-esse o ser humano e é a sua concreção. Por isso as ciências naturais ao estarem no inter-esse da natureza projetada segundo o lance hipotético da sua interpelação projetiva, estão no inter-esse todo próprio do ser humano: astronomia, física, química, engenharia genética, cibernética, tudo isso não é uma gigantesca tentativa de facilitar e melhorar a vida humana, eliminando-lhe doenças, imperfeições, se possível até a morte? Mas qual tipo de ser homem e sua melhoria está pressuposto na dinâmica teórica que rege e comanda todas essas ciências?

Marcos: A natureza é uma variante do ser humano. O ser humano é uma variante da natureza. Fundiu tudo. Podemos também dizer con-fundiu tudo numa viva inter-relação?

Hermógenes: Na Psicologia, tudo o que você faz para o paciente, faz para você?

Leila: É reação, relação.

Geraldo: Na Física medir é interagir!

Leila: Eu trabalho com o que está ali. Vivencio a cura junto com o cliente.

Hermógenes: Gostaria de saber dos psicólogos se confere o que ouvi algumas vezes. Embora raríssimas vezes alguns terapeutas afirmam que se for necessário para o bem da terapia, uma transa entre o(a) terapeuta e o(a) cliente faz parte da terapia. Ou que a castidade é um tabu imposto pela moral etc. e vai contra a natureza.  Nós religiosos, a partir e dentro da espiritualidade dizemos: a castidade consagrada, não somente não é contra a natureza humana, mas enobrece e leva o ser humano à excelência. Chamemos de teoria a evidência dessas afirmações. Donde cada qual dessas afirmações busca e tira a teoria de suas teses?

Débora: Por isso, disse que a gente não escolhe a linha da teoria na psicologia.

Corniatti: A gente joga no outro a concepção que tem. Se você tem a compreensão de amor como gratuidade, joga-a sobre o outro. Mas pode ser que ele tem outra concepção: de amor como retribuição, por exemplo, e então ele joga essa concepção sobre mim.

Hermógenes: Nesse caso, quando uma religiosa que é psicóloga, lança a compreensão do amor como gratuidade sobre o outro, no caso, paciente, o faz enquanto religiosa cristã ou enquanto psicóloga? O que a dirige e a orienta nessa práxis terapêutica, é Fé ou Ciência?

Marcos: Débora é escolhida pela linha terapêutica. Os fundadores das linhas terapêuticas dependem do que eles são?!?

Hermógenes: O problema nessa fala é o “são”. “São” é a terceira pessoa plural indicativo presente do verbo ser. De que se trata, quando usamos o verbo ser e falamos do ser humano?

Marcos: Um americano não terá dificuldade em ser psicólogo comportamental. Um alemão, talvez o tenha. A terapia está comprometida com o que se é!?!? E o que é o ser da terapia? E o ser do humano?

Leila: Parece que o que nós psicólogos andamos dizendo não responde a vocês, físicos, filósofos, aos da espiritualidade. Qual é a pergunta?

Marcos: Não fiz pergunta. Estou vendo os pressupostos.

Débora: As nossas amigas e amigos críticos estão a dizer que nós psicólogos encaixamos o paciente na da gente.

Marcos: A concepção trai o que se está sendo.

Débora: É bom lembrar que o homem não é. Está sendo. Não sou a mesma de 10 anos atrás.

Marcos: Acho que estamos falando de coisas diferentes.

Hermógenes: Como o Geraldo costuma fazer com a Física, quando nos quer dizer algo sobre ela, vamos pegar um exemplo dado por um psicólogo e analisar. Quem se arrisca?

Débora: Um doente no hospital com distúrbio neural. Diferentemente da Leila e da Regina, não faço a pessoa se descobrir. Proposta de melhoria ou cura através de cirurgia: eu faço testes para avaliar a situação do paciente para discutir com o médico se vale à pena proceder à cirurgia mesmo. Neuro-psicologia: estuda a mediação entre neurologia, conhecimento e memória. Estuda a mudança de comportamento causada pelo desequilíbrio de interação entre o psicológico e o físico. Portanto, distúrbios psicológicos oriundos de um distúrbio físico.

Hermógenes: Tenho um amigo frade, de outra província, que tem um irmão neurologista e cirurgião famoso. É de um coração boníssimo, e é inteiramente ateu. Os irmãos quando se encontram, é calorosa discussão, horas a fio acerca do mundo da Fé e mundo das ciências naturais. O médico cirurgião disse um dia ao irmão frade: “Vocês, padres, frades e freiras, podem ser santos e impecáveis como quiserem. Eu transformo qualquer um de vocês de santo para crápula, só mexendo em alguns nervos de vocês”. E o frade: “Com isso você provou apenas o que?”

Marcos: No caso de Débora e no exemplo do neurologista, o que interessa é que funcione. O decisivo é examinar a teoria que dá suporte a uma técnica que assim funciona. E indagar: Qual a relação entre físio-neurológico e o psicológico. São domínios diferentes? Como estão relacionados? Por enquanto só se falou da funcionalidade de e como causa e efeito. Mas esta teoria é evidente, está tematizada e aclarada nas suas pressuposições? Vale o modo de atuação do binômio causa e efeito em qualquer âmbito da natureza? O fisiológico e o psicológico não poderiam se relacionar de modo todo próprio, não mais explicável pelo binômio causa e efeito?

Débora: Tudo está baseado no corpo. Pega-se uma doença no corpo  e muda na alma o sentido de vida.

Regina: Cirurgia na cabeça. Mudou!?! E o que mudou? Como é o ser do mudar aqui?

Mamede: Outro faz cirurgia na cabeça e não muda nada!?! E o que não muda? Como é o ser do não mudar aqui?

Hermógenes: Terapia cura ou não cura. E os que ela não cura!?! Justamente quando não cura, não pode surgir para os não curados uma nova possibilidade da existência, um sentido do ser da vida todo novo?


13/11/05: 10,33H

Regina: Irmã Angelita, coloca, por favor, sua experiência.

Leila: Para que ajude a clarear o que estamos tratando.

Angelita: Uso técnica corporal e análise transacional. Eric Berger observava o comportamento da pessoa. Entre as suas teorias me identifiquei com esta: Eric Berger dizia que todos nascemos príncipes e podemos nos tornar sapos. Trabalho com crianças. A maioria delas passou fome, viu e sofreu violência. Elas experimentaram situações infrahumanas, viveram sem condições. Junto dessas crianças, trabalho com florais.

Marilza: Como é o estudo não somente da psicologia e suas técnicas, mas principalmente o estudo que você faz de você mesma ao viver e trabalhar em contato com essas suas crianças? A questão emocional. Você e a criança? Digamos, uma criança sofreu violência sexual de um tio seu. Falar sobre o caso ‘fisicamente’ como um caso de penetração é neutro e fácil. Mas no caso, falar psicologicamente é difícil. E mais difícil, sim é impossível falar aqui existencialmente.

Leila: Estou começando a entender o que o meu primo frei Marcos quer dizer. É falar da psicologia como ciência da experiência da alma.

Geraldo: O objeto da física é mais simples. Dizem que perguntaram a Galileu Gallilei, por que ele ia tão longe, fora da terra, pesquisar os astros e os planetas. E ele teria respondido: Vamos começar primeiro com o mais simples, para depois quem sabe abordar o mais complexo, pois tudo que nos é perto na Terra dos homens é demasiadamente complicado e difícil de analisá-lo.

Regina: Uma das experiências que me marcou muito foi o estágio no manicômio judicial de Franco da Rocha. É a experiência de não saber o que fazer. O estágio pertencia ao meu curso de Psicologia, mas não era obrigatório. O trabalho consistia em conversar e entrar em contato com presos que eram doentes mentais e criminosos de alta periculosidade. Para nós estagiário(a)s se estabeleceu uma lei que deveria ser observada à risca. A norma consistia em jamais perguntar aos presos por que estavam ali presos. A curiosidade e a vontade de adquirir o mais possível experiência com o estágio fizeram com que eu infligisse a lei. A pessoa com quem conversei era um senhor de meia idade, de aparência normal. E perguntei-lhe: Por que o Senhor está aqui? Senti nele uma espécie de frêmito de excitação. Tornou-se loquaz. E começou a me explicar que ali estava porque matara sua mãe. E começou a descrever em detalhes o crime, o assassinato, o que fez com a morta, como a picou pedaço por pedaço. Comecei a suar frio, as pernas me tremiam. Tentei permanecer serena. Por dentro, porém, tremia toda. O professor orientador, de longe, percebeu a minha situação. Como quem estivesse passando por ali, virou-se para mim e me chamou: “Regina, estão chamando a você. É um telefonema”. Recebi por essa transgressão da lei, uma pequena admoestação. Mas o orientador gostou da minha curiosidade científica e segundo ele, coragem. Assim, propôs-me outra experiência. O ‘entrevistado’ dessa vez era um criminoso barra-pesada que já tinha matado 9 ou mais pessoas. Era tão furioso, louco e perigoso que estava enjaulado.  Para conversar com ele, era necessário aproximar-se da jaula, ao longo da qual havia uma passagem, espécie de corredor estreito de espaço, de um lado as grades da jaula, do outro uma parede. O espaço entre as grades da jaula e a parede era tão estreito que não havia muita folga para por ali passar. Era necessário colar as costas à parede e ‘arrastar’ o corpo assim de lado, bem devagar, a modo de caranguejo. Antes de tentar a aproximação, tive que amarrar os cabelos, em feixe atrás da cabeça, tirar brincos, vestir calça jeans, roupa colada ao corpo, para que o enjaulado não encontrasse em mim nada que me pudesse facilmente agarrar. Recebi uma severa recomendação pelo professor orientador do estágio que eu concentrasse inteiramente em jamais descolar minhas costas da parede e custe o que custar não perder o controle interior. Advertiu-me que o preso, logo que perceba que se tratava de uma mulher, iria se despir, ficar inteiramente nu, e se desandaria em obscenidades de todos os tipos, provocando aos gritos e tentando agarrar a quem dele se aproximasse. Não sei como conversei com ele, por fora aparentando calma e serenidade, por dentro quase a desabar, por um tempo, e passar a prova. Depois dessa ‘entrevista’ tive distúrbios intestinais, e outras ‘disfunções psíquicas’  diversificadas, dito de outro modo, fiquei grogue por longo tempo. Após a prova, o orientador comunicou-me que fora única a se arriscar e a agüentar aquela prova. E me disse: “Percebo que você possui dentro de você um recurso próprio que a fez, a seu modo permanecer calma e serena, mesmo que seja na aparência. Que recurso interior você usou?” De fato, quando estava diante do paciente, louco, na aparência um animal, não sabia fazer outra coisa do que dizer para mim mesmo, como quem se agarra à tábua de salvação numa ‘reza’ jaculatória: “Ele também é filho de Deus, ele também é filho de Deus”. Não revelei o meu segredo ao orientador, pois senti uma espécie de vergonha de fazê-lo. Ele e meus colegas da classe, com exceção de uma ou duas pessoas, não sabiam que eu sou membro de um Instituto Secular. Foi algo pavoroso e ao mesmo tempo fascinante: fiz a experiência de que aqui a psicologia não dá conta.

Corniatti: Como será que o entrevistado se sentiu?

Regina: Depois de todos aqueles desmandos esperados, ele aos poucos acalmou. Parecia, não sei, bastante à vontade.

Leila: Esse olhar…

Hermógenes: Não sei se não vou desencaminhar inteiramente a reflexão para uma ‘análise’ inadequada da situação relatada por Regina. É que estou com pulgas atrás das orelhas, devido ao nosso tema que soa: diferença entre terapia e orientação espiritual, diferença entre o psicológico e o espiritual. Quando antes, Angelita nos relatou a sua experiência com as crianças que foram abusadas violentamente pelas pessoas da sua própria família, que por laço de parentesco, pela obrigação e pela afeição, deveriam cuidar, amar e protegê-las de todo o mal, todos nós sentíamos dentro de nós “o fervilhar das nossas entranhas” como diriam os japoneses. Era vivência de perplexidade, indignação, revolta, pena e afeição por essas vidas inocentes, expostas a essas inomináveis barbaridades. Era revolta contra defasagens, injustiças, maldades da crueldade da vida na Terra dos homens. Imaginemos que Regina, no meio da sua entrevista, se perturba de tal modo que esquece a recomendação de jamais desencostar as costas da parede e é agarrada pelo louco. E não sei como – digamos que é um filme de terror ou de ciência ficção – o ‘animal’ consegue puxá-la para dentro da jaula e deixa-a semi-morta após toda sorte de violência. Salva da morte, por milagre, agora é ela mesma que precisa de terapia. Antes se mencionou o receio do desencaminhamento da reflexão. Ele consiste na seguinte indagação intempestiva e indignada com a polícia, com a família, com a sociedade, com a Igreja, religião, com os outros, comigo, com tudo, e antes e por fim com a vida, com o próprio Deus que os, ou melhor, nós cristãos adoramos, amamos, acolhemos como fonte da vida, fonte de tudo, Amor, Bondade.. .Pai? Por que é assim? Que sentido tem tudo isso? Nossas reflexões, filosóficas, espirituais, psicológicas, todos os empenhos humanos e humanistas: sociais, políticos, jurídicos, humanitários, técnicos, científicos, todos os empenhos e desempenhos pessoais, particulares, de imensa multidão das pessoas de boa vontade, exércitos de mães, pais, professore(a)s, enfermeiro(a)s, religioso(a)s, em resumo todos os homens, varões e mulheres de todas as raças, religiões, mundividências, sim ideologias!…Por quê? Para que? De onde e para onde? De que se trata afinal, que sentido tem tudo isso? A ira e indignação das entranhas ferventes acima mencionadas, indomavelmente vem à errupção  sempre de novo, cada vez que se dá, por mínimo que seja a incidência de fatos como os acima relatados por Angelita e Regina e exacerbados nessa reflexão como se fosse num filme de terror e ciência ficção. Em que teoria e práxis você encara esse paredão de contradição e sem sentido, expressos num grito: Por quê? Para que? De onde e para onde? De que se trata afinal, que sentido tem tudo isso?

Uma Irmã, formadora e psicóloga: A Regina falou: a psicologia não dá conta. Eu tenho um caso. Estou em contacto com uma mulher, mãe que trabalha para ajudar no sustento de marido e filha. Marido é um homem grosseiro e obsessivo. Já há 10 anos, por motivos fúteis, espanca a esposa. Aqui tenho consciência de que devo ser mediadora dentro da técnica que uso como psicóloga e formadora. Não tomo assim partido. Só ouvir já dá força para o cliente.

Marcos: Você contou a história do casal. Se você fosse a Regina na situação ‘fictícia’ há pouco inventada por Hermógenes, ou a mulher espancada por 10 anos??

Hermógenes: A gente costuma dizer na espiritualidade, é necessário, seja qual for a situação, aproveitar do fato, para trabalhar a si mesmo. Mas, de que se trata, o que significa na rigorosa precisão, trabalhar a si mesmo(a)?!!…. Eu, psicólogo (a), formador(a), religioso(a), professor(a), cientista pesquisador(a) na Física, Matemática, Geometria, na Gestão, Economia, Direito, Psicologia, Pedagogia, Filosofia, Teologia, Pastoral, tratar a mim mesmo(a)?

Débora: Se o psicólogo está na mesma situação do paciente, não pode atender.

Corniatti: Mas, gente! A gente tem que dar sentido à vida. Se fosse gênio que resolve tudo… Mas mesmo assim, o problema é o mesmo. Se você não sabe resolver em si o problema, não vai saber resolver nos outros.

Marcos: Vocês conhecem um filme sobre Jung? Ali Jung, como psicólogo e terapeuta, se envolve com uma paciente. Sua posição social, familiar, sua profissão, seus métodos… tudo isso é colocado em questão pelo seu envolvimento com aquela paciente.

Leila: O que Jung faz para tratar a si mesmo e a cliente ali na situação? Ele, a sua Psicologia analítica dá ou não dá conta da sua situação?

Regina: Não se poderia dizer que, porque eu pessoalmente não dou conta, recorro à Psicologia, à Psiquiatria, à terapia, às florais, ao Tai-chi-chuan, a Padre Marcelo, ao terço, à religião, a Deus?

Hermógenes: O que é que se está procurando, na terapia, na cura, na busca da harmonia cósmica?…Estatisticamente a maioria da humanidade está sofrendo – 90 % talvez – sofrendo a situação da impossibilidade de saída da sua, esta, aquela situação, aqui e agora, pela pobreza, ignorância, pela violência, imposta pela desordem, corrupção legalizada como status quo de uma sociedade que constrói tudo na ganância e poder, onde toda essa gente não dá conta nem da melhoria, nem da sua própria sobrevivência a mais elementar. O enjaulado do relato da Regina, não estaria nesse seu estado terminal de animalidade, porque quem sabe, quando ainda criança inocente, espontânea e feliz, sofreu as violências injustas e incompreensíveis relatadas pela irmã Angelita? O que quer realmente dizer para as nossas teorias e práxis na psicologia, na espiritualidade, na religião… casos em que nos damos conta de que não damos conta?

Marcos: Pode ser que Jung não resolveu a situação dela. Que ela, e depois de muito tempo também ele morreu sem ter resolvido! Ou então, resolveu?

Hermógenes: Não dá conta… faz o quê? A(s) crianças(s) sob o amor e cuidado de Angelita e Regina tiveram ajuda. Mas vamos pensar que 90% dessas pessoas não têm ajuda. Ou têm e se têm, donde, e como? (???!!!). Temos que tentar apesar de tudo, tentar resolver. Mas resolver não é aplicar princípios. Mas, então, de que se trata?

Irmã Ananias: A gente até agora só está falando da vítima. Mas e o algoz? E o pai que fez mal à filha…

Hermógenes: Quando o ser humano no seu empenho, cujo supremo e o mais elaborado e eficiente desempenho, parece se realizar no que denominamos ciências e suas cientificidades, − hoje sob o poder da tecnologia, − não dá conta, nem tem conta, quando resolver não resolve, não é ali que o ser humano está colocado sobre si mesmo? Será que não é ali que começamos a adentrar uma dimensão nova…

Mike: Por que se preocupar com a morte? Não sei bem, mas não foi Buda que disse: “Ou se está ainda vivo e ainda não morreu; porque então se preocupar, ou já estou morto, e assim, por já não mais existir, nem sequer posso me preocupar. Portanto está eliminado o problema”?

Marcos: O que é problema? O que é resolver? Quando Geraldo falou de elétron etc., nem liguei. Mas quando falou da criança e do louco, ele logo me encafifou.

Leila: Deixar-se impactar e lidar com o impacto é o que vai ajudar o paciente.

Hermógenes: Trocando de lugar com o paciente?

Leila: Gestalt fala em se incluir… participar.

Hermógenes: Para a mãe, quando a criança é seqüestrada, é mais fácil, aceitar ser trocada por ela, sofrer e ser morta no seu lugar do que continuar a viver, e ver a(o) filha(o) sofrer e ser torturada(o) e morta(o)…

Débora: Eu não me troco com cliente. Como mãe, troco. Mas se eu tiver mais filhos ou filhas, se torna agora a minha mais difícil situação eu continuar a viver sem poder me aliviar, morrendo no lugar da filha seqüestrada. Pois, meus filhos que estão vivos precisam de mim, para sobreviver.

Angelita: Não sei, pode parecer uma presunção, mas num caso como acima foi mencionado, eu poderia ser morta. Morreria feliz porque dei a vida.

Hermógenes: Mas para morrer feliz assim (?) não é necessário abordar (leia-se estudar, pesquisar, investigar, ver e teoretizar) a vida muito diferente, radicalmente (da raiz) diferente do que costumamos fazer? Atrás, no fundo, ao redor de toda e qualquer ciência existe uma área que chamamos de vida. E ai, todos sofrem, se desesperam, esperam na dor e alegria, na vida e na morte. Toda a ciência, com todo o seu desempenho; toda a crença, mundivisão ou ideologia, com todo o seu desempenho não são convidadas a tatear a dimensão do seu fundo, e perguntar: a partir de e dentro de que pro-fundo está a viver, a viver a vida, o sentido do ser, i. é, o abismo que não é terapia, clínica, pastoral, nem ensino, catecismo, nem tecnologia, ciência, crença, mas a fascinante, a terrível presença, na ternura e vigor, na dor e na alegria, na vida e morte, presença e ausência de um radical outro inesperado no misterioso encontro?

Marcos: O equívoco aqui pode ser pensar que lá onde a psicologia não pode, a teologia ou a fé pode, tem a solução.

Hermógenes: No ser profissional de uma área, pública, social, seja técnica ou científica, no ser vocacionado de um historiar-se do destino humano, seja como pai, mãe, religioso, religiosa, seja como engajado(a) numa missão de ideal humanitária, seja como doado(a) à missão vitalícia de uma profissão liberal, o simples fato de ser e ali funcionar como tal não garante a sua realização no ser. Para isso, é necessário na encruzilhada da contradição, no lugar presente da sua situação, se tentar ficar de pé, pisar ali onde tem os seus pés, e girar ao redor de si, até que se comece a entrar para dentro da situação, na sua profundidade, e lá no fundo acordar para a realidade prévia do seu inter-esse, no qual sempre já estava quando começou. A experiência do “empenho e da fidelidade consigo mesmo no trabalhar a si mesmo” é a aberta de uma antiga e nova dimensão de origem, onde saber, conhecer, poder, fazer, onde a excelência e competência tem o sabor da soltura, da imediatez e simplicidade de quem nada sabe de antemão, mas apenas se sabe na dinâmica da disposição de receber. Esqueci o nome do psicólogo que introduziu a psicologia junguiana no Japão. Isso deve ter sido há muito tempo, e provavelmente o psicólogo ancião já faleceu. Ele foi mestre de numerosos psicólogos, médicos e terapeutas que de alguma forma se interessavam pela psicologia analítica de Jung. Numa entrevista concedida a uma repórter da revista católica editada pelas irmãs paulinas, Akenobo (Arrebol), diz que a revelação que vai fazer o pode comprometer no seu estado profissional de um cientista competente. Diz ele: Quando voltei dos meus estudos da Psicologia Junguiana de Zürich, onde me formei psicólogo e terapeuta, estava seguro das “minhas coisas”, preparado e competente para assumir a tarefa de cientista e terapeuta no meu ramo. Assim, quando no consultório aparecia um paciente, p.ex. um adolescente de 19 anos, eu diagnosticava a sua doença e tudo que ele me colocava,  me evocava dentre mil e mil variantes de possibilidades de tratamento, uma solução apropriada. Hoje, depois de uns 40 anos de clinica, ensino e estudos, quando me entra no consultório um adolescente que ameaça a se suicidar na minha frente, levo um susto, não sei o que fazer, sinto de repente que não dou conta, embora tenha presente tudo que sei, tudo que posso, a partir de toda a minha ciência e especialização. Nessa perplexidade, no início só consigo escutá-lo, ou me silenciar. Tudo ali desaparece, meus títulos, meus status, a diferença entre o médico e paciente, e nesse ambiente do nada saber, nada poder, na imediatez e no corpo a corpo desse encontro, ele e seus problemas são meus problemas diante dos quais estou perplexo. Certamente, eu digo ao jovem alguma coisa, lhe prescrevo alguma terapia, mas na realidade, não sei bem o que realmente fiz para ajudá-lo. E isso de tal modo que hoje tenho dificuldade de cobrar dele honorário para o meu serviço. Pois a sensação que tenho é que nada fiz, nada pude fazer de positivo para ajudá-lo. E a repórter da revista Akenobo lhe observa: Mas o Senhor tem no mundo científico a fama de resolver casos difíceis, quase impossíveis! E o velho psicólogo bem experimentado: Sei que dizem que sou bom, que sou muitíssimo competente. Mas na realidade nada sei, nada faço… como é possível tudo isso?

Marcos: Não é de grande inter-esse essa solução, essa solvência, ser assim solto, exposto, sem nada, desprendido e vulnerável, disposto na prontidão? De tal modo comprometido, sem trazer as respostas do comprometimento? Conheço uma senhora, mãe. Lutou e cuidou com todo o carinho e dedicação para salvar seu filho, afetado pela leucemia. O filho morreu. Ela engravidou de novo, na esperança de gerar uma nova vida sã. A filha, porém, nasceu com a mesma doença do irmão falecido, inclusive com agravante. Quando morreu o primeiro filho ela me disse: fracassei. Agora ela está fazendo a mesma coisa com a menina, de novo, sempre de novo, cada vez novo com todo empenho, com toda a dedicação. Que sentido tem essa doação em vão? Ou não é melhor perguntar: em vão, que ser é esse, seu sentido, seu senso, a sua sensibilidade?

Cleonice: Ela, inconscientemente, tem necessidade de ter um filho para cuidar.

Leila: Um momento! Essa interpretação… esse diagnóstico! Pode ser ou não ser nada disso!


Domingo – 13/11/05: 14H

Marcos: Eu narrei uma história e  Cleonice deu uma interpretação. Leila disse que pode ser ou não ser verdadeira.

Mamede: Essa coisa do inconsciente… Ela só pode vir de alguém que acredita mesmo que há a necessidade inconsciente. De alguém que põe Fé na realidade inconsciente. Não sei não, eu acredito que aqui parece não haver alguém que realmente acredita no inconsciente.

Regina: No que se refere ao inconsciente, ao inconsciente pessoal e ao inconsciente coletivo, trata-se de crença, hipótese de trabalho ou de resultado de observações empírico-científicas e de suas conclusões?

Marcos: Certas abordagens nunca falam de inconsciente e nunca falarão.

Hermógenes: O que é o inconsciente.

Leila: Aquilo a que você não tem acesso.

Débora: Só se conhece o inconsciente quando ele se torna consciente. Jung diz: terapia é tarefa de conscientes e inconscientes.

Hermógenes: Não afirmam os junguianos que a partir do consciente não há acesso ao inconsciente coletivo?

Leila: São coisas que te direcionam, mas que não estão óbvias para você, evidentes.

Hermógenes: P.ex. todo esse tempo tinha-me esquecido que sou japonês; ate há pouco, antes de eu começar a falar, nem tinha percebido que respiro; mesmo agora, a não ser que sinta uma dor, não percebo que o intestino está indo bem; que em cima da casa, há o céu aberto. Todas essas coisas são coisas do inconsciente, coisas que direcionam?

Leila: É ‘algo’ guardadinho na gaveta… mas eu não abro a gaveta. Um dia abro e assumo.  P. ex. meu primo filósofo Marcos tenta-me explicar o que é a redução eidética. Não nos entendemos… e de vez em vez, desce o pau… Nesses dias, numa dessas brigas de foice no escuro da filosofia, se me iluminou e de repente vi o que eu fazia com as pessoas… É redução eidética?

Hermógenes: Não tanto o que viu, mas o “de repente se iluminar”, esse vislumbre pode estar perto do que se chama redução eidética. Eidos tem muito a ver com clarão no meio da briga de foice no escuro do conflito psicologia versus filosofia, clarão que rasga a escuridão como um raio. O quê se vê não é eidético. O abrir-se do clarão é algo como eidético.

Débora: A psicologia comportamental não admite o inconsciente. Não é como a minha prima religiosa Regina que adora Jung, portanto deveria acreditar no inconsciente…

Hermógenes: O inconsciente não é acessível pela consciência. O é por outro(s) caminho(s)? Não é assim que quando esses corifeus da ciência dizem “não é acessível” não estão dizendo que não há mediação de outra coisa a não ser tocar ou ser tocado direta e imediatamente pela coisa ela mesma?

Marcos: Aí tem também outro problema. Quando determinamos que não é acessível pela consciência, eu estou dizendo que sei o que é consciência.

Hermógenes: Pinhão não é amendoim nem batata doce. Pode degustar quanto quiser amendoim e batata doce que jamais conseguirá saber o sabor do pinhão. Para isso é necessário diretamente saborear pinhão.

Marcos: Se o inconsciente é outro que a consciência, como definir uma coisa por aquilo que ela não é.

Hermógenes: Medard Boss, fundador da psicologia chamada Daseinsanalyse, ao comentar relatório da análise de sonho de um psicólogo terapeuta neo-freudiano observa acerca do cachorro quente que aparece no sonho do jovem cliente do terapeuta neo-freudiano. No sonho, o jovem, na vida real, uma pessoa rica, de fina educação, sente um desejo irresistível de comer um cachorro quente na rua. Ao receber o cachorro quente do vendedor de rua, sente numa angustia inexplicável, ao seu lado presença vaga de uma figura feminina, de uma moça sem rosto. Certamente, as psicólogas aqui presentes, sabem dar diferentes implicações desse símbolo no sonho. Certamente, Medard Boss conhece à bessa todas as possibilidades dessas implicações. Mas ele aqui pergunta de modo imediato: Por que aqui o cachorro quente não poderia ser sem mais nem menos cachorro quente ele mesmo? Assim como ocorre na nossa vida consciente e cotidiana, ao sentirmos fome e ao passarmos ao lado do vendedor de cachorro quente na rua? Mas e as circunstancias da paisagem, das diferentes composições simbólicas e associativas do sonho, juntamente com as vivências, bloqueios que tais símbolos desencadeiam no jovem? Não poderia ser assim que, porque o jovem não mais consegue ver cachorro quente como cachorro quente, na banalidade sadia do viver a vida imediata e concretamente corpo a corpo que algo como cachorro quente e sua lingüiça sugere a possibilidade e depois a necessidade de evocar o sexo, o genital etc., etc.?

Marcos: O inconsciente é uma hipótese interpretativa. Lida com a suspeita. O inconsciente explica muitas coisas. Difícil é explicar a ele mesmo.

Cleonice: É a própria pessoa que dá a solução. Tem o insight.

Hermógenes: Mas o psico-terapeuta já visualizou e em certa medida direciona.

Cleonice: É 50% cada vez.

Leila: Você cria disposições para que a pessoa veja.

Hermógenes: Eu vejo que a pessoa é meio louca e se continuar assim vai se suicidar. Você aqui, como entende a terapia?

Leila: O que é uma boa forma para mim não o é para o outro. Eu posso dizer o que chega para mim. E checo o significado que tem para ele.

Hermógenes: Disseram-me que impor o que vejo não é bom na comunicação. Mas se o paciente pergunta o que eu vejo, e eu digo, isso tem valor?

Leila: Tem valor.

Hermógenes: Pode ser comunicado indelicadamente, mas a coisa é boa. Essa maneira de conduzir sem impor é ou não, uma espécie soft de imposição? Não há na psicologia a comunicação de entrechoques de duas identidades, − identidade em sendo − impondo ao outro a sua própria identidade, a sua personalidade. Por que tanto medo da imposição?

Corniatti: Não se impor ao outro no fundo não é outra coisa do que não se apropriar do que se tem. Um colocar-se, propor, i. é, colocar em frente, assim aberto, isto ou aquilo e a mim mesmo, não como coisa minha. Nesse sentido, um ‘falar mais humilde’ seria dizer: “nesse setor meu modo de ver vai por aqui”. É um ter que não se apropria do que tem e que convoca o outro a se posicionar… rigor comigo e com o outro.

Marcos: O que é ver? Nosso ver pode estar sendo guiado. É visualização. A gente visualiza, visa “integrar na sociedade”, “dar qualidade de vida”; quando você faz o caminho, seu ver já está direcionado. Já tenho uma finalidade a qual quero chegar.

Leila: Tenho um padrão para o outro.

Marcos: Não precisa ser tão mecânico, mas uma iluminação, guiando o meu ver.

Leila: À medida que o outro vai trabalhando com o fenômeno que está diante dele, ele apura o ver.

Débora: A neutralidade é importante, mas é uma utopia teórica. Cada cliente é novo. Vai trazer o inesperado. Simpatiza-se com um de cara, com outro se antipatiza?!?

Irmã: A maioria dos pacientes se surpreende consigo mesma.

Débora: Se o paciente falou que vai se suicidar, não vai.

Irmã: Um professor meu contou que um cliente ameaçou se suicidar com formicida, no consultório dele. O terapeuta lhe gritou “Seu filho da puta, mata-se, vai mesmo, desgraçado”. O cara não foi.

Hermógenes: Se o terapeuta tiver voz fininha que não consegue dar impacto a ninguém, e assim para evitar o suicídio dá ao paciente uma cacetada, e o faz desmaiar, essa é a mesma técnica da anterior? Qual a técnica? O que é técnica? Que teoria comanda essa compreensão da técnica?

Leila: Eu diria ao suicida virtual: “Olha, esse de você se suicidar é sem dúvida uma possibilidade, tá? Mas você tem outras possibilidades e pode escolher”.

Hermógenes: E se não tiver possibilidade?

Irmã: Ali entra a técnica emergencial. Esta só se usa no caso de emergência. Não é a usual. A emergencial, depois que passa a emergência a gente a suspende.

Hermógenes: Imaginemos que psicologia desenvolve tanto com florais, tai-chi-chuan, influência energética, força de persuasão, hipnotismo, parapsicologia, intervenção através de high tech da engenharia genética etc. etc. que pode dispensar a técnica pau-pau da cacetada, física e psíquica. Mas tudo isso não é prepotência?

Regina: Se alguém me invade o consultório e se decide a se suicidar diante de mim, terapeuta, está é pedindo para que eu lhe dê uma paulada. Ah, ali eu grito. E se estiver rouco, dou-lhe uma cacetada. Ah, se dou!

Marcos: Gregos, para curar certas pessoas, as colocavam no meio de cobras. Posteriormente vieram os eletro-choques. Por que se pode usar floral, psicotrópicos, mas cobras e eletro-choques, não? Ou pode? A técnica emergencial?

Débora: Em casos assim especiais, é um conselho que avalia a técnica correspondente e decide, buscando um consenso.

Marcos: Há uma comunidade científica que testa as técnicas?

Débora: Sim, mas, pau, cobra, choque, acho que não.

Marcos: Será que a ciência não está perpassada de técnicas?

Débora: Como ser ciência sem ter avaliação, resultado e técnica?

Leila: A técnica é um caminho, uma direção, mas ela não pode ser usada mecanicamente. Com outro cliente, aquele psicólogo podia ter falhado e o paciente ter-se suicidado mesmo.

Marcos: A técnica é uma coisa que a ciência aplica?

Débora: A psicanálise não é ciência. A psicologia é. E para o ser precisa de técnica. Se não, não é admitida no mundo científico.

Hermógenes: As psicólogas aqui presentes que apreciam a psicanálise e até a usam, a psicanálise, não ser considerada como ciência e não ser admitida no mundo científico é uma honra ou uma humilhação? Esse mundo científico sobre o que está sendo falado não é aquele mundo científico que está inteiramente no dogmatismo da concepção ingênua da ciência e não percebe que essa concepção, teoreticamente, está obsoleta? Esse pretenso mundo científico não quer fazer o mesmo com a medicina oriental e outras alternativas?

Marcos: Aqui, a ciência está sendo usada pela técnica. Controle do processo de conhecimento pela técnica? Não será que a técnica vai mais fundo do que a ciência?

Débora: Acho que nas ciências exatas sim.

Hermógenes: No relacionamento do uso da ciência pela técnica, o que acontece quando na ciência física, p.ex., se usa a alta tecnologia?

Geraldo: P. ex. mecanismos usados para descrever a natureza.

Hermógenes: Não é de Heisenberg a observação de que o homem, hoje, ao observar a natureza através de potentes mecanismos de observação criada pela alta tecnologia, não vê senão a si mesmo? Pois, os instrumentos de observação, devido à atuação da enorme quantidade de energia que eles emitem sobre o objeto de observação, comprometem a própria observação, no sentido de, ela jamais estar diante da natureza direta e realmente, mas sempre diante do produto, ou do prolongamento do próprio homem científico-tecnológico.

Geraldo: Na Física é chamado o observador interagindo.

Hermógenes: A física está sujeita ao meio que ela usa?

Geraldo: É o Frankenstein da física.

Débora: Isso acontece também na psicologia. (Olhando para Geraldo). Sei que Geraldo está louco para me perguntar: “na psicologia? Em que tipo de psicologia?” Eu lhe diria: “Cada ciência tem o seu Frankstein”.

Marcos: A linguagem é importante. Em geral, quando falamos de linguagem, pensamos em primeiro lugar no meio de expressão do que ocorre no nosso interior ou no meio de comunicação. A linguagem, porém, antes de tudo isso, é o próprio vir à fala da eclosão do mundo e sua ordenação em leques de estruturações concatenadas coerentemente, segundo o modo de ser do lance do projeto de um determinado modo de ser. Nesse sentido, toda e qualquer ciência que tem por modelo ideal da cientificidade as ciências naturais procura cunhar a sua linguagem enquanto meio de expressão e comunicação nos moldes da técnica do lógico-matemático.

Hermógenes: Nas ciências naturais, portanto, tenta-se purificar a sua linguagem, limpando-a de toda e qualquer ambigüidade, equivocação e eliminando toda e qualquer interferência das linguagens confusa e inexata da vida pré-científica.

Marcos: Mesmo antes de criar e aplicar tal linguagem, as ciências naturais já são técnicas. Como é agora e como deveria ser a linguagem da psicologia de Behavior, da psicologia comportamental? Geraldo, não acha que deveria ser a linguagem lógico-matemática?

Geraldo: Acho, mas por enquanto, é uma confusão e imprecisão.

Leila: Filosofia tem técnica?

Hermógenes: Filosofia não tem técnica no sentido usado na psicologia, nos exemplos dados acima, embora técnica no sentido grego da téchne tenha a ver com filosofia e a reflexão sobre a essência da técnica e da tecnologia modernas sejam na filosofia o que há de mais interessante. Brincando, quando se entende a técnica no sentido moderno, e se pergunta qual é a técnica da filosofia, poder-se-ia contar a história ou talvez anedota sobre o arqueólogo Schliemann (1822-1890, descobridor de
Tróia): Schliemann certa vez passou numa viagem ao Oriente Médio por um lugar onde, numa grande expedição arqueológica, um grupo de arqueólogos de um país tinha descoberto e escavava o palácio do rei Salomão. Outro de outro país ainda estava tentando localizar a famosa estrebaria do rei. Perguntaram então a Schliemann, se o seu gênio que outrora lhe indicara onde encontrar a Tróia, não lhe fazia intuir o local onde se achava a estrebaria de Salomão. Imediatamente ele se aproximou do já descoberto palácio do rei Salomão, molhou dedo indiador com saliva, levantou bem alto o braço e examinou a direção do vento. Em seguida apontou numa direção e disse: “Por ali”. Não é que encontraram a estrebaria? Pois ninguém coloca uma estrebaria no lado, donde vem o vento. Uma técnica?  

Marcos: Na nossa busca para determinar melhor em que consiste o ser da ciência moderna, lemos primeiro o trecho do artigo que fala sobre os preconceitos existentes na concepção ingênua e obsoleta da ciência. A seguir depois de ler sobre as características de uma nova concepção, crítica da ciência moderna, trocamos idéias e discutimos longamente, de modo avulso pontos que nos causam dificuldades de compreensão dessas colocações do trecho lido. Agora, prosseguindo, vamos ler um trecho do texto que fala na página 26 sobre a pesquisa e o pesquisador: pois pesquisa é um elemento decisivo e pregnante para compreendermos com precisão a concepção nova e crítica da ciência moderna: “Desde o início da modernidade, a ciência compreendeu o seu empenho como sendo o engajamento da pesquisa. Uma figura que representa como nenhuma outra o espírito da modernidade é a do pesquisador. O pesquisador fala da disposição humana para uma infinita busca. Isto requer sensibilidade e abertura. Implica também a capacidade de um ver nítido, capacidade que só se conquista no exercício da própria pesquisa. O pesquisador não é somente aquele que sabe ver outras coisas, além daquelas vistas por todo o mundo na cotidianidade, mas é aquele que sabe ver as coisas de outro modo[7]”.

A idéia de pesquisa supõe um ser humano capaz de ter a coragem de pensar contra todo o aparentemente já estabelecido e fixado como um saber da humanidade. Supõe a liberdade para engajar-se com todas as próprias capacidades intelectuais e com todas as possibilidades de observação disponíveis no empenho da formação de hipóteses e teorias. Trata-se de um engajamento autônomo da razão, na abertura de novos horizontes de busca, disposição ausente quer no dogmático-metafísico, quer no especialista-empirista, mero funcionário da ciência[8].

Tendo presente tudo que lemos e discutimos até agora, podemos trazer à tona o que é pesquisar. Quando, na ciência, alguém é pesquisador e quando é funcionário da ciência?

Hermógenes: Funcionário é o que funciona como peça de um grande sistema chamado ciência.

Débora: Pode-se dizer que pesquisador e funcionário são o mesmo. O que muda é só o olhar. Assim eu sou funcionário de uma empresa, ao montar uma máquina e ao mesmo tempo nessa empresa tenho um olhar mudado, ao pesquisar.

Hermógenes: Mesmo que seja uma e mesma pessoa, enquanto monta a máquina e enquanto pesquisa, não operam nela dois modos diferentes: o modo de ser do funcionário e o do pesquisador? Não sei…Talvez o pesquisador cavouca e mexe na raiz do sistema. O funcionário fica dentro do que funciona.

Irmã: Um tem o elã da pesquisa. Outro não.

Débora: O pesquisador já nasce pesquisador?

Corniatti: Como é estar na psicologia como pesquisador e como funcionário?

Lucas: No Filme “Sociedade dos Poetas Mortos” são funcionários quando os alunos ficam politicamente corretos, direitinhos, sentados nas carteiras; e pesquisadores, quando sobem sobre as carteiras para ver o mundo de outro jeito.

Geraldo: Definamos o pesquisador como quem está na fronteira da teoria. Nesse caso, o pesquisador que pesquisa para vender, p. ex. em Johnson & Johnson, Belgo-Mineira, não seria no sentido estrito pesquisador. A pesquisa na universidade ainda pode criar, voar. Queria ouvir das psicólogas sobre pesquisador e funcionário da psicologia.

Marcos: Tomemos como exemplares do pesquisador da psicologia as pessoas que mudaram o conceito de cientificidade na psicologia: Freud, Jung. Dizem que nos livros deles as palavras fundamentais da psicologia mudam de sentido.

Leila: Se vivessem até hoje, teriam mudado mais ainda.

Marcos: Hoje, nas ciências, fala-se muito da necessidade de equipe de pesquisadores. Nenhum pesquisador sozinho é capaz de realmente pesquisar. Mas, falando com maior precisão, o pesquisador é o que está na equipe ou é um modo de caminhar e ver?

Leila: Se um cientista não tem atitude de pesquisar, vira funcionário.

Corniatti: Quando você está em questão, você tem que virar pesquisador. Pesquisar não é deixar aparecer um novo modo de encarar o mesmo?

Irmã: Mãe de filho drogado vira pesquisadora, pressionada pela situação.

Hermógenes: Geraldo definiu o pesquisador no sentido estrito como quem está na fronteira da teoria. Teoréticos são chatos.

Débora: Ato falho. Não há teoréticos fascinantes? Vivos, surpreendentes, dinâmicos?

Hermógenes: Com o termo “chato” queria dizer achatado, em contraste com o redondo. Não há uma espécie de achatamento do rotundo, do gordo da existência humana, pré-científica, tanto no que toca ao objeto quanto ao sujeito, quando se sonda o modo de ser do que as ciências modernas chamam de teoria na pesquisa? Há também ali de modo teórico a paixão da mãe que, pressionada pela situação da existência chamada filho drogado, vira pesquisadora teórica? Ou será que a ‘chatice’ do achatamento do existentivo na neutralidade fria e matemática da teoria na pesquisa não é intensidade, acribia e radical concentração da paixão indômita de ver? Alguém pode dar um exemplo de teorético na sua área?

Débora: Existem teses feitas a partir de pesquisa e estatística. Teses a partir da pesquisa seriam teoréticas, a partir da pesquisa, práticas? Os teóricos puros na Física são os pesquisadores do buraco negro etc. Nas ciências humanas, seriam da pesquisa teórica as teorias comparativas ou são essas ‘teorias’ no fundo práticas? Teoria não é prática?

Hermógenes: Mas se a pesquisa é teórica e o pesquisador é quem está na fronteira da teoria, não é no teorético que acontecem saltos qualitativos nas ciências? Isto é, indo além do máximo que chegaram os outros grandes pesquisadores antecessores? A prática no fundo não muda nada… A teoria sim!

Leila: Acho que a teoria não pode ser só teórica. Toda teoria da psicologia é aplicável: Pavlov, Skinner etc.

Hermógenes: Isto significa que teoria sempre de alguma forma deve ser aplicável. Nessa colocação da Leila o binômio teoria-prática parece ser entendido da seguinte maneira, a saber: teoria = algo apenas mental, abstrato-formal, por si, não contendo na sua idéia, a aplicabilidade à realidade factual; prática = aplicabilidade à realidade do que é apenas mental. Nesse uso do binômio, “teoria-prática” é igual a “não aplicável ou não aplicado – aplicado”. Nesse nível de compreensão fica também o nosso uso cotidiano do binômio, quando representamos a teoria como a idéia ou a informação que fica na cabeça e não é de fato aplicada para fora da mente na realidade; e a prática como aplicabilidade dessa idéia ou informação à realidade. Essa é a compreensão usual não científica, ingênua do binômio teoria-prática. Na ciência parece que o binômio teoria-prática não está referido – ao menos não originaria e primeiramente – à aplicabilidade ou não de uma idéia mental, mas sim da estrutura essencial do modo de ser da ciência, da sua cientificidade.

Geraldo: Na física, teórico é o que usa a matemática. Prático é o que mete a mão na massa.

Hermógenes: Há uma anedota acerca do modo de ser do cientista francês e do cientista alemão. Um pesquisador francês tem uma “iluminação” e lança uma hipótese inteiramente nova acerca da teoria quântica. Perguntado pelos repórteres: “o Senhor pode provar o que o Senhor intuiu?” responde: “Esse negócio cacete de averiguar, de provar, eu deixo para os alemães!”

Geraldo: Teórico é o que tem insight em pesquisa de experimentação ou criando nova possibilidade.

Marcos: Talvez possamos colocar a questão da teoria e da prática como graus de intensificação da cientificidade da ciência no sentido moderno, recordando como no início os gregos entendiam a palavra fazer (poiêin), agir (práttein) e intuir (theoreîn). “Poieîn” é saber fazer de um artesão. Uma família compra um terreno coberto de floresta ainda virgem para ali se estabelecer como colono. O pai com seus filhos robustos e crescidos limpa uma determinada área do mato, e abre uma clareira. Ali constrói uma choupana de pau-a-pique. Nesse tipo de construção ele é mestre, pois desde a juventude aprendeu a ‘arte’ desse tipo de construção e veio se aperfeiçoando nele. Sabe escolher os materiais adequados, sabe as medidas das proporções do todo da choupana etc., ele sabe construir choupanas, sabe como fazer. Esse saber é operativo, sabe em fazendo. Nesse modo de fazer, no qual estão implícitos muitos conhecimentos de vários tipos, é fazer em fazendo, e nesse em fazendo saber fazer. Com esse modo de fazer, do poieîn vai usando outros materiais, outras medidas, outras formas e outras modalidades de concatenação de diversos materiais novos em uso, e assim o colono faz casas de alvenaria. Não somente constrói para si, mas para os vizinhos. Aos poucos o seu fazer aumenta e com isso o seu saber fazer. Aos poucos ele percebe que esse saber fazer no fazer, necessita de mais saber, p.ex. do saber fazer os materiais melhores, mais resistentes, mais duradouros. O colono e seus filhos então começam a estudar p.ex. as composições químicas dos materiais, as formas aerodinâmicas no formato do teto, a medição de ângulos de fundamentação das vigas principais da casa, conhecimento do uso dos instrumentos mais exatos na medição etc. O seu saber fazer na medida em que aumenta a densidade do fazer, aumenta a necessidade de se fazer saber vários e diferentes conhecimentos que estão em função de outros e diferentes ‘saber-como-fazer’. E começa então a ampliar o seu empreendimento, fabricando também materiais de construção. Esse modo ‘qualitativamente’ aumentado, denso do saber fazer e do se fazer saber se chama então práxis, a ação do práttein, donde se origina a palavra prática, praxis, praxe em português. Digamos que o elã desse aumento e dessa vigência na vitalidade no saber fazer e se fazer saber cresce na amplidão, na profundidade e busca da creatividade cada vez maior, então a prática do saber fazer e se fazer saber se perfaz como intuir, i. é, intus ire, i. é, como theoreîn: a teoria. Teoria nesse sentido não é instrumento, um meio, um acréscimo da prática, mas a excelência da receptividade e sensibilidade da límpida disposição de estar à mercê da dinâmica da ação, i. é, da prática de ser no toque do abismo de possibilidade de ser.


14/11/05: 8,30H

Marcos: Demoramo-nos, bastante tempo, debruçados sobre ciência e psicologia, enfocando-as a partir do texto que falava dos preconceitos da concepção usual ingênua da ciência e das características da concepção nova, crítica da ciência. Depois examinamos o elemento decididamente fundamental da ciência dentro da concepção nova, crítica da ciência: a pesquisa e o pesquisador. Hoje de manhã vamos falar do elemento tão decisivo para a ciência como é a pesquisa, a saber, do experimento que ao lado da pesquisa é um elemento importante para compreendermos a ciência. E depois de termos examinado em que consiste o experimento, tentemos intuir em diferenciação com o experimento, o que é propriamente a experiência. Isto vai nos dar dados para tematizar melhor a questão Psicoterapia e Direção Espiritual. Para falar do experimento, é mais viável falar dela justamente falando da experiência. Pois o conceito experimento pertence ao conceito mais vasto, chamado experiência.

Diz o texto do nosso artigo, na página 27, referindo-se ao experimento e à experiência o seguinte: “O conceito de experiência é muito amplo. Trata-se de uma palavra polissêmica e cujos sentidos podem variar em diversas dimensões e situações epocais. Heidegger, em Beiträge zur Philosophie (Contribuições para a Filosofia), ao meditar acerca do sentido da ciência, anota algumas observações acerca deste conceito. O que chamamos de experimento pertence a um conceito mais amplo, de diversos níveis e modos, denominado experiência. Experimentar (Erfahren) diz, antes de tudo, um esbarrar em, um topar com, um dar-se contra, um encontrar. Na experiência, porém, em que é que se esbarra, com o que se topa, contra o que se dá, o que é que se encontra? Trata-se de algo que nos golpeia, que nos toca, que nos pressiona, algo que sem a nossa intervenção, nos vem de encontro e nos “afeta”. Assim, neste nível elementar, mais do que fazer experiência, nós sofremos experiências. Está em jogo uma certa passividade em relação ao real, que nos afeta (Kant falou de passividade e espontaneidade como dois momentos do conhecimento; Husserl investigou esta passividade da experiência sob o título de gênesis passiva). O sentido de uma tal passividade, no entanto, é a receptividade, o deixar-se impressionar por, a abertura da sensibilidade. Num segundo momento, experimentar parece significar um ir de encontro a algo que, de imediato, não nos toca. Trata-se de abrir caminho para uma nova descoberta, através do olhar em volta, do procurar por, do examinar, do espiar, do procurar saber, do passar em revista, a saber, um determinado estado de coisas. Num terceiro momento, este ir ao encontro de, próprio do experimentar no segundo nível, adquire o sentido de um pôr à prova, de provar algo, no horizonte de uma determinada interrogação, indagação, inquisição, e isto no modo de “se-então”. Aqui, o examinar se transforma num observar, que, por sua vez, pode lançar mão de outros instrumentos de apreensão e de visualização. O experimentado, antes determinado como um buscado, agora é caracterizado como algo que é perseguido e indagado pela pesquisa. Num quarto momento, por fim, o ir de encontro, que lança mão de recursos de observação e que examina, pondo à prova repetidamente as conexões e relações dos estados de coisa, visa a apreensão de determinadas regularidades do se-então. Este pôr à prova da empeiria (experiência), portanto, lida sempre com o recurso da hypólepsis (conjuntura). A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma mensuração. Experimento só é possível onde se lida com precisão de uma mensuração, partindo-se de um projeto matematizante da natureza.  Justamente este projeto é a condição para a necessidade e a possibilidade do experimento. O simples lidar com fatos da observação e com a mensuração ainda não constitui o experimento no sentido moderno, mas, precisamente, o projeto de matematização da natureza. Assim, a empeiria dos gregos, o experiri, a experientia e o experimentum  dos medievais (p. ex. Roger Bacon), ainda não constitui o próprio do experimentalismo moderno[9].

Na experiência temos 4 momentos do experimentar: 1) um esbarrar em, um topar com, um dar-se contra, um encontrar; 2) um ir de encontro a algo que, de imediato, não nos toca; 3) um pôr à prova, provar  algo, no horizonte de uma determinada interrogação, indagação, inquisição, e isto no modo de “se-então”; 4) a apreensão de determinadas regularidades do se-então que é buscada através do ir de encontro, que lança mão de recursos de observação e que examina, pondo à prova repetidamente as conexões e relações dos estados de coisa.

Vamos, à mão desse texto, trocar idéias, de modo informal e avulso, tentando esclarecer mutuamente o que seja experirmento e experiência. Alguém poderia dar um caso desse esbarrar em?

Hermógenes: Uma vez no interior de São Paulo, estava voltando para casa pelas 23 h., pelo caminho do mato. De repente, senti um vulto, imenso, ameaçador. Levei um susto, fiquei paralisado, um calafrio correu da ponta da cabeça até a sola dos pés. Depois de me aquietar, fui examinar mais de perto. Era uma vaca. Usualmente dizemos: O pânico, sentido por mim é apenas uma vivência subjetiva, ao passo que o que de fato ali estava era apenas uma vaca inofensiva. No entanto, tudo isso que dissemos há pouco, o próprio susto, eu o sujeito do susto, a vaca, a causa do susto, tudo isso que agora estou dizendo, disse antes e depois direi, são explicitações de uma implicação de um apriori que sempre já me pegou e sempre de novo me pega: a facticidade da vida. O toque dessa presença anterior, o “quê” (dass), a que sempre de novo “somos” atrasados, aparece e se oculta qual o riscar de um raio na escuridão: é a experiência em cujo in-stante existimos. O que denominamos vivências de susto, pânico, tédio, angustia, júbilo, gratidão, em sumo, de vida-e-morte não são atos, vivências, acidentes do sujeito-agente homem, mas o ser do homem: o quê (dass) da receptividade-afeição como a aberta, a gênese do mundo: o Da-sein, a pré-sença.

Marcos: No modo simples diríamos: diversos modos de ser tocado por ser.

Hermógenes: Tudo que denominamos “projeto” tem um antes, ou melhor, um sempre já ter sido tocado.

Marcos: Estamos em todos e quaisquer eventos a modo de encontro.

Hermógenes: Nós ‘só podemos’ nos comunicar, nos esbarrar, pedir, buscar e encontrar isto e aquilo, porque sempre já somos estar junto de, juntados no toque da vida.

Marcos: Qualquer pergunta, busca, investigação e pesquisa já chega tarde demais.

Hermógenes: Re-cordemos a Alegria dos peixes:

Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!”

Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?”

Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?”

Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.

Disse Chuang: “Um momento! Vamos retornar à pergunta primitiva. O que você me perguntou foi: como você sabe o que torna os peixes felizes? Nos termos da pergunta, você sabe, evidentemente, que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio, através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando à margem do mesmo rio.

Marcos: Não há distância entre o ver e o visto.

Hermógenes: Nas reflexões anteriores sempre de novo perguntávamos: Como você sabe que há inconsciente, se ele só aparece como consciência? Agora talvez possamos responder: na experiência, em sendo tocado pela vida. Em contato imediato em sendo. Se perguntar o que é o inconsciente, já mudei de assunto. Essa anterioridade do ser-vida, na qual sempre de novo esbarramos pode ser chamado: Terra dos Homens, Mãe Terra, Ser, Matéria Prima dos medievais (= potentia oboedientialis).

Marcos: O senso, o tato, o faro desta pura materialidade mais elementar do nosso “estar ali já tocado” é o ser da experiência. É para isto que não temos olhos, ouvidos, peles e paladares num mundo tecnológico. É interessante aqui recordar que a palavra matéria em latim vem de mater (mãe). Que tal entendermos a matéria como a receptibilidade, sensibilidade da disposição de deixar ser o abismo da possibilidade da vida?

Hermógenes: Charge de um náufrago, em cima de uma jangada improvisada com pedaços de madeira do destruído barco salva vida, encalhada sobre a ponta de um recife que acena para o chão firme oculto pelas águas, olhando para todos os lados com binóculo, a perguntar: “Diabos, onde está a terra?”

Marcos: A experiência desse livro aqui: tudo o que eu posso falar do livro, pressupõe que eu já encontrei o livro como livro.

Lucas: Então, o experimento de pesquisa, p.ex. ao me debruçar sobre um sofisticado microscópio computadorizado só é possível porque de alguma maneira já experimentei, estou no nascivo, no natural da natureza?

Geraldo: Ação e reação. Eu estou sofrendo a experiência, somos um conjunto de receptores sofrendo esbarros num mar de coisas.

Marcos: Quando vemos não temos experiência de nervo ótico.

Lucas: A dificuldade de a gente entender um filósofo, é por eu estar fora da experiência dele.

Hermógenes: Chuang Tzu, na tradução de Thomas Merton, coloca na boca do velho fabricante de rodas a afirmação de uma experiência sua de vida. A saber, que ele que já trabalhou dezenas de anos na fabricação de rodas, não pode transmitir a experiência dessa fabricação nem a seu filho. De que experiência se trata? A experiência da precisão do “nem-nem”. Pois diz o fabricante experiente de rodas de carroça. Quando quero encaixar com toda precisão a armação da roda, feita de madeira no anel de ferro que circunda a roda de madeira, se bato o anel de ferro com muita violência, ele sai do outro lado da roda. Se bato com pouca força, o anel não se encaixa, fica aquém da roda. Se então vou nem com violência, nem com pouca força, a roda e o anel se tornam uma coisa só. A expressão nem – nem na figuração das letras chinesas do texto original chinês apresenta para o nem uma imagem estilizada do pássaro voando para céu. Assim, nem-nem significa: ‘com força, não como o pássaro voando para céu’, ‘com pouca força, não como o pássaro voando para o céu’. O pássaro voando para o céu insinua uma força que se esvai, sem um retorno. Pois o pássaro solto, vai embora e não retorna às nossas mãos. Um pescador amador que ao soltar a linha quando um peixe é fisgado, não sente na própria mão e no próprio corpo, esse concreto do retorno, pesca em vão, pois deixa escapar o peixe. É o problema da experiência e do seu modo.

Irmã Ananias: Nos exemplos com os quais se tenta ilustrar a experiência, o pivô da questão seria a disposição para o toque, para a afeição do anterior?

Hermógenes: Mas disposição já é explicação. Não é a experiência ela mesma. Ao tirar uma lâmpada queimada do teto, não tenho escada. Improviso uma ‘escada’ com uma mesa que não fica firme no chão, coloco em cima da mesa uma cadeira, também bastante capenga e em cima da cadeira uma pequena pilha de livros de filosofia. Subo em cima do conjunto e começo a desparafusar os parafusos que prendem o globo que cobre a lâmpada. Não tenho nenhum apoio a não ser a escada improvisada. Numa situação assim, devo ser a presença de todo esse conjunto: um corpo só e nada mais. É o full contact. Essa presença una é então a disposição que não é uma explicação, mas a experiência, a passividade genética, a recepção do anterior. Se alguém, ‘de fora’ me pergunta, ou eu mesmo ‘fora’ do eu-corpo-a-corpo me distraio, em vez de ser um, me divido, desabo. A experiência se fragmenta em explicações. Aqui eu e a escada bamba são: um lance só. Outro me olha e faz análise: como ele está ali? Outro descreve o que eu estou fazendo. É como perguntar: Como sabe que eu sei da felicidade dos peixes?!?

Mike: A linguagem é falha para explicar a experiência. Quando dela fala já perdeu o essencial do momento.

Hermógenes: A linguagem deve tentar dizer. Não é pelo fato de dizer que se afastou da experiência.

Marcos: Existe uma experiência anterior à linguagem? Talvez se entendo por linguagem o meio-instrumento de comunicação ou expressão do que vai no interior do sujeito, experiência e linguagem são duas coisas distintas. Mas se o ser humano como existência se torna e é ele mesmo – Jung o denomina de Selbst, em alemão, Self em inglês – experiência coincide com linguagem: o ser Selbst, ser Self fala por si. No ‘relato’ de Martin Heidegger do seu diálogo com um professor japonês, acerca da linguagem, publicado no livro “A caminho da linguagem” o pensador japonês tenta expor a Heidegger que na língua japonesa, palavra ou linguagem diz koto-ba. O idiograma koto significa Selbst ou Self e ba, folhagem. Koto-ba, portanto, é o viço, a floração do Self, ou melhor, a vigência da jovialidade, da vitalidade do Self.

Adélia Prado contou que vestibulandos ligam para ela para perguntar: “O que a sra. quis dizer com este ou aquele poema?” Ela disse que responde: “Nada”. Quer dizer, ela não “quis” dizer. Ela simplesmente disse. É a experiência que fala por si.

Hermógenes: A experiência matriz não exclui nada. É um abismo de possibilidade.

Marcos: O que isso tem a ver com sensibilidade? A sensibilidade é anterior a dimensões em que ela pode ser decomposta.

Hermógenes: Sensibilidade tem muito a ver com sentir, na acepção da língua italiana, quando ela diz “sentire” para indicar um modo de compreender todo próprio “íntimo” onde o compreendido e o compreender coincidem. Modo de compreender dito na gíria, em português: “morou?”,  “sacou?”

Regina: No exército tem a voz de comando “sentido!”, mas esse comando não diz “sentir” no sentido acima insinuado, mas na acepção de “Atenção!”, “os sentidos em alerta!”

Débora: Sentir parece fora. Intuir parece dentro?!?

Hermógenes: Dentro e fora já é depois. Experiência é anterior a tudo isso.

Marcos: Há casos em que eu e o outro estamos um diante do outro, e eu bato olho nele e já sei tudo dele. Esse “bate olho” é anterior a eu e ele. O Nós aqui não é soma de indivíduos, mas o “encontro”, o âmbito prévio, aberto como o “instante bate olho”.

Débora: Nós aqui. O que significa nós aqui se o outro está sentindo este momento igual ou diferente de mim?

Marcos: Igual ou diferente já supõe dois ou mais. Dois ou mais como nós não é 1+1+1+1 de átomos isolados. É presença todo própria! Quem não vê, não “mora” isso, está fora da experiência, a mais elementar.

Leila: Aqui, o fenômeno se mostra. Se eu o vejo como relação de dois, eu aqui e ele lá, eu não estou vendo. Mas como é isso? Seja o que for o que vejo, o que vejo não é de alguma forma sempre uma projeção minha?

Hermógenes: Na conversa com o outro, não é assim que primeiro eu saio de mim e então entro no outro, seja como for esse processo. Antes de todas essas explicações e representações, estamos juntos “conversados” de antemão. Antes de sair de cá para lá já estava lá. Lá e cá pressupõe antes que estejamos no espaço. O difícil de ver isso é que não damos nenhuma importância para uma questão desse gênero.

Marcos: Achamos uma coisa dessa pura insignificância.

Hermógenes: Meu vizinho me diz: “Não vivo, vegeto. Nada tem sentido. Sou um natimorto, um zumbi”. Por mais que tenha pena dele e tento compreender a sua depressão, vem a objeção ‘realista’: “Pois, não… Mas tu estás vivo, corado, comendo bem. E enquanto ainda não estás morto, estás vivo”. Outro me diz: “O que me adianta viver, se não vivo, se já estou morto?” Mas e o simples fato de existir, ou melhor, de ocorrer, não vale? Não tem sentido? Você diz: “Mas isso ali, apenas o simples fato de existir é demasiadamente elementar. Ad maiora natus sum (Nasci para coisas maiores). Perguntemos, pois: “Que valor terapêutico possui o simples fato de existir?”

Marcos: Para que essa pergunta seja compreendida com precisão, vamos nos prevenir para que prestemos muita atenção na resposta que damos ou recebemos, se ela é formulada da seguinte maneira: “Um simples fato de o paciente existir, de ele ocorrer, somente possui valor terapêutico, se o paciente dá valor a ele”.  Isto significa que se o paciente ou se o terapeuta não dá valor, ou não está consciente do fato, não tem valor terapêutico. Mas na pergunta não se está perguntando pelo valor terapêutico do fato de o paciente dar valor ou não ao simples fato de ele existir. O que está aqui em jogo é somente o próprio fato de se ocorrer, de ser, de se estar ali, na pura materialidade elementar de ser, independente da conscientização, da consciência do paciente e do terapeuta acerca do fato de ele, eu, você, simplesmente existir.

Leila: Eu e o cliente. Vi os seus problemas e não lhes dei importância, não me comuniquei com ele…

Hermógenes: Mas e o simples fato de eu, o cliente existir, enquanto o prévio, o apriori, não é experiência? Condição da possibilidade de toda e qualquer comunicação? Se se tira isso, tira o mais elementar de onde se tira tudo o que é interpretação, o ser humano não é abordado pelo primeiro contato, pela abordagem da imensa presença da matriz, a partir e dentro da qual se possibilita toda e qualquer interpretação e determinação.

Marcos: O fato de existir e estar ali já comunica saúde. É saúde.

Leila: O estar presente e estar ali, sim… mas, às vezes precisa respostas.

Geraldo: Interação não é falar.

Hermógenes: Seria interessante, a essa altura, cada qual, que de alguma forma pertencemos à comunidade científica moderna, como psicólogo, como terapeuta, como filósofo, como exegeta, historiador, como médico e enfermeiro, como educador, como físico nuclear, sondar dentro da sua própria cientificidade: o que é fato para a minha consciência científica?

Débora: Na UTI, se pego na mão de pessoa que está em coma, o monitor mostra coração se acelerando. Que toque o monitor acusa? Se sou da neuropsicologia, o que significa aqui coração que acelera, o toque, em que horizonte de compreensão me movimento ao observar e constatar todas essas reações e interações?

Leila: Esta é uma das minhas perguntas. Eu consigo explicar porque a Gestalt me pegou.

Regina: As pessoas me dizem muitas vezes: você é assim porque é psicóloga. Eu respondo: Não. Eu fui ser psicóloga por ser assim!

Marcos: Anteriormente, numa das reflexões, Débora disse: fui escolhida. Agora Leila acabou de dizer: fui pego pela Gestalt. Essa fala é a fala nossa desse momento, quando há pouco se disse: na UTI, eu pego na mão de pessoa e então o monitor mostra o coração acelerando?


14/11/05: 10:30H

Marcos: Na experiência, no primeiro momento, na imediatez, ‘algo’ nos toca. No segundo momento não há mais imediatez. Porque não há mais imediatez, pode-se buscar o experimentado.

Corniatti: O segundo é separado do primeiro ou tem ligação?

Marcos: Toda procura pressupõe ‘algo’ que já nos atingiu.

Corniatti: ‘Ir de encontro a’ não é feito, o fato do sujeito, mas efeito do toque.

Marcos: A procura supõe certa ausência. Mas ausência é certa forma de presença.

Corniatti: O primeiro momento está no começo, meio e fim da busca.

Geraldo: Vamos ver isto no exemplo da vaca que assustou Hermógenes.

Hermógenes: No sentido da mencionada primeira característica da experiência, a saber, ser atingido a priori, não foi propriamente a vaca que tocou, mesmo que eu tivesse dado uma trombada nela e ela me tivesse atacado e me jogado no ar. O toque que aparece no pânico é da ausência que é certa forma de presença. Uma vez tocado, se pergunta depois, quem ou o que me atropelou? Essa ausência que é certa forma de presença é o que antes apareceu como “o simples fato de existir, de ocorrer”. Na aparente neutralidade coisal e material, a indiferença da insignificância do simples fato de existir pode ocultar o fascinante e terrível, mas ao mesmo tempo gracioso e belo, abismo inesgotável e insondável  da possibilidade de ser.

Marcos: O perguntar é sempre tardio. Se pergunto “o que é isto?”, já se pressupõe saber o “é isto”.

Mike: Vi na TV ontem o jogo de interação de dois repentistas. O que segue o primeiro, parte de onde o outro terminou.

Geraldo: Segundo momento é ir de encontro a algo que de imediato não nos toca. Newton vê uma maçã caindo. É o primeiro momento. Depois vai de encontro à lei da gravitação dos corpos, a gravidade que de imediato não nos toca. E dali pode concluir que se eu jogar a maçã para frente com uma força incomum a maçã pode me atingir por trás na nuca.

Débora: Foi afetado pela maçã?

Marcos: Antes, pela força da gravidade. De primeiro a gente é afetada pelo corpo. É interessante observar que o “ser tocado pelo apriori”, i. é, a afetação primeira, aparentemente vem desta ou daquela coisa, mas na realidade esta ou aquela coisa já é o produto, o que me vem de encontro, por ter sido já tocado pelo abismo da possibilidade do ser.

Marcos: Acima, o nosso texto disse que experimentar na experiência é “um ir de encontro a algo que, de imediato, não nos toca. Trata-se de abrir caminho para uma nova descoberta, através do olhar em volta, do procurar por, do examinar, do espiar, do procurar saber, do passar em revista, a saber, um determinado estado de coisas.

Vamos focalizar melhor como é esse espiar.

Geraldo: No relato da vaca que assustou Hermógenes – é no segundo momento que se pergunta: o que me atropelou? O que é? No caso da abertura de um filme de Super-homem a multidão se agita e é ai que pergunta: “É um pássaro, não! Um avião?, não! Um foguete chinês? É super-homem?! Mas… se super-homem como é então que tem quatro patas??? É o boi voando de Santo Tomás!”

Marcos: No susto se dá um impacto. E o impacto já dispõe-para  indagação e seqüência de indagações. É o 2º momento. E na dinâmica da indagação, no 3° momento, se processa a ilação, em escalação, em seqüências consecutivas e/ou entrecruzadas: “se… então”. Se é um monstro, por que então muge; se muge, então é mu-mu, mas se é mumu, pode ser que então deu a louca na vaca que o vizinho me roubou e agora anda voando por ali etc. Certos comportamentos compulsivos não viriam da dificuldade de se lidar com o se… então?

Débora: Compulsão é sempre isso.

Marcos: Nesse movimento-cascata de cadência e de-cadência em constituição a modo de se-então, a dinâmica-lógica pode não ter ou ter a ginga no balanço do jogo de cintura nos passos e impasses das diversas possibilidades que se seguem, se contradizem, se entrecruzam, se abrem em diversidades ambíguas, em univocidades unilineares ou em equivocidades. O saber pensar outras possibilidades no movimento seqüencial de se-então é decisivo para a boa saúde das ciências.

Mike: Certo psicólogo diz: tem pessoas que vivem no mundo do ou… ou. Outras vivem no mundo do e… e. Agora eu acrescento depois dessa reflexão: outros no mundo de se-então.

Corniatti: Mas conheço gente que vive no e…e…e…, e nunca se arrisca em nenhum ou-ou, ou outras possibilidades. O e…e…e… assim está fechado. P. ex. alguém pode ir ao hospital tal, mas também no outro e no outro ainda…. bitola. O que Marcos expôs, parece dizer que na experiência, uma coisa puxa outra. O primeiro momento é a ponta do iceberg. É o anterior no qual a gente sempre está.

Marcos: Da experiência como tal a gente nunca sai. Sai sim da imediatez da experiência. Ao sair da imediatez da experiência se aperceber da necessidade de se estar na imediatez da experiência é a possibilidade do experimento. Manter-se na imediatez da experiência e cadenciar-se na de-cadência da “bio-diversidade” das mediações das possibilidades de ser seria a vida sadia da ciência, na concepção nova e crítica da ciência.

Hermógenes: À luz, na perspectiva dessa observação de Marcos, a colocação que Corniatti fez acima com muita nitidez, talvez nos pode levar adiante a sondagem que estamos fazendo acerca da identidade e diferença “entre” terapia e orientação espiritual, cujo fundo se expressa em  formulações como essas: Pensar científico e Fé em Deus, Ciência e Fé, Saber e Sentido do ser, Poder e Autoridade etc. etc. Analisando “grosso modo” o tom de fundo da conseqüência (se-então) que Corniatti tirou da explicitação de Marcos é o da concepção ingênua da ciência. Essa tonância soa aos nossos ouvidos e também impregna a ilação feita por Corniati de dis-sonância que hoje denominamos de fundamentalismo (de-cadência da vigência do fundo, que segundo Pascal zomba do fundamental) e de moralismo (de-cadência da vigência ética que, segundo Pascal zomba da moral). Aqui a palavra decadência não possui a acepção moral. Por isso está ‘soletrada’ de-cadência, para indicar que se trata de cadência, do cascatear da experiência. Para não nos alongarmos, recordemos aqui os pré-conceitos citados no curso de nosso encontro para caracterizar a concepção ingênua da ciência e examinar se esses pré-conceitos não estão presentes na tonância da acima feita ilação de Corniatti. Se fizermos esse exame, percebemos de repente que todos nós na nossa discussão, operamos no modo de ser e pensar que na sua maneira clara e distinta, decisiva, de uma vez para sempre, estamos na mesma tonância do modo fundamentalista e moralista que está também no modo de ilação feita por Corniatti. Essa dificuldade nos aponta a situação dos nossos estudos, quer nas ciências positivas, quer nas coisas da Fé, que não exerce a sondagem da pré-suposição dos nossos próprios posicionamentos (nas ciências positivas denominamos essas pressuposições e a pré-suposição de fundo que se enrijece como fundamento de: positum). Essa falta de exercícios, na agilização do jogo de cintura no se enviar e aviar-se no caminho do comportar-se a partir e dentro da vigência do sentido da vida, confunde (mistura) a decisão com a fixidez da opção; a firmeza com o imobilismo; a clareza com a segurança do bitolamento unidimensional, que corta de antemão a ambigüidade de pender na ausculta do inesperado; o eterno com o indeterminado sem fim nem começo. Ao colocar a pesquisa e o experimento dentro do âmbito da compreensão mais vasta, mais profunda e mais diferenciada da experiência, estamos nos introduzindo para dentro de uma busca do saber científico – que Pascal chama de espírito de geometria (ciências naturais) e espírito de finura (ciências humanas). Depois então, adentraríamos a dimensão da Fé, onde talvez se ache a verdadeira pátria do que São Frâncico de Assis chama de Espírito do Senhor e o seu modo santo de operar. Para fazer essa diferença Pascal, como haveremos de ver mais tarde, introduz a palavra ordem ou ordenação. Temos assim: Ordem do corpo; ordem do espírito (espírito de geometria e o espírito de finura) êêOrdem da Caridade ou Ordem sobre-natural. Ao estarmos estudando a cientificidade das ciências na sua concepção nova e crítica, estamos tentando adquirir uma nova compreensão da ciência na cientificidade, que abranja, – guardando suas diferenças, – tanto a ordem do corpo como a ordem do espírito, para então ver em que consiste a “ciência na sua cientificidade” que pertence à ordem da Caridade ou do Sobre-natural.

Na seqüência da nossa reflexão, percebemos que a questão do sair e entrar não da experiência, mas da imediatez da experiência e exercer esse sair de e retornar à experiência como a dinâmica e cadência do experimento nas ciências é a busca essencial dos nossos estudos. O conflito e o balanço da ambigüidade nessa busca pode aparecer em coisas aparentemente banais.

Débora: Nelson Gonçalves dizia que o gago, – ao cantar não gaguejava.

Hermógenes: Quando um ator ou uma atriz entra no palco, o momento de sair atrás dos bastidores para a cena se chama febre da ribalta. É a imediatez da seriedade da existência artística no seu toque. É o ponto de salto do experimento que salta da imediatez da experiência e o retorno do experimento à imediatez da experiência, acontecendo no in-stante de o ator ou a atriz pisar o palco.

Aloízio: A grande concentração dos jogadores no instante em que se inicia o jogo seria então a precisão no estar no ponto de salto.

Marcos: Robô tem probabilidade. Humano tem possibilidade. No âmbito das possibilidades e probabilidades, o que é risco e o que é certeza? O calafrio da liberdade é suportar o risco como risco. Arriscar demais é entrar no mundo do cálculo. Quem entra no risco ou está no risco no modo de ser do cálculo ou faz sempre de mais ou de menos, jamais está na precisão da necessidade de ser. O adversário de tal judoca, se ele continuamente vive no fio de navalha da necessidade do risco como o próprio dele mesmo, nada faz de ou melhor nada nele é cálculo, previsão, excesso, privação. Por isso toda a pegada que vem do cálculo, ou desliza sobre ele, ou reverte sobre o sujeito e agente da pegada calculada,  desequilibrando-o no seu cálculo, derrubando-o, enrolando-o na sua própria força calculada de modo inesperado. Percebemos aqui que a força do judoca que permanece na necessidade da precisão do risco é a força que permanece no ponto de equilíbrio da passagem do sair e retornar na imediatez da experiência. Está sempre e cada vez no ponto de salto. A dinâmica da sondagem das pressuposições a partir e dentro das quais as ciências edificam todo um gigantesco sistema do seu saber parece não estar longe na sua operatividade da lógica da pugna de risco de um judô bem exercido e vice-versa.

Hermógenes: A palavra judô é japonesa. Ju significa suave, obediente, dócil, fluente; do é caminho que se perfaz caminho em caminhando. Será que a palavra judô não esta a dizer o mesmo que dissemos ao examinar os termos gregos poieîn, práttein e thoreîn para caracterizar como poderíamos entender a questão da compreensão mais profunda e originária do binômio prática-teoria?

Marcos: Na atitude de indagação do “se… então”, a ciência nasce como possibilidade humana, i. é, como a aberta ao toque da percussão da cordialidade insondável de ser. É estar e ser ao sabor do calafrio da novidade e frescor, i. é, a vida humana no saber. As formas que nascem, crescem e se consumam a partir desse espanto são florações, a(s) linguagem(ns),  koto-ba da gratuita generosidade do viver. Mas permanecer no ponto de salto da eclosão das multifárias concreções do abismo da vida pede o empenho e desempenho de contínuo cuidado e diligência de estar no ponto. O amor e o fascínio pelo calafrio do toque abissal podem se esquecer do desafio da luta pela precisão da ambigüidade na permanência no risco e virar para a busca de uma segurança mais fixa e certa. As concreções no frescor da cordialidade de ser no risco da vida viram fôrmas padrões, leis e normas do cálculo de autoasseguramento, cada vez maior, cada vez mais extenso, mas também cada vez mais microscópico e infinitesimal. E o que gera a ciência e o que a ciência gera, passa a ser motivo de perturbação. O que perfazia a atitude do saber científico face ao real como a disposição de nascer e retornar à imediatez da experiência em mil e mil cordializações de mediação vira impostações de autoasseguramento, meios pelos meios, método pelo método, controle pelo controle, asseguramento pelo asseguramento. Aos poucos, com o tempo, a ciência esquece que é da sua natureza ser hipotética. Dogmatiza seu modo de proceder como a realidade. Quer destruir o abismo de possibilidade.

No texto já lido, fala-se da experiência e também do experimento, e menciona por fim, como elemento constitutivo da experiência na sua concreção especificada como experimento, o quarto momento da experiência que é hipótese ou conjuntura. Diz, pois o texto: “o ir de encontro, que lança mão de recursos de observação e que examina, pondo à prova repetidamente as conexões e relações dos estados de coisa, visa a apreensão de determinadas regularidades do se-então. Este pôr à prova da empeiria (experiência), portanto, lida sempre com o recurso da hypólepsis (conjuntura). A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma mensuração. Experimento só é possível onde se lida com precisão de uma mensuração, partindo-se de um projeto matematizante da natureza.  Justamente este projeto é a condição para a necessidade e a possibilidade do experimento

Vamos a seguir conversar um pouco sobre a questão da hipótese. A hipótese é ‘absoluta’ só enquanto dura: na hipótese aparece nitidamente a provisoriedade da ciência.

Hermógenes: Eu sempre ligava a idéia de hipótese com a idéia da provisoriedade do estado atualmente válido dentro do progresso na evolução da ciência. Assim, entendia hipótese como estado provisório,  ainda imperfeito de uma busca que mira um dia chegar ao resultado definitivo da certeza da verdade. Por isso entendia o binômio “hipótese e teoria” como indicativo dos degraus ascendentes da diminuição do resultado ‘hipotético’ i. é, ainda duvidoso, em favor do aumento da certeza na conquista definitiva da verdade. E como ouvia falar sempre de novo que a matemática é a mais exata e certa das ciências, e que a matemática é a mais teorética das ciências, achava por isso que o modo de ela ser ciência deveria servir de medida ideal de cientificidade para outras ciências. Pelo que Marcos acabou de explicitar no trecho do seu artigo e a sua explicação, o binômio hipótese-teoria não indica senão apenas o movimento da estruturação do modo de ser do cálculo na sua provisoriedade, de autoaveriguação e asseguramento da coerência lógica da sua medição. Hipótese é nesse caso a própria maneira de ser da matemática, cuja essência é indicada na palavra matemática que vem do grego: mathesis, mathemata, e seu verbo manthánein. Este verbo, no qual está o sentido-núcleo do que seja matemática significa: aprender a apreender o que sempre já se é, ou trazer à fala o que, no qual já de antemão sempre se é: produzir, i. é, trazer para frente de si explicitamente o que está implícito no lance projetivo de um inter-esse humano.

Marcos: Por isso a disciplina matemática e aritmética não somente não exaure o sentido, o mais próprio do matemático. Por isso a matemática, a aritmética é apenas o mais simples e ‘deficiente modalidade da manifestação do matemático.

Hermógenes: P.ex., ritmo é manifestação mais rica da enumeração. O que se torna visível nos movimentos de uma sinfonia.

Marcos: Santo Agostinho fala de oito tipos de números. Aqui apenas alguns exemplos: Na dança tem número. Na fala. Na música. O que falamos de número, como quantidade, é só um tipo de número. Compreender matemática como o quantificável é só um tipo dos oito tipos de número de Santo Agostinho.

Mike: Até na beleza entra matemática. A beleza é simetria. Já imaginou que matemática refinada se torna necessária para precisar o cálculo e a mensuração simétrica da beleza assimétrica da feiúra ou da feiúra simétrica da beleza padronizada como Kitsch?

Hermógenes: Compositor da música eletrônica, o alemão Stockhausen afirmou numa das suas palestras que a sua composição quer ter o mesmo modo de ser e compor de Bach. Só que Bach só dispunha de 7 tons (e seus semi-tons), Schönberg, de 12, e ele, Stockhausen e colegas,  de milhões e milhões de tons atomizados e estes por sua vez fragmentados em sub, sub-sub, e sub-sub-subtons, de cuja possibilidade  de montagens através da eletrônica, se torna viável criar músicas que reproduzem as modalidades existentes de barulho e criar novas modalidades até agora jamais ouvidas. Não se poderiam fazer o mesmo com as cores? Tudo isso é matemática de outras gerações.


14/11/05: 14H

Regina: Frei Marcos, antes de iniciarmos as reflexões dessa tarde vamos combinar o nosso encontro do ano que vem. Conversemos rapidamente sobre: se vai haver, onde, quando, e qual o tema. (Depois de uns rápidos cochichos, foram determinados: o local = Casa de retiro Convento Imaculada, Embu; quando = no feriadão do 7 de setembro 2006; o tema =)

Hermógenes: Nesse ano, estudamos o modo de ser do pensar científico e o modo de ser da Fé, em função da questão: Se há diferença entre o psicológico e o espiritual, entre a terapia e a orientação espiritual. O tema marcado de início para esse ano era o estudo e o modo de estudar, principalmente na espiritualidade e a sua importância na formação. Não poderíamos, retomar o tema do estudo, depois das reflexões desse ano, as quais podem ser consideradas como uma espécie de aquecimento para o ano 2006? Mais ou menos na direção de: como entender estudo e formação, tanto na psicologia como na espiritualidade?

Marcos: Para concentrar o tema do estudo num âmbito mais ‘definido’, e assim evitar falar de tudo numa amplitude que não nos permite trabalhar bem e finitamente, que tal, se decidirmos focar mais a formação permanente. Todos nós aqui somos formados e cada qual, no sentido próprio de sua tarefa, ensinamos, formamos. Em vez de mirarmos os outros, tentemos focar a nós mesmos, centrados na formação permanente mais ou menos na perspectiva da seguinte questão: Como pessoa, já formada (nos estudos profissionais e vocacionais específicos para exercer a sua missão), focando para trás, a mira da pesquisa  sobre os estudos e formação da nossa profissão ou missão, como tenho assumido os estudos i. é: o que entendia por estudo, como exercia e me exercitava na sua aquisição e como fazia uso das dificuldades e lutas da práxis do estudo acadêmico para o crescimento na autoformação. E agora que já estou formado, o que entendo por estudo, o que estudo, como estudo e como me formo, no sentido da formação permanente.

(Depois de combinado o que fazer no ano que vem, continuamos os nossos estudos sobre o tema proposto para esse ano. Talvez fosse útil, quem ficou de distribuir esse relatório para as pessoas participantes do encontro que deixaram os seus endereços, assinalar com maior precisão os dados acima definidos para o encontro do ano que vem. Mas isso pode ser feito bem mais tarde, quando, no ano que vem, se aproxima a data do encontro).

Hermógenes: Até agora foram lançadas as características principais da cientificidade da ciência moderna, na concepção nova e crítica da sua cientificidade. Experimento é uma das modalidades de experiência. O despertar da humanidade para o surgimento da ciência moderna foi experienciada como exigência de chamamento para um novo céu e uma nova terra: uma nova humanidade iluminada e transformada pela Nova Ciência Universal: mathesis universalis. Essa viragem histórica foi denominada de revolução copernicana. Seria bom, se pudéssemos ser de novo tocados pela experiência dessa eversão no frescor, no inaudito de sua novidade. É que hoje, enterrados até o pescoço em padronizações, produtos e slogans criados como opiniões públicas dessa publicidade neutralizadora de todo e qualquer e-versão, vivemos ou entusiasmados ou enjoados de saber acerca da ciência e sua dominação planetária. Mas tanto o entusiasmo como o tédio, embora pareçam opostos, estão subsumidos por uma indiferença de fundo deprimido que atinge principalmente as ciências humanas. É dentro dessa atmosfera epocal que estamos tentando estudar a psicologia e a espiritualidade, na nossa linguagem do tema desse ano: o psicológico e o espiritual. Essa atmosfera redutiva existente nas ciências naturais, principalmente na sua versão cientificista leva toda a maneira de ver a natureza a cálculo, previsibilidade, e a partir dali, se espraia sobre todas as outras regiões da realidade como sobre o divino, o humano em todas as suas manifestações. Assim, percebemos um trend em todas as ciências humanas, portanto também na psicologia e na espiritualidade em buscar a excelência da sua cientificidade, seguindo o modo de ser da excelência das ciências naturais. A muitos de nós tudo isso nos inquieta. Mas também nos entusiasma, ou usualmente nos deixa indiferentes, ou não nos damos conta que aqui está sendo travado o conflito subterrâneo, talvez decisivo da nossa época.

Talvez seja um tanto simplificado e exagerado, mas será que poderia se dizer que na psicologia em geral o modo de abordar, de buscar a excelência de sua cientificidade é no fundo o das ciências naturais? P. ex. tanto na fala de Débora (Behavior), Angelita como de Leila (Gestalt) e também de Marlene, Regina (Freud, Jung) e Cleonice (Jung) e de todos nós, também na fala da Espiritualidade, quando dizemos p.ex. a palavra energia psíquica, não pensamos na energia a modo da ciência física? Pensamos o mesmo que pensa o físico quando ele usa energia quântica?

Débora: É em todos nós o mesmo, só difere nisso que para uns é mais amplo.

Hermógenes: Assim, energia sexual, energia vital, energia psíquica espiritual, em todas essas energias; a palavra energia é univocamente físico-matemática

Geraldo: O que é energia? Eu sei o que é na física. Trabalho. Movimento.

Débora: Emoção. Pensamento. O Ki dos taoistas, da medicina oriental, por exemplo, o plasma psíquica dos espíritas etc. etc.

Hermógenes: Compreensão de energia começa a ficar homogênea. É a modo de medida calculável em quantidade. Descartes chamou a realidade onde reina esse modo de ser e os entes com esse modo, de res extensa (é o domínio das ciências naturais); e aos entes e ao seu ser que têm outro modo de ser de res cogitans (é o domínio das ciências humanas ou como se dizia antigamente ciências do espírito). Em Pascal então, influenciado por Descartes, temos a famosa bidimensionalidade do ser da realização humana: o espírito de geometria (é o reino das ciências naturais, denominado por Pascal de ordem do corpo) e o espírito de finura ou fineza (é o reino das ciências humanas, denominado por Pascal de ordem do espírito). Pascal introduziu uma terceira dimensão e sua dimensionalidade a que chamou de ordem ou ordenação da caridade ou sobre-natural. O modo de ser do espírito de geometria e da finura recebe o nome de Razão; modo de ser da dimensão e dimensionalidade da ordenação da caridade ou sobre-natural recebe o nome de Coração. Assim Pascal formulou a questão do relacionamento entre o Pensar científico e a Fé, no conhecido e tão mal compreendido aforismo: O coração tem razões que a razão desconhece. Essa colocação da questão expressa nesse aforismo possui uma precisão fora de comum. Na nossa época, principalmente no âmbito do “ânimo espiritualista”,, para não dizer “espírita”, a compreensão da questão decaiu completamente para um apelo equivocado de acentuação e intensificação e recuperação do sentimento (coração) no sentido psicológico em contraposição ao racionalismo, cujo conceito de razão ali operante, não se sabe onde foi buscado. E tudo isso nos nossos estudos decaiu ainda mais e virou (vira-vira) o “grande problema da formação e educação do equilíbrio entre “coisas da cabeça” e “coisas do coração” (leia-se “peito”). As nossas reflexões do encontro realizado anualmente sob o título Psicologia e formação é uma modesta tentativa de retomarmos a questão suscitada no início da nossa era moderna, como um incentivo e desafio para a dimensão da nossa Fé, no início, lá onde a humanidade foi tocada pelo frêmito do risco do nascimento, da gênese de uma nova era. Mas voltemos à afirmação de que hoje o conceito de energia operante nas ciências físicas se tornou unívoca, dominante e totalitária, reduzindo a vigênciavida, vigênciaalma, vigênciaespírito à energia quanta ou armação de quanta em cálculos físico-matemáticos.

Marcos: Seria interessante dar um exemplo prático: Como seria a experiência concreta de vivência, na qual se apela: o que vale, o que importa é vivenciar?

Irmã: Nas manifestações psicosomáticas, os quantas da energia psíquica desencadeada na raiva se transformam em quantas da energia corporal da dor de costas.

Hermógenes: Essa redução de ódio, amor, gratidão, alegria, tristeza em “energias quânticas” à la quantidade e quantificação de mensuração físico-matemática funciona bem na manipulação e explicação de tudo, e é muito prático. Baseado numa tal concepção físico-matemática dos entes no seu todo, posso por estímulo do uso de certas palavras, que são energias das vibrações acústicas, causar e mobilizar reações sintomáticas, indicativas de perturbações e desequilíbrios dos quanta da energia pisco-anímica.

Marcos: É a química do psiquismo humano.

Hermógenes: Na medicina chinesa se faz hoje essa química do Yang e do Yin.

Marcos : Como Jung viu na alquimia o modelo para a compreensão da psyché. E assim se dá a reação em cadeias das armações em explicações e manipulações da energia-quanta cerebral (química do cérebro), da energia-quanta consciencial (química da consciência), da energia-quanta anímico-espiritual (química da alma, química do espírito). Se fosse na formulação geométrica, o psicólogo behaviorista fala do ponto (energia física); psicólogo freudiano, da linha (energia psico-somática) e o psicólogo junguiano, da superfície (energia vital) e o psicólogo da daseinsanalyse, do cubo (energia humana). E o psicólogo da Gestalt?

Hermógenes: E na espiritualidade? Como seria a quantificação da energia espiritual e sua medição e seus cálculos? O que é, p.ex., o ponto alto e o ponto baixo num retiro?


14/11/05: 16H

Marcos: Nós tematizamos até agora o modo de ser do pensar científico. Regina: O que chamamos ciências mobiliza nossa época. É capaz de plasmar uma época. Vimos como anda a psicologia aí. Agora vamos ver espiritualidade. Por mais que a gente diga que espiritualidade é coisa do coração, intimidade do encontro com Deus, por viver neste mundo, o geométrico influencia também a ela.

Não seria interessante examinar a palavra, para que lado vai nos levando, a palavra?

Irmã: Espiritual. Espírito?

Corniatti: Deus. Fé?

Marcos: New Age fala de espiritualidade anterior a Deus e a Fé.

Corniatti: Nesse tipo de espiritualidade “carismáticista” piedade e religiosidade viram eflúvios vivenciais do pietismo devocional.

Débora: Espiritualidade é tida como o reino etéreo do idílio intimista, contrária à banalidade e brutalidade da matéria e frieza indiferente da razão.

Geraldo: Espiritismo é bem geométrico aplicado ao mistério. Muitos físicos são espíritas por causa da aparente cientificidade das explicações espíritas.

Marcos: Na formação, como aparece tudo isso?

Corniatti: O que numa ambiência assim carismaticista de New Age é a Fé enquanto abertura para a dinâmica de Jesus Cristo?

Aloizio: Aparece no Holístico, na meditação transcendental, nos modismos da busca de ‘espiritualidades’ orientais, sem perceber que a busca do Oriente na dimensão do espírito pode esconder seriedade e engajamento de trabalho tão autêntica como a busca existente no cristianismo. A questão é, porém, se há essa seriedade e engajamento entre nós, ‘clero’ masculino e feminino…

Lucas: Num escrito sobre Nova Era li que Giordano Bruno e até Mestre Eckhart eram os predecessores do holismo!?

Marcos: Isso acontece porque tanto Mestre Eckhart como Giordano Bruno, nos seus pensamentos especulativos penetrantes, refletiram e nos mostraram uma compreensão nova e profunda da unidade, do uno que se espelha no conceito do todo e da parte inteiramente nova que hoje denominamos mundo e sua mundidade. No holismo falta o vigor desse modo de penetração que tanto Eckhart como Bruno tiveram. Por isso só assimila o que eles disseram superficialmente. O holismo tem uma visão da atualidade como dualismo fragmentado. Poder-se-ia perguntar: qual o conceito de todo e de parte que opera no holismo?

Geraldo: Meus companheiros dizem: São Francisco desce no meu terreiro e ele é um espírito de luz. Você é atrasado, da Idade Média.

Lucas: Há, porém, da nossa parte uma reação parecida à dos companheiros de Geraldo. Um frei que morava no seminário conosco brincava com a gente: vocês entraram para ser franciscanos e foram ficando sartreanos, kantianos, heideggerianos, boffianos…

Hermógenes: A questão acerca de o que entendo por parte e todo, como eles s se relacionam parece um problema abstrato de filosofia ou de matemática que não tem nada a ver com a vida e espiritualidade. No entanto, ao vivermos a vida, mesmo que emocional e vivencialmente eu sinta e viva a vida intensamente, realizando muitas ações concretas e úteis, se considero a vida como um percurso concreto histórico, descubro que a questão do todo nas partes e partes no todo é importante e nada tem de abstrato e ‘intelectual’. Isto aparece p.ex. num frade, digamos, estudante de filosofia que vive intensamente a vida de oração, é piedoso, convertido através do movimento carismático. Cumpre corretamente os deveres cotidianos de frade estudante. Mas levanta às 4h para ir antes de todos à capela e rezar etc. Essa pessoa p.ex. nas minhas aulas de filosofia saia durante a exposição de 45 minutos, 2 ou três vezes. Pensei que era dificuldade de bexiga e não dizia nada. Depois que essa pessoa nos deixou por perceber que não tinha vocação, fiquei sabendo que saia da minha aula, cada vez que começava a falar do pensamento de Nietzsche, Sartre, Marx e Heidegger, pois sentia ameaçado na Fé e na Piedade. Deixando de lado, vários elementos que contribuem para esse tipo de dificuldade, essa pessoa tem uma concepção ingênua e inteiramente superficial da vida, da sua identidade humana. Pois o fundo, ou melhor, a base da sua edificação compreensiva da realidade está estruturada na fixação da compreensão do todo e parte a modo de pedaços, de fragmentos um ao lado do outro, um contra o outro. Aqui não se dá o todo na parte nem partes no todo, mas blocos. Se ‘todo e parte’ toma a configuração de relacionamento funcional, p. ex., a modo de geometria ou mesmo de matemática, como relacionamento do conjunto entre si em quantificações, o seu comportamento seria diferente. Em vez de interromper-se a modo de bloco, bloco, bloco, haveria de suportar a unidade do todo chamado tempo de aula, dentro do qual há conjunção funcional de duração e na duração a presença de conteúdos filosóficos diversificados. Assim, em vez de retalhar o tempo de duração da aula, cada vez como pedaços, fragmentos, haveria possibilidade de ter um fio de manutenção que atravessa diversos momentos de altos e baixos, de tal sorte que quando o tempo de aula passa por baixos (pensamentos ameaçadores) permanece segurando-se no fio condutor do tic tac tic tac do tempo que passa etc.  E se a compreensão vivida do todo e partes a modo matemático sofre transformação qualitativa e começa a encaminhar-se para o modo de ser do todo e parte a modo como estruturação  do mundo a partir e dentro do ponto de salto genético do mudo como ser-no-mundo, ou como concreção monadológica de todo na parte e parte no todo e parte na parte a modo de uma sinfonia de percussão e repercussão do mesmo em concreções de mil e mil composição de tons  então o ser-humano chega a ser o que sempre já é como existência.

Marcos: Espiritualidade como uma parte, ser religioso como uma parte, ser porteiro como uma parte, ser masculino, ser feminino, ser jovem, ser adulto, ser velho, ser e ser em variantes de entificações da parcialização da vida; ou ser cada vez em sendo parte, ser todo, e em sendo todo, parte numa outra concepção cada vez mais profunda, ampla e criativo-livre na concreção, a saber, entender todo e parte da vida como ser-pedaços, ser-fragmentos, ser-partes, ser-momentos, órgãos, articulações, constituições, estruturações, mundializações, na dinâmica viva cada vez nova e de novo da eclosão e floração do abismo da possibilidade de ser, eis o que somos, a saber, cada qual como mundo, i.é, <corpo-alma-espírito>, a saber, pessoa humana (gênesis, nascimento), i. é, a graça infinita da finitude da existência. Essa é a questão do todo e parte que a nova concepção crítica da ciência com o seu modo matemático da mathesis universalis desperta na compreensão do ser-homem.

Corniatti: Tudo isso dito de modo bem simples e concreto é a questão: quantas partes, o homem deve ter para ser um todo? Se coisifico parte e todo, dá a separação da parte e do todo como coisa e coisa. Mas quando digo: não caibo na minha pele de contente, sou todo uno na continência finita da plenitude.

Hermógenes: Compreendo que isto é: pleno, todo-contente, uno, prenhe de ser. Mas é espiritualidade? Não pode ser também assim: todo, pleno, uno, prenhe de raiva, ódio, luxúria, escrúpulos e preguiça, todo depressão? E o espiritual?

Irmã: Ser espiritual é ser bom.

Marcos: Que tal se bom, uno, todo, pleno é só o espiritual?

Cleonice: Por que será que a Igreja de pedra é o lugar espiritual?

Ananias: Nosso Deus é uno e trino. Uma natureza divina em três pessoas. A terceira pessoa da Santíssima Trindade é o Espírito Santo. Espiritualidade se refere ao Espírito. Esse Espírito é Espírito Santo?

Marcos: Às vezes a compreensão de espiritualidade nossa é etérea e fuga do mundo. Contra essa espiritualidade alienada, desencarnada se fala em espiritualidade encarnada. Seja qual for, o que é espiritualidade?

Geraldo: Será que dá para falar em espiritualidade?

Marcos: Se não desse não estaríamos falando…!

Hermógenes: Um missionário padre da congregação missionária dos Padres Brancos, antropólogo e doutor em biologia trabalhou na África entre os pigmeus. Conheceu um pigmeu que criava porcos, e viu-o castrando porco. Um dia, ao visitá-lo, percebeu a ausência da esposa. Perguntou por ela. O marido lhe respondeu que estava já há uma semana lá nas montanhas, tomando vento e assim, esperando ter filho, do vento das montanhas. O missionário, doutor em biologia, rindo da ingenuidade e ignorância do primitivo lhe disse: “Você há dias não castrou porco? Que bobagem falar em conceber filho, tomando banho de vento nas montanhas!” O pigmeu, sério lhe respondeu: “Padre, nós não somos porcos, mas gente”!

 Marcos: Qual a experiência que temos de vento? Na história contada, a gravidez da mulher indo ao encontro do vento dá a entender que vida se gera a partir do vento. O biólogo vai dizer: gerar é processo biológico apenas.

Hermógenes: O missionário biólogo achava que o pigmeu dava explicação inadequada. O pigmeu sabia muito bem que a criança era gerada pela união carnal. O que ele estava a dizer era o sentido do ser da geração biológica no ser humano.


15/11/05: 8,30H

Hermógenes: Aqui viemos para ver se há diferença entre o psicológico e o espiritual. Usamos os textos de Rombach e de Marcos e de frei Jaime. O que chamamos de ciência (melhor ciências) e a comunidade científica exercem uma presença marcante na humanidade da nossa época moderna. Ao pesquisarmos o que é a ciência e sua cientificidade, percebemos que nela hoje há uma acentuada tendência de dominância no modo de ser das ciências de entoar, de soar no modo ‘matemático’ de ser das ciências naturais.

Mas ao aprofundarmos um pouco a nossa concepção de ciência e descobrirmos que ela é ingênua e que hoje, segundo Rombach, está surgindo uma concepção nova e crítica da ciência, começamos a nos interessar pelo pensamento de Pascal, exposto no artigo de frei Jaime Spengler. Pelo artigo ficamos conhecendo a divisão do saber humano em espírito de geometria e espírito de finura e as ordens ou ordenações da realidade em ordem do corpo, ordem do espírito e uma dimensão toda própria chamada ordem da caridade ou sobre-natural. Foi dito que o espírito de geometria é um saber da ordem do corpo, e o espírito de finura é um saber da ordem do espírito.

Marcos: Perguntemos: nesse esquema de Pascal, onde pertence o saber chamado espiritualidade. As coisas que pertencem à espiritualidade, as coisas que na formação espiritual da vida interior ensinamos e exigimos dos nossos candidatos e candidatas à vida religiosa consagrada, coisas da vida cristã que um casal cristão na família pratica e exige dos filhos que também pratiquem, coisas como oração, eucaristia, confissão, os sacramentos, a moral, Jesus Cristo, Deus: todas essas coisas a que ordem da realidade pertencem e qual é a ciência de todas essas coisas que chamamos espirituais?

Ananias: Nós humanos na vida, em toda parte estabelecemos ritos e rituais. Ritos e rituais são ações reais, corporais e físicos que significam, que são símbolos de uma realidade para além da realidade física. Chamo essa realidade para além do físico-visível de espiritual. Nos ritos e rituais através de ações e gestos físico-corporais estamos dando sentido às coisas corporais e seus gestos como símbolos e sinais de algo mais.

Hermógenes: Essa dimensão além do físico-corporal a que Naná chamou de espiritual deve abranger muitas ‘entidades’ com diferente sentido do ser. Tentemos assim avulsamente mencioná-las?

Marcos: O corpo e a vida corporal da esposa do pigmeu que ele caracterizou como sendo não-porco.

Geraldo: A explicação biológica e todo o sistema científico, a partir e dentro do qual o padre missionário biólogo vê, entende e ensina que o corpo dos pigmeus, o corpo dos porcos, o corpo das plantas, o corpo dos vermes que se alojam na carne do porco etc. etc. enquanto ‘realidade’, seja ela orgânica, inorgânica, física, molecular, atômica, sub-atômica, corpuscular-ondulatória, quântica, matemática, são iguais na base, no componente elementar de suas composições.

Hermógenes: Nessa explicação, o que sobrou de visível e palpável, de material ou corporal do corpo da mulher prenhe, do seu marido, do porco, das plantas, da mata, do céu, dos vermes?

Ananias: Não sobrou nada, a não ser a explicação do biólogo e físico de que o real mesmo são aquelas ‘coisas’ não palpáveis, não visíveis, não sensíveis, mas apenas pensáveis, calculáveis, mensuráveis matematicamente. O que os nossos sentidos percebem, são ilusões subjetivas dos nossos sentidos.

Marcos: Espiritual como superestrutura, abstrato, supra-sensível, cálculo matemático!

Hermógenes: Raiz quadrada é ‘espiritual’?! Não é espiritual na raiz quadrada é, talvez a tinta preta que assinala a fórmula sobre o papel branco? Mas a tinta, enquanto pigmentos, e estes enquanto moléculas, átomos etc. são ‘espirituais’. E o que se deu de vez em quando, há algumas décadas entre nós, nos cursos de espiritualidade, como uma espécie de ‘matrimônio místico’ inteiramente ‘puro’ e espiritual, sem intervenção de ‘carnalidade’ era ‘espiritual’?!.. No futuro pode chegar tempo em que, a modo de florais ou de outros remédios naturais de origem asiática, possamos fabricar injeções, pílulas para castidade, obediência, pobreza, fidelidade etc.? Todos esses efeitos causados por essas drogas e as próprias drogas são espirituais?” Eis o espírito de geometria na sua consumação, tornado mais diferenciado, refinado, aos poucos abrangendo ‘as coisas’ da ordenação espírito, criando corpos cada vez mais etéreos, descarnados, espirituais? Essa maneira de entender o ‘espiritual’ como essa ‘espiritualidade’ e espiritualismo destilado, estético, no fundo não é o mesmo espírito que reina na geometria e na matemática, realidade da pura possibilidade ‘quantitativa’ formal e virtual? O espiritual, o humano do humanismo, do espiritualismo, seja quais forem suas manifestações, na estética, na moral, na religião, não é por fim o espírito de geometria levada até às últimas conseqüências como espírito de finura?

Marcos: Parece o mundo como condomínio fechado. As vicissitudes da terra dos homens, a luta de vida e morte, os perigos, a miséria e a pobreza material, doenças, tudo que é tocado pelo espírito de geometria e pela sua consumada perfeição como espírito de finura é produzido e reproduzido, melhorado, um novo céu e uma nova terra ‘espiritual’

Marcos: Cozinheira do convento disse que não precisa de esporte radical, porque já está em constante ‘adrenalina’ por ter que atravessar o mês com o salário que ganha. Estranho em nós hoje é que o nosso real é o irreal da virtualidade formal, i. é tudo quanto está de acordo, afim, na coerência lógica das estruturações e possibilidades pro-duzidas conforme o modo de ser do projeto de lance epocal do nosso inter-esse. Tudo quando não se afina com a tonância desse projeto é tido como não real, como não ser, como anomalia e subdesenvolvimento, interferência, o que deve ser ou de imediato ou com o tempo eliminado como superado. Viver hoje “o coração, cujas razões a razão desconhece” seria existir, ocorrer factualmente no medium, no meio da desertificação geométrica que tomou conta de tudo, inclusive da espiritualidade e da Fé.

Geraldo: Explique desertificação.

Marcos: A desertificação da Terra consiste no esvaimento do sentido do seu ser. A grande catástrofe hoje não é a destruição do mundo. Tudo pode permanecer como está e evoluir cada vez mais, mas se esvazia e se retrai o sentido do ser da totalidade, a mercê do qual todo o sistema de efetivação e progresso recebe o sentido da sua realização, de tal modo que tudo apenas funciona, ocorre simplesmente. Então o mundo deixa de ser mundo, o real vai se tornando tão virtual que tudo se nos distancia da Terra.

Hermógenes: O esvair-se do sentido do ser, a desertificação da Terra faz com que o simples fato de existir, de ocorrer não tenha sentido. Pois esse fato, a factualidade não mais é percebida como facticidade, i. é, o toque elementar do abismo da possibilidade de ser que nos aborda, carrega e sustenta. Aquilo que é mesmo não tem sentido. Daí o tédio, vazio, a indiferença de fundo, apesar de toda a correria e preocupações dos nossos afazeres.

Geraldo: O nosso ser da funcionalidade lisa do progresso a modo geométrico parece se ter transformado numa religião que nos basta.

Hermógenes: Repetindo, aquilo que é mesmo, não tem sentido. Talvez para a cozinheira da casa onde mora Marcos, cada momento dos seus afazeres, levantar cedo, ir para o emprego, preparar café ‘pros’ freis, são e devem ser abordagens, embates que existem simplesmente como necessidade, urgência, indigência: são facticidade, o destinar-se do seu viver. Para ela tudo isso não é vivência, não é heroísmo, dever, tarefa, vocação, missão. É realidade. Esse ser tocado, abordado a priori por o que é mesmo, faz a vida da cozinheira ter a plasticidade, os contornos, as durezas e também as surpresas não calculadas, não previstas, faz com que ela seja afetada, atingida. A esse ‘ser-ali atingida’ pelo apriori da experiência podemos denominar de existência. Esse modo definido, atingido de ser cada vez ali, tendo que ser o ser que sempre já sou agora e aqui é: finitude da liberdade humana. Finitude não é carência do infinito nem sua privação. É o determinado, o decidido, que ao se assumir assim a ser e ter que ser, “cada vez e sempre de novo o ser que sempre já sou”, transcendo-me para dentro de mim, tornando-me cada vez mais o próprio de mim: esse modo de ser é o próprio do ser humano. Aqui, transcender não é ir para fora, para cima, para o além, não é transcendental, a modo ‘espiritualista’ espiritual. Aqui não estaríamos diante de uma possibilidade, chamada necessidade, que não mais pode ser captada pelo espírito de geometria nem do seu refinamento para o espírito de finura, mas  unicamente no corpo a corpo da autoresponsabilização em perfazer-se e ser? Será que não é isto o coração, o coração do ser humano, o propriamente espiritual, a realidade da ordem da caridade ou sobre-natural?

Marcos: O ser-humano ‘geométrico’ e ‘geométrico virado finura’ diz e pensa: “Já que não conseguimos ser de fato pobres, vamos ser burgueses, desprendidos ‘espiritualmente’ em “espírito de pobreza”. Aqui nessa perspectiva no ser da burguesia, o espírito (spiritus) que na realidade não é outra coisa do que ‘respiração’ (sopro vital: ou se respira in-stante ou morre), portanto o corpo a corpo do e com o ins-tante, não é ser, não é fato. Por isso, o produzamos, o façamos ao menos ‘espiritualmente’, a saber, transcendentalmente, substituindo o ser de fato, o ser fáctico, a saber, o ser existência que há nos pobres, com ser virtual de faz de conta, espiritualistamente. Não é que na realidade não haja o ser-de-fato, o ser-fáctico, a existência na burguesia. O que há é que na burguesia ela se retrai, pois ali a existência é geometrizada dentro da medição do cálculo matemático do aqui e lá, do lá melhor, aqui decadente. Nesse modo de ser do “espírito”, nada é real, é real processado para o ideal, para o virtual. E isso em tudo, no voto de castidade, no voto da obediência, no voto da fraternidade, da fidelidade, do resistir à tentação etc. etc.

Geraldo: São João da Cruz, Santo Inácio é geométrico?

Hermógenes: Se é cristão, então  ser e/ou não ser é a-penas ser. Por exemplo em Sta. Terezinha do Menino Jesus, o pequeno caminho da entrega total de si na espiritualidade da ‘Infância espiritual’ não é outra coisa do que a facticidade, i. é, o full contact corpo a corpo de uma existência no seu-ser-ali, nua e crua qual criança exposta as vicissitudes da Terra dos homens, dos homens no seu desespero ateia do deserto do sem sentido da vida: não é por isso que ela participava nessa exposição da entrega à finitude da existência da paixão – (ação de engajamento do apaixonado e entrega intrépida de si à exposição da recepção ao inesperado) – de Jesus Cristo, o Crucificado? Por isso, certamente ela é mestra e doutora, a padroeira dos tempos modernos. Não escolhemos nascer. Nascemos por acaso, sem querer, num destino cruel, sem sentido? Ou fomos atingidos, tocados, sim atropelados, numa eclosão da jovialidade de ser, para que cada vez de novo, aqui e agora, não termos, graças a Deus, outro jeito a não ser ser? Que tal, se isso for o espiritual, em diferença com o psicológico?

Marcos: Fui dar Unção dos enfermos a uma enferma. Ela me perguntou por ‘quê’ a gente nasce e morre? Respondi brincando: “Não sei. Quando chegar lá no céu vou perguntar também”. O “por quê” do nascer e morrer não é geométrico. Pois está suspenso, i. é, flutuando no medium da ciência jovial do sem porque.

Hermógenes: Por isso Angelus Silesius definiu o ser-cristão que para Pascal se acha na ordem da caridade ou sobre-natural, dizendo: “A rosa é sem porquê. Floresce por florescer”. Talvez as nossas perguntas enfermas, ao morrer, caem em si e se percebem que o por que e o para que nunca perguntam porquê, mas medem e calculam o tempo todo, esquecidos que estão: que o quê de seus cálculos e de suas medições de segurança e certeza, antes de  toda essa pré-ocupação, ali pulsava o tempo todo como vida, “doida” para ser recebida e atropelar o mortal, com o gosto e sabor da facticidade de existir. Assim, a pergunta enferma e moribunda “por ‘quê’ a gente nasce e morre” pode já ser ‘poesia” da vida, poesia, a saber, fazer e perfazer-se como sopro da vida. Essa liberdade criativa encarnada de ao toque da vida vem a fazer e se perfazer na obra da vida é o espírito, o espiritual, e o seu saber se chama espiritualidade.

Marcos: Espírito seria o corpo-a-corpo da existência com liberdade como estar no calafrio das possibilidades e nos apertos das situações.

Hermógenes: O que está tocando o fundo do geométrico é a evidência e a paixão do sem porquê. Seu vigor é o fogo que cozinha o geométrico. Dessa queima, do barro grosso dos cálculos e das medições que primeiro na ordem do corpo aparece como geométrico, depois na ordem do espírito aparece como finura, deve nascer a nobreza, temperada como porcelana de ternura e rigor da finitude humana. Para que a ordem do corpo e a ordem do espírito não permaneçam no geométrico e na frescura estética de sua sofisticação como vivenciação espiritualista e exacerbação carismática, o ser-humano deve se forjar na têmpera do empenho e desempenho da existência para ser cada vez e todo o tempo mais e mais obra gratuita e jovial da recepção do toque da abissal possibilidade de ser. Por isso, diz Hörderlin: “Pouco saber, mas muita jovialidade é dada aos mortais”. Seguir na vida os fios condutores desse surgimento da existência humana, seu crescimento e sua consumação, é buscar o sentido do ser das coisas, é condução e formação espiritual, com outras palavras a orientação espiritual.

Marcos: Assim, os princípios do geométrico vêm do coração.

Hermógenes: Coração é existência. Quando se atinge o coração, se morre. É o cerne do humano.

Geraldo: Mas que mal há ali em ser espírito de geometria?

Marcos: O geométrico pode se desenvolver de tal maneira que pode excluir ou incluir do seu modo o espírito de finura. Ao incluir leva à plenitude e consumação o geométrico, tornando-se espírito de finura. É a concepção da verdade como uma ilusão necessária da vida na sua autovaloração e no seu autoasseguramento. Não se trata de mal, trata-se de “a razão (o espirito de geometria) tem coração (espírito de finura) que desconhece a razão do coração (o ‘espírito’ ou a ‘existência’ a partir e dentro da ordem da caridade).

Temos medo da razão. E a entendemos ou a modo geométrico ou a modo ‘fino’ sempre ainda geométrico: nem muita cabeça, nem muito coração. Se formos ver como a modernidade entende a razão, está muito próximo das raízes que estamos chamando de coração. Filósofos e artistas às vezes não têm a finura que físicos e matemáticos têm. O que usualmente, seja na filosofia, seja nas ciências, seja na espiritualidade chamamos quer de razão, quer de coração, de modo geral é artificial, sem a liberdade, sem a existencialidade do ser-ali na experiência.

Geraldo: No filme Guerra nas Estrelas, os cavaleiros jedai parecem franciscanos. Por que gostamos deles?

Hermógenes: Mas nós franciscanos e as pessoas que gostam dos franciscanos, franciscanos esses que, por sua vez, gostam que as pessoas gostem deles, gostamos da facticidade da finitude e mortalidade, não do show dos efeitos especiais da vida estelar, mas da guerra da Terra dos homens?

Aloízio: Não sei se entendi bem a Marcos. Você antes queria dizer: não exacerbar no sentimento, nem na razão, a virtude está no meio?!?

Marcos: O ‘meio’ do provérbio “virtus in medio” não é meio termo, nem equilíbrio de extremos, nem harmonia. É o ponto em que acrobata, na passagem sobre o abismo-vida, é tocado nos seus pés e com eles toca a corda, i. é, a estreita e a única possibilidade esticada entre o abismo. O fio da corda esticada entre o abismo é o fio condutor onde é possível tomar pé na imensidão, profundidade e vitalidade do abismo insondável das possibilidades de ser. O que parece um estreito fio (a porta estreita do Evangelho) na realidade é o espaço aberto do abismo que cria uma imensa superfície de teias finíssimas criando uma rede-superficial. Visto na realidade essa superfície não é outra coisa do que cada vez finíssimo e estreitíssimo conduto suspenso sobre o abismo. É através dessa finíssima camada da superfície suspensa (a banalidade e aparente opacidade da realidade cotidiana dos nossos cuidados e afazeres) que a possibilidade de ser nos toca, a cada momento, sempre, cada vez de novo. O ponto onde a nossa existência toma pé nesse ponto de toque, da e com a superfície do abismo da vida, o ser-humano, portanto, no cotidiano, é o meio. Quanto mais há a concentração e peso varonil (virtus é a dinâmica do vigor varonil do ser humano) no ponto de inserção no cotidiano-vida, tanto mais se possui na passagem sobre o abismo a possibilidade de mover-se nas inclinações das vicissitudes da travessia da vida.

Em Goiânia fui chamado para acompanhar jovens da RCC. Tinha tempestade de dons. Sentimentos muito fortes. Só que na confissão a vida das pessoas não têm nada a ver com a vivência esfuziante, os pontos altos, daqueles dia do encontro. Os problemas familiares, as contrariedades e contradições, as mais próximas da vida pessoal, os sofrimentos, as carências não têm o lastro da cotidianidade assumida. Não tem raiz em terra. Isso domina o meio eclesiástico. O sentimento se tornou uma espécie de droga que alivia o encontro com o real da vida. Quem está no meio, está na raiz do ponto de contato com a dinâmica do fundo, que permite variedades, mesmo extremadas de declinação, com grandes declínios e desequilíbrios, sem perder jamais o ponto de referência ao centro insondável do abismo da Terra.

Leila: Isso é vivência.

Marcos: Vivência a partir do ser ou ser a partir da vivência?

Hermógenes: Pode dar um exemplo para entender ser a partir da vivência e vice-versa?

Leila: Li não sei mais onde que no ser humano, uma das coisas, as mais nobres nele é a sua vivência de gratidão. Alguém bate-me nas costas e diz: “Mas o melhor jeito de agradecer é ser igual àquele a quem está agradecendo”. Agradeci um dia ao professor pela sua dedicação em me ensinar e ele me disse: estuda mais. É entender vivência a partir do ser.

Marcos: Gratidão para com meus pais. Pode ser um sentimento, uma vivência que eu fruo pessoalmente. Mas eu não me torno atenção, cuidado, solicitude, dedicação a eles.

Corniatti: Quando agradecia a meu pai, como no exemplo de Leila, ele me mandava corrigir meus defeitos. Há ali a exigência do ser: o engajamento. Distingue-se logo, quando é simples eflúvio vivencial e quando tem engajamento.

Marcos: O perigo é entender ser como moral. Ser é mais fino.

Leila: Acho que é integrar: pensar, sentir, agir.

Hermógenes: O que é integrar. Dá para dar um exemplo?

Leila: Consciência da consciência.

Hermógenes: Um exemplo para consciência da consciência!

Leila: sentir, pensar e agir?!?

Marcos: Não está entendendo o pensar como o racional, razão como sem sentimento e sentimento como sem razão? Entender que sentimento é sem razão e razão, sem sentimento é geométrico.


15/11/05: 10,30H

Marcos: Neste último momento do nosso encontro proponho nos concentrarmos de novo no pensamento de Pascal, sobre o qual Hermógenes[10] já mencionou anteriormente. Vamos tomar o aforismo de Pascal, citado na página 50 do artigo de frei Jaime. Para quem já o leu em particular, é repetição. Diz Pascal: “O coração tem a sua ordem; o espírito tem a sua, através de princípios e demonstrações; o coração tem outra. (…). Jesus Cristo e São Paulo tem a ordem da caridade e não a do espírito…” (Pascal, B. Pensamentos. São Paulo: Victor Civita, 1984, p. 108).

Pascal está falando de três ordens: corpo, espírito e caridade. O que é ordem aqui.

Corniatti: É dimensão.

Marcos: Dimensão não é parte. No humano estão sempre três ordens: corpo = tem sua grandeza e sua miséria; espírito = tem sua grandeza e sua miséria. O mesmo se pode dizer da ordem da caridade. Arquimedes era príncipe, mas na ordem da ciência. Um cientista do quilate de Arquimedes, porém, frente a um rei, sábio regente de toda uma nação, é um João-ninguém?! Jesus é a máxima instância da sua ordem, cuja grandeza é única. Mas, perante as outras ordens parece João-ninguém.

Geraldo: Frei Marcos está sendo geométrico. Querendo reduzir três ordens a duas: geométrico e finura.

Marcos: Hoje ciência se move primeiro no mundo dos corpos e subsume tudo que é corpo: p.ex., engenharia da alimentação, da nutrição, médica. Assim o comer, hoje, é dominado pela dimensão saber científico. Mas sucessivamente amplia o âmbito da sua presença e atuação, de tal modo que tudo, todos os entes que pertencem a outras ordens podem ser subsumidas, processadas devidamente para poderem ser reduzidas a objetos na perspectiva da dimensão do corpo.

Débora: Se a ciência tivesse fineza seria espírito.

Marcos: Não. Ela é espírito. Espírito de geometria.

Irmã: Por que Jesus e São Paulo têm a ordem da caridade e não a do espírito?

Marcos: Jesus é sábio no sentido dos sábios humanos? O mais difícil de intuir é a ordem da caridade. Dos espíritos e dos corpos é mais fácil. Dá a impressão que Jesus Cristo é quem inaugura a ordem da caridade. Ele advém. As outras duas ordens, do corpo e do espírito, a humanidade sozinha dá conta delas. Assim como o nascer não está na nossa competência, o renascer também não. Os que já nascemos, renascer em Cristo é radicalmente outra realidade, é nova criação.

Aloízio: Renascer do Espírito.

Marcos: Espírito ali é a caridade. Corpo e espírito é carne.

Corniatti: Ontem falou-se em ver de novo.

Marcos: Ontem saiu religião e Fé. Parece que religião o humano pode cultivar a partir de si mesmo. Fé, não. Pode-se conhecer espiritualidade no domínio da religião e não conhecer espiritualidade no domínio da Fé. Fé, segundo o evangelho, é renascer. Nova existência. Pura gratuidade do encontro com JC. Assume tudo da existência humana como novo céu e nova terra. Só que a gente interpreta tudo a partir da religião – Fenômeno antropológico – do espírito de Pascal (não da caridade!!!)

Aos olhos dos fariseus, JC é imoral e não religioso. Irreverente. Blasfemo. Tem a petulância de chamar Javé de Abá, o Pai. O problema é que a partir da Fé a gente criou uma religião e uma moral. A religião domesticou JC.

Mike: E a Igreja, como fica? Domesticou ou faz ver. Não é ele a visibilidade do invisível.

Marcos: Não vou responder nem sim nem não, pois a essa altura, ainda não dá para corresponder adequadamente à questão. Precisamos ter mais clareza da ordem da caridade. É que ficamos o tempo todo buscando a dimensão, a ordem em que se move a ciência. Isso é fundamental antes de falar da Fé. Essa questão devemos tratar e aprofundar com muito maior largueza e precisão, ano que vem.

Corniatti: Fé não é sinônimo de crença. Crença é possibilidade nossa.

Marcos:  Mamede falou que o inconsciente existe para quem acredita. Isso seria crença. No que não está provado eu creio. Se a gente pegasse o conceito de crença aqui – como aquilo que não é bem ciência, que a ciência não consegue prever – e interpretasse Fé a partir disso daria curto-circuito. Curto circuito, tanto na compreensão da ciência como principalmente da Fé. Resta-nos para o ano que vem, a tarefa de distinguir Fé de crença e distinguir Fé de confiança.

Ananias: No evangelho, Jesus pede Fé antes de fazer o milagre.

Aloízio: A Bíblia diz: Abraão creu e isso lhe foi contado como Fé. Crença em coisas inacreditáveis, p.ex. vida depois da morte!?!

Hermógenes: O que e o modo como Aloízio diz parece ser da ordem do corpo e do espírito, mas não da ordem da caridade. Portanto do espírito da geometria e da finura como ciência.

Aloízio: Mas, quando p.ex., no Evangelho, o cego diz: “Creio, Senhor!” esse fato relatado pelo evangelho, não está falando da Fé do cego para com Jesus?

Hermógenes: Enquanto considerado como um fato relatado, o modo de ser do fato e de sua realidade fica inteiramente fora da Fé, e permanece inteiramente na ciência. O ato da Fé como objeto de um relato do fato nada tem a ver com Fé. Para que seja da Fé, da ordem da caridade, é necessário que, não somente a Fé, mas também a maneira de relatar e a própria maneira de entender o ‘fato’ devem estar impregnados por dentro e a partir de dentro, devem estar inteiramente tomados pela Boa-Nova chamada Jesus Cristo. Talvez isso se torne mais viável se tomarmos o relato da vocação de Mateus: “Indo adiante, viu Jesus um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe:“Segue-me”. Este, levantando-se, o seguiu” (Mt 9,9). É talvez de interesse para o nosso tema, expor resumidamente como o teólogo alemão Dietrich Bonhöffer no seu livro Seguimento coloca esta questão do chamamento na Fé. O relato do chamamento de Mateus para o seguimento fala do fato que aconteceu no passado. O relato é escrito de tal forma que dá a entender que se trata de um fato que realmente aconteceu. Eu mesmo não vi nem averiguei que o fato realmente aconteceu. Aqui entra a ação da hermenêutica exegética, que pertence à ciência historiográfica. Ali a pesquisa científica através de método científico próprio faz a averiguação e examina a credibilidade do fato, i. é, examina os relatos deixados pelos testemunhos contemporâneos do tempo de Jesus. Essa credibilidade é produto da ciência historiográfica. O saber da credibilidade dos que disseram e escreveram sobre Jesus pelos contemporâneos dele, é um saber credenciado pela ciência historiográfica. Esse saber científico tem o caráter não de presenciar o fato diretamente, mas sim de crer nos relatos das pessoas que presenciaram diretamente o fato. Na ciência, esse crer, assim nos relatos, depois de averiguada a sua credibilidade é um elemento importante da ciência historiográfica. Ali esse modo de saber se chama saber pela autoridade ou saber pela credibilidade, crer. Esse saber-crer é um saber científico tanto quanto saber-de-presenciação direta e imediata. Assim, se examinarmos bem crenças, crendices, ideologias, fanatismos etc., existe em todas essas modalidades de ‘crenças’ um variante defasado do acima mencionado saber-crer, qualificado de científico. Podemos assim dizer que crença-crendice, seja em que modalidade for, é saber científico de autoridade que decaiu e se corrompeu na sua cientificidade. Por sua vez, o “vem, e segue-me” “levantou-se e o seguiu” pode ser considerado como fatos dentro do fato relatado historiograficamente. Mas nesses fatos dentro do fato relatado, surge um elemento que deve ser distinguido do fato. É o que falando de fora, dizemos que é experiência do chamamento de Mateus e a vivência do seu seguimento atrás de Cristo. A vivência aqui pode ser vista como vivência relatada por próprio Mateus. Mas vivência relatada não é mais experiência ela mesma, é fato? Aqui devemos distinguir com precisão: a experiência relatada não se torna fato historiográfico pelo fato de ser relatado. Do contrário, experiência como tal somente teria uma única possibilidade de fala de si autêntica a partir de si e nela mesma que é emudecer, não se comunicar.  No entanto, a experiência por si mesma já fala, e pode falar quanto quiser de si. Essa fala tem por característica que é fala, é linguagem própria e estritamente específica dela mesma. E somente a experiência pode e deve credenciar a sua própria fala e dizer se uma fala é sua ou é fala do enfoque a ela alheia. Como a matemática tem a sua linguagem, assim também a experiência tem a sua própria linguagem. Há na atual ciência chamada historiografia uma crença, cuja cientificidade começa a decair para crendice. Nessa crendice crê cegamente que só o relato feito conforme o seu modo de abordar, explicar, pesquisar e expor historiograficamente que é válido e certo, é fazer História, sendo os outros modos de relatar, imperfeitos, ainda não suficientemente científicos, fantasiosos e subjetivos. Pode ser, porém, que em se tratando de experiência como no caso de “vem e segue-me. Levantou-se e seguiu” o verdadeiro, o certo é a experiência, a partir e dentro da experiência e do seu modo de ser, permanecer no direito e dever da sua própria cientificidade no seu método, na sua linguagem e na sua própria maneira de ser a História. Consideremos agora hipoteticamente a fala da História Sagrada, a linguagem da Bíblia Sagrada, toda ela como a fala da experiência e isso no seu todo, antes de fragmentarmos esse todo sob o aspecto e o enfoque das ciências positivas modernas, quer da natureza quer do espírito (ciências naturais e humanas). Então toda a fala da Sagrada Escritura e das escrituras que são afins a ela, por ser experiência afim, está a revelar, a abrir toda uma paisagem, imensa, profunda e viva, anterior a todo e qualquer posicionamento, portanto prejacência de uma dimensão de fundo, de uma realidade, a priori, i. é, antes de toda e qualquer factualidade,  prejacência essa do abismo profundo, presente e oculto como História da Vida do Evangelho, i. é, da Boa-Nova. Em vez de Boa-Nova, digamos de Jesus Cristo, Crucificado, Deus e Homem, História verdadeira da Vida severina de um novo Deus humanado, e de seus seguidores, História feita límpida e puramente na sua própria cientificidade, como ciência da ordem da caridade, segundo Pascal.

Marcos: O simples fato de a gente ter nascido e existir, antes de ser fato de um relato da minha história historiograficamente grafada, é uma cacetada de origem que nos lançou para dentro da prejacência do abismo insondável da vida. Por isso em vez de ser um fato e sua factualidade é uma fatalidade. Fatalidade não é isto que costumeiramente dizemos que ela é, a saber, destino irrevogável e trágico imposto de fora contra a autonomia do homem pela divindade, pela natureza, por ‘não sei o quê’. As nossas falas usuais acerca da fatalidade não passam da expressão de perplexidade  diante do destinar-se do ser-humano como existência e sua história. Em vez de fatalidade, denominemos o desvelar-se do que acima chamamos da prejacência do abismo insondável da vida e o ser lançado na ventura e aventura desse e nesse abismo de existencialidade, ou melhor, facticidade. A Fé é um novo nascimento. O renascer. O relato histórico desse ‘renascer ontem, hoje e amanhã’ é a História sagrada. Nessa hipótese, os estudos exegéticos da Bíblia adquirem dois estilos: o da cientificidade da ordem do corpo e do espírito; e o da ordem da caridade. Só que aqui não se trata mais de estilo: é vida severina ela mesma, no duro, de Seguimento de Jesus Cristo.

Aloízio: Vamos chamar essa facticidade, essa fatalidade do ser cristão de encontro. Mas ao substituir o termo ‘facticidade’ por ‘encontro’ podemos cair na armadilha de entender a facticidade como foi explicitada na reflexão acima, a partir e dentro da nossa concepção usual psicológica do encontro. A troca da facticidade por encontro, pelo contrário, é agora tentar entender o encontro a partir da facticidade, a saber, a partir e dentro do renascer em Jesus Cristo, Crucificado. O mesmo processo de redução, i. é de recondução podemos fazer em referência à compreensão do encontro como relacionamento eu-tu.

Marcos: Vamos terminar o encontro “Psicologia e formação”, começando a nos esquentar na pesquisa daquela parte da exposição da conferência de Rombach que é assinalada como A Fé em Deus. Nesse ano falamos a bessa sobre O Pensar científico. Para o ano que vem, vamos nos preparar bem, lendo e estudando, não fanaticamente – (é muito pouco) – mas facticamente, i. é, existencialmente – (não e jamais a modo do existencialismo, o que aliás é impossível por causa de tantos mal-ditos conceitos filosóficos)- o texto do Rombach. O meu e do Jaime é tentativa de comentário apenas.

Frei Mamede – Mogi, 21/11/05.


[1] Sobre esse filósofo alemão, cf. Scintilla,  n. 2.
[2] Cfr. Heidegger, Martin, Teologia e Fenomenologia.
[3] Talvez possamos formular esse tipo de nova “ponte” não como ligação entre duas dimensões, mas como simultânea repercussão ‘diafônica’ da mesma percussão, identidade na diferença e diferença na identidade.
[4] Slogan estampada na camiseta, distribuída antigamente pelos OFMs da Missionszentrale da Alemanha.
[5] Talvez é interessante observar que o nosso saber científico sempre opera concatenações da multiplicação da oposição binômica de dois, buscando o comum de dois. No entanto nessa busca do comum, de novo opera na busca do comum dos comuns de dois, numa escalação ascendente, tentando chegar ao uno mais geral que abranja todos os comuns de dois. Nesse se transcender para cada vez mais comum, o saber científico não consegue captar o comum de dois a não ser de novo como o comum dos comuns de dois, hipostatizando o transcendental  como um outro transcendente mais geral. Assim o ser somente é captado e aparece como ente. O modo de ser do ente, cujo sentido do ser se denomina entidade é o modo de ser que jaz no fundo da concepção ingênua e usual da ciência. Esse modo de ser e o seu sentido do ser, a entidade é o modo de ser da metafísica. A concepção ingênua da ciência como mundividência é no fundo uma concepção metafísica.
[6] Rombach, Heinrich (Org.). Wissenschaftstheorie. Volume I, Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1974 (a).
[7] Rombach, Heinrich. Leben des Geistes. Freiburg/Basel/ Wien: Herder, 1977.
[8] Rombach, Heinrich (Org.). Wissenschaftstheorie. Volume II, Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1974b, pp. 14-18.
[9] Cf. Heidegger, Martin. Beiträge zur Philosophie. (GA, volume 65), Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (a)..
[10] O que anteriormente foi dito acerca do espírito de geometria e espírito de finura, relacionado com  as ordens, principalmente na fala de Hermógenes, pode estar sofrendo de uma falha: pode não estar exatamente de acordo com o pensamento de Pascal.. Seria necessário  examinar bem esse ponto, o que no relatório se torna impossível,  pois na primeira redação do relatório, havia lacunas nesse ponto e assim foi introduzido acréscimo par dar seqüência ao relato. Como no ano que vem vamos usar os mesmos textos dos artigos, citados no início do relatório, o assunto deverá ser retomado de novo, no ano que vem, com maior precisão.
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