Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

PSICO-TER-A-PIA, Jaraguá-Paulista, 2007 – Parte II

25/03/2021

 

… “alguma força nele trabalhava para aumentar-lhe a alma”. O que é esse aumento da alma? Então, vai mostrando a história, a vida no cotidiano é opaca. Mas, houve um dia que ia ser diferente. O menino ia fazer um passeio de avião. Ia para um lugar deserto onde estava no meio do ermo, da mata, … então aquele dia para o menino era um dia que raiava numa verdade extraordinária. Era um dia luminoso, radiante, feliz. Era uma viagem inventada no feliz… naquele dia ele ia descobrir um mundo, uma paisagem encantadora, maravilhosa, admirável…

Naquele dia o menino vai de avião, levam-no… agradam o menino, satisfação…, mas naquele dia, então,… feliz, contente. Essa alegria aparece como certa leveza. Acorçôo des-animado, isto é, sem alma… estou sem ânimo, sem alma… Naquele dia ele estava tremendo de ânimo e ele todo leve, confortavelzinho … como a gente costuma dizer: “está rindo para as paredes”. Então ali diz “A vida…” o que é esta verdade extraordinária? Des-velamento da vida. É que no opaco do dia-a-dia a gente não vê o brilho. Tudo parece ser ordinário e opaco. Então, ele via a vida como uma manhã de domingo, de uma maneira diferente… Ele chega a um sítio, uma paisagem…. mal… a manhã … margem… monotonia… deserto. O menino é tomado pela curiosidade. Curiosidade… desejo de descobrir, de desvelar tudo. Ele é tomado por essa curiosidade, no meio da alegria … olhos as coisas … se tornam símbolos para os nossos olhos…

Vê tudo nesse brilho… de repente, viu um peru no quintal da casa e ao ver o peru fica tomado de admiração. …O olhar admirado do menino diante do peru. Tinha qualquer coisa de calor. O menino riu com todo o coração. O peru, ali, é a própria beleza… mal olhou…, mas ele guardou a visão daquele peru… “todas as coisas… no opaco…,” então aquele mundo familiar, de todos os dias, opaco, estranho… desconhecido agora esse mundo brilhava… parecia sonho, parecia que não estava na realidade cotidiana. Ele queria, no entanto, rever o peru… quando volta do passeio, o menino chega em casa e só vê as penas do peru. Tinham feito o peru para o almoço. Então aqui o mundo do menino se transforma inteiramente noutra toada, encontra toada no ser …. tudo se transforma rapidamente… então história leva a uma guinada…

“Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele. O peru – o seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte”. Então, essa virada, do mundo, no de repente, essa virada é a transformação da alma. E a essa transformação da alma, da alegria para a tristeza, ele chama de morte, um miligrama de morte que cai na alma do menino. Como é que passa a ser agora o mundo do menino, a alma e o mundo do menino, seu sentir e pensar? ele vai dando algumas falas: “cerrava-se grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento”. A leveza cede lugar ao grave, à gravidade. Tem uma pensadora judia, chamada Simone Weil, que escreveu uma obra chamada: “A graça e a gravidade”. Ela diz que a alma tem peso. Assim como a alma aumenta, … Santo Agostinho escreveu uma obra: “Da quantidade da Alma”. A alma não tem só quantidade. Tem também peso. Como é o peso da alma? Ora a leveza da alegria, ora a gravidade da tristeza. Gravidade é aquilo que leva para baixo, aquilo que puxa para baixo aquilo que de-prime.

Então, o menino não fica mais curioso, aquele desejo de ver tudo, de descobrir tudo cessa. Ela não quer passear com o pensamento … ele chamou de passear com o pensamento àquela mobilidade de querer descobrir cada coisa, dar nome para cada coisa. E como é que o mundo dele agora aparece? A palavra é “circuntristeza”, um mundo que se retrai, encolhe… e em volta desse mundo a tristeza envolvendo todas as coisas. Então, mostra o menino no lugar onde a cidade está sendo construída: trator derrubando árvores, as flores do campo cheias de poeira por causa do trator, as árvores isoladas, sozinhas no descampado produzido pelo homem. Então, tudo para ele é cinzento. Se, antes, era brilhante, agora é cinzento. O mundo parece mau, hostil. O espaço é hostil para ele. Então esta frase-chave que o Mamede repetiu: “entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia”. E neste momento, ele vê uma árvore sendo derrubada pelo trator. “A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara… e foi só o chofre: ruh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada”.

O interessante que a beleza não está só no peru, quando a vida estava ainda brilhante, mas a beleza está também nessa tristeza. Ele fala de um encantamento do cinzento daquele lugar… e mesmo o cair da árvore, é um cair belo… mesmo na tristeza tem sua beleza. E ele olha para “o céu atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos – da parte de nada. Guardou dentro da pedra”.

Numa outra passagem de outra obra, Guimarães Rosa diz que, quando nós dormimos, nós viramos tudo: viramos pedra, viramos planta, viramos bicho… Ele volta para o terreirinho, volta para casa “lá era uma saudade abandonada, um certo remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica”.

O que é esse “pensamento na fase hieroglífica”? Ontem falamos do hieróglifo, do cifrado… Estava decifrando o enigma do mundo, por assim dizer. Tudo é novidade para ele. “Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite”. Então, agora, a fala traz à luz o cair da noite. Só que ele diz: “o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda parte… Não só naquele lugar. Mas em todo lugar o subir da noite – cair da noite ele fala subir da noitinha – sempre sofrido assim. “O silêncio saía de seus guardados”. O Ângelus é o momento em que o “silencio sai de seus guardados”.

“O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto”. Quebranto é estar, assim, como que tomado por uma magia, um feitiço, a magia da vida o imobiliza de alguma maneira. “Alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma”. E, de repente, a escuridão: é noite. “a mata, as mais negras árvores, eram um montão demais: o mundo. O mundo na sua escuridão, na sua obscuridade, o enigma do mundo como mistério insondável, onde o nada, num determinado momento, parece tomar tudo. E “trevava”. Um pouco como no Evangelho que diz que, quando Cristo morreu, o mundo obscureceu, trevava. Mas do meio da escuridão do mundo apareceu o inesperado, não o peru, mas o vaga-lume: “voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim era lindo! – tão pequenino no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria”.

Então o vaga-lume como irromper de uma luz de esperança no meio da escuridão do mundo.

Bom, descolando um pouco da linguagem do Guimarães, o que isso tem a ver com alma, enquanto “batente da passagem da possibilidade de ser”? Como passagem ou como estruturação do mundo? O que vocês acharam disso tudo?

Claudio: Por que ele escolheu criança? Talvez porque criança é mais espontânea. Eu vivi um momento muito parecido com este que me fica na memória como uma coisa fantástica. Estava num sítio com uns amigos e havia uma menininha que viu um vaga-lume. Ela entrou na sala para anunciar que tinha visto um vaga-lume. Eu perguntei a ela onde estava o vaga-lume. Ela pegou na minha mão e me levou até onde ela o tinha visto. Só que ele já não estava mais lá, obviamente. Então, comecei a perguntar à garotinha sobre o vaga-lume. E, então, a alma dela se revelou, se expandiu naquele sonho maravilhoso e começou a colocar historinhas sobre o vaga-lume. Ela contou que o vaga-lume tinha saído da casinha dele, tinha passado ali para procurar o filho dele. E eu fui embarcando em toda aquela e fiquei mais ou menos … horas falando sobre o vaga-lume. Fiquei encantado com aquela cena e talvez muito próximo disso… entre nós adultos que queremos nos proteger desse mundo cruel.

Dom Mamede: Acho que isto aqui é história de uma alma…

Marcos: … há historias do Guimarães também sobre jagunços. Por exemplo: “Veredas” ali também são histórias de uma alma, na travessia da vida. Toda esta vicissitude da luz e da escuridão da vida vai aparecendo assim…

HH: … é interessante esta passagem. Como será que nós experimentamos esta passagem do todo? Porque há um todo ali, não é?

Marcos: Cada sentir é uma estruturação do todo e receber esta passagem é pensar. A alegria é estruturação do todo. Tristeza é estruturação do todo. Esta passagem… passa … é tempo. O tempo é esta passagem da alma. O tempo como aumento da alma, como expansão da alma… não é assim que, de repente, vc está fazendo alguma coisa e chega uma notícia que muda inteiramente o seu dia? Ou pode ser também a monotonia do tempo que é sempre igual, não passa… falamos, então, de um mundo opaco… no tempo no dia-a-dia o mundo nos aparece opaco, monótono. Só tem um tom, não é? Só uma tonalidade.

Geraldo: E nós não gostamos, não é? Isso não nos faz bem.

Marcos: Nos sentimos entediados, não é? Então, dentro do opaco, se a gente enxergar bem, há mil e mil tons…

Cláudio: Vou levantar uma questão em que tenho pensado muito … fazendo um esforço incrível para expandir nossa alma, melhorar nosso espírito e essas decepções, opostos, alegria e tristeza e etc., … não se dá só no plano das emoções, mas, de vez em quando estou envolvido … elevar meu espírito… meu corpo me atrai para a terra, porque ele tem uma linguagem própria, um falar próprio que, de alguma forma, chega a ser um obstáculo para minha vontade de transcendência. E aí eu caio na realidade de que eu sou um corpo e uma alma. E isso é uma questão que está presente em mim. Embora estejamos falando em alma, em estar envolvidos em todo sentimento. Mas, no dia-a-dia, não é só essas decepções, digamos emocionais, mas é próprio físico que se manifesta, às vezes, em momentos inesperados… quer uma doença, uma dor seja lá o que for. Então a questão é: como estabelecer esta relação e como conviver com a relação entre o espiritual e o físico, com suas linguagens conflitantes, com desejo ou vontades que todos nós vivemos?

HH: … não sei se não é grande bobagem, mas, ontem eu estava pensando: será que a coisa aqui não está virada? Eu sempre pensava que o espiritual é claro, o espiritual é brilhante. O espiritual não é opaco. O corporal é opaco, deixa a gente cego. Será que não é o contrário? O claro, nítido, palpável, distinguível é o corpo. Quanto mais deixa de ser corpo e aproxima da alma fica escuro. Porque os medievais quando chegam ao máximo de espírito, eles chamam isso de calígine, escuridão que nem pinche. Será que a gente não transfere coisas do corpo pro espírito e de interpretação em interpretação faz o contrário? Pode ser uma bobagem, mas quer ver?; por exemplo, eu estou acordado e digo: “daqui a pouco vem o almoço”, e estou com uma fome danada, então a imagem do almoço cheia daquelas coisas, é nítida, não é? Mas quando o corpo está ruim, estou doente e não tem mais vontade de comer etc., etc. … então, estou meio dormindo, não acha? tudo começa a ficar escuro, eu não sinto mais nada… estou morrendo, será que quando começo a ficar escuro, essa nitidez do desvelamento começa a escurecer, será que não está aparecendo o velado … então morrer não seria propriamente acabar, mas adentrar o que estava p. ex. em Cristo escondido. E, então, isso pode ser o centro de tensão.

Deusdete: Essa escuridão de que o senhor está falando passa a ter um sentido novo, como clareza na vida, não é? Eu não sei se se trata da questão da filosofia com a ciência. Quando a gente começa a estudar filosofia, uma das primeiras questões que nos é apresentada é o mito da caverna. A caverna é escura, mas é de lá do fundo da escuridão da caverna que surge o conhecimento das coisas, a clareza das idéias.

Geraldo: o que significa a palavra “syntônica”?

HH: … quando falamos de passagem, porque essa passagem é de uma totalidade a outra e o todo não é parte, não pode haver soma de todo(s). Esse modo de ser do todo, aparece bem no tom, na música. Na música tomemos a musicalidade como tonância. Por exemplo escutando música na escala menor e ali nessa escuta a música passa da menor à maior, a tonância de todos os tons muda da escala menor para maior. Tanto os tons da escala menor como os tons da escala maior são impregnados pela tonância e dentro dessa tonância, como toda, surge a tonância menor e maior impregnando todos os tons. Aqui não se passa de um tom para outro, aqui a passagem se faz cada vez do todo para dentro de cada um dos tons. E sempre se guarda simultaneamente o tom concreto cada vez seu na sua tonância própria como que impregnado de tonalidade onipresente e onipregnante em todos os tons. Esse fenômeno é designado pelo termo syntônica, a modo do termo sinfônica.

Claudio: Na criança, essa passagem é muito marcante. Na medida em que a gente vai passando por várias situações, a gente vai racionalmente procurando um equilíbrio. Eu não sei o que é esse equilíbrio. É uma busca racional ou é uma obsessão? Por isso é que, às vezes, me pergunto: o que é primordial? Porque o meu amadurecimento em função dessa motivação se deve a isso ou a alguma coisa maior do que isso?

HH: … corpo e alma…, os junguianos falam de individuação. Como será a vivencia disso? Então a gente começa de longe a suspeitar…: é algo que não se deixa encaixar aí dentro do que se sabe, por ser no seu todo inteiramente novo, de sorte que poder ser terrível, poder ser maravilhoso nada dizem. Mas em toda essa fala terrível, maravilhoso, mesmo dizendo que tudo isso nada diz, por ser totalmente nada do que sei por ser um todo inteiramente novo eu ainda estou aquém, desse lado, pois, ainda não sou a tonância do inteiramente novo. Mas, então como é que percebo isso? Será que isso não aparece na escuridão… como calígene? É tão radicalmente outro, que toda e qualquer referência é perdida, mas nesse perdida, por um instante, eu vislumbro que deve ser uma coisa inteiramente nova… mas o sofrimento que experimento a partir do lance em que estou, é sempre como morte, escuridão etc.: Então esse radicalmente outro é alma! E a mesma coisa, mas virada para lá, e para cá é o corpo. Então, corpo aparece como claro, como nítido, eu sei, eu posso, eu tenho, eu sou. Mas, ao mesmo tempo, o assim chamado “no limite, que não é” como que plenitude do corpo começa a insinuar longinquamente como… inteiramente novo, mas que aparece como escuridão, morte.

Marcos: … tudo o que nós vemos é sempre graças à luz e à escuridão. Se é só luz, não vemos nada. E se é só escuridão, também não vemos nada. Então nós só vemos na luz e na escuridão.

HH: Só que na luz como (alma|corpo) pode ser que a luz é que nasce da escuridão. Escuridão como abismo insondável de possibilidade de ser: o nada.

Marcos:… como vaga-lume.

Marcos: O corpo é “eu posso”.

HH: Eu posso, eu quero, eu sei.

Marcos: O corpo é “eu posso, eu quero, eu sei”. Isto é o corpo que nos coloca no desvelar do mundo.

HH: … Então, alma é este batente da passagem…

Marcos: Quando o limite do “eu posso, eu quero, eu sei” é desafiado, está aumentando a alma.

HH: Alma como batente da passagem quer indicar que passagem não deve ser entendida como um espaço estático, algo como fenda, janela, buraco, por onde passa algo num movimento retilíneo, flecha. Batente aqui quer indicar aquela porta que abre para dentro e para fora, num movimento simultâneo tal que ao abrir fecha e ao fechar abre, transmutando o sentido de dentro e fora a cada momento, numa implicância de participação simultânea diferenciada de dois momentos do mesmo.

Alma, assim, é como que passagem do corpo e espírito e vice-versa numa dinâmica de concreção –Encarnação, toda própria que caracteriza o ser do homem como finitude agraciada. É nesse sentido que o traço de união e de diferenciação (-) da palavra a-létheia expressa a essência do humano como finitude in-finita e in-finidade finita: é Jesus Cristo, Deus humanado, a quem seguimos. Marcos: … num in-stante, Augenblick em alemão, a saber, um piscar de olho da ad-miração do encontro, lá onde (no Da do Da-sein = ex-sistência) cai um miligrama de morte… esta passagem e cada nova passagem, se estrutura qual um novo mundo, uma outra tonalidade da synphônica uni-versal.

HH: … porque batente é porta de retorno à salvação, à saúde originária, à alma phýsica de um outro início, antes de toda e qualquer meta-física.

Débora: …escuridão… então rapidinho vc começa a ver as coisas no escuro, não é isso que acontece com a gente?

HH: Na mosca, é isso mesmo!

Geraldo: Lá, em Cocalzinho, a escuridão é escuridão. Parece que ela entra pelos seus olhos e toma conta de todo o seu corpo. Aquilo me assustava e eu preferia ficar de olhos fechados.

Regina: A primeira vez, lá, em Cocalzinho eu senti até falta de ar, sem contar as pererecas…

Marcos: Mas, na passagem da tristeza para a alegria, também não há morte?

Regina: Sempre é morte, não é?

Marcos: Nesta passagem da tristeza para a alegria, o que é morte ali?

Débora: Transformação! É isso!, não é?

Cláudio: Não sei se morte é a palavra mais adequada para isso. É uma transição. Há um momento em que vc. apaga o passado e se abre para o futuro. Por que chamar isso de morte?

Marcos: Morte, então, como toque do nada…

Geraldo: É escuridão…

Marcos: Morte não no sentido de acabar, falecer, mas um toque do nada. E nesse toque do nada tudo se estrutura de outra maneira, ‘novaboa’, como boa-nova.

Regina: Não é, pois, esticar a canela!

Marcos: Será porque temos tanto medo de falar da morte?

HH: Há gente que fala muito destemidamente da morte, assim neutro, indiferente. Essa indiferença da morte não podia ser rigidez da morte: está-se duro de medo.

Cláudio: Não é medo. É porque morte significa morrer. Mas ali não. É uma transformação. Você cresce.

HH: Essa fala da transformação, do crescimento… não é para anestesiar o medo?

Marcos: O que significa morrer?

Fábia: Extinção!

Cláudio: Não estou falando isso. Esta passagem é especial, é uma passagem de crescimento…

Marcos: Não se trata de uma passagem de transição. Trata-se de um salto.

Cláudio:  De um salto qualitativo. Tem que ser uma expressão otimista, ou seja, vc cresceu…

Dom Mamede: O senhor não está entendendo transformação como processo gradual…? … e não é!

Deusdete: Fui à missa com meu filho de 8 anos. Lá o padre perguntou quem queria morrer e ir pro céu. Eu levantei a mão. Chegando em casa, me filho contou à mãe: “na missa, o padre perguntou quem quer morrer e o pai levantou a mão”. Fui para o trabalho me colocando o problema: o que é a morte, o que é a ressurreição, o que é a vida?

HH: … é uma espécie de presença, independentemente se a palavra é boa ou não. Os budistas entendem esta presença como algo que se pode ver. Eles contam uma história que parece gozação. Mas não é gozação. Havia um mestre Zen, iluminado e que gostava de tomar cachaça. E ele ficou muito doente. Então, chamaram um médico famoso.  O médico viu tudo o que ele comia etc., etc. e tirou a cachaça. Disse-lhe: “O senhor não pode mais tomar cachaça. O senhor tem que tomar esse remédio, aquele remédio, esse outro remédio…”.  “Por quanto tempo?” perguntou o mestre zen. “Até o fim da vida”, respondeu o médico. Então, o mestre piscou para o médico e perguntou: “O senhor toma cachaça?” e ele respondeu: “Eu não! Jamais! Sou abstêmio”. O mestre piscou de novo para o médico e exclamou voltado a si, para com seus botões: Então, ele, nunca viveu!

Marcos:… é mesmo!… ele já está morto.

Cláudio: Li algo uma vez, que achei interessantíssimo – porque é real –, que diz o seguinte: “Só há vida, quando há morte”. A manutenção da vida depende da morte, ou seja, para nós nos mantermos vivos, teremos que almoçar, ou seja, vamos ter que comer verduras… coisas vivas e depender da morte delas para nos manter na vida. Então esse conceito de morte, esta relação pode ser estendida para outras situações que não… ou seja, esta evolução pode se dar por etapas, mas na passagem de uma etapa para outra, acho que morte não seria a palavra mais correta.

HH: Lá em Paranaguá, há algum tempo, num acidente, um carro rolou se arrebentou todo lá embaixo. Só que a pessoa que estava lá dentro não morreu, teve arranhões, e saiu-se arrastando do carro e subiu a rampa, para a estrada. Uma vez no asfalto, começou a gritar: “Viva! Tô vivo! Graças a Deus!” Digamos que ele fosse ateu. Cherteston disse uma vez que para um ateu deve ser terrível, no dia de tamanha felicidade não ter a quem agradecer. Que presença é essa tão humilde e discreta que sempre se retrai, a ponto de acharmos que tudo é natural, óbvio, sabendo tudo? Dá para ligar essa história com a estória acima zen?

Marcos: E essa presença é total a cada vez. Ela não tem mediação, evolução, transição… É sempre a cada instante toda.

HH: Na expressão: “Eu estava morrendo, morrendo… e… estou vivo!”. Esse ‘estou vivo’ não tem mediação. Já está do outro lado, aquém da vida e da morte, i.é, na Vida. Portanto, o outro lado não é o além mundo…! É presença abissal.

Marcos: A Cada instante nós estamos nessa presença: cada instante é o primeiro e o último, não é!?

Corniatti: Não entendi o que é esse “toque do nada”. Que é isso?

Marcos: … se cada instante é único, é o primeiro e o último instante da vida e quase nada medeia a passagem de um instante para outro, isso é o toque do nada.

Claudio: vc tem medo da morte? Pergunta que não faz sentido. Porque se já morri, estou morto e se ainda não morri, estou vivo e tenho que dar graças a Deus. Na verdade, a gente tem medo do morrendo e não da morte.

Dom Mamede: Por isso que os psicólogos nunca podem dizer: “isso é um caso disso, um caso daquilo” E quando o dizem, o encontro já virou há muito tempo na psicologia caso.

Regina: Estava demorando pro senhor Bispo pegar no nosso pé.

Dorvalino: Nos atos ato de S. Francisco tem um lugar, onde se relata que São Francisco curou o leproso, cuja vida durou só 15 dias, mas é tido como grande milagre. O texto diz que o leproso não agüentava a lepra dele… blasfemava contra Deus, Nossa Senhora. Então S. Francisco destacou dois frades para cuidar dele. Só que os frades não agüentaram o leproso e foram falar com SF e SF foi e começou a cuidar dele. E na medida em que o ia lavando, o leproso começou a se converter, começou a ficar limpo por dentro e por fora. Então ficou curado, só que morreu logo.

HH: Com Lázaro foi a mesma coisa. Com ele, a quem Cristo chamou do túmulo, mas depois morreu.

Marcos: … há um modo de estar doente na saúde e de estar sadio na doença. Portanto, saúde está ligada à questão da qualidade da relação com a saúde ou com a doença.

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