Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

V – Do modo de trabalhar – De modo laborandi

01/03/2021

 

Fratres illi, quibus gratiam dedit Dominus laborandi, laborent fideliter et devote , ita quod, excluso otio animae inimico, sanctae orationis et devotionis spiritum non extinguant, cui debent cetera temporalia deservire.

Os irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção, de maneira que afugentem o ócio, inimigo da alma, e não percam o espírito de oração e a piedade, ao qual devem servir todas as coisas temporais.

RNB: Nenhum irmão, onde quer que esteja para servir ou trabalhar para outro, jamais seja capataz, nem administrador, nem exerça cargo de direção na casa em que serve, nem aceite emprego que possa causar escândalo ou “perder sua alma” (Mc 8,36). Em vez disso, sejam os menores e submissos a todos que moram na mesma casa. E os irmãos que forem capazes de trabalhar trabalhem; e exerçam a profissão que aprenderam, enquanto não prejudicar o bem de sua alma e eles puderem exercê-la honestamente. Porquanto diz o profeta: “Comerás o trabalho de teus frutos: serás feliz e terás bem-estar” (Sl 127,2); e o Apóstolo: “Quem não quer trabalhar não coma” (2Ts 3,10). “ Cada qual permaneça naquele oficio e cargo para o qual foi chamado” (1Cor 7,24). Outros trabalhos, porém, que não contradigam nosso gênero de vida, podem os irmãos escutá-los com a bênção de Deus. Todos os irmãos se esforcem seriamente em praticar boas obras, pois está escrito: “Vê se estás sempre empenhado em praticar alguma boa obra, para que o diabo te encontre ocupado”; e ainda: “A ociosidade é inimiga da alma”. Por isso os servos de Deus devem estar sempre entregues à oração ou a qualquer outra boa obra.

Do modo de servir e de trabalhar. O trabalho manual ocasional fez parte desde o início da vida do Frade Menor. É trabalho jornaleiro, manual-corporal, “servil”. Na Idade Média como na Antiguidade pagã não se considerava como “trabalho” as atividades intelectuais. Quando falamos de trabalho, gostamos de perguntar logo: Você trabalha onde, no quê? E a pessoa fala o que trabalha ou no que trabalha. Aqui também se fala do que trabalhar, mas o importante para esse texto não é o que trabalhar mas o modo de trabalhar. É característica da espiritualidade franciscana dizer muito sobre “o quê”, mas dar dicas sobre “o como”. Nós modernos chamamos “o como fazer” te :nica ou método; lendo esse texto, temos que prestar atenção no método, no “como” fazer. Nós fazemos muitas coisas: cozinhamos, ensinamos, tratamos os doentes, fazemos contabilidade: em todas esses trabalhos “o como” é sempre o mesmo. Pode haver pessoas diferentes, em diferentes trabalhos, mas por pertencerem a uma mesma “Congregação”, todos podem estar unidos no “como” trabalhar.

O texto fala do “modo” de trabalhar: deve ser modo próprio do humano-religioso. Modo é atitude que aparece no trabalho. Para São Francisco o modo de trabalhar é mais importante que o trabalho pois o modo diz respeito ao “trabalho dos trabalhos”, à realização humana com profundidade isto é, ao “espírito de oração e piedade, ao qual devem servir toe as coisas temporais”. Os enquanto trabalhavam, “trabalhavam a vida” própria e das pessoas com quem exerciam suas tarefas de trabalho servil.

A palavra “servir”, para muitos, não soa bem; aponta algo vil, baixo. Nós cristãos resgatamos esta palavra. Servir tem três sentidos: trabalhar, estar a favor de, ter disposição, boa vontade, e ter competência. Em geral, na espiritualidade moderna, entende servir no 1º e no 2º sentido (a autenticidade da boa vontade), ao passo que o mais importante, para quem se oferece ao Senhor para servi-lo trabalhando, é de não lhe dar prejuízo pelas bobagens que faz. A primeira coisa que o medieval garante, é que, servindo o Senhor, o Senhor tenha bom serviço, que o Senhor tenha lucro com isso.

Graça de trabalhar. Os irmãos estão no projeto de vida de serem religiosos “menores”. Por se tratar aqui de trabalho servil, de “menores”, é graça, isto é, oportunidade de exercitar-se e crescer na busca que é a fundamental do grupo: o viver religioso como encontro com Nosso Senhor Jesus Cristo, pobre e humilde, crucificado.

A partir do que minha vida privativa (dificuldades, crises, expectativa, buscas, encontros, realizações)? Minha vida comunitária (afazeres cotidianos, deveres caseiros exercícios espirituais comuns e particulares)? Meu trabalho profissional (pastoral: tradicional, inserida e específica, como hospital, colégio, paróquia, formação, estudos; os apelos da sociedade, da Igreja, da humanidade)? Deve-se colocar esta questão sempre de novo, até o fim da vida. Esta pergunta é fundamental e existencial. O trabalho funcional deve ser extensão do coração (trabalho essencial) sem hiato entre a “mão” que faz e o coração(que poderia estar numa outra).

O sentido do trabalho segundo São Francisco pode ser descrito assim:

Trabalho oração esmola estudo

Encontro – MODO DE SER DA IDENTIDADE – apelos da Igreja boas obras pastoral crises desencontros.

Todas as tarefas são trabalhos que possibilitam a realização do grande “trabalho”: a identidade religiosa franciscana. O trabalho manual não deve ser fim a si mesmo, mas antes se orientar para um fim maior, que já não é mais “finalidade”, mas o que “almeja”: o Seguimento de Jesus Cristo; por isso se deve cuidar intensamente da “alma” do trabalho e evitar a “ociosidade”, que para São Francisco é o descuido para com a identidade religiosa.

Trabalhem com fidelidade. O trabalho no humano é repetir. Quanto mais uma coisa é importante, mais tem que ser repetida. Nós, por causa da sociedade de consumo, temos uma compreensão muito curta de trabalho; pensamos que fazer algo duas ou três vezes já é demais. Pensamos que é melhor mesmo mudar de registro do que repetir. A falta de perseverança nossa não vem do fato de não termos boa vontade, mas da ideologia do rápido, do fácil e dos resultados grandes. Essa ideologia nos viciou. Teríamos muita tenacidade se soubéssemos que repetir é normal! Isso fica evidente quando alguém, que anda desanimado, percebe que uma pessoa que ele admira, se exercita com um volume de trabalho quase cem vezes maior que ele. Pessoas de muito jeito, mas que ficam muito nervosas porque não tem resultados imediatos, no fundo, não são boas trabalhadoras. A atitude do -repetir-. do exercitar-se é muito medieval, mas está sendo também muito moderna.

A palavra-chave do mundo moderno é “trabalho”. Na vida espiritual, na vida religiosa, tem que se readquirir o conceito de trabalho que talvez o mundo moderno readquiriu. Sem pressa, sem nervosismo. sem afobação de querer resultado, trabalhar bastante buscando também resultado, porque o resultado. boas obras, boas coisas, não vêm simplesmente por querer, mas somente pela maturação do trabalho Talento, genialidade não valem muita coisa; a época do talento, da genialidade já passou; são talvez coisas dos séculos passados. Quem tem talento e genialidade dê graças a Deus, mas se não houver trabalho, fica pior que quem não os tem, e trabalha.

E devoção. O texto tem concordância de palavras e conceitos com a carta a Santo Antônio sobre o estudo. Devotio, de-votum, é um conceito que só ocorre três vezes nos escritos de São Francisco, mas representará um papel importantíssimo na literatura franciscana posterior. “Devotio”, com suas várias mudanças de significado, poderia bem caracterizar a história da piedade religiosa na Igreja. Sofreu uma decisiva modificação de sentido sobretudo no séc. II quando também a piedade buscou caminhos mais ajustados ao despertar da autoconsciência e da vontade de realização individual dos cristãos (subjetivismo!). Devotio significa a entrega que o homem faz de si mesmo a Deus ou consagração a ele de determinados objetos. Mas já na antiguidade passou a significar a prática obediente dos preceitos de O cristianismo ocidental apoderou-se deste termo bem cedo. Eram conhecidos os “homines soas consagradas exclusivamente ao serviço de Deus. O termo é empregado de preferência na liturgia, mormente nas orações sobre as oferendas, indicando a atitude interior do homem durante a Nesse sentido o termo trata da reta relação do homem para com Deus, suscitada e perpetuada pela “devotio”, sobretudo no culto divino. “Devotio” é pois uma atitude: o homem se põe inteiramente à disposição de Deus, entregando-se e se sujeitando à sua vontade. O termo devotio como é usado pro S. Francisco, não abrange ainda, antes está completamente isento de todos aqueles valores que possuem um destacado acento sentimental e subjetivo.

Não percam o espírito de devoção e piedade. Deus, por meio de sua graça chama a trabalhar “fideliter et devote”; a esse chamado o homem corresponde com fidelidade e a prontidão de entrega com que serve a Deus no seu trabalho. Em razão disso recebe, na qualidade de servo de Deus, o salário que o trabalho lhe dá direito. A essência de ser servo está em pôr-se totalmente à disposição do Senhor. Assim o “servo de Deusa se sujeita em todos os seus atos à vontade de Deus, servindo como que de instrumento nas mãos do Altíssimo… Um tal conceito do trabalho não sufoca, mas promove “o espírito da santa oração e devoção” porque transforma a vida numa contínua oblação.

Nesta atitude de fundo, São Francisco quer ver também inserido o estudo dos irmãos, pois está que podem se mimetizar na paixão do saber. Também as horas canônicas na ‘mens” de S. Francisco tem a urgência de serem “feitas” “cum devotione”. Aqui “devoção”, uma vez mais, significa pôr-se inteiramente a disposição de Deus, nada procurando para si.

Afugentem o ócio, inimigo da alma. No empenho de trabalhar, o homem esquece facilmente “o único necessário”. Em tal perigo se achava o povo das prósperas cidades italianas, que trabalhava em demasia e precisava de estímulo não para o trabalho, mas para o recolhimento a oração. Para São Francisco o verdadeiro ócio, “inimigo da alma”, é a atitude de não se colocar com devotamento e fidelidade no cultivo da busca da identidade.

Os frades Menores, junto com o empenho nas própria tarefas, “ trabalham” para que o viver religioso esteja “no ponto”. E isso leva tempo. O trabalho demorado e artesanal pela identidade é a “obra boa’ que São Francisco quer. O não fazer esta “obra boa” é “ociosidade”. Ociosidade é vazio de identidade. Frater “mosca”. O “não trabalhar” é só uma forma de ócio; o ativismo é outra; tanto um como manifestação de uma “doença” existencial que mata a “alma”, que mata aquilo que almeja a vida. Aqui o texto não entende ócio como não-atividade, porque a não-atividade diz tanto quanto a Assim o trabalho intenso, mas sem visar um crescimento de identidade é trabalho ocioso, apesar de talvez produzir frutos, cuja consistência é duvidosa.

Fazer a boa obra significa também não tomar atitude de desânimo, cruzando os braços numa de “fossa” ou de fracasso, mas tentar perceber o mínimo que se conseguiu, e assim jovialmente – de novo.

RNB: Não sejam camareiros ou cancelários e nem presidam nas casas em que servem. Isto é: não ocupem cargos de mando. Camareiro é aquele que cuida do quarto, da área íntima e que com o tempo ganha influência, tornando-se um “cargo de confiança”, parecido com o “encarregado do pessoal”; camareiro aqui significa emprego que não é qualquer emprego, mas encargo que preside e manda sobre os outros. Chanceler é quem guarda algum penhor. Presidir significa ter comando. Camareiro, cancelário, presidir, independentemente do título, significa um cargo cera responsabilidade e que tem outros sob o seu comando.

O texto não quer dizer que não se deva assumir cargos, mas coloca o problema: como fazer, sendo por exemplo diretor de um colégio, guardião ou pároco, para não se deixar dominar pelo espírito de e de poder? No “capataz” se encarna o espírito de poder e dominação. É esse espírito de dação que faz “perder a alma”, isto é, faz perder o suco do ser religioso, e deixa o religioso chocho. E isso causa escândalo. Aqui não importa saber que tipo de escândalo; o que vale é a dinâmica estrutural: aquele encargo pode ser um trabalho que faz perder o suco fundamental da vida religiosa franciscana, com tais consequências que isso traz.

O trabalho fundamental ou o trabalho dos trabalhos do minorita é o da luta pela identidade. E a identidade do Frade Menor consiste em “ser menor” mesmo, em “ser servo”. Embora esse modo de ser não seja privilégio exclusivo do frade menor e do religioso, é certo que o Frade Menor deve conduzir-se como um “perito” da Vida Religiosa, trabalhando para ser “religioso” e buscando aquele modo de ser que tematiza o fundamental e comum em todos os homens. Portanto o principal trabalho do religioso é trabalhar a sua própria identidade, isento do espírito de poder e dominação.

Quando para São Francisco, um trabalho é humilde, e quando é de capataz? Poderíamos discutir classificar os trabalhos do tipo “humilde” e os do tipo “capataz”; mas isso não leva longe, pois essa classificação fica presa apenas ao exterior. Perguntemos antes: quais as características essenciais insinuadas nos textos de São Francisco sobre trabalho humilde?

A primeira talvez seria que o trabalho se caracterize como “necessidade de sobrevivência corporal”, a segunda que o trabalho exija um modo de bem determinado, como por exemplo um compromisso “imposto”, de tal maneira real e inexorável que se não trabalhar, se não fizer bem o trabalho ou morre de fome ou vai passar mal; isto faz com que a pessoa no trabalho não tenha outras possibilidades, isto é, não consiga se dispensar do trabalho com facilidade para fazer outras coisas. A terceira é que o engajamento e comprometimento esteja referido direta e essencialmente ao trabalho fundamental da vida religiosa franciscana ao trabalho de seguimento de Jesus Cristo: vencer-se a si mesmo. A quarta é que seja um trabalho feito manual e fisicamente, como exercício, como embate onde se usa principalmente das dificuldades e das tribulações que vêm do trabalho, para o crescimento no trabalho fundamental.

RNB: Nem recebam algum ofício que gere escândalo ou faça detrimento à sua alma. Isto é: não trabalhem em coisas que dão escândalos ou das quais você se saia com prejuízo de sua alma, do seu projeto de vida; “alma” é o engajamento no seu projeto de vida. São Francisco fala do modo de trabalhar, e no entanto está indicando o que não se deve fazer. O mesmo pensamento aparece em referência ao dinheiro. São Francisco desconfia, tem medo mesmo, do modo de viver onde você manda, mas você mesmo não tem a necessidade de fazer. Dá a impressão que São Francisco está dizendo: “Faça um trabalho sujo, faça um trabalho humilde, faça o trabalho que ninguém quer fazer; e não faça o trabalho de alguém que manda, mas de alguém que é mandado”. Dá a impressão que os primitivos franciscanos pegavam trabalho operário, trabalho que tem algo de braçal a fazer. No trabalho operário, braçal, no trabalhar com as próprias mãos, com o corpo, parece haver um modo de ser que São Francisco privilegia. Onde está o problema de alguém estar mandando, sem ele mesmo ter que fazer? De onde pode vir a “corrupção” maior para alguém que tem por ideal se engajar? Se entendermos esta questão, talvez possamos ser fiéis à Regra sem implicar muito com “o que fazer”.

RNB: Mas sejam os menores e súditos de todos que estão na mesma casa. O modo de trabalhar que não tem comando, e que faz o frade ser servo e súdito de todos que estão na mesma casa, São Francisco chama de ser menor. É uma maneira terra a terra de trabalhar. Quando se manda, há sempre várias alternativas. Mas quando o trabalho é braçal ou quando se é mandado, não se tem muitas alternativas; é aquilo e nada mais. E quando é assim, a primeira coisa que se toma a sério, que se examina e cuida é o elementar: o material. Um marceneiro, um ceramista, um operário que cava o chão, não faz primeiro o plano para depois encaixar a realidade dentro do plano; a primeira coisa que fazem é tatear a coisa ou o lugar; e a partir dessa concretude fazem os planos. Quem tem esse modo de trabalhar leva a sério a possibilidade que está na sua frente; não gasta tempo atrás das diversas maneiras com que uma coisa poderia ser feita. Ele se determina para uma, e toma muito cuidado de não fazer de qualquer jeito. Se não dá certo, não joga fora sem mais a possibilidade em que está em troca de outra; se algo não dá certo, tenta corrigir do melhor jeito possível. Ele tem um modo de ser compacto, pobre, muito cuidadoso e muito dinâmico ao mesmo tempo, de tirar do que tem à sua frente o máximo possível. Se uma pessoa assim entra num terreno para construir uma casa, não pega um trator e limpa tudo, para depois construir a casa, ajardiná-la e arborizá-la. Ela primeiro vê o terreno, vê as várias árvores que ali estão, estuda toda a materialidade para ver se a partir dali não dá para formar uma casa. Se esse modo de trabalhar fosse aplicado nos grandes empreendimentos, provavelmente seria a maneira mais adequada para cada necessidade, mais econômica, a mais eficiente e com menos gigantismo.

RNB: E possa ser operada honestamente (a profissão). A grande diferença entre o trabalho em que se usam os braços e o trabalho em que uma pessoa “manda” por ser “muito responsável”, é que quem trabalha operariamente sente uma resistência que quem manda não sente. Essa resistência é o ponto em que você sente a sua finitude; e finitude significa: por mais desejo que você tenha, você tem tempo limitado; se você trabalhou um dia inteiro, você vai ter que parar e dormir para no dia seguinte recomeçar de novo. Quem não é “braçal”, quem não faz direta e manualmente, não dá muita importância, pula por cima da materialidade e fica idealista desencarnado, mas quem estiver trabalhando numa determinada pastoral, seja ela qual for, ou na formação, seja qual for o método, ou na enfermagem, se ele for “operário”, fica muito realista e encarnado. Muitas vezes o modo de pensar de quem tem as mão na massa é bitolado; e muitas vezes quem não está fazendo braçalmente, é idealista demais. É para esta questão que apontam as mil e mil diferentes limitações que emergem no trabalho “braçal”. Trata-se de uma experiência que para São Francisco e para toda a sua maneira de pensar é importante. Porque São Francisco é muito idealista, mas tem medo de ser avoado. Ele é idealista e artesanal-manual-braçal ao mesmo tempo. Pertence ao artesanal essa consciência nítida de que temos que trabalhar com a nossa finitude, com toda a valentia. sem fazer o supérfluo de um idealismo que no fundo é fuga de encarnação. Aqui está, também. a causa do grande medo que São Francisco tem por dinheiro. porque o dinheiro faz isso.

RNB: Comerás do trabalho dos teus frutos. Essa frase parece estar virada; usualmente se diz “Frutos do trabalho”. O camponês que cultiva e vende, e que não explora o outro, pensa: o fruto tem uma árvore, e até que a árvore Florença e dê frutos, há um trabalho enorme por parte dela; não só da árvore, mas do sol, da chuva, do clima e também dele, do camponês; assim o camponês não se sente dono do fruto; ele é alguém que colaborou para que surgisse o fruto; ao vender aquele fruto não se sente seu dono; sente-se colaborador para que aquela uva ou maçã surgisse como fruto. “O fruto tem seu trabalho para ser fruto!”. São Francisco diria à uva: “Uva, como tu trabalhaste!” E ainda: “Tu trabalhaste” Mas não foste só tu que trabalhaste: Deus trabalhou contigo; aliás foi Ele quem fez a maior parte; e eu também ajudei a Deus…”

Qual o sentido de exercer “honestamente” o trabalho? Ao falar em trabalho, imaginamos como sendo “eu aqui e o trabalho “lá”; temos dificuldade em ver que o próprio trabalho já é um alimento; por ;ido estamos no trabalho de uma grande causa, não interessa se vai dar resultado, pois o próprio trabalho já é satisfação, já é alimento por si. “Comer do trabalho do fruto”, significa respeitar esse trabalho que a o fruto fez. E se alguém explora o “trabalho do fruto” e vende mais caro do que deve, só por seu interesse, é desonesto, pois por trás do que vende está o enorme trabalho do céu e da terra, o trabalho de um lavrador, o trabalho de uma comunidade. Não dá para fazer desse fruto, que é concentração de todo esse trabalho, simplesmente o que bem se entende. Viver do trabalho não é “viver da própria produção”, mas da colaboração, da participação na criação de Deus; e o que brota como fruto é trabalho do próprio fruto: é desse trabalho do fruto que se vive! Mas para reconhecer e viver do trabalho do fruto, é necessária a postura não de alguém que é dono, mas de alguém que cuida do trabalho do fruto; não o usa portanto para explorar para si e sim para pedir que o Senhor abençoe sua obra. A este modo de ser São Francisco chama de ‘’honesto”.

Se, por exemplo, houvesse uma família de médicos que por séculos a fio se dedicou à humanidade, que neste serviço um descobriu um remédio muito importante, o segredo seria passado de geração para geração com essa recomendação: “Esse remédio é fruto de um imenso trabalho; nele há o trabalho das gerações anteriores; nele está concentrado o trabalho de toda uma família para o serviço do povo; esse segredo é entregue a você para que você o melhore pela sua pesquisa e o entregue adiante. Mas por favor não use o fruto de todo esse trabalho para vender, lucrar e enriquecer; não pode fazer isso, porque não é teu; pode viver, participar do trabalho desse fruto conforme sua necessidade, mas você não é dono”. Essa atitude é honesta, é digna de um trabalhador que participa da ação operária de Deus; pois o medieval, quando falava em trabalho, pensava na participação do modo de Deus Criador trabalhar. E Deus Criador não é o senhor e o dominador, mas antes é o grande Trabalhador, o grande Esmoler, o servo de toda a humana criatura.

Um antropólogo conta que em Minas Gerais encontrou uma aldeia cujos moradores viviam pescando com barcos a remo numa lagoa muito rica de peixes. Pescadores do Rio foram para lá com barcos a motor, redes enormes, e pediram para que os pescadores do lugar fizessem com seus barcos uma fila e batessem na água para que os peixes, espantados, caíssem nas redes. Os pescadores se recusaram; questionados por que, pois com o trabalho de um só dia, iriam ganhar o tanto de um mês inteiro, responderam que o peixe não era deles, mas da lagoa e que eles só pegavam quanto precisavam para viver. Raciocinar assim é melhor do que pensar que o peixe pescado é produto seu, fruto do seu trabalho, do qual se faz o que bem se entende. Para evitar de pensar assim, o medieval falava de “trabalho dos frutos”.

O camponês pobre, ao trazer para casa uma fruta para os filhos, o faz todo contente e cheio de gratidão; se o filho comer um pouco e o restante jogar fora, o pai chama sua atenção; se o filho não reza, dizendo que o que come é fruto do seu trabalho e não há de que agradecer, o pai sente que o filho está ficando “sem-vergonha”, sem respeito. Se o filho “moderno” dissesse que com isso estava ficando mais autônomo, mais gente, a ele o pai retrucaria dizendo que o que estava ficando era seco, sem alma. Esse jeito do filho, com o tempo, quando muito acentuado, cria exploração, falta de coração, dominação, falta de participação. E o que está acontecendo hoje: a coisa começa lá no fundo, na compreensão do trabalho e acaba se tomando fatal para o homem.

RNB: Quem não trabalha, não coma. Esta frase significa muito mais do que usualmente entendemos; contém toda uma compreensão do que é trabalho. Honestidade está ligada à pobreza, que aqui significa: fazer uso das coisas não como sendo o dono, mas como alguém que participa da grande riqueza da doação de Deus. Se, por exemplo, ao subir numa árvore um galho atrapalha e você diz “galho desgraçado”, e o quebra, São Francisco lhe diria: “Tu não és honesto nem com a árvore, nem com o galho e nem contigo mesmo: porque se você não cai, é porque o Senhor te sustenta e a árvore e os galhos também

Havia uma aldeia pobre, onde um negociante vinha vender maçãs. Vendia tão caro as maçãs que as pessoas pobrezinhas não podiam comprar; ele havia colocado uma placa que dizia: “Fiado não vendo!” Vinham aqueles meninos com os olhos famintos, grandes… Um dia chegou um monge pobrezinho; pediu pelo amor de Deus uma maçã; o vendedor não lha deu dizendo que não era assistente social. O monge começou a chorar de tristeza; passou então um homem rico, viu o monge chorando, ficou com pena e comprou uma mação para ele. A criançada toda olhava para o monge comendo a maça; este parecia ser egoísta, porque, ao invés de dar um pedacinho para a criançada, devorou a maçã toda sozinho; as sementes, porém, cuspiu-as. Caindo no chão, brotaram na hora, cresceram, cresceram, cresceram! E deu numa macieira bonita que num instante floresceu e deu cada maçã bonita! A criançada gritou de alegria, cataram as maçãs e comeram. O vendedor de maçãs também foi comer e pediu à criançada que lhe ajuntassem as sementes; a criançada ajuntou e lhe entregou dizendo: “toma tio!”; ficando o vendedor cheio de sementes, todo contente e satisfeito. Aí, a criançada se foi, o velho monge sumiu e o vendedor, olhando para a carroça de maçãs, viu que estava vazia! O monge havia hipnotizado a todos e fez com que sentissem que a carroça era uma macieira generosa que dava a todos do seu trabalho e do trabalho de seus frutos. A moral da história é que o verdadeiro dono das maçãs era a macieira que produziu as maçãs: ela diz a todos: “Por favor, comam!” Um vendedor honesto de maçãs tem que saber desta lógica, porque se ele não conhece esta lógica, ele não é vendedor de maçãs; ele é explorador das maçãs.

RNB: E cada qual permaneça naquela arte a que foi chamado. Ao ouvir a palavra arte, pensamos em artístico: arte pictórica, arte musical. Mas também dizemos: “O meu irmãozinho só faz arte”. Para o medieval, “arte” não é o artístico, não é o arteiro, é antes habilidade: habilidade que não é um talento natural, mas uma aptidão cultivada e trabalhada por muito tempo.

O medieval entendia a Vida Religiosa como arte: a arte de viver o Seguimento de Jesus Cristo com habilidade conquistada. Toda profissão tem que ter uma habilidade, uma competência útil, que serve, conquistada e bem trabalhada. Quando uma pessoa tinha um trabalho, não tinha só um trabalho: urdia uma arte, uma habilidade e esta habilidade estava intimamente ligada ao sentido da vida. Esta é uma grande experiência humana e muito interessante, porque um lixeiro medieval considerava o ser lixeiro uma arte, uma habilidade; e neste trabalho ele tentava ser artista do bem viver, artista do sentido da vida. Havia religiosos que trabalhavam na portaria de um convento e eram ao mesmo tempo grandes mestres da espiritualidade: a portaria era o lugar onde exerciam a arte de porteiro e ao mesmo tempo a arte de bem viver a Vida Religiosa. Não estavam restritos, bitolados àquela funcionalidade; o trabalho era o lugar e o exercício para se trabalhar a si mesmo na busca e na aprendizagem do sentido de viver. E exercendo o oficio assim, adquiriam uma sabedoria de vida universal, válida para todo ser humano.

Com essa compreensão universal, os medievais se comunicavam entre diferentes ofícios: uma pessoa que exercesse a arte de rezar e através desse exercício chegasse à sabedoria, podia falar de “como” rezava, portanto do modo de trabalhar, para um pintor; este, embora rezar e pintar não tivessem nada a ver entre si, exteriormente, aprendia do religioso a arte de “como” pintar. E o religioso escutava “como” o pintor trabalhava, aprendia a arte de “como” rezar. E assim havia uma intercomunicação extrapolar da própria área.

Isso existe ainda hoje. Numa certa ocasião, foi feita para um estudante uma apostila de estudar; esta apostila caiu nas mãos de um vendedor de shampoo; ele se interessou demais… para ver shampoo! E vendeu à beça. Aquela apostila devia estar boa, porque houve intercomunicação. Para aprender “como estudar”, um dia poderíamos chamar o vendedor de shampoo para dar uma conferência; ele iria falar de “como vender” shampoo e o estudante aprender como estudar.

RNB: Suar por meio de boas obras. “Boas obras” significa “obras bem feitas”. bem trabalhadas, per-feitas. Há um suar que não é boa obra, como o suar do estudante que durante o ano todo não se aplicou e agora, encima dos exames, toma café, estuda dia e noite, não dorme… São Francisco diria que este não é um suar de boas obras, pois deveria ter estudado antes, ao longo do ano todo. Mas se alguém trabalhou o estudo todos os dias, o ano inteiro, sempre de novo para crescer, então sim está “suando” uma boa obra.

RNB: Insistir sempre na oração ou nalguma boa operação. Significa “sentar dentro”; é difícil “insistir”, porque quando, por exemplo, alguém se senta para rezar, vem a ele todas as preocupações. A oração está “insistida”, “bem sentada” quando está intimamente no projeto da nossa vida. Há confrades que depois de 20, 30 anos de Vida Religiosa descobrem que é importante na Vida Religiosa “insistir” na vocação como “vocação”, ou seja, como a tarefa de minha vida. E até assentar mesmo dentro, e perceber que não há outro caminho e que é aqui que se tem que trabalhar, demora muito, mas quando acontece é decisivo.

“Boa operação” significa trabalho, bem feito, bem conduzido, na busca do seu próprio ideal. S. Francisco não está convidando a intensificar os trabalhos para evitar “tentações” , mas de trabalhar intensamente de todo o coração, isto é, não ter duas intenções no projeto de vida, porque no momento em que se tem duas intenções, a alma se divide e dá friagem; e onde não está quente entra a tentação. É por isso que a ociosidade é inimiga da alma.

De mercede vero laboris pro se et suis fratribus corporis necessária recipiant praeter denarios vel pecuniam et noc humiliter, sicut decet servos dei et paupertatis sanctissimae sectadores.

Quanto à paga, recebam o que for necessário ao corpo, para si e seus irmãos, exceto dinheiro de qualquer espécie; e isto façam com humildade, como convém, a servos de Deus seguidores da mais santa pobreza.

RNB: E como retribuição pelo trabalho podem aceitar todas as coisas de que precisam, exceto dinheiro. E, se for necessário, podem pedir esmolas como outros pobres. E podem ter as ferramentas necessárias ao seu ofício.

Quanto à paga do trabalho. No tempo de São Francisco o trabalho manual artesanal fornecia ocasião para ganhar dinheiro; por isso, a Regra acrescenta logo uma advertência sobre a paga trabalho. O salário dos frades não será em dinheiro, mas em produtos naturais, como era costume pagar então os “boias-frias”, os “minores”. O trabalho está sempre a serviço da fraternidade (“para si e os seus irmãos”) e sob o signo da minoridade, pois deverão pedir o salário “humildemente como convém a servos de Deus e seguidores da mais santa pobreza”. Desse jeito a vida concreta dos frades menores itinerantes recebe seu fermento espiritual. Ao frade não cabe fazer exigências e reivindicações jurídicas, e sim só aceitar o necessário para a vida.

Como convém a servos de deus seguidores da mais santa pobreza. É comum hoje pensar que o religioso deva se inserir no mundo do trabalho para uma total dedicação ao próximo e um maior engajamento no mundo secular e assim poder atuar na sociedade moderna. Este fato pode apontar para uma mudança de mentalidade na Vida Religiosa em relação ao trabalho. Assim sendo, necessário perguntar: o que representa o trabalho na minha Vida Religiosa? Qual o seu peso na busca da realização pessoal?

Tanto os trabalhos usuais da Vida Religiosa como os trabalhos “profissionais remunerados” no fundo acabam apresentando a mesma problemática, isto é, devem ser “lugar” de busca da identidade e de sensibilização para crescer nela com “ethos” ou vigor “profissional”. Por isso o bom trabalho, o verdadeiro trabalho profissional é aquele que leva a um crescimento em profundidade. A “profissionalização” em si mesma não facilita a busca da identidade religiosa franciscana, nem a origina. A busca, por vezes desenfreada, de profissionalização “secular” pode esconder uma certa decadência do sentido religioso da ‘Vida Religiosa: o religioso não encara mais a si mesmo como “religioso profissional”, como um profissional que tem a profissão de viver religiosamente. Se por profissionalização se entende especialização em alguma coisa, então o religioso deveria se especializar sempre mais no próprio “ser-religioso”. Esse trabalho de profundidade no viver religioso é o seu trabalho específico. Trabalhando nisso profundamente, assumindo-o em cheio em qualquer cargo ou atividade, o religioso se tornar “profissional” da sua identidade. Assim, tanto a função simples e humilde, como a que tem destaque social se tornam expansão e expressão do “ser-religioso”.

Há quem afirme que a profissionalização tem por objetivo formar o “homem integral”. Mas para ser homem integral não é preciso ajuntar muita coisa; antes, pelo contrário, o que precisa é concentrar-se “totalmente” numa coisa só: esse “totalmente” é o “ethos” da profissão. O religioso pode assumir todos os trabalhos e profissões, sem deixar fora a única coisa que “totaliza” a sua vida: o Seguimento de Jesus Cristo. E na medida em que vai fazendo isso está sendo “homem integral”. O irmão sapateiro, por exemplo, para ser simplesmente, cem por cento, homem integral não necessita estudar; só lhe é necessário fazer do “sapato” o lugar de busca do sentido da sua vida, integrando-se profundamente à sua profissão, porque juntamente com o sapato entrará na sua profissão todo o universo.

Ou ainda o pároco de aldeia. Se for cem por cento pároco de aldeia, será também grande teólogo, será também integral porque a radicalidade da sua própria atividade atinge a raiz do Mistério: Deus. É como que tomar água de uma fonte numa só bica entre várias que jorram da mesma fonte. Mergulhando profundamente nela e degustando da água daquela bica, pode-se dizer ter tomado de todas as bicas, porque atingiu da própria fonte. E por isso aquele pároco poderá dialogar com todos, porque o diálogo se institui neste nível de “base”.

Trabalho ‘integral” portanto é um caminhar assim, concentrado num ponto só, longamente, com demora, sem querer ajuntar muita coisa. É neste sentido que lemos: “Pois odeia o Deus sensato o crescimento intempestivo”, isto é, o querer crescer de uma vez, ajuntando muita coisa, sem fazer o trabalho longo de aprofundamento, sem fazer o “artesanato”, a obra de arte.

RNB: E quando for necessário, vão em prol da esmola como os pobres. Em prol da esmola, significa: “Vai esmolar! São Francisco dá tanto valor ao pedir esmola que ao invés de convidar a trabalhar, porque sem trabalhar não dá para comer ou a trabalhar o bastante para que dê para comer, convida a pedir esmola! Para evitar uma mentalidade que busca no trabalho a autossuficiência, usa a expressão: em “prol da esmola”; em “prol” significa a favor de, dando uma significação muito profunda ao pedir esmola; no pedir esmola aparece uma conotação muito central no seguimento de Jesus Cristo: ao pedir esmolas Francisco está exercendo sua tarefa de discípulo, pois Jesus Cristo pecha esmola; e ainda, ao convidar a ir em prol da esmola, está declarando que nenhuma coisa do universo é do homem; que todas as coisas pertencem a Deus; e que Deus é aquele dono que, como a macieira, coloca a disposição de todos o que é necessário; e se houvesse pessoas de coração duro, quando o pobre pedisse esmola por amor de Deus, ninguém em sã consciência podia passar por cima, porque era um princípio fundamental do pensar da Idade Média. Pedir esmola, então, era uma função quase religiosa, algo que devia ser buscado positivamente não para compensar a falta de dinheiro ou de salário. Nas “legendas” medievais Deus está sempre se camuflando de mendigo; o medieval pensava: “Se aparecer um mendigo, tenha cuidado, porque é Deus disfarçado, e se Ele te pega não se solidarizando com os pobres, ai de ti!”. Os medievais não tinham a mesma ideia nossa de propriedade, do ter. Por isso Frei Junípero, a quem o guardião tinha proibido de dar qualquer coisa, quando o mendigo lhe pediu algo, disse: “Olha, se tu precisas, pode tirar! Dar-te eu não posso, porque não é meu; mas o que é de Deus pode tirar!”. Há pessoas que pedem por pedir, mas há outras que pedem porque necessitam mesmo; muitos acham isto uma humilhação, algo inumano; mas dá para perceber que é uma grande dignidade alguém ter coragem de pedir esmola, quando verdadeiramente necessitado. É grande um pai de família que, não podendo trabalhar, humilha-se e vai pedir esmola para dar conta de si, de sua esposa e de seus filhos; essa pessoa tem mais coragem do que todo e qualquer guerreiro. O medieval tinha uma compreensão profunda de “esmolar”; é muito superficial nós chamarmos o dar esmola de assistencialismo.

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