Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O presente da morte do Frei Hermógenes

22/04/2021

 

Marcia Sá Cavalcante Schuback

Falar sobre Frei Hermógenes Harada é tão difícil como falar sobre uma fonte. Sobre fontes não cabe falar, pois das fontes pode-se apenas viver. Igualmente difícil seria falar sobre a memória de Frei Hermógenes, ao menos quando se entende a memória como a lembrança de quem partiu. Mas quem nasceu, viveu e morreu como fonte não parte. Quem é assim está sempre chegando. Frei Hermógenes está sempre chegando. Não chegando de qualquer maneira, mas chegando como água de fonte ou como o sol bem cedinho da manhã: sempre inesperadamente novo a cada dia. Por isso não consigo falar de Frei Hermógenes no passado. Só consigo falar no presente, até porque, do Frei Hermógenes, só recebo presentes, até mesmo o presente da sua morte.

Antes de conhecer Frei Hermógenes, achava que um grande mestre do pensar deveria ter cara de oriental e ser bem velho. Depois de conhecer Frei Hermógenes descobri que um grande mestre não quer ser mestre de nenhum pensar e que, mesmo tendo cara de japonês, o que se mostra é o coração de criança. Pois nunca encontrei um mestre, e ainda por cima japonês, com tamanho coração de criança como Frei Hermógenes. Na verdade, nunca conheci um mestre tão ancestral que fosse tão contemporâneo, fazendo das coisas velhas, coisas novas, muito novas. Com ele, a mais antiga sabedoria é simplicidade de criança. Com ele, conhecimento é experiência, aprender vira “formação permanente” e agir não se separa de “bem-fazer”. Mas tudo isso sem nenhuma vontade ou intenção de ser isso ou aquilo, mestre ou frade, filósofo ou teólogo, pensador ou místico, bom ou melhor do que os outros. Desprender-se da vontade de ser para ser à vontade, talvez assim se possa resumir a formação permanente na experiência de bem-fazer, que faz do coração de criança fonte e sol do aprendizado de viver. Assim é que Frei Hermógenes está sempre chegando.

Com Frei Hermógenes aprendo tanto do tudo e do nada! Aprendo do tudo e do nada da filosofia e da espiritualidade, da poesia e da pintura, das flores para o Ikebana e das posturas de Taichi, do dizer e do calar, do pensar e do não-pensar. Mas em tudo isso e muito mais, o presente mais precioso que estou sempre recebendo é como o tudo mora no nada e o nada no tudo. Não se trata de uma fórmula retórica, mas de uma experiência que se define precisamente no lugar-limite que é o entre-ser de nossa própria existência. Lembro-me que uma vez, colhendo lá em Rondinha as flores para fazer um ikebana, ele me mostrou como a beleza dos arranjos florais japoneses estavam ancorados numa tremenda contradição. Afinal era retirando as flores de suas raízes e de seu campo que elas se tornavam uma nova beleza, a beleza do enigma de que vida é morte e morte é também vida, nada de tudo e tudo no nada. Assim, ele mostra que na experiência mais sofrida da “coisificação do homem”, da “instrumentalização do saber”, do “esvaziamento da espiritualidade”, ali mesmo no perigo máximo da existência, quando nada mais se tem a perder, cresce a boa sombra do meio oculto na raiz de nossa existência. Que presente é perceber que no cimento mais armado da existência cresce sempre-ainda e sem porquê um mato de vida!

Que presente descobrir que há uma vida para além da morte, uma vida que não é nem lá nem acolá, nem antes nem depois, mas uma vida além. Além não significa fora ou separado da vida e da morte. Além significa, sobretudo, um adiante inapreensível. Não terá Kafka razão ao se perguntar se ‘vida além da morte’ no fundo não está apenas dizendo que o “inapreensível é inapreensível”? Afinal mais além e inapreensível do que qualquer descrição de um mundo além desse mundo é a nossa existência, humana demasiada humana, de sermos um para além de nós mesmos. É a nossa existência finita e mortal, a solidão do nosso próprio nascer e morrer que nos ultrapassa, que se adianta a nós mesmos, sempre ainda e a cada vez. Vida além é esse lugar sem lugar, esse tempo sem tempo da existência finita, a atopia crônica de ser em si mesmo para além de si mesmo. Vida além é o adiante da própria vida. Mas vida além é também a vida de quem fica quando alguém se vai, a nossa vida incorporando a morte dos nossos mortos. Depois da morte, os nossos mortos vivem em nós e nós vivemos neles. Achamos que eles partem para longe de nós, sem volta. Mas os nossos mortos voltam sim. Não voltam para nós, mas para os que chegam antes do tempo. Não choramos sempre os nossos mortos porque eles, por mais idosos e envelhecidos, sempre partem cedo demais? É estranho mas sentimos os mortos numa misteriosa proximidade com o cedo demais. Com relação aos nossos mortos, somos nós que chegamos tarde demais. Quando os mortos vivem em nós, eles vivem como um antes do tempo dentro de nós. É mistério, mas os nossos mortos, ou seja, esses que vivem em nós, encontram, nessa vida além da morte, o não nascido de nós. Frei Hermógenes está sempre chegando. Isso aparece tão claro no presente da sua morte. É que nela transparece mais do que nunca como a sua morte vive dentro de nós, despertando o não nascido de nós, todo o adiante da vida e do viver. Uma vez escrevi a Frei Hermógenes dizendo como eu me sentia “nada preparada” para ser mãe, filósofa, professora, emigrante, enfim, para viver. Na sua resposta, ele escreveu: “desejo-lhe que o ‘nada preparada’ cresça sempre mais na graça da finitude do corpo-a-corpo do pensamento”. Assim, talvez se possa dizer que o presente da morte de Frei Hermógenes é o desejo que o não nascido de cada um de nós cresça sempre mais no corpo-a-corpo do ser-pensar.

Scintilla Revista de filosofia e mística medieval, vol. 7.1, jan.-jun. 2010

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