Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Um Frade medial

20/04/2021

 

Nas “matutações” e⁄ou “ruminações” provocadas pelas leituras durante as viagens de “voadeira”, barco, ônibus (quando é possível ler), esperando num aeroporto, ainda ocorre pensar: essa questão vou discutir com o “japonês”…. Mas agora é tentar, inspirado no exercício dialogal das discussões, reflexões, leituras de textos, nas conversas, fazer o caminho.

No livro De estudo, anotações obsolentas que tem como subtítulo A busca da identidade humana e franciscasna, podemos encontrar, nas suas próprias palavras, a tarefa que orientou a sua vida de pensador como Frade Menor: “O artista e o filósofo, no toque do poetar e do pensar, são animais de fundo. Seu existir é conter-se, manter-se, é ser aberta do fundo abissal, suspenso ao e no nada. Esse nada não nadifica, apenas entifica, até mesmo a nadificação. É a imensidão, profundidade, a magnanimidade, livre, solta generosa, serva e moça, cada vez ali jovial, disposta, apenas disposta, sem nada poder, sem nada querer, sem nada saber, sem nada ser e⁄ou não ser, a não ser pré-sença. Pré-sença alegre no cuidado finito, recatada e diligente em tudo recolhendo e acolhendo sob a sombra da sua ab-soluta soltura da mobilidade e liberdade da possibilidade agraciante, ou melhor, agraciada. Os entes no seu todo, seja o que e como for, nascem e se realizam através da humanidade, como eclosões do mundo e sua mundidade. E a existência, na fiel sistência no ex; é a grata e agraciada mira da maravilha, do instante da passagem livre da reviravolta do e para a possibilidade de ser e não ser, é a privilegiada filha da liberdade abissal e vivificante do nada inominável.”

Foi um animal de fundo, da profundidade, do sem fundo, tomado pela admiração da questão que fundamenta tudo: o nada inominável, Deus encarnado!

Ao ser enviado para Roma para estudar com já 45 anos, conversei com Frei Hermógenes sobre estudo, sentido de estudo, para que uma tese doutoral, um possível tema e autor a ser aprofundado. E tudo durante a viagem de “toyota” de São Paulo a Curitiba. No dia seguinte antes de sair me entregou uma página com observações. As duas principais foram: busque um tema que possa ocupar-te o resto da vida; valeria a pena pesquisar o sentido de Abgeschiedenheid. E sugeria alguns pontos a serem aprofundados nos textos de Bernhard Welte. Conversamos sobre as anotações e no final disse: Welte é bom pensador, participei de diversos seminários com ele no tempo que estudei em Freiburg, Alemanha.

Segui seu conselho. Ao chegar a Roma fui adquirindo os livros traduzidos para o italiano e pesquisei durante um mês no arquivo de Welte na Universidade de Freiburg (Prof. Benhard Casper, então catedrático de Filosofia da Religião na Universidade, responsável pelo arquivo, ficou surpreso com um brasileiro interessado por Welte). Foi assim que acabei escrevendo a tese de mestrado: Na ausência, a presença; e de doutorado:

O conceito de Deus em Bernhard Welte.

Welte conduziu-me aos medievais. Ao me debruçar sobre textos dos autores da idade média, comecei a perceber a grandeza e riqueza do pensamento Frei Hermógenes como possibilidade de leitura dos medievais e do pensamento ocidental.

Ao fazer a edição crítica de textos de Raimundo Lulo (2 volumes) ele foi encontrando a raiz do pensamento medieval. Mas, Frei Hermógenes não foi um homem medieval porque estudou e pesquisou os medievais até a medula dos ossos. Não foi medieval porque precisou buscar a passagem entre o pensamento do oriente e do ocidente. Foi medieval no sentido que ele mesmo escreveu quando fala da arte: “Trata-se, pois da mediação, do modo de ser do médium, da ação medial. Mediação, o perfazer-se na e como mediação, ser médium do permeio não é ao modo da atuação ativa, passiva, reflexiva, não é nem objetiva nem subjetiva, é apenas surgir, crescer e consumar-se como obra. É o nada silencioso e retraído, sempre cuidadoso e diligente, onipresente em todos os momentos da gênese da obra de arte, em se tornando, em sendo, cada vez de novo e de novo.”

Os textos dos pensadores medievais eram a tentativa de deixar-se tomar pela questão do Deus humanado, isto é, a relação nascida do encontro Deus como o Homem. Essa questão como questão de ser foi, certamente, o itinerário de sua vida. Numa folha que me entregou escrito a mão dizia: a questão fundamental, como um fundo pro-fundo, abissal da questão, dentro do qual se moviam talvez os pensadores medievais, a questão que lhes tirava o fôlego especulativo, que os lançava numa busca apaixonada, na qual pegavam tudo o que lhes vinha ao encontro de fontes do pensamento seja grego, seja árabe, seja judaico, para se exercitarem corpo a corpo no lance de um mergulho cada vez mais radical para dentro da interioridade abissal dessa questão, a saber: como entender a realidade da Graça e a realidade da natureza, nas formulações moduladas do mesmo, o ser da Fé e o ser da razão, o ser de Deus e o ser do Homem, o ser do Criador e o ser da Criação: o que é e como é esse Mistério Insondável do Encontro entre Deus e o Homem, entre Céu e Terra? Quem é, propriamente isto, o Deus Encarnado, o Deus Humanado, o Deus Crucificado? Não se trata aqui de uma síntese entre graça e Natureza, de fé e razão, de Deus e Homem dentro de uma compreensão e pre-compreensão simplesmente dadas de todas as realidades. Não se trata de enfoques, pontos de vista a partir da Filosofia, da espiritualidade, de determinados pensadores, mas trata-se de abrir-se e receber uma compreensão totalmente nova, radicalmente impossível a partir do homem, do que seja a própria compreensão, do que seja o ser, a realidade da graça e da natureza, cujo ser não é mais nem res, nem realidade, nem coisa, nem subjetividade, mas jovialidade do amor insondável da doação e recepção mútuas do Mistério do Encontro.

A jovialidade do amor insondável da doação e recepção mútuas do Mistério do Encontro o acompanhou até o fim. Em nossa última conversa no hospital, na UTI, ao falarmos de história, historicidade ele dizia com dificuldade na fala, mas com uma entonação de força de uma vida: “É preciso entender o que é encontro. Quem entendeu o que é encontro entendeu tudo, percebeu o que é história, historicidade”. É história de uma alma!

Mas, o que me causava e causa admiração era poder perceber na palavra a sua paixão por Aquele que Mestre Eckhadt chamou de Deidade, na tentativa da desentificação de Deus. Entre os muitos texto que foi com o passar dos anos entregando encontrei: A busca apaixonada do radical-outro de nós mesmos que talvez não resida no além mundo da metafísica, mas sim, jaz silencioso no fundo, bem no fundo, no profundo da nossa Razão vespertina do Occidente, como escuridão e demência, como sofrimento e dor… como pura loucura? Ou… como a pura espera do inesperado… a espera de um “Deus vindouro”, o puro início, o Über-Mensch: um Não-Homem, um a quem Homem, um Homem-Deus, cuja “divindade” é tão diferente, cuja alteridade é tão outra que recebe o nome de “non-aliud”(Cusano), o mais próximo de nós mesmos, o mais íntimo de nós mesmos do que nós a nós mesmos? Como não recordar de um texto assim dentro de uma pequena canoa navegando no Araguaia saindo de suas margens como mistério que se expande e deixa ser tudo? Como não lembrar do texto no meio da dor, do sofrimento, do abandono, da aparente solidão e morte do homem do sertão como manifestação de uma Presença na aparência ausente? Como não lembrar do texto durante uma viagem de horas onde não se encontra ninguém, na escuridão silenciosa da noite interropida apenas pela luz e o ronco do motor do carro, como o silenciar o Mistério que tudo sustenta no novo amanhecer que se anuncia na noite? Como não lembrar da palavra diante da força desmedida do poder e querer pensando que tudo depende de nós e não da percepção da proximidade de Deus? Como não silenciar como espera do inesperado no tempo dito da ausência de Deus?

Como um animal de fundo, tomado pela admiração da questão que fundamenta tudo foi um frade da gratidão e da gratuidade. Grato pela convivência, pelo estudo, grato por tudo o que recebia e dava. Era um homem sempre pronto para tudo que fosse para o bem. Na medida de suas forças, sempre pronto para encontros e cursos. Um homem grato! Mas essencialmente um homem da gratuidade. Nada nele que não fosse gratuito no fazer, deixando-se fazer pela gratuidade. Em todos os lugares e situações estava em casa! A gratuidade tinha rosto na sua simplicidade e pobreza. Era o mesmo na sala de aula, na discussão com outros pensadores, na missão em Angola, nos Carceri em Assis, no confessionário no São Francisco em São Paulo, com as Religiosas.

A gratuidade dizia não é uma coisa, não é uma virtude. Talvez para dizer da sua gratuidade possa nos ajudar o texto seguinte: “Na gratuidade de ser, em não sendo e deixando ser, reina aqui a plenitude. Mas essa plenitude não é ser, no sentido de atuação, presença, de vigor cheio, mas a ab-soluta continência da fidelidade da gratuidade a si mesma, na íntima e límpida obediência à sensibilidade e delicadeza do pudor da liberdade. Ser abgeschieden é retraimento do deixar ser o não ser, não como negação ou afirmação da negação do ser, mas sim como liberdade da pura disponibilidade de si na humilde e grata doação de si, e na humilde e grata recepção dessa doação, ambas ao sabor da gratuidade. Aqui doar-se e receber dizem o mesmo como ao sabor da liberdade do louvor e da gratidão o nada a partir do qual brota a liberdade do louvor e da gratidão se chama Abgeschiedenheit. Abgeschiedenheit é a graça, a beleza da continência da liberdade de Deus, a Gelassenheit. Com precisão diz Mestre Eckhart: ‘Somente Deus é livre e incriado, e daí ele somente é igual à alma, segundo a liberdade, não, porém, em vista da não-criaturidade, pois ela é criada’. Mas se somos iguais a Deus na liberdade, então a diferença do Incriado e do criado não significa diferença de afastamento, mas sim absoluta mesmidade da diferença, cuja identidade se retrai para dentro do mistério do encontro da Fi1iação divina. Criação diz simplesmente e absolutamente Filiação. Incriado e criado não diz causador e causado, criação não é causação, mas sim a intimidade abissal da geração do Pai e Filho(s) na Liberdade da Graça”.3

Talvez, só nos resta agradecer o confrade que tivemos entre nós, um mestre Menor, e fazermos a mesma busca de sermos menores como é Menor o nosso Deus em tudo.

Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia

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