Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O Intelecto, a formação intelectual e a leitura

22/04/2021

 

O INTELECTO

Costumamos definir o intelecto como uma faculdade do Homem, ao lado das faculdades da vontade e do sentimento. Essa definição vem de um modelo da explicação do homem, que denominamos substancialista-ocorrencial, que coloca o homem como se fosse uma coisa-núcleo, ocorrente ali, em si, ao redor da qual estão diferentes propriedades, algumas acidentais e outras essenciais. As faculdades do intelecto, da vontade e do sentimento seriam propriedades essenciais que o homem tem; as faculdades que ele então põe em acionamento. Esse modelo, no entanto, não ajuda muito para mostrar a própria experiência concreta do que seja o intelecto, a vontade e o sentimento como fenômeno da existência humana. Talvez seja muito mais adequado e próximo à própria experiência dizer que intelecto, vontade e sentimento não são faculdades que o homem tem, mas sim são o modo de ser da própria existência humana, o que deve ser cada vez assumido com a responsabilidade de ter que ser.

Como é o modo de ser da existência humana chamada intelecto?

Talvez a própria palavra intelecto nos possa ajudar a compreender melhor esse modo de ser, o qual queremos formar na formação intelectual.

Intelecto (intellectus, em latim) vem do verbo latino intellego (-ligo), exi,-ectum,-are, que significa usualmente compreender, perceber, ter evidência, inteligir. Inteligente é o que tem evidência, compreensão, o entendido numa coisa. A palavra intelligo é composta de inter e lego e literalmente significaria escolho entre. A ação de escolher, entre duas ou mais possibilidades, uma que seja a verdadeira se chama julgar, o juízo. Para julgar, temos um quadro de referência, que serve de medida, conforme o qual julgamos. Se assim o entendo, então o escolher entre, inter-legere, é um saber de antemão conforme um quadro de referência certo e errado, isto é, um saber do tipo poder, acima mencionado.

Mas talvez possamos entender o inter-legere de modo um pouco diferente. Legere, que significa escolher, significa também ler (lesen, em alemão) e insinua uma significação de colher (auslesen, a colheita escolhida), ajuntar, implícita na palavra grega légein, da qual deriva legere. O ajuntar, pois, de uma colheita não é em o escolher entre as possibilidades, distinguindo o certo e o errado, o bem e o mal, embora se possa realizar a colheita como um julgamento. É que o melhor de uma colheita é o dom, a graça do empenho da lavoura. O céu e a Terra, e no meio, entre, o homem, se debruçando no desempenho diligente de uma acolhida, cuida, espera o dom do nascer, crescer, florir e sazonar da vida de uma semente, que se oferece como o melhor de todos esses empenhos, do Céu e da Terra, e do Homem no meio, entre o Céu e a Terra. Aqui, ninguém é dono, proprietário, o julgador, o superior; todos e tudo são a acolhida atenta, empenhada, dando o melhor de si mesmo, mas na gratuidade, na ausculta e grata recepção de um mistério anterior e maior do que todos os nossos empenhos.

Essa disponibilidade receptiva (não passiva), que é um esforço ativo, diligente e total para manter-se na limpidez e afinação da grata espera do inesperado da vida do Mistério, é o legere, o legein: o colher. Esse modo de ser de modo algum é passivo, no sentido de indiferença vazia. Ele é antes a plenitude da disponibilidade de receber, acolher, obedecer ao que nos vem ao encontro no inesperado. No inesperado do que ultrapassa todas as nossas possibilidades na disponibilidade dessa espera, é o modo de ser, que podemos experimentar, talvez de um modo bastante apagado, mas autenticamente, quando temos que ler entre as linhas dos acontecimentos.

Entre, inter, aqui não significa entre isto ou aquilo. Entre aqui é o permeio, o medium. Nas vicissitudes da nossa vida, em nos empenhando nisso ou naquilo, em projetando os nossos programas, a partir do que podemos, sabemos e queremos, vamos nos construindo, como todo, um mundo de valores, significações, volições, compressões, ideais e possibilidades. Essa nossa atividade de nos firmar, nos projetar, nos fazer, no entanto, está continuamente convocando a ler entre as linhas desses afazeres uma orientação.

Essa orientação não se dirige à constituição desse nosso mundo, mas nos faz auscultar e observar atentamente, no permeio dessas coisas já constituídas como nosso ser, uma doação, que nos vem ao encontro e nos afeta, como Mistério de um dom inteiramente gratuito, que nos possibilita e sustenta todo o nosso empenho. Quem inclina todo o empenho do seu ser a essa orientação se torna um inter-leto, um modo de ser feito todo ouvido de acolhida e obediência ao toque da graça, que lhe vem ao encontro, vitalizando-o, a partir de uma realidade anterior, maior, mais radical do que todo o seu ser. Essa passividade ativa de ausculta receptiva é expressa no verbo alemão vernehmen, donde vem a palavra Vernunft, que se traduz usualmente como Razão.

Essa viagem na dinamização do ser, que, no empenho da nossa busca no permeio de nossos próprios projetos e esforços, começa a tornar-se receptiva e de uma dinâmica inesperada, inteiramente nova e radical, é o que dá qualificação ao nosso saber como intelecto ou intelectual.

A FORMAÇÃO INTELECTUAL

A formação intelectual hoje é entendida como saber. Saber é autoasseguramento do poder, e significa obter o máximo de informação acerca de tudo para poder organizar, controlar, prever, racionalizar e funcionalizar em vista do total domínio da realidade. Esse modo de processar o saber humano tem por conseqüência que esse saber, que se estende sobre tudo como informação em vista do domínio da realidade, uniformiza e racionaliza todo e qualquer saber, reduzindo as diferenças qualitativas de outros saberes a meras funções da certeza do poder.

Assim, a Filosofia, a Teologia, a Arte e a Religião só valem como saber se, de alguma forma, estão em função da atuação sobre a realidade em vista do seu domínio.

Nossa compreensão da formação intelectual geralmente está influenciada por esta colocação dominante acerca do saber. Isso produz um tipo de intelectualidade que fala de tudo, sabe tudo, em classificando tudo dentro de um determinado esquema pré-fabricado, com uma segurança presunçosa de alguém que, pairando por cima de toda situação, tem a solução para toda e qualquer eventualidade.

Ora, isso acontece quando se está bem adestrado e funcionalizado no saber que é poder. Quando não se está, por falta de tempo ou talento, surge um tipo de intelectualidade que chuta, é insegura, mas camufla essa insegurança num criticismo cético, cínico, vazio, feito de lugares comuns e slogans, totalmente indiferente no que toca à busca da Verdade.

Para fazer frente contra tal despersonalização e desertificação intelectual, tenta-se reagir negando o intelecto, a razão; denunciando-se superficialmente que há a supervalorização do intelecto e da razão e que, para equilibrar isso, é necessário acentuar e valorizar também o coração, a vivência. Portanto, se luta contra a superpotência da razão, afirmando a força irracional do coração. E não se percebe que, nessa maneira superficial de compreender o intelecto e o sentimento, a razão e o coração, numa oposição do racional e irracional, faz-se o jogo da própria funcionalização do poder.

Esse modo de ser do cultivo do saber como poder é o tipo de onisciência vazia com que a serpente no paraíso seduziu o homem: sereis como deuses. O resultado é a desertificação da alma do saber, que faz desaparecer o nível de água viva da inteligência, que brota das profundezas abissais da “Docta ignorantia” do espírito.

Contudo, a quantificação do saber como função do poder teme e rejeita violentamente um modo de saber que se sabe e se sente pobre, finito e vulnerável diante da realidade. Rejeita-o e combate-o como um não-saber que prejudica e ameaça o saber. E não percebe que nesse não-saber se esconde uma qualidade que constitui a essência do intelecto humano, portanto, da formação intelectual.

Costumamos definir o intelecto como uma faculdade do homem, ao lado das faculdades vontade e sentimento. Essa definição vem de um modelo de explicação substancialista-ocorrencial do homem, que o coloca como se fosse uma “coisa”-núcleo, ocorrente ali, ao redor da qual estão diferentes propriedades acidentais ou essenciais.

Este modelo, no entanto, não ajuda muito para mostrar a própria experiência concreta do que seja o intelecto, a vontade e o sentimento, como fenômenos da existência humana que não é “coisa”. Talvez seja mais adequado e próximo à própria experiência dizer intelecto, vontade e sentimento não são faculdades que o homem tem, mas o modo de ser da própria existência humana, o qual deve ser cada vez assumido com a responsabilidade de ter que ser.

Como é o modo de ser da existência humana chamado intelecto? Talvez a própria palavra “intelecto” nos possa ajudar a compreender melhor esse modo de ser, o qual queremos formar na formação intelectual. “Intelecto” (intellectus, em latim) vem do verbo intelligo, -exi,-ectum,-ere, que significa usualmente compreender, ter evidência. A palavra intellegere, por sua vez, é composta de inter e legere.

Um dos modos de se compreender inter-legere seria “escolher entre”. A ação de escolher entre duas ou mais possibilidades, uma que seja verdadeira, se chama julgar, o juízo. Para julgar, contudo, precisamos ter antes um quadro de referência que serve de medida e conforme o qual julgamos. Então, inter-legere como “escolher entre” é um saber de antemão conforme um quadro de referência certo e errado. Tal saber coincide, pois, com o do tipo poder, antes mencionado.

Outro modo de se compreender inter-legere seria “ler entre”. Legere significa tanto escolher, quanto ler, colher, ajuntar, haja visto a palavra grega légein, da qual legere deriva. Ler, colher, ajuntar, não é bem escolher distinguindo o certo e o errado. Na colheita ninguém é dono, proprietário, julgado, superior. Mas tudo e todos é acolhida atenta, cheia de empenho, dando o melhor de si mesmo, na gratuidade, pleno de escuta em vista da recepção de um mistério anterior e maior.

Essa disponibilidade receptiva, que é um esforço ativo, diligente e total para manter-se na limpidez e afinação da espera do inesperado da vida do Mistério, é o legere, o légein. Esse modo de ser de modo algum é passivo, no sentido de indiferença vazia. Ele é antes a plenitude da disponibilidade de receber, obedecer ao que nos vem ao encontro no inesperado.

Essa espera laboriosa e acolhedora é o modo de ser que podemos experimentar, talvez, quando temos que ler entre as linhas dos acontecimentos. Entre, inter, aqui não significa “entre isto ou aquilo”. “Entre” aqui significa o permeio, o medium.

Nas vicissitudes da nossa vida, em nos empenhando nisso ou naquilo, em projetando os nossos programas, a partir do que podemos, sabemos e queremos, vamos nos constituindo, como todo um mundo de valores, significações, compressões, ideais e possibilidades. Essa nossa atividade de nos firmar, nos projetar, nos fazer, no entanto, está continuamente convocando a ler entre as linhas desses afazeres, uma orientação.

Essa orientação nos faz escutar, no permeio dessas coisas já constituídas como nosso ser, uma doação, que nos vem ao encontro e nos afeta, como Mistério de um dom inteiramente gratuito, que nos possibilita e sustenta todo o nosso empenho.

Quem inclina todo o empenho do seu ser a essa orientação se torna um inter-lecto, um modo de ser feito todo ouvido de acolhida e obediência ao toque da graça que lhe vem ao encontro, a partir de uma realidade anterior, maior, mais radical do que todo nosso ser. Essa “passividade ativa de ausculta receptiva” é expressa no verbo alemão vernehmen, donde vem a palavra Vernunft, que se traduz usualmente por “Razão”.

Em meio ao assanhamento do saber que tende ao poder, formar-se para essa qualificação de ler entre as linhas, formar-se para tornar-se todo um corpo de recepção do inesperado, e sem deixar de buscar o saber, tornar-se e conservar-se puramente pobre, finito, simples, como acolhida da impossibilidade de sermos a partir de nós mesmos, esse é o grande desafio da formação intelectual. Isso não se obtém aumentando a extensão da informação do saber, mas na busca do saber, procurando no seio ou na raiz desse próprio saber, uma profundidade qualitativa de outro sopro vital.

Por isso, na formação intelectual, é necessário dar prioridade a essa qualificação inte-lectual que os antigos chamavam de “espiritual” ou “espírito”. Mas espiritual aqui não é algo ao lado ou além do saber intelectual, algo “místico” cheio de unção e sentimento, mas a qualificação, a essência da própria razão, sem a qual todo saber decai para o saber-poder. Nesse sentido, o critério da nossa formação intelectual deveria ser essa qualificação do inter-lecto e não a quantificação do saber informativo.

A leitura

Existe um modo de ler que procura entrar no pensamento de um autor, de fora. De fora significa, de antemão colocando o texto dentro da compreensão usual do texto, autor, situação histórica etc.

O leitor, principiante na filosofia, diz humildemente que ele não é ainda especialista no assunto, ou apenas está começando no estudo da filosofia. Por isso, precisa de dicas e orientações para a leitura. No entanto, apesar dessa disposição de aprender, de modo geral, ele já traz consigo um arraigado costume e um modo usual, i. é, do uso de compreender o que é ler um texto. Ele sabe o que é um texto, o que é ler, o que é o autor, entende as palavras que ali estão escritas como ele as entende usualmente na vida cotidiana ou nas ciências que ele estudou. Por ser a filosofia uma “especialização”, pensa ele, deve aprender novos conteúdos e conteúdos inusitados, mas de resto, para saber o que é ler, como ler etc. basta ter algumas dicas metodológicas. É que ele já sabe ler. O que ele não sabe é o novo conteúdo da nova disciplina. Assim, busca orientação e informação sobre novos conteúdos. E pensa: se não entendo, é porque não estou ainda informado nos novos conteúdos da filosofia. Este modo de pensar e exercer a leitura do texto, ele o traz consigo desde há muito tempo, pois é este “o padrão de como” objetivamente se deve abordar o pensamento real de um texto filosófico. No entanto, esse “padrão” somos nós mesmos, é com o que estamos acostumados, o nosso hábito. Desse hábito, desse “padrão de como ler”, tão acostumados estamos que nem sequer nos damos conta de uma coisa inteiramente nova e decisiva: que nesse padrão se trata de um modo de ser de nós mesmos. Com outras palavras, não percebemos que esse modo é o modo de como, há muito tempo, nós, a partir do nosso uso costumeiro, a partir do padrão do que somos nós mesmos, portanto, a partir do “subjetivo”, abordamos o texto. Só que por ter esse modo se transformado em padrão costumeiro, e isto há muito tempo, nós ingenuamente pensamos que ele é “objetivo”, e… real! Com isso, “definimos” o real de antemão como aquilo que deve entrar no padrão do costumeiro subjetivo de nós mesmos.

Se buscamos uma chave de interpretação, ou dicas de como interpretar um texto como o de Itinerarium mentis in Deum de Boaventura, a primeira coisa que devemos fazer filosoficamente é questionar se essa busca não opera dentro do acima mencionado “padrão” do costumeiro comum do “subjetivo” da nossa objetividade.

Se o texto é clássico e é bom, ele imediatamente resiste a essa tentativa de abordagem. A resistência você a sente como a dificuldade de compreendê-lo. Mas se a não-compreensão é uma manifestação da resistência do texto em deixar-se encaixar dentro do meu padrão do costumeiro subjetivo de mim mesmo, então essa não- compreensão é preciosa, pois está indicando que o texto e o seu pensamento estão diante de mim, naquilo que é real, e não conforme o que eu estou acostumado a compreender. O não compreender aqui é a primeira compreensão através do contato imediato com o real do texto.

É de decisiva importância eu ser tocado por essa constatação. Pois compreender essa preciosa não-compreensão como a primeira e constante manifestação do real do texto e do seu pensamento é a “chave de ouro” que me abre para a autêntica leitura filosófica de textos filosóficos.

Por estranho que pareça, esse segredo da leitura filosófica é sempre de novo dito e transmitido pelos pensadores, mas são poucos os que realmente compreendem e tomam a sério essa dica antiga da leitura no pensar. Por não compreenderem, acham muito apoucada essa dica, e por acharem apoucada, não conseguem trabalhar essa mina, e, se trabalham, o fazem só esporádica ou acidentalmente. Por não trabalharem como a coisa a mais eficiente e importante da leitura filosófica, lhes falta o volume de trabalho, e por falta do volume de trabalho, a leitura não tem efeito. E assim procuram outros meios para ver se facilitam ou melhoram o desempenho. Com isso, se afastam do melhor trabalho essencial, e dispersam a energia em diferentes direções.

Há pessoas que leram muito, mas, ao se depararem com textos filosóficos clássicos, sentem a necessidade de ler de outro modo, diferente do costumeiro. São pessoas que, por buscarem intensamente, começam a sentir que aqui é necessário fazer uma experiência inteiramente nova da leitura. Essas pessoas são mais sensíveis para esse tipo de dica. Mas, muitas delas, pensam que pelo simples volume de trabalho, pela vontade voluntarista de acreditar na dica e ler, ler, ler, conseguem entrar no modo de ser da leitura filosófica. Uma vontade voluntarista, na realidade, porém, é uma vontade fraca, pois no voluntarismo reside uma espécie de inércia. A inércia consiste no modo de ser “mecânico” de um tal querer que se instala em pensar que a vontade, pelo empenho e pela força de vontade, consegue ir para frente. Assim, não se empenham em compreender profundamente o que significa a dica da “chave de outro” da leitura filosófica, que diz: o não compreender do texto contém em si todo o segredo da introdução à autêntica leitura filosófica.

Mas em que sentido?

  1. O nosso compreender originário e imediato se chama em grego logoV.. O seu verbo é legein e significa ler (=leg) i. é, ajuntar, colher, recolher. Ajuntar, p. ex., uma colheita, colher é uma ação de contato imediato, digamos, do modo de “corpo a corpo”, onde não há os atravessadores das representações, de tal sorte que somos o tato de captação imediata e concreta da coisa ela mesma, i. é, da realidade. Essa capacidade de compreender concreto e direto na sua intensidade suprema de identificação, a mais perfeita do compreender e ser, se chama em grego nouV. Este termo foi então traduzido em latim por mens,tis, que em alemão se tornou Vernunft (= de vernehmen), a saber, captação receptiva. Isto significa que, antes de tudo, antes de todo o nosso saber em representações disso e daquilo, antes de todas as classificações e de todos os critérios de classificações e divisões da realidade, há o vigor originário da captação receptiva, “sensível”, concreta e imediata que somos nós mesmos, enquanto mens.

Esse fundo da vigência originária, no entanto, na nossa compreensão usual, está por assim dizer entulhado de representações e conceitos usuais do nosso saber adquirido. Ou melhor, o fundo, por ser o fundo, o chão básico, o leito, está bem no fundo, debaixo de todas as representações e classificações, de todos os conceitos usuais do nosso compreender cotidiano, quer na vida, quer nas ciências. Quando a “realidade” é mais profunda, mais radical, originária e anterior do que o nosso saber costumeiro, ela não é captada a não ser que cheguemos a esse fundo, para ali nos dispormos à recepção originária do contato imediato da mens. A resistência que o texto filosófico clássico pode oferecer à nossa leitura como a impossibilidade do não-compreender, pode estar significando que o pensamento do texto está se manifestando, no fundo dos entulhos do nosso saber usual, na sua grandeza, na sua realidade do que é maior, mais profundo, radical, originário e anterior. Se é assim, todo o empenho deveria ser o de permanecermos na dinâmica da não-compreensão.

  1. Mas, se esse fundo está sobreposto por representações e classificações do saber usual, não pode acontecer que nós, ao lermos, fiquemos enroscados nas camadas superficiais de representações e conceitos classificatórios, de tal maneira que necessitamos de um guia e uma orientação, para adquirirmos saber de representações e conceitos de camadas mais profundas, até, então, por fim, chegarmos ao fundo? Com outras palavras, não necessitamos de mais informações sobre o tema, sobre o assunto? P. ex., se eu nunca ouvi falar de S. Boaventura, se sou um total ignorante nas coisas da doutrina cristã, posso compreender assim, dando trombada imediata no texto do Itinerarium, para então captá-lo no seu pensamento essencial?

Só que essa colocação é falsa. Pois tal trombada imediata no texto não é nenhuma leitura. Não é nenhum contato imediato com o texto. Pois essa trombada, essa peitada no texto não é diferente de você deixar aberto o livro do Evangelho, e a pessoa só pelo fato de se encostar nele, compreender o seu conteúdo na sua essência.

Aqui, trata-se de bem outra “coisa”. Compreender é um fenômeno do encontro. Assim, o contato imediato não é um encosto; é tato, é envolvimento existencial, é ir ao encontro e receber quem vem a mim, ao meu encontro. Isso significa que todo e qualquer compreender, aqui, já de antemão está no toque do fascínio e da sedução desse encontro. Assim, ninguém, a partir do imediato, vai ao texto do Itinerarium e dá uma peitada nele, lendo simplesmente, achando que com isso pode captá-lo imediatamente. Aqui a compreensão do imediato é que está defasada. Imediato aqui não é encosto físico. E se é, continua sendo ainda sempre físico, mesmo lá onde você fala do espiritual, se você entende tudo isso no modo de ser da ocorrência. Dito de outro modo, quem vai ler o Itinerarium, quando vai, já está de algum modo no interesse desse encontro, na sua afeição, mesmo que não o saiba tematicamente. Do contrário, passaria ao lado desse livro, como quem passa ao lado de uma pedra, indiferente, à beira da estrada.

  1. Isto significa que o que chamamos de mente no sentido acima explicado, esse fundo, na realidade não está lá embaixo, como que um fundamento de todo um entulho de representações e classificações. Esse fundo, na realidade está em toda parte, no fundo de cada representação, de cada classificação, de cada conceito usual, como o fundo obscuro de não compreensão do que achamos que compreendemos obviamente. Isto quer por sua vez dizer que, desde o início, o mais inicial, em todo o saber com que nos aproximamos do texto, já de antemão está um aceno ao profundo do texto, em cada palavra que excita a nossa representação e o nosso saber já adquirido, está um aceno que faz acordar a sensibilidade para o não-compreender de nós mesmos nas nossas inúmeras representações e conceitos usuais. Portanto, não é porque o originário, o anterior, o maior não cabe na nossa representação ou no nosso conceito que nós não o compreendemos. O problema não é de caber ou não caber. Trata-se de uma estruturação bem diferente. Isto é, o não-compreender é o modo como o originário, o anterior, o maior, i. é, a realidade realíssima nos compreende, nos envolve, convidando-nos a seguir o fio condutor do aceno oculto na não-compreensão. O fundo da recepção obediente ao aceno do que vem ao encontro é como o fundo de silêncio no qual cada tom musical repousa como o toque da percussão da sua sonância.
  2. Para ver isso, talvez seja importante tentar dizer o que foi dito no n. 3, recorrendo à distinção entre: saber = distingue entre o ente e o ente a partir de uma diferença; a mens = distingue entre o ente e o ser; ou a partir da diferença entre a generalização e a mostração formal.
  3. Esse modo de abordar o texto, tendo como o lugar precioso da compreensão a não-compreensão do texto, faz com que leiamos o texto, primeiro diretamente; depois como que mastigando cada palavra e sentença que nós compreendemos a nosso modo; tentando não rapidamente ultrapassá-las, remetendo a outras representações e conceitos, mas serena e vigorosamente divisando o fundo obscuro disso que já estamos compreendendo. Para isso, passamos todo o texto ou ao menos o trecho do texto, assim, lendo literalmente, palavra por palavra, frase por frase, lentamente. Em geral, a sensação é de uma compreensão vaga, sem contorno e sequência. Examinar se nesse mar de indeterminação eu não tenho alguma ilha, onde de modo mais vivo, se me iluminou uma compreensão. Ir morar nessa ilha, demorar-se ali, tentando captar, trazer à luz, à mente o que compreendi, e principalmente o obscuro profundo que pode estar oculto nisso que compreendi. Repetir esse processo de ler e reler, com essa paciência, várias vezes, não se precipitando em concatenar as coisas de fora por uma lógica projetada dentro do texto. E observar atenta mas serenamente se desses bolsões de luminosidade, como o fundo de lusco-fusco e escuridão profunda, não começa a surgir uma espécie de ordenação das compressões que me tocaram. O segredo aqui é de você gostar de repetir esse processo sempre de novo com cada vez maior afeição, gratidão e interesse de penetrar e repousar cada vez mais na paisagem desse profundo não-compreender.
  4. Se quiser uma chave da leitura, esse modo de compreender a leitura filosófica e a descrição desse modo, embora imperfeita, pode ser essa chave. Mas chave que não é outra coisa do que você mesmo, em lendo na colheita a cordialidade do texto de S. Boaventura por afeição cordial da verdade do pensamento. Se o fizer um tempo, talvez você possa observar que todo o texto do Itinerarium, em seus diferentes capítulos que constituem os passos e os degraus do itinerarium da mente para dentro de Deus, inicia e se consuma no mistério do Jesus Cristo Crucificado. Há de se observar que em cada passagem de um degrau para o outro há a intensificação e escalação desse mistério; há de perceber que todos os degraus da imensa criação, quer como universo físico temporal, quer como universo anímico espiritual, quer como o universo de identificação com o próprio desvelar-se do próprio Deus Criador, através da gênesis desses universos, tudo, a cada momento está ligado, está ligado pela amálgama do mistério de Jesus Cristo Crucificado.

Estrutura do livro

A estrutura aparece nos títulos dos capítulos que compõem o livro:

  1. De degraus da ascensão para dentro de Deus e da especulação de Deus através dos vestígios no universo.
  2. Da especulação de Deus em seus vestígios neste mundo sensível.
  3. Da especulação de Deus através da sua imagem impressa nas potências naturais.
  4. Da especulação de Deus na sua imagem reformada nos dons gratuitos.
  5. Da especulação da unidade divina através do seu nome primário, que é o ser.
  6. Da especulação da beatíssima Trindade no seu nome que é o bem.
  7. Da êxtase mental e mística, na qual se dá o repouso ao intelecto, pelo afeto para dentro de Deus através da êxtase totalmente transcendente.

O subtítulo é: Speculatio pauperis in deserto.

Segundo o estado da nossa condição, a universidade ela mesma dos entes e a escada para subir para Deus

      corporal          
vestígio 1. transitar através de Vestígio temporal ser conduzido no caminho de Deus na matéria véspera etc. na matéria véspera etc. aspecto corpos exteriores animal serealidade
imagem     fora de nós          
corporais     espiritual          
espirituais 2. entrar na mente que é Imagem eviterna entrar na verdade de Deus na inteligência de manhã etc. na inteligência de manhã etc. aspecto
dentro de si, em si
espírito
temporais     dentro de nós          
eviternas     espiritualismo          
fora de nós 3. transcender Semelhança eterno alegrar-se na
vida de Deus
na arte eterna
meio-dia etc.
na arte eterna meio-dia etc. aspecto
sobre si
mens
dentro de nós     sobre nós          

Per specular 3 1. per/in  2
subir/descer 2. per/in 2
inspeculo 3 3. per/in 2

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