(Grande Sinal, XXIX, 1975, 563-572)
Introdução
- O celibato hoje é um tema quente. Este assunto é controvertido, defendido, questionado, criticado, exaltado. Há muitos estudos sobre o tema. Estudos sob diferentes enfoques: psicológico, sociológico, jurídico, teológico, patológico etc. Segundo as diferentes abordagens, o celibato aparece como objeto da proposta do respectivo enfoque, colocando-se no inter-esse da posição da abordagem. A posição inicial de abordagem é importante para a compreensão do celibato, pois é dela que depende o que devemos ver ou não ver nele. No entanto, a posição inicial de abordagem só se manifesta na medida em que, ao abordarmos o celibato e ao desenvolvermos o tema, formos provocados de tal modo a permitir que a própria posição inicial se coloque em questão, isto é, se desvele no inter-esse da verdade da sua localização. Assim, colocar a questão do celibato é um risco. Traímo-nos naquilo que constitui o tesouro do nosso coração: “onde está o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12,23-24).
- Afirma Pascal: “Ao falar de coisas divinas, dizem os santos que é necessário amar para conhecer” (Pensées). Afirma Santo Agostinho: “non intratur in veritatem, nisi per charitatem: não se é introduzido na verdade, a não ser pelo amor” (Contra Faustum). Como sabemos que amamos o celibato, para poder conhecê-lo? Até que ponto o que nós já conhecemos do celibato desvela que o amamos ou não o amamos? A verdade do nosso amor ao celibato nos mostra o que pode ser o celibato para nós, ou antes, a verdade do nosso amor ao celibato mostra o que podemos ser para o celibato.
Mas como entrar na verdade do nosso amor ao celibato? Diz Santo Agostinho: “Noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas: não vá para fora, volta a ti, no interior do homem habita a verdade”. A questão do celibato é pois a questão essencial acerca da identidade da minha existência. A identidade da existência se chama liberdade.
- É costume definir o celibato como o não-matrimônio por causa do Reino dos céus. A definição nos remete a Mt 19,12: “há eunucos que a si mesmos se castraram por causa do Reino dos Céus”. Para os nossos ouvidos piedosos, a expressão soa um tanto indecente… Suportemo-la no estranhamento da sua provocação. Temos na definição três momentos: por causa de, o Reino dos Céus, o não-matrimônio. Como se relacionam esses três momentos? O que nos recorda esse relacionamento?
1 Por causa de
- A expressão é usada por exemplo quando dizemos: eu fiz isso por causa de ti. “Por causa de” significa, então, movido por, acionado por. No nosso exemplo o outro ou alguma coisa nele é a causa que move, aciona o meu ser a fazer isso ou aquilo. “Por causa de ti” pode significar: em interesse por ti. Nesse caso também o inter-esse do outro, aquilo que constitui o núcleo do seu móvel é a causa que move e aciona o meu ser a fazer isso ou aquilo. “Por causa de”, no entanto, não somente diz movido por, acionado por. Indica também o atingimento. É o atingimento que possibilita ao outro ser o móvel, o acionador do meu fazer. É essa afeição, isto é, o ser afetado por, o ser atingido por que possibilita ao outro aparecer como o motivo a partir do qual, e o fim para o qual tende o inter-esse do meu ser. Por isso, “por causa de” significa também: para alcançar esse ou aquele fim.
Por causa de, portanto, significa movido por, acionado por, ser afetado por, ser atingido por; para alcançar um certo fim.
A palavra causa indica pois o móvel a partir do qual, e o fim para o qual tende o nosso interesse. O que possibilita, porém, o surgimento e o vigor do móvel a partir do qual tendemos para o fim é o atingimento. Causa significa primordialmente esse atingimento. Só secundariamente, por extensão do sentido sobre as decorrências desse atingimento, indica também o móvel e o fim.
Causa é propriamente um termo usado no pleito judicial e indica aquilo que constitui a própria coisa do litígio. Causa e coisa possuem o mesmo significado! A causa, isto é, a coisa do litígio é aquilo que afeta o litígio de tal maneira que o coage a se colocar como empenho de uma posição que no próprio processo do empenho vem a si como à coisa ela mesma do empenho. A causa do litígio é a coisa do litígio: o atingimento, a afeição da luta. A luta na sua afeição pela causa busca a própria verdade da coisa. Essa busca se posiciona como um ponto de vista no afã de atingir o seu objetivo diante de si. Mas o empenho da busca aos poucos lhe desvela a verdade da própria posição. E, na medida em que se lhe abre a verdade de si na ab-negação, a busca deixa ser a própria coisa que se desvela como a causa, em cuja afeição, para ela e por seu atingimento, a busca inicia, prossegue e termina o seu processo.
Nesse sentido de causa, o Reino dos Céus é a causa do nosso não-matrimônio. O Reino dos Céus como causa não existe em si como uma entidade física. Ele é a própria coisa do empenho de uma posição chamada não-matrimônio. Como tal só vem a si no próprio processo do empenho. Mas no processar do empenho como da busca, ele vem a si como a verdade da própria posição do empenho, como um convite de abnegação da própria posição em favor da afeição do Reino dos Céus.
2 O Reino dos Céus
- No cristianismo a perfeição da vida se chama o amor de Deus do Evangelho. O país do amor de Deus do Evangelho é o Reino dos Céus. O celibato é o não-matrimônio por causa do Reino dos Céus. O amor de Deus do Evangelho, o vigor instaurante do Reino dos Céus, no entanto, é a jovialidade da cruz. A identidade do celibato cristão está pois na jovialidade da cruz.
Existe uma velha legenda medieval que fala da jovialidade da cruz. A leitura do texto e o seu comentário são apenas sugestões para nos deixarmos questionar pela causa do celibato acerca da própria coisa do celibato cristão. (Ler e meditar o texto de I Fioretti, capítulo VIII, Como a caminhar expôs São Francisco a Frei Leão as coisas que constituem a perfeita alegria).
São Francisco, o fundador da ordem, e Frei Leão, um dos seus seguidores mais próximos, vão a Santa Maria dos Anjos. Santa Maria dos Anjos é o berço da ordem, o lar, onde reside o memorial mais íntimo, o aconchego originário do mistério da ordem. São Francisco e Frei Leão voltam ao seu próprio lar. Mas os habitantes desse lar não reconhecem seus próprios familiares, seu progenitor e seu irmão, porque estes aparecem tão pobres que se diferenciam dos seus familiares. Francisco, a origem, volta à sua própria origem e lá se apresenta na sua mais pura originariedade como o mais íntimo da família que sabe à pobreza inicial. Mas não é reconhecido como pertinente à origem, ao lar. Assim o pai e o filho primordial são expelidos do seu próprio lar e enviados para o hospício dos leprosos, o lugar onde principiou a história de São Francisco, onde Francisco foi acolhido e colhido pelo mistério do servo leproso de Javé (Is 53,1-15), cujo toque everteu o seu saber, a ponto de ser a doçura do seu vigor, o que antes lhe era amargor (Testamento de São Francisco).
Francisco e Leão voltam para casa, famintos, sujos, congelados pelo frio da caminhada hibernal. Em casa não os recebem por não os reconhecerem. Expulsam-nos como marginais e dão-lhes uma violenta surra, no frio da noite, sobre a neve lamacenta da estrada. E a legenda nos diz: o porteiro, verdadeiramente nos tinha reconhecido… mas Deus o fez falar contra nós.
Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por engano é possível. Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por maldade é possível. Mas que Deus não reconheça a Francisco e a Leão… O que significa essa rejeição de Deus? Francisco e Leão vivem austeramente a pobreza. Tão austeramente que eles são em carne e osso o corpo da abnegação. Por causa da radicalidade da abnegação se tornam irreconhecíveis aos seus irmãos. O mordente da sua austeridade é corrosivo e ameaça a vida da fraternidade. São excluídos do convívio familiar. Francisco e Leão, no entanto, podem se apoiar em Deus e dizer: os irmãos são instrumentos na mão de Deus. Deus está nos provando, nos purificando para que alcancemos maior perfeição na autenticidade da abnegação. Ele nos permite uma tal situação para que possamos copiar literalmente a seu Filho crucificado. Ao sermos colocados na situação do Crucificado, somos autênticos, verdadeiramente abnegados e assim podemos nos glorificar na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas o que é essa abnegação que os dispõe a gloriar-se da cruz de Jesus Cristo? A própria abnegação da cruz de Jesus Cristo. Mas o que per-faz a abnegação da Cruz? A rejeição da cruz por Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). A cruz é o abandono da própria cruz por Deus, a condenação, a fala de Deus contra nós.
Como pode tal aniquilação da aniquilação ser perfeita alegria?
Aniquilação, exinanição, sacrifício, humilhação, castigo, condenação, abandono: a abnegação. A inclinação do nosso ouvido não consegue senão colher na palavra cruz essas ressonâncias da negatividade. Na própria tentativa de superar a negatividade por meio do apelo a uma instância positiva superior, “Deus”, confessamos a impossibilidade de acolher a cruz como perfeita alegria: a cruz como abnegação não tem sentido em si, ela está em função de um algo diferente dela: da positividade que elimina a negatividade; o amargor da cruz continua amargo: na superação ele é simplesmente excluído da doçura.
Mas aceitar o amargor da cruz como doçura não é o mais requintado “masoquismo”? A perfeita alegria é perder-se no deleite da total aniquilação passiva, nihilista?
O masoquismo, no entanto, é a derradeira tentativa de fechar-se à perfeita alegria da cruz. Ao declarar o negativo como positivo, o masoquismo exacerba a dominação da medida valorativa que comanda a oposição, impossibilitando a colocação da questão essencial acerca do envio radical dessa própria medida constitutiva do valor. Assim, a consumação nadifícante da cruz como nada se retrai, se vela na sua essência como absurdo. Nesse absurdo está a cruz.
O que perfaz o absurdo da cruz? A própria impossibilidade de se colocar a questão essencial acerca do envio radical de si mesmo. Essa impossibilidade não é porém uma impossibilidade oposta ou ao lado da possibilidade para além dela mesma: é antes a impossibilidade da impossibilidade. Enquanto o Crucificado pode justificar a sua abnegação como a realização da vontade de Deus, pode se valorizar a partir de uma instância positiva e última dando à sua abnegação um porquê e um para quê. Mas no abandono do abandono lhe é tirado o derradeiro fundamento justificativo do porquê e para quê da abnegação. Abandonada em si mesma, a abnegação do Crucificado é o puro querer do seu querer. Na ausência absoluta de uma motivação fora de si mesma, o querer do Crucificado pode dizer: Meu Deus, eu te quero, não porque tu és bom, mas porque eu quero o querer do meu querer. A abnegação da cruz é, pois, a autonomia do querer: a suprema exacerbação da autojustificação; a vontade do poder e o poder da vontade: a vontade de Deus e o Deus da vontade.
No in-stante crucial dessa afirmação radical da vontade, no entanto, se dá o abandono: a vontade se desvela como a radical impossibilidade de se abandonar como a bondade da gratuidade na gratuidade da bondade. Na abnegação da cruz, a vontade própria se consuma no seu poder de autojustificação como a autonomia suprema do eu da subjetividade. Ao se consumar, o poder da vontade vem a si mesmo como o limite e a plenitude do asseguramento do seu próprio, isto é, da sua essência. O desvelamento da vontade própria como a consumação do eu da subjetividade se dá como: a vontade de Deus. Vontade de Deus é consumação da vontade própria. A consumação é plenitude como limite. Mas o limite da vontade própria é o silêncio do retraimento da gratuidade na bondade do seu mistério. Na suprema potencialização da vontade própria, na cruz, o eu da subjetividade se dis-põe a ser ferido pelo toque da bondade da gratuidade. Essa disposição como o limite é o ponto crucial da cruz de Jesus Cristo. Ali se dá o abandono da auto-segurança e da autojustificação, o abandono da vontade própria à fluência nasciva do retraimento do mistério, como o recolhimento e a acolhida da gratuidade. A perfeita alegria é ao sabor da nascividade desse retraimento.
O retraimento do mistério como gratuidade vem à fala como a pureza da vitalidade na nascividade de ser: perfeita alegria. A perfeita alegria é jovialidade.
Não é possível dizer o que é a jovialidade. Por isso, com o risco de nada dizer, ao dizer demais, deixemo-nos referir ao aceno de Angelus Silesius (Johann Scheffler, 1624-1677) que fala a partir da jovialidade: “A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer”. A rosa sem porquê no orvalho matinal: a alegria acolhe o coração do mortal, no frescor, na claridade natal da inocência original. O mortal descansa, respira livre, regozija-se e renasce, na cercania da rosa, porque se recolhe e é acolhido no recato da natureza. A natureza da rosa de Angelus Silesius não é uma região do ente em oposição ao homem. É a nascividade, a liberdade do mistério que evoca o homem para a sua essência. É a própria vigência da presença que se abre como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça de todas as coisas. É à mercê da liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, a paz, o bem, o rigor, a coragem, a sinceridade, a simplicidade. A liberdade do mistério, a nascividade é a jovialidade. A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece. Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7). É a jovialidade, o aceno da gratuidade, a referência do mistério que perfaz a presença de Deus. Presença de Deus que o cristianismo chamou de vontade do Pai, ocultando na ambigüidade da sua fala subjetiva a própria essência da presença que é o retraimento da gratuidade. Se é assim, a vontade do Pai, a que Jesus Cristo foi ob-audiente até a morte de cruz, a vigência de Deus é a rosa sem porquê. O seu poder não é o poder de dominação, a vontade do poder, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo liberta, tudo vivifica, na ternura, no vigor, no recato da sua jovialidade. Por isso, ao se dar na liberdade não humilha, não se gloria, não se posiciona, não domina o agraciado, não é doador superior, mas ao se dar se retrai na simplicidade do pudor, qual um servo para com o seu senhor. Para isso, confira “A regra definitiva da Ordem dos Frades Menores, nº 10 (Silveira, 1983, p. 137-8).
A regência da sua dominação é a autofidelidade da nascividade na inocência da liberdade que se expõe sem nenhuma defesa, no abandono à fluência da gratuidade. Esse auto-abandono da liberdade é o poder do mistério, a sua identidade: ao se expor, se retrai sempre de novo, se oculta no recato da identidade do mistério: no silêncio desse retraimento o mistério é ele mesmo e nada mais, a solidão perfeita da vida. Essa solidão, porém, é o poder, isto é, a possibilidade da vida. Ao se retrair na autofidelidade a si mesmo, o mistério se doa inesgotavelmente como exposição do ser, em cujo envio tudo é como vida.
A liberdade do envio da vida no retrair-se sempre nascivo do mistério é a solidão perfeita da identidade do mistério. Essa solidão é o satis-fazer-se do mistério na obra perfeita da vida: o envio do ser em cadências de suas diferenciações. O retrair-se do mistério na sua identidade e o envio do ser na obra perfeita da vida como cadências de diferenças é a jovialidade de ser, a perfeita alegria.
A cruz de Jesus Cristo é a acolhida e a colheita dessa jovialidade. E a essência da existência do celibato cristão está na acolhida e na colheita da perfeita alegria da cruz de Jesus Cristo.
O celibato cristão é o não-matrimônio por causa do Reino dos Céus. O vigor instaurante do Reino dos Céus é o amor de Deus do Evangelho. O amor de Deus do Evangelho é a jovialidade da cruz. A causa portanto do celibato cristão é o envio do mistério na acolhida e na colheita da cruz.
Celibato se refere ao latim caelebs. Caelebs se compõe de cae e lebs. O termo cae deriva do indo-germânico qaivelo que no hindu antigo é Kévalah. Significa: só, próprio, completo, íntegro, todo e inteiriço, per-feito. O termo lebs vem do indo-germânico libh e significa: vivendo, vivente. A tendência originária da palavra caelebs parece pois dizer: caelebs é a existência como obra per-feita da vida, o perfectum do viver: o satisfazer-se, o regozijar-se da vida como a propriedade do envio a partir de e para a pura nascividade do ser como viver consumado. Caelebs significa a solidão perfeita da vida.
3 O não-matrimônio
- A Bíblia o nomeia: castração. Castração é abnegação radical da possibilidade do matrimônio. Essa abnegação no entanto é uma imposição, um posicionamento da escolha como da opção da vontade. É o produto do empenho de uma posição.
De que atingimento, de que afeição se dá esse posicionamento da abnegação? Por causa do Reino dos Céus. O atingimento (cf. a causa nº 4) que nos envia à posição de abnegação é a jovialidade da cruz (cf. nº 5). A causa do empenho chamado abnegação do matrimônio, o não-matrimônio, no entanto, só se desvela na busca, na medida em que se lhe abre a verdade da abnegação como a impossibilidade de possuir a jovialidade, como o produto criativo da vontade do empenho. A vontade não pode gerar a gratuidade. Não lhe é dada a paternidade, a maternidade da graça. A própria vontade do poder e o poder da vontade é a castração como a impossibilidade de acolher o vigor criativo da gratuidade.
Acontece, porém, que é no acolhimento dessa impossibilidade que a posição do empenho pode se recolher na solidão radical do seu limite, dando lugar à solidão do pudor e da liberdade do Mistério de Deus. Deixar ser a solidão da liberdade de Deus, porém, é deixar ser, dar lugar à possibilidade do vigor criativo do Mistério que se dá graciosamente como a fonte difusiva de todos os amores, de todas as vidas. O matrimônio haure o vigor, a ternura, a bondade do seu encontro dessa fonte que se perde na solidão plena da gratuidade de Deus.
A abnegação do celibato portanto é a negação do matrimônio. Mas negação como ab-negação. A abnegação se dá como afirmação na negação. É a potencialização da afirmação do empenho e da busca que nega tudo quanto não é a posse absoluta da auto-identidade. A posse absoluta porém se retrai sempre um passo para além da minha posse. A auto-identidade absoluta é sempre mais do que o que sou e posso. De repente, percebo que para alcançar a absoluta autoidentidade é necessário negar, isto é, superar o modo de ser da busca e do empenho da posse absoluta. Devo pois abandonar o querer, a vontade da posse absoluta. Mas a dificuldade de abandonar, de superar a vontade da posse absoluta está nisso que a própria negação da vontade da posse é o querer potencializado de posse, a própria vontade da posse absoluta no seu grau máximo de ambição!
Atingida essa culminância da vontade da posse absoluta, a própria vontade se tornou por assim dizer o corpo compacto da impossibilidade de deixar ser o que não seja ela mesma. É a sentença de condenação na qual o empenho da vontade da posse absoluta é abandonado à solidão de si mesmo: a castração. Nesse instante do abandono me é dado o sentido profundo e originário da abnegação como a possibilidade de ser acolhido por e para a gratuidade. A negação como o autoamarramento sempre mais crescente da subjetividade na afirmação da solidão de si mesma, a vontade da posse absoluta, por assim dizer salta em si mesma, de si mesma (ab), dando lugar à possibilidade de ser acolhida pela Graça.
Examinemos o texto: A perfeita alegria (Merton, 1994, p. 128-133).
O pivô da compreensão desse texto está em perceber nitidamente que o não-agir, a não-busca da felicidade só pode ser mantida no máximo empenho do agir e da busca. Negação é esse agir, essa busca, pois negamos o relativo em busca do absoluto. Absoluto, porém, só é realmente como a Gratuidade. Por isso ele se dá no in-stante onde a negação se torna ela mesma o corpo compacto da impossibilidade radical da busca e do agir, em sendo. É ali, nesse limite radical de nós mesmos que a negação nega a si mesma como abnegação. Mas esse em sendo só é na medida em que é mantido pelo empenho da nossa busca, do nosso agir. No agir, na busca da absoluta felicidade, o nosso empenho se torna a solidão de si mesmo como ab-negação. A solidão de si mesmo quando é perfeita se torna a acolhida da solidão plena do mistério do Deus da gratuidade. Manter-se na ab-negação como acolhida da gratuidade da solidão plena de Deus é o celibato.
De repente, intuímos algo que, se colocado no nível fisiológico ou sociológico, pode aparecer ridículo e grotesco, mas, se colocado com rigor no nível da solidão per-feita da abnegação, se torna a fala da ironia jovial da gratuidade: o sentido radical da palavra eunuco (cf. Mt 19,12).
Eunuco, grego eunouchos, é contração de euné e écho. Euné é o aposento, a habitação íntima onde se dá a paixão e o amor do matrimônio e o surgir da nova vida. Écho significa apossar-se, possuir, agarrar, mas originariamente: conservar, ter sob a cura, sob a diligência, cuidar, se ater a, acolher para guardar com respeito o pudor originário de etc. Eunuco significaria portanto aqueles que se atêm com rigor, pela abnegação da posse, ao pudor originário e à vigência virginal do Mistério que como fonte gratuita e graciosa da Vida se dá no amor, na ternura, na paixão do amor conjugal, donde brota a nova vida. Nesse sentido, o celibato, isto é, a solidão per-feita da abnegação como a acolhida da solidão perfeita da Plenitude da Gratuidade é o servo do matrimônio. E recordemos: o matrimônio é o sinal escatológico da Festa do Reino dos Céus (cf. Jo 3,29).