Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O celibato

16/04/2021

 

(Grande Sinal, XXIX, 1975, 563-572)

Introdução

  1. O celibato hoje é um tema quente. Este assunto é con­trovertido, defendido, questionado, criticado, exaltado. Há muitos estudos sobre o tema. Estudos sob diferentes en­foques: psicológico, sociológico, jurídico, teológico, patoló­gico etc. Segundo as diferentes abordagens, o celibato apa­rece como objeto da proposta do respectivo enfoque, co­locando-se no inter-esse da posição da abordagem. A po­sição inicial de abordagem é importante para a compreen­são do celibato, pois é dela que depende o que devemos ver ou não ver nele. No entanto, a posição inicial de abor­dagem só se manifesta na medida em que, ao abordarmos o celibato e ao desenvolvermos o tema, formos provocados de tal modo a permitir que a própria posição inicial se co­loque em questão, isto é, se desvele no inter-esse da ver­dade da sua localização. Assim, colocar a questão do celi­bato é um risco. Traímo-nos naquilo que constitui o tesou­ro do nosso coração: “onde está o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12,23-24).
  2. Afirma Pascal: “Ao falar de coisas divinas, dizem os santos que é necessário amar para conhecer” (Pensées). Afirma Santo Agostinho: “non intratur in veritatem, nisi per charitatem: não se é introduzido na verdade, a não ser pelo amor” (Contra Faustum). Como sabemos que ama­mos o celibato, para poder conhecê-lo? Até que ponto o que nós já conhecemos do celibato desvela que o amamos ou não o amamos? A verdade do nosso amor ao celibato nos mostra o que pode ser o celibato para nós, ou antes, a verdade do nosso amor ao celibato mostra o que pode­mos ser para o celibato.

Mas como entrar na verdade do nosso amor ao celiba­to? Diz Santo Agostinho: “Noli foras ire, in te redi, in inte­riore homine habitat veritas: não vá para fora, volta a ti, no interior do homem habita a verdade”. A questão do celiba­to é pois a questão essencial acerca da identidade da mi­nha existência. A identidade da existência se chama liberdade.

  1. É costume definir o celibato como o não-matrimônio por causa do Reino dos céus. A definição nos remete a Mt 19,12: “há eunucos que a si mesmos se castraram por causa do Reino dos Céus”. Para os nossos ouvidos piedo­sos, a expressão soa um tanto indecente… Suportemo-la no estranhamento da sua provocação. Temos na definição três momentos: por causa de, o Reino dos Céus, o não-matrimônio. Como se relacionam esses três momentos? O que nos recorda esse relacionamento?

1 Por causa de

  1. A expressão é usada por exemplo quando dizemos: eu fiz isso por causa de ti. “Por causa de” significa, então, mo­vido por, acionado por. No nosso exemplo o outro ou al­guma coisa nele é a causa que move, aciona o meu ser a fazer isso ou aquilo. “Por causa de ti” pode significar: em interesse por ti. Nesse caso também o inter-esse do outro, aquilo que constitui o núcleo do seu móvel é a causa que move e aciona o meu ser a fazer isso ou aquilo. “Por cau­sa de”, no entanto, não somente diz movido por, acionado por. Indica também o atingimento. É o atingimento que possibilita ao outro ser o móvel, o acionador do meu fazer. É essa afeição, isto é, o ser afetado por, o ser atingido por que possibilita ao outro aparecer como o motivo a partir do qual, e o fim para o qual tende o inter-esse do meu ser. Por isso, “por causa de” significa também: para alcançar esse ou aquele fim.

Por causa de, portanto, significa movido por, acionado por, ser afetado por, ser atingido por; para alcançar um certo fim.

A palavra causa indica pois o móvel a partir do qual, e o fim para o qual tende o nosso interesse. O que possi­bilita, porém, o surgimento e o vigor do móvel a partir do qual tendemos para o fim é o atingimento. Causa significa primordialmente esse  atingimento. Só secundariamente, por extensão do sentido sobre as decorrências desse atin­gimento, indica também o móvel e o fim.

Causa é propriamente um termo usado no pleito judicial e indica aquilo que constitui a própria coisa do litígio. Causa e coisa possuem o mesmo significado! A causa, isto é, a coisa do litígio é aquilo que afeta o litígio de tal ma­neira que o coage a se colocar como empenho de uma po­sição que no próprio processo do empenho vem a si como à coisa ela mesma do empenho. A causa do litígio é a coisa do litígio: o atingimento, a afeição da luta. A luta na sua afeição pela causa busca a própria verdade da coisa. Essa busca se posiciona como um ponto de vista no afã de atingir o seu objetivo diante de si. Mas o em­penho da busca aos poucos lhe desvela a verdade da pró­pria posição. E, na medida em que se lhe abre a verdade de si na ab-negação, a busca deixa ser a própria coisa que se desvela como a causa, em cuja afeição, para ela e por seu atingimento, a busca inicia, prossegue e termina o seu processo.

Nesse sentido de causa, o Reino dos Céus é a causa do nosso não-matrimônio. O Reino dos Céus como cau­sa não existe em si como uma entidade física. Ele é a própria coisa do empenho de uma posição chamada não-matrimônio. Como tal só vem a si no próprio processo do empenho. Mas no processar do empenho como da busca, ele vem a si como a verdade da própria posição do em­penho, como um convite de abnegação da própria posição em favor da afeição do Reino dos Céus.

2 O Reino dos Céus

  1. No cristianismo a perfeição da vida se chama o amor de Deus do Evangelho. O país do amor de Deus do Evange­lho é o Reino dos Céus. O celibato é o não-matrimônio por causa do Reino dos Céus. O amor de Deus do Evan­gelho, o vigor instaurante do Reino dos Céus, no entanto, é a jovialidade da cruz. A identidade do celibato cristão está pois na jovialidade da cruz.

Existe uma velha legenda medieval que fala da jovia­lidade da cruz. A leitura do texto e o seu comentário são apenas sugestões para nos deixarmos questionar pela cau­sa do celibato acerca da própria coisa do celibato cristão. (Ler e meditar o texto de I Fioretti, capítulo VIII, Como a caminhar expôs São Francisco a Frei Leão as coisas que constituem a perfeita alegria).

São Francisco, o fundador da ordem, e Frei Leão, um dos seus seguidores mais próximos, vão a Santa Maria dos Anjos. Santa Maria dos Anjos é o berço da ordem, o lar, onde reside o memorial mais íntimo, o aconchego ori­ginário do mistério da ordem. São Francisco e Frei Leão voltam ao seu próprio lar. Mas os habitantes desse lar não reconhecem seus próprios familiares, seu progenitor e seu irmão, porque estes aparecem tão pobres que se diferen­ciam dos seus familiares. Francisco, a origem, volta à sua própria origem e lá se apresenta na sua mais pura origina­riedade como o mais íntimo da família que sabe à pobreza inicial. Mas não é reconhecido como pertinente à origem, ao lar. Assim o pai e o filho primordial são expelidos do seu próprio lar e enviados para o hospício dos leprosos, o lugar onde principiou a história de São Francisco, onde Francisco foi acolhido e colhido pelo mistério do servo leproso de Javé (Is 53,1-15), cujo toque everteu o seu sa­ber, a ponto de ser a doçura do seu vigor, o que antes lhe era amargor (Testamento de São Francisco).

Francisco e Leão voltam para casa, famintos, sujos, con­gelados pelo frio da caminhada hibernal. Em casa não os recebem por não os reconhecerem. Expulsam-nos como marginais e dão-lhes uma violenta surra, no frio da noite, sobre a neve lamacenta da estrada. E a legenda nos diz: o porteiro, verdadeiramente nos tinha reconhecido… mas Deus o fez falar contra nós.

Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por engano é possível. Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por maldade é possível. Mas que Deus não reconheça a Francisco e a Leão… O que significa essa rejeição de Deus? Francisco e Leão vivem austeramente a pobreza. Tão austeramente que eles são em carne e osso o corpo da abnegação. Por causa da radicali­dade da abnegação se tornam irreconhecíveis aos seus ir­mãos. O mordente da sua austeridade é corrosivo e amea­ça a vida da fraternidade. São excluídos do convívio fami­liar. Francisco e Leão, no entanto, podem se apoiar em Deus e dizer: os irmãos são instrumentos na mão de Deus. Deus está nos provando, nos purificando para que alcance­mos maior perfeição na autenticidade da abnegação. Ele nos permite uma tal situação para que possamos copiar literalmente a seu Filho crucificado. Ao sermos colocados na situação do Crucificado, somos autênticos, verdadeira­mente abnegados e assim podemos nos glorificar na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas o que é essa abnegação que os dispõe a gloriar-se da cruz de Jesus Cristo? A própria abnegação da cruz de Jesus Cristo. Mas o que per-faz a abnegação da Cruz? A rejeição da cruz por Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). A cruz é o abandono da própria cruz por Deus, a condenação, a fala de Deus contra nós.

Como pode tal aniquilação da aniquilação ser per­feita alegria?

Aniquilação, exinanição, sacrifício, humilhação, castigo, condenação, abandono: a abnegação. A inclinação do nos­so ouvido não consegue senão colher na palavra cruz essas ressonâncias da negatividade. Na própria tentativa de su­perar a negatividade por meio do apelo a uma instância positiva superior, “Deus”, confessamos a impossibilidade de acolher a cruz como perfeita alegria: a cruz como abnega­ção não tem sentido em si, ela está em função de um algo diferente dela: da positividade que elimina a negatividade; o amargor da cruz continua amargo: na superação ele é simplesmente excluído da doçura.

Mas aceitar o amargor da cruz como doçura não é o mais requintado “masoquismo”? A perfeita alegria é per­der-se no deleite da total aniquilação passiva, nihilista?

O masoquismo, no entanto, é a derradeira tentativa de fechar-se à perfeita alegria da cruz. Ao declarar o negati­vo como positivo, o masoquismo exacerba a dominação da medida valorativa que comanda a oposição, impossibili­tando a colocação da questão essencial acerca do envio radical dessa própria medida constitutiva do valor. Assim, a consumação nadifícante da cruz como nada se retrai, se vela na sua essência como absurdo. Nesse absurdo está a cruz.

O que perfaz o absurdo da cruz? A própria impossibili­dade de se colocar a questão essencial acerca do envio ra­dical de si mesmo. Essa impossibilidade não é porém uma impossibilidade oposta ou ao lado da possibilidade para além dela mesma: é antes a impossibilidade da im­possibilidade. Enquanto o Crucificado pode justificar a sua abnegação como a realização da vontade de Deus, pode se valorizar a partir de uma instância positiva e última dando à sua abnegação um porquê e um para quê. Mas no abandono do abandono lhe é tirado o derradeiro fun­damento justificativo do porquê e para quê da abnegação. Abandonada em si mesma, a abnegação do Crucificado é o puro querer do seu querer. Na ausência absoluta de uma mo­tivação fora de si mesma, o querer do Crucificado pode dizer: Meu Deus, eu te quero, não porque tu és bom, mas porque eu quero o querer do meu querer. A abnegação da cruz é, pois, a autonomia do querer: a suprema exacerbação da autojustificação; a vontade do poder e o poder da von­tade: a vontade de Deus e o Deus da vontade.

No in-stante crucial dessa afirmação radical da vontade, no entanto, se dá o abandono: a vontade se desvela como a radical impossibilidade de se abandonar como a bonda­de da gratuidade na gratuidade da bondade. Na abnegação da cruz, a vontade própria se consuma no seu poder de autojustificação como a autonomia suprema do eu da subje­tividade. Ao se consumar, o poder da vontade vem a si mesmo como o limite e a plenitude do asseguramento do seu próprio, isto é, da sua essência. O desvelamento da vontade própria como a consumação do eu da subjetivida­de se dá como: a vontade de Deus. Vontade de Deus é consumação da vontade própria. A consumação é plenitu­de como limite. Mas o limite da vontade própria é o si­lêncio do retraimento da gratuidade na bondade do seu mistério. Na suprema potencialização da vontade própria, na cruz, o eu da subjetividade se dis-põe a ser ferido pelo toque da bondade da gratuidade. Essa disposição como o limite é o ponto crucial da cruz de Jesus Cristo. Ali se dá o abandono da auto-segurança e da autojustificação, o abandono da vontade própria à fluência nasciva do retrai­mento do mistério, como o recolhimento e a acolhida da gratuidade. A perfeita alegria é ao sabor da nascividade desse retraimento.

O retraimento do mistério como gratuidade vem à fala como a pureza da vitalidade na nascividade de ser: perfei­ta alegria. A perfeita alegria é jovialidade.

Não é possível dizer o que é a jovialidade. Por isso, com o risco de nada dizer, ao dizer demais, deixemo-nos re­ferir ao aceno de Angelus Silesius  (Johann Scheffler, 1624-1677) que fala a partir da jovialidade: “A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer”. A rosa sem porquê no or­valho matinal: a alegria acolhe o coração do mortal, no frescor, na claridade natal da inocência original. O mortal descansa, respira livre, regozija-se e renasce, na cercania da rosa, porque se recolhe e é acolhido no recato da natureza. A natureza da rosa de Angelus Silesius não é uma região do ente em oposição ao homem. É a nascividade, a li­berdade do mistério que evoca o homem para a sua essên­cia. É a própria vigência da presença que se abre como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça de todas as coisas. É à mercê da liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, a paz, o bem, o rigor, a coragem, a sinceridade, a simplicidade. A liberdade do mistério, a nascividade é a jovialidade. A jovialidade é pa­ciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece. Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor: tudo descul­pa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7). É a jovialidade, o aceno da gratuidade, a referência do misté­rio que perfaz a presença de Deus. Presença de Deus que o cristianismo chamou de vontade do Pai, ocultando na ambigüidade da sua fala subjetiva a própria essência da presença que é o retraimento da gratuidade. Se é assim, a vontade do Pai, a que Jesus Cristo foi ob-audiente até a morte de cruz, a vigência de Deus é a rosa sem porquê. O seu poder não é o poder de dominação, a vontade do poder, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo liberta, tudo vivifica, na ternura, no vigor, no recato da sua jovialidade. Por isso, ao se dar na liberdade não hu­milha, não se gloria, não se posiciona, não domina o agra­ciado, não é doador superior, mas ao se dar se retrai na simplicidade do pudor, qual um servo para com o seu se­nhor. Para isso, confira “A regra definitiva da Ordem dos Frades Menores, nº 10 (Silveira, 1983, p. 137-8).

A regência da sua dominação é a autofidelidade da nas­cividade na inocência da liberdade que se expõe sem ne­nhuma defesa, no abandono à fluência da gratuidade. Esse auto-abandono da liberdade é o poder do mistério, a sua identidade: ao se expor, se retrai sempre de novo, se ocul­ta no recato da identidade do mistério: no silêncio desse retraimento o mistério é ele mesmo e nada mais, a soli­dão perfeita da vida. Essa solidão, porém, é o poder, isto é, a possibilidade da vida. Ao se retrair na autofidelidade a si mesmo, o mistério se doa inesgotavelmente como expo­sição do ser, em cujo envio tudo é como vida.

A liberdade do envio da vida no retrair-se sempre nas­civo do mistério é a solidão perfeita da identidade do mis­tério. Essa solidão é o satis-fazer-se do mistério na obra perfeita da vida: o envio do ser em cadências de suas dife­renciações. O retrair-se do mistério na sua identidade e o envio do ser na obra perfeita da vida como cadências de diferenças é a jovialidade de ser, a perfeita alegria.

A cruz de Jesus Cristo é a acolhida e a colheita dessa jovialidade. E a essência da existência do celibato cristão está na acolhida e na colheita da perfeita alegria da cruz de Jesus Cristo.

O celibato cristão é o não-matrimônio por causa do Rei­no dos Céus. O vigor instaurante do Reino dos Céus é o amor de Deus do Evangelho. O amor de Deus do Evan­gelho é a jovialidade da cruz. A causa portanto do celibato cristão é o envio do mistério na acolhida e na colheita da cruz.

Celibato se refere ao latim caelebs. Caelebs se compõe de cae e lebs. O termo cae deriva do indo-germânico qaivelo que no hindu antigo é Kévalah. Significa: só, pró­prio, completo, íntegro, todo e inteiriço, per-feito. O ter­mo lebs vem do indo-germânico libh e significa: vivendo, vivente. A tendência originária da palavra caelebs parece pois dizer: caelebs é a existência como obra per-feita da vida, o perfectum do viver: o satisfazer-se, o regozijar-se da vida como a propriedade do envio a partir de e para a pura nascividade do ser como viver consumado. Caelebs significa a solidão perfeita da vida.

3 O não-matrimônio

  1. A Bíblia o nomeia: castração. Castração é abnegação ra­dical da possibilidade do matrimônio. Essa abnegação no entanto é uma imposição, um posicionamento da escolha como da opção da vontade. É o produto do empenho de uma posição.

De que atingimento, de que afeição se dá esse posicio­namento da abnegação? Por causa do Reino dos Céus. O atingimento (cf. a causa nº 4) que nos envia à posição de abnegação é a jovialidade da cruz (cf. nº 5). A causa do empenho chamado abnegação do matrimônio, o não-ma­trimônio, no entanto, só se desvela na busca, na medida em que se lhe abre a verdade da abnegação como a im­possibilidade de possuir a jovialidade, como o produto cria­tivo da vontade do empenho. A vontade não pode gerar a gratuidade. Não lhe é dada a paternidade, a maternida­de da graça. A própria vontade do poder e o poder da vontade é a castração como a impossibilidade de acolher o vigor criativo da gratuidade.

Acontece, porém, que é no acolhimento dessa impossi­bilidade que a posição do empenho pode se recolher na solidão radical do seu limite, dando lugar à solidão do pudor e da liberdade do Mistério de Deus. Deixar ser a solidão da liberdade de Deus, porém, é deixar ser, dar lugar à possibilidade do vigor criativo do Mistério que se dá graciosamente como a fonte difusiva de todos os amores, de todas as vidas. O matrimônio haure o vigor, a ternura, a bondade do seu encontro dessa fonte que se perde na solidão plena da gratuidade de Deus.

A abnegação do celibato portanto é a negação do matri­mônio. Mas negação como ab-negação. A abnegação se dá como afirmação na negação. É a potencialização da afirmação do empenho e da busca que nega tudo quanto não é a posse absoluta da auto-identidade. A posse abso­luta porém se retrai sempre um passo para além da minha posse. A auto-identidade absoluta é sempre mais do que o que sou e posso. De repente, percebo que para alcançar a absoluta autoidentidade é necessário negar, isto é, supe­rar o modo de ser da busca e do empenho da posse abso­luta. Devo pois abandonar o querer, a vontade da posse absoluta. Mas a dificuldade de abandonar, de superar a vontade da posse absoluta está nisso que a própria nega­ção da vontade da posse é o querer potencializado de pos­se, a própria vontade da posse absoluta no seu grau má­ximo de ambição!

Atingida essa culminância da vontade da posse absolu­ta, a própria vontade se tornou por assim dizer o corpo compacto da impossibilidade de deixar ser o que não se­ja ela mesma. É a sentença de condenação na qual o em­penho da vontade da posse absoluta é abandonado à soli­dão de si mesmo: a castração. Nesse instante do abando­no me é dado o sentido profundo e originário da abnega­ção como a possibilidade de ser acolhido por e para a gratuidade. A negação como o autoamarramento sempre mais crescente da subjetividade na afirmação da solidão de si mesma, a vontade da posse absoluta, por assim dizer salta em si mesma, de si mesma (ab), dando lugar à pos­sibilidade de ser acolhida pela Graça.

Examinemos o texto: A perfeita alegria (Merton, 1994, p. 128-133).

O pivô da compreensão desse texto está em perceber nitidamente que o não-agir, a não-busca da felicidade só pode ser mantida no máximo empenho do agir e da bus­ca. Negação é esse agir, essa busca, pois negamos o re­lativo em busca do absoluto. Absoluto, porém, só é real­mente como a Gratuidade. Por isso ele se dá no in-stan­te onde a negação se torna ela mesma o corpo compacto da impossibilidade radical da busca e do agir, em sendo. É ali, nesse limite radical de nós mesmos que a negação nega a si mesma como abnegação. Mas esse em sendo só é na medida em que é mantido pelo empenho da nos­sa busca, do nosso agir. No agir, na busca da absoluta felicidade, o nosso empenho se torna a solidão de si mes­mo como ab-negação. A solidão de si mesmo quando é perfeita se torna a acolhida da solidão plena do mistério do Deus da gratuidade. Manter-se na ab-negação como acolhida da gratuidade da solidão plena de Deus é o celibato.

De repente, intuímos algo que, se colocado no nível fi­siológico ou sociológico, pode aparecer ridículo e grotes­co, mas, se colocado com rigor no nível da solidão per-fei­ta da abnegação, se torna a fala da ironia jovial da gra­tuidade: o sentido radical da palavra eunuco (cf. Mt 19,12).

Eunuco, grego eunouchos, é contração de euné e écho. Euné é o aposento, a habitação íntima onde se dá a paixão e o amor do matrimônio e o surgir da nova vida. Écho significa apossar-se, possuir, agarrar, mas originariamente: conservar, ter sob a cura, sob a diligência, cuidar, se ater a, acolher para guardar com respeito o pudor originário de etc. Eunuco significaria portanto aqueles que se atêm com rigor, pela abnegação da posse, ao pudor originário e à vigência virginal do Mistério que como fonte gratuita e graciosa da Vida se dá no amor, na ternura, na paixão do amor conjugal, donde brota a nova vida. Nesse sentido, o celibato, isto é, a solidão per-feita da abnegação como a acolhida da solidão perfeita da Plenitude da Gratuidade é o servo do matrimônio. E recordemos: o matrimônio é o si­nal escatológico da Festa do Reino dos Céus (cf. Jo 3,29).

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