Há uma legenda medieval acerca de uma moça que solicitou audiência com Mestre Eckhart, num convento dos Padres Pregadores (Dominicanos). A legenda se intitula: De uma boa irmã, um bom diálogo que ela teve com Mestre Eckhart[1].
O texto
Uma filha veio ao convento dos Pregadores e pediu a presença do Mestre Eckhart. O porteiro perguntou: “A quem devo apresentar?” “Não o sei”, disse ela. “Por que não o sabeis?” Ela respondeu: “Porque eu não sou nem uma menina nem uma mulher madura, nem um varão nem uma mulher, nem uma viúva nem uma virgem, nem um senhor nem uma serva nem um servo”. O porteiro apressou-se a ir com o Mestre Eckhart: “Vinde ver lá fora a mais estranha das criaturas, da qual jamais ouvi falar, e deixai-me ir convosco e enfiai pela portinhola a fora a vossa cabeça e dizei: “Quem me deseja?” E assim o fez. Ela falou ao Mestre assim como falara ao porteiro. “Querida criança”, disse o Mestre, “tuas palavras são verdadeiras e contundentes: esclareça-me com maior exatidão, como tu as pensas”. “Fosse eu uma menina”, respondeu ela, “estaria ainda na minha primeira inocência; fosse eu uma mulher madura haveria de gerar sem cessar na minha alma a palavra eterna; fosse eu um varão, oporia a todos os pecados uma vigorosa resistência; fosse eu uma mulher, guardaria a fidelidade ao meu amado, único esposo; fosse eu uma viúva, teria um anelo constante pelo meu único amado; fosse eu uma virgem, estaria no serviço reverente; fosse eu um senhor, teria poder sobre todas as divinas virtudes; fosse eu uma serva, manter-me-ia humildemente submissa a Deus e a todas as criaturas; e fosse eu um servo, estaria em ação no labor pesado e serviria ao meu senhor com toda a minha vontade sem murmuração. De tudo isso, nada sou e sou uma coisa entre outras coisas e ando assim por ali”. O Mestre foi e disse a seus irmãos: “Ao que me parece, foi-me dado a perceber a pessoa, a mais pura que eu jamais encontrei”.
Comentário
O mais estranho de todas as coisas estranhas nessa estória é como a jovem mulher ao ser interrogada, acerca da sua identidade, fundamenta a sua resposta “Eu não sei” dizendo “De tudo isso, nada sou e sou uma coisa entre outras coisas e ando assim por ali”. Trata-se, pois de um nada saber de si, em nada sendo de tudo isso que deveria ser, de um não saber a não ser que nada é e que é apenas uma coisa entre outras coisas e assim andar por ali a circular. A nossa tentação é exclamar: “Mas isto é uma existência de alguém que perdeu a consciência da sua identidade, de tal modo que nem sequer vegeta, mas é apenas uma coisa, um algo a perambular na vida apenas como ocorrência, alguém que é apenas um simples fato de ocorrer”. O que há de admirável, de extraordinário numa coisa dessas, a ponto de Mestre Eckhart chamá-la de pessoa, a mais pura deste mundo? E surge a questão: Que realidade é essa, a da coisa? Não é a coisa, a coisa mais indigna, degradante que se pode atribuir como característico da pessoa humana, considerar-se e ser considerada como coisa, objeto?[2] O que há de mais impróprio ao ser humano, cujo ser os medievais chamavam alma, espírito, criatura e filho de Deus, do que ser qualificado como a realização, a ínfima, a saber, de ser apenas coisa, sem vida, sem alma, sem consciência, sem espírito?
Entrementes, nós hodiernos, falando “psicologicamente”, podemos ter a sensação de entender de alguma forma a Mestre Eckhart, quando neuróticos pela exacerbação, digamos pelo cio da subjetividade da nossa consciência, emaranhados que estamos em mil e mil questiúnculas e mesquinharias das nossas medidas ensimesmadas, gostaríamos de fugir para o campo, para a floresta, para o deserto de areia e pedras, onde livres da eiva do subjetivismo, possamos serenar na neutralidade impessoal da objetividade!? Entrementes um Zarathustra que está a descer das montanhas da metafísica para o deserto da e-versão de todos os valores, ao nos ver nessa nostalgia da secura desértica da objetividade, meneie a cabeça e murmure: Será que ele não sabe que Deus morreu? Talvez o acima insinuado desejo de fuga para o deserto de coisas mortas, sem vida, sem consciência de si, para a região da coisa entre as coisas, é no fundo fuga do sentido do ser do existir humano, cujo anelo, ainda cheio de românticos eflúvios, carece e se ressente de um Deus que ainda não morreu!?