Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Solidez compactação (Härte) como ideia da Fenomenologia

05/02/2021

 

Fenomenologia[1]

Solidez-compactação (Härte) como idéia da fenomenologia

Solidez-compactação é uma palavra inadequada. Refere-se à consistência sólido-cristalina e clareza da lírica.

De imediato, aqui, nada se diz de e sobre solidez-compactação, isso porque a intuição do que significa solidez-compactação deve constituir o limite dessa meditação. E uma vez que o limite é pensado como o fim, só vem no fim da reflexão sobre o sentido.

Idéia da fenomenologia: ainda de forma indeterminada, aqui, por idéia pensa-se algo assim como concepção-prévia (Vor-griff). Fenomenologia significa então meditação (Besinnung). O título aponta portanto para um programa: a mostrar que a solidez-compactação é o fim da meditação.

No começo dessa meditação está a perplexidade. Perplexidade, pois estou aqui firmemente sentado e no entanto estou suspenso pairando numa total indeterminação. Isso porque: até essa linha eu já disse uma infinidade de coisas, fiz muitas insinuações, cheguei até a estabelecer um programa. Ali, não sei sequer o que realmente “quero”, o que eu realmente compreendo com todas essas palavras. E no entanto estou aqui sentado firme com uma infinidade de opiniões previamente compostas, aparentemente con-ceitos prontos.

Já o simples fato de que “eu estou sentado aqui nessa sala” me confunde. Pois quando pontualizo e “descrevo” esse “estou-sentado-aqui-nessa-sala”, logo percebo que isso pressupõe todo um mundo, ou melhor, mundos.

Por exemplo: Essa sala. Estou rodeado por muitos objetos. Cadeiras, sofá, mesa: sobre a mesa, cigarros, cinzeiro, o jornal de Baden. Na parede em frente a mim estão dependurados quadros: pintura moderna. Pinturas de crianças; ao meu lado, uma prateleira com alguns livros sobre filosofia, dois volumes de caricaturas. Através da janela, na névoa, vejo um jardim com manchas vermelhas indefinidas. Me pergunto um tanto disperso: serão rosas? Atrás do jardim, ao longo de um longa estrada vazia, as casas da vizinhança em cinza:  Freiburg em névoa. No plano de fundo, vaga, a floresta negra. Represento-me os arredores de Freiburg: depois toda a Baden-Wüttenberg, toda a Alemanha. Em minha fantasia o plano de fundo se amplia: toda a Europa, todo o globo terrestre, o universo, vago, obscuro, abertura infinita.

Ora: se me detenho em qualquer um dos momentos da descrição esboçada acima e tento descrevê-lo, então ando a cada vez em diversos caminhos remissivos, que me “mantêm” aberto a cada vez um mundo complexamente estruturado. Cada momento da descrição é algo assim como começo de um fio condutor. E novamente cada momento desse fio condutor é o começo de um fio condutor voltado para outra direção.

Ora, quando analiso com mais precisão esse “começo”, mostra-se que o “começo” perfaz algo assim como “fim” no sentido de um ponto de convergência. Todos os fios de remissão, que partem aqui desse “começo” desembocam por assim dizer de volta nesse ponto de convergência “fim”. Com isso, nesse movimento remissivo, tornam-se visíveis dois momentos:  um momento centrifugal e um centripetal.

A partir do movimento centrifugal, a remissão corre para o aberto vazio: o fim da remissão é o aberto, o vazio. A partir do movimento centripetal, o movimento se condensa num ponto nodal nesse objeto aqui: o fim da convergência é “isso aí”. E assim se estabelece um movimento de “vai-e-vem” correlativo, se condicionando mutuamente, “entre” o fim enquanto “aberto vazio” e o fim enquanto “isso aí singular”.

Nessa esquematização é necessário ter ciente que o discurso de “correlação”, “entre”, “vai-e-vem” é também ele uma inter-pretação. Um interpretação que está ela também num “vai-e-vem” e nesse movimento se fixa a cada vez numa direção. Também a nossa própria consideração, portanto, funciona correlativamente!

Isso significa, as palavras trazidas a nós a partir de cima, e assim a esquematização feita, já estão de princípio fixadas. Mas ao mesmo tempo abrem as diversas possibilidades de interpretação implícitas. Subo então nesse movimento centrifugal dessa esquematização, apontando as palavras em sua possibilidade de interpretação até onde posso. Todavia, logo percebo que a interpretação que fiz faz as vezes de explicação do que se tem em mente com as palavras: o que se tem em mente se condensa através da interpretação. Ademais, percebo também que o “significado” das palavras que no começo parecia ser fixo não está “fixado”. Também ele era uma das possíveis interpretações dessas palavras, uma explicação do que elas referiam. Ali se mostra algo digno de nota: o “fixo” que se atribuiu, no começo da consideração,  a um “significado” da palavra por nós compreendido,  revela ser aquilo que têm em mente as palavras: o que tem em mente (das Gemeinte) que perfaz aquele movimento convergente da unidade de sentido através de toda a torrente remissiva do movimento centrifugal.

O que se tem em mente, enquanto unidade de sentido, é propriamente nada. O que se tem em mente não é no sentido de algo ali à mão. Tampouco é algo assim como significado. Mas só há o que se tem em mente na medida em que é interpretado a partir das remissões centrifugais. A explicação como explicação do que se tem em mente também não há como algo. Só é na medida em que recebe seu  conteúdo de sentido do que se tem em mente.

O que é pois essa “realidade”? Não há resposta a essa pergunta, exatamente porque aqui se trata de “movimento” que perfaz propriamente o fundamento ou talvez a origem de cada questionar, de cada palavra, de cada resposta. Só podemos citá-lo, descrevê-lo, e ali nesse citar, nesse descrever “fazer” o movimento correlativo e pleiteá-lo (erheischen exigir) em movimentando-se.

Justamente o todo dessa “realidade” é aquilo que chamamos de “compreender”: cogito, ergo sum: ou melhor, cogitans.

Estou sentado nesse quarto fazendo diversas reflexões. Ora vejo que essa perplexidade provém precisamente da ambiguidade do movimento correlativo que chamamos de cogitans.

Então me pergunto o que é pois o sentido dessa perplexidade? Dissemos acima: estou perplexo, porque estou firmemente sentado e no entanto pairo na indeterminação. Já vejo que estou aqui sentado, que quero escrever alguma coisa sobre fenomenologia. Também vejo que haveria uma possibilidade de tomar tudo isso sem questionar, tratando tranquilamente a fenomenologia como um objeto da consideração filosófico-acadêmica ou literária, e de algum modo ir escrevendo.

Todavia, não estou contente, pois vejo novamente que posso colocar questões sobre esse “eu vejo que…”: o que é isso pois? Como é isso? Posso até perguntar sobre esse próprio perguntar e novamente sobre o perguntar da questão do perguntar, e assim por diante infinitamente. Mas ali surge ainda outro inconveniente: Por que pois devo então questionar? Por que não tomo tudo assim de modo despreocupado? E no entanto constato que questiono.

Mas nessa descrição há algo que não combina muito bem. Não sei o que é questionar. Melhor seria dizer que vejo que pergunto. Trata-se portanto de “ver”. o desagradável provém então do fato de no “ver” eu ver algo que por assim dizer está “além” desse “meu ver”. E isso quiçá em “meu próprio ver”. Pois se “faço” de “meu ver” o objeto de meu ver, o primeiro ver já não é mais tão transparente (einsichtig) como meu “ver”, que é “vendo” (seend).

Uma observação precisa, porém, mostra-me que esse ver “transparente” enquanto vendo, possui a mesma estrutura do que o “cogitans” acima mencionado.

Esse vendo é tão próximo a si mesmo que não tem nenhuma distância de si mesmo. Esse vendo não pode mais ser feito questionável, justo porque perfaz a “enti-dade” do questionar. Esse vendo é portanto autoevidência.

Ora, agora percebemos que todo o tempo, enquanto fazíamos diversas descrições ao correr dessas poucas páginas, procedíamos sempre “vendo”. Esse vendo era nossa pressuposição. Pressuposição porque propriamente não era nenhuma posição, justo por ser evidência.

Agora sei de forma um pouco mais precisa o que quero propriamente. Quero tornar tudo como “vendo”, ver tudo de forma transparente na autoevidência. Essa autoevidência como “vendo” e precisamente o que perfaz a “fenomenalidade” de um fenômeno. Algo só é “fenômeno”, no verdadeiro sentido da fenomenologia, se chega a ser “vendo”. E quando quero escrever sobre “fenomenologia” isso significa simplesmente que quero escrever sobre a teoria desse “vendo”. Mas uma vez que essa teoria e meu próprio escrever é também por sua vez “vendo”, quero escrever simplesmente “sobre” meu próprio “vendo”, e quiçá “vendo” tudo isso!

Mas aqui surge uma questão: será possível, como tal, escrever sobre “vendo”? Isso porque se o vendo só é “vendo”, escrever sobre isso é transformá-lo em objeto. Transformar o “vendo” em objeto é pois colocar algo “além” do “vendo”. Todavia, o “além” do “vendo” não é autoevidente.

Essa questão pressupõe então algo que não pertence à essência do “vendo”. “Vendo” não é aqui um algo à mão, ao qual podemos aplicar as categorias “aquém” e “além” como “interior” e “exterior”. “Vendo” refere-se, antes, àquela autoproximidade  do cogito, como o todo do movimento correlativo, não mais na interpretação fixada unidirecionalmente, mas por assim dizer “em e para si”: nesse sentido, até o falar “sobre o vendo” pertence ao próprio “vendo” como um momento constitutivo do próprio vendo.

Para tornar isso um pouco mais claro, tento aqui reproduzir as reflexões de Husserl com minhas próprias palavras.

Em suas preleções de Göttingen: “A idéia da fenomenologia (Introdução às partes principais da fenomenologia e crítica da razão) de 26.04 – 2.05 de 1907, Husserl analisa a questão do atingimento certeiro (Trifftigkeit) de meu conhecimento.

Colóquio: Conceito e imagem

Protocolo da segunda reunião de 21 de Novembro de 1963 (das 20:15 até 23:30)

Expositor: Senhor Gross.

Tema: Cinco figuras da morte em Ernst Barlach.

O modo exterior do procedimento da reunião: inicialmente o Sr. Grosso nos apresentou um conceito prévio da morte: depois foi exposto respectivamente um quadro de Barlach seguido de uma breve descrição feita pelo Sr. Gross. Logo em seguida, após cada respectivo quadro mostrado seguia-se uma discussão e diálogo dos participantes.

Nessa reunião foram mostrados sobretudo três quadros: Um desenho: morte agachada; duas esculturas: a morte; morte na vida (ou morto na vida).

Método e meta: Sem opinião preconcebida ficamos olhando detidamente para o quadro; deixamos a obra repercutir em nós; depois, tateando, descrevendo, através do diálogo e do debate, tentamos fazer surgir em nós o conteúdo essencial da obra. E uma vez que as imagens eram uma expressão imediata da morte, a essência que deveria surgir em nós era morte. Junto com esse surgir da morte deveria também mostrar-se a essência da obra de arte, justo porque a morte adensou-se na obra. Mas, uma vez que a obra de que estávamos “tratando” na reunião era uma imagem, deveria também surgir igual e juntamente a essência da imagem. Morte, obra, imagem eram portanto nossos assuntos de interesse. Todavia, não puderam ser tratados separadamente ou de forma especificamente temática, justo porque na morte, na obra e na imagem, estava em questão o mesmo:  eram por assim dizer três concreções de uma e a mesma coisa, de forma que a clarificação de uma significava igualmente a clarificação das demais. Mas, mesmo de forma indeterminada e intrincada, as discussões da reunião agruparam-se em torno desses três momentos: morte, obra e imagem. Ali, nosso interesse principal continuou sendo sempre “a imagem” (ou o conceito) com seus problemas e questões, discutidos ainda na primeira reunião.

Agora reproduzo brevemente o conteúdo de nossas discussões: e isso no seguinte esquema: a) Alguns traços essenciais dos elementos da imagem por nós descritos da respectiva obra; depois, a título indicativo, a essência da obra que se mostra nesses elementos da imagem: morte. b) Os problemas, surgidos a partir da discussão sobre a morte: morte, obra e imagem.

O conceito prévio sobre a morte, dado pelo Senhor Gross: Morte é um fenômeno especificamente humano: atinge o núcleo do homem: como im-possibilidade de seu si-mesmo.

  1. Quadro: a morte acocorada: A morte está densamente junto ao homem. Toda a configuração da morte, de forma indeterminada, vestida de forma discreta como um vagabundo ambulante, formando um novelo de sinais inapreensível que atua como plano de fundo da figura de um homem e parece ao mesmo tempo crescer surgindo a partir dos pés do homem, fortemente demarcados, com muita clareza e até pesadamente, como que de uma raiz. Dessa indeterminidade, a face e depois os gestos das mãos surgem estranhamente claros em sua indeterminidade: a esquerda ergue o boné para o cumprimento; a esquerda mantém o joelho na postura de alguém agachado. Os traços não-nítidos, confusamente vacilantes do rosto são um único sorriso irônico indefinido: um tanto irônico, simpático forçado, malicioso, afiançamento banal de um colega bastante conhecido no cotidiano; seu olhar paralelo espreitante diz: “Já estou aí, sempre estive, espero que tu despertes!” O gesto da mão direita, erguendo o boné em cumprimento, responde com afiançamento evidente e natural ao olhar fixo do homem petrificado de terror: “Eu sempre já estive aqui; por que queres fugir, eu sou pois tu mesmo! Por que te aterrorizas?”

A impressão da morte em sua totalidade: a proximidade para com o homem; nada de ameaçador, nenhum ataque, nenhuma aproximação, mas evidência parda solta, cotidianidade, afiançamento pardo: é o caráter-aí da morte. E o horrendo na morte é precisamente essa evidência parda e auto-proximidade.

O homem é desenhado com traços bem demarcados e firmes. A parte superior do corpo se avia a ir embora assustada. Esse “aviar-se para ir embora” é paralizado pela parte inferior do corpo, pesada e maciça, de tal modo que o “aviar-se embora” torna-se igualmente num “denso-permanecer-aí-rígido”. A parte inferior do corpo do homem está numa proximidade tão junto dos pés da morte, que o homem e a morte parecem por assim dizer surgir e erguer-se a partir de uma e a mesma raiz, ou, dizendo com mais precisão, os dois estão plantados no mesmo lugar. A postura estarrecida do homem, os olhos fixos vidrados, expressam imediatamente um pavor, um horror. Mas esse pavor não é um medo-de, mas algo como um pânico voltado para dentro e ao mesmo tempo daí proveniente, assim como a distância “zero” do “súbito” do despertar repentino. No decorrer vazio impotente do pânico, o homem procura criar distância entre ele e a morte. Mas a morte sorri ironicamente e, cumprimentando: “Não corra, eu sou apenas essa distância zero de ti mesmo!”: O pavor do homem é autoconsciência como pavor de si mesmo. O que se mostrou como caráter do aí, na figura da morte, se mostra aqui como a estreitamento do cada-vez-meu: como angústia.

Todos os elementos pictóricos dessa primeira obra, portanto, encaminham-se na direção do cada-vez-meu. Mas o cada-vez-meu se mostra na forma da morte como caráter-aí e na figura do homem como estreitamento. Nesse sentido, enquanto autoidentidade de distância zero, a morte não é um fenômeno-parcial do homem, mas a possibilidade total do homem, tão total que temos de designá-la como im-possibilidade.

  1. Imagem: A morte. Bronze. Consiste de três imagens, à esquerda mulher, à direita homem, no meio, a moribunda (figura). Cada figura expressa uma possibilidade fundamental de comportar-se diante de e na morte:

O homem: paralizado e desconcertado, numa expressão de “não-saber-o-que-fazer-com-isso”, de “sentir-se-chocado”; ele olha igualmente apavorado e por assim dizer como que pasmo. É um “não-apreender” a-distanciado, negativo da morte.

A mulher: mostra um “entregar-se” positivo,  um “posicionar-se-frente-a-ou-contra”; aqui se expressa mais liberdade, vontade, espontaneidade, mais luta por ou contra…

Ali no meio entre eles, como um centro de equilíbrio e solução sintética dos dois pólos contrários, a moribunda.

O todo do cenário não é uma composição de três elementos parciais separados, mas por assim dizer uma unidade forjada numa fundição: o centro dessa unidade é a moribunda, na direção de que estão voltadas as duas figuras do “como” “contraposto” da morte e a partir donde recebem seu conteúdo. A moribunda como centro e meio equilibrador é também igualmente um “como” da morte, apenas que esse “como” é por assim dizer o lugar privilegiado onde a morte jorra de forma mais densa (mas não gradual!) como essência dessa obra. O que é propriamente essa “essência” não foi determinado mais explicitamente.

  1. Imagem, Morte na vida (ou morto na vida): Madeira. Uma figura esguia de homem. O tronco coberto por um manto tem em si algo de rígido de sarcófago, de múmia, algo disforme. Do tronco crescem as mãos, algo ainda rígido mas um pouco mais livre, como o cálice de uma flor. Dessas mãos em forma de cálice floresce a face do homem, que expressa a serenidade, repouso do espírito, claridade da postura interior.

Poderíamos reproduzir a impressão total que nos dá a imagem, mais ou menos assim: A figura rígida  como madeira se abre através das mãos, a partir da necessidade de proteção e do estreitamento da angústia, titubeante, tateando, esperando, e depois com esperança para a abertura libertadora do rosto como luz.

Também aqui, tronco, mãos e rosto formam uma unidade fechada do ser-singular. A rigidez do tronco e a leveza do rosto livre não estão em contraposição e tampouco em correspondência. Tronco, mãos e rosto são por assim dizer momentos de densificação de uma e a mesma coisa: são três elevações de uma unidade singular indizível que se elevam para a luz. Mas essa elevação não pode ser compreendida como uma elevação ou como um enriquecimento gradual, pois o “todo”:  morte-singular está em cada momento de densificação toda e completamente presente, em sua plenitude total, embora como plenitude diversamente con-dicionada. O que é esse “todo: morte-singular” não foi explicitado com maior precisão.

A partir dessas descrições das três figuras e da tentativa de determinar a essência da morte através delas, acabaram surgindo questões, discussões sobre morte, obra e imagem.

  1. a) A partir da primeira imagem “morte agachada” a essência morte se mostrou como o caráter do cada vez meu do ser-si-mesmo. Com isso a morte se tornou na essência do homem pura e simplesmente: como im-possibilidade do ser humano. Embora a “reação” do homem já expresse um despertar para o autoespantar-se, e uma vez que seu estático “não-saber-o-que-fazer-com-isso” já parece denunciar um traço de “inautenticidade”, surgiu a questão: como se reporta essa inautenticidade como o verdadeiro autoespantar-se da autoconsciência? Também essa “inautenticidade” pertence à essência morte? Se sim, como? Como modo deficiente? Ou como pólo contraposto? Ou como um momento constitutivo essencial? A resposta a essa questão foi dada na discussão sobre a figura 2 e 3: Assim como homem, mulher e a moribunda na figura 2, dorso, mãos e rosto na figura 3 como momentos de densificação constituem uma singularidade essencial fechada, assim também a “inautenticidade” pertence à essência morte como seu momento constitutivo. Também foi dito que “inautenticidade” seria algo assim como o ponto de partida para a essência morte, de tal modo que a “inautenticidade”, por assim dizer, perfaria a respectiva situação onde a autoconsciência viria à concreção.
  2. b) A segunda imagem “A morte” e ainda mais a 3. imagem “morte na vida” nos mostraram o momento de luz libertador da morte. E uma vez que na primeira imagem parecia faltar esse momento, perguntamos: no primeiro momento, onde está esse momento, que pertence propriamente à essência morte? Ali logo surgiu a questão de como se relacionam as três figuras entre si: Sem tratar mais de perto a primeira questão, foi dito em relação à segunda questão que a imagem “Morte na vida” conteria a síntese da primeira e da segunda imagem. A saber, o autoespanto como estreitamento rígido da angústia na primeira figura, e a figura da moribunda entregue, solvida, “fazendo as vezes” de meio de equilíbrio, na figura 2, na singularidade fechada “torso (angústia)-mãos, (esperança)-rosto (luz)” são “trazidos” em unidade-densidade da terceira imagem.
  3. c) A primeira imagem nos mostrou a morte como autoespanto da autoconsciência e isso como caráter de ser cada vez meu.

A imagem 2 nos mostra três momentos essenciais da morte,  formada por homem, mulher e moribunda.

E uma vez que o cada vez meu, em sua concreção, só diz respeito ao indivíduo, e visto que na 2. imagem as três figuras formam por assim dizer uma comunidade, colocou-se a pergunta talvez um tanto assossiativa: como na primeira imagem a morte só está referida ao indivíduo e a morte na imagem 2 se refere à comunidade entre si?

A indicação da resposta, que não foi detalhada mais de perto, soa mais ou menos assim: A morte como autoespanto significa angústia e angústia é cada vez minha. Mas a essência do cada vez meu não consiste primordialmente no fato de dizer respeito apenas ao indivíduo, mas no fato de que ela possui uma estrutura de autoidentidade todo própria. Essa “estrutura” de autoidentidade ou da autoproximidade caracteriza pois todo ser e essência que dizem respeito ao comportamento e à vida humana, como por exemplo, fidelidade, decisão, amor, ódio etc. A autoproximidade, que se anuncia “negativamente” no autoespanto e por assim dizer “solipsisticamente” no cada vez meu, nada mais é que o condicionamento da essência da inter-relação comunitária: através da morte, portanto, o homem torna-se homem e quiçá como homem comunitário.

  1. d) A questão acima mencionada, como se comportam entre si as três figuras descritas, aviou uma discussão sobre a essência da obra de arte.

Perguntou-se: Será justificável até colocar uma tal pergunta, uma vez que a obra de arte é sempre uma expressão singular da essência. Argumentou-se: A essência é sempre uma e a mesma. Não se deixa dividir em partes ou em pedaços. Se é assim, então cada obra é radicalmente singular. Mas como é possível falar-se de diversas obras, que devem expressar a mesma essência? Como é possível comparar entre si as diversas obras singulares?

De princípio: Como determinação negativa da obra de arte, se disse: a obra não é uma expressão mediadora de uma essência,  não é uma respectiva “vestimenta” de uma e da mesma essência. Pois não haveria separação entre essência e obra.

Essência e obra formam uma unidade singular tão fechada que nem sequer poderíamos dizer essência e obra.

Depois tentamos definir obra como a respectiva situação onde se faz presente a essência. Nesse sentido, a respectiva obra, enquanto situação, seria um momento essencial de uma obra de arte. Mas visto que essência não é uma coisa separada da situação e visto que  essência e situação  formam, por assim dizer uma “unidade-isso-aí” radicalmente fechada, também afirmou-se que entre diversas obras de arte não haveria nenhuma correspondência, nenhuma contraposição, nenhuma comparação de uma e a mesma essência, no sentido usual. Isso significa também que não haveria nenhum enunciado mediador sobre obra de arte, de tal modo que obra de arte só poderia ser “compreendida” no fazer criativo ou no contemplar criativo. Isso significaria que nossos esforços em “descrever” a obra de arte (quadro), de “apreendê-la” em conceito seria uma expressão da impotência de nosso pensar (sistema conceitual, estrutura horizontal etc.).

Aqui porém se apresenta uma interessante sugestão de solução. A  impotência do pensar só se mostra quando coloco o conceito singular como algo que deve transmitir para mim algo diferente do que transmite (mostra) para ele.  Todavia, a essência do conceito não pode ser ‘compreendida’ quando a retiro de todo o “sistema”, considerando-a restrita em si mesma. Isso porque o “sistema” completo dos conceitos, ou seja, nosso pensar é um todo vivo que se clarifica mutuamente. E nesse sentido, nenhum conceito é mediador, mas, antes, clarificador, ou dizendo melhor: em cada “conceito” a totalidade e o conjunto de todos os conceitos vêm de algum modo à presença.

Com isso, indicou-se que talvez a essência do conceito apresente uma estrutura semelhante, se anuncia na obra (no nosso caso, no quadro). Deveríamos dizer que a essência do conceito é imagem? Poderia bem ser que imagem e conceito experimentem ainda mais uma clarificação mútua.

  1. e) A partir do caráter “isso-aí-singular” da obra, conquistamos uma definição essencial para a essência do quadro: Dissemos que aquela imediaticidade da obra de arte, que concede à obra aquele caráter de fechamento e autoidentidade, é precisamente o que perfaz a imediaticidade da imagem. A imediaticidade da imagem, portanto, não tem tanto a ver com “intuição”, mas mais com o “caráter-do-cada-vez-meu” da morte como autoidentidade.
  2. f) A discussão sobre essência da obra enquanto “isso-aí-singular” trouxe consigo também a questão: Onde se encontra a continuidade das diversas obras, que devem ser expressão da mesma essência, por exemplo, da morte? Procurou-se responder a questão com a palavra “enriquecimento”. Mas “enriquecimento” em que sentido? Um “enriquecimento” numa elevação gradual foi recusado justo porque a essência está sempre presente de forma completa e radical em cada obra de arte.

Foi dito que: um “enriquecimento” no sentido de que cada obra singular se clarifica mutuamente e numa comunicação viva vem cada vez mais “intensa” junto a si mesma, enriquecendo assim todo o espaço: obra de arte. Aqui tornou-se visível uma estrutura semelhante, que “determinamos” acima para o pensar, enquanto essência do conceito.

Mas uma vez que já era muito tarde, interrompemos a discussão sem adentrarmos com mais detalhes nessa importante pergunta.

Resumo:

Alguns traços essenciais dos elementos da imagem que consideramos:

  1. Morte acocorada: A morte abaixada de cócoras junto ao homem; a parte inferior do corpo do homem está numa tal proximidade com os pés da morte que o homem e a morte, por assim dizer, parecem surgir e crescer a partir de uma e a mesma raiz. Daí surge: a proximidade, ausência de distância. De imediato entre a parte superior da morte e a parte superior do homem, se dá uma fenda abissal, que parece separar radicalmente a ambos: o caráter retraente da morte. Todo o conjunto da impressão do rosto e dos gestos da morte mostram: afiançamento, espera, fantasmaticidade, ironia, impotência, passividade, autoevidência parda.

Os gestos do homem que puxa uma coberta sobre si aponta para um caráter desnudante da morte: ela desnuda nossa dimensão mais profunda. O homem procura albergar-se contra a morte e ocultar a morte de si. Toda a impressão do rosto e da postura do homem aponta para o autoapavoramento como autoconsciência.

  1. A morte: Consiste de três figuras, à esquerda mulher, à direita o homem, no meio a moribunda (figura): Cada figura expressa uma possibilidade fundamental do comportamento frente e na morte: “não apreender” passivo, o homem; “abandonar-se” positivo, a mulher; entrega resoluta, a moribunda.

O todo forma por assim dizer uma unidade forjada numa fusão: Mas essa unidade mostra em si um movimento dialético interno: homem e mulher são por assim dizer subsumidos no centro resoluto, equilibrador (a moribunda) formando juntos um movimento côncheo para “cima”; a moribunda é o lugar de irrupção desse movimento para cima, algo assim como o cume de um anelo. A figura mostra também o caráter unitivo da morte, que se constitui por assim dizer como ligação da comunidade interna entre os seres humanos.

  1. Morte em vida: uma figura esguia de homem; consistindo de tronco, mãos e rosto. Poderíamos reproduzir a impressão geral dessa figura do seguinte modo: a figura tesa e rígida  se abre através das mãos, a partir da necessidade de proteção e a partir do estreitamento da angústia, cambaleante, tateante, esperando e depois em esperança na abertura libertadora do rosto como luz. O movimento dialético e sua unidade vêm à lume aqui de forma ainda mais clara: tronco, mãos e rosto, formam uma elevação que se abre à luz, elevação de uma unidade singular indizível.

A partir das descrições das três figuras e a partir da tentativa de determinar a essência da morte através dessas, surgiram questões e discussões.

Brevemente algumas questões que discutimos

  1. A partir da primeira imagem “a morte acocorada”, a essência morte surgiu como autoproximidade, como autoconsciência. A “reação” do homem mostrou-se porém como um “não-saber-o-que-fazer-com-isso”. E esse comportamento nos pareceu como se fosse um traço de “inautenticidade”. E assim surgiu a questão: Como se reporta essa inautenticidade com a autoconsciência autêntica? Será que também essa “inautenticidade” pertence à essência morte? Se pertence, como? Como modo deficiente? Ou como pólo contrário? Ou como um momento essencial constitutivo?
  2. A segunda imagem, “a morte”, e mais ainda a terceira imagem, “Morte na vida”, nos mostraram o momento iluminativo libertador da morte. E uma vez que parece faltar esse momento na primeira imagem, perguntamos: Como se relaciona essa imagem com as outras duas imagens?
  3. Essa questão de como se relacionam as imagens entre si pressupõe uma questão muito importante, não analisada. A questão diz respeito à essência da obra. Num esquema, poderíamos formular a questão do seguinte modo:

Sobre a essência da obra, temos duas teses, que parecem pertencer essencialmente á obra, e no entanto se contrapõem mutuamente.

  1. Tese: Todas as obras são uma obra da essência.
  2. Tese: Cada obra é a imagem da integralidade da essência.

Ora: Se todas as obras são uma imagem da essência, então as obras remetem uma à outra; têm uma pertença mútua; precisam umas das outras; cada obra tem portanto uma abertura para com as outras.

Todavia, se cada obra é imagem da integralidade da essência, então cada obra se fecha para dentro de si, formando uma singularidade fechada, autosuficiente, não precisa da outra obra, não tem abertura para com outras.

Prof. Rombach – A filosofia e o sadio senso comum (15.12.1955)

  1. Filosofia não se faz por si mesma. Temos de nos trazer para diante dela e propriamente iniciá-la, enquanto filosofia.

(4) Deixar encontrar algo num horizonte mais universal significa: expor essa coisa… Aproximação é o que propriamente acontece no expor (Vorstellen).

A filosofia não tem um âmbito mais universal. Ela é para si mesma o mais amplo nexo contextual. E portanto também não pode ser representada (vorgestellt).

A filosofia não é conceito e não tem âmbito, irrepresentável e impensável: portanto uma não-coisa (Unding), que não é e não pode ser. Não há filosofia. (5) Mas: Isso não é precisamente a afirmação do sadio senso comum? (posição 1).

(7) Para poder começar – para sequer poder ser – deve ser possível haver para a filosofia uma posição que seja igualmente fora e não fora. Essa posição que é abertamente uma condição essencial concebe a filosofia – e quiçá a partir de Espinoza com uma expressividade cada vez mais crescente – sob  a categoria do autoestranhamento. Enquanto homens, vivemos propriamente na totalidade e plenitude da verdade. Isso que aparece no fundo é o absoluto e o próprio ser.  Deus sive natura. Mas de imediato e usualmente só nos aparece o ente – e isso apenas parcialmente.  Isso só é possível porque  o espírito restringe a si mesmo e aliena a si mesmo, tornando-se para si sua própria presilha. A partir (8) da claridade de uma visão originariamente pura da límpida origem de toda visibilidade, do agathon, encontramo-nos transladados para as sombras e nas trevas do sadio senso comum. Por isso, é importante encontrar o caminho de volta dessa estranheza para a pátria do pensar. A imagem a mais perene desse estado de coisas nos é dada por Platão na assim chamada “alegoria da caverna”.

A filosofia começa efetivamente no natural e no cotidiano do sadio senso comum. E isso lhe é possível e ela encontra o caminho para lá porque o próprio sadio senso comum já é filosofia; apenas que ele não pensa nisso. O solo da naturalidade não é assim tão natural pardamente evidente, é determinado e formado por decisões metafísicas fundamentais esquecidas e de certo modo petrificadas. O raso e firme das pressuposições triviais do sadio senso comum são abissais em sua questionalidade.

(9) Filosofar significa então: reascender para o fundamento do saber natural do mundo, suspensão das pressuposições ontológicas, autoesclarecimento de um conhecimento ingênuo – postura, aviar um questionar enrijecido (posição 2).

(10) O que perfaz a essência da compreensão trivial não é essa ou aquela  tese, mas a trivialidade, com a qual manejam-se essa e outras teses. O característico aqui não é o  intraduzível dentro do sadio senso comum, mas apenas seu ser traduzido. O esquecimento das teses não é ele próprio novamente uma tese. – Suas bases de compreensão se modificam com a história, mas o sadio senso comum continua sendo o que é.

Mas se é assim, então, o sadio senso comum desaparece na tradução filosófica; em todo  caso não ao modo de ser subsumido na filosofia, mas de tal modo que se dela esvai. –

(11) Será isso uma pena? Além disso, devemos ainda saber o que seja o próprio esquecimento? – Nós precisamos, sim. E quiçá porque a filosofia, segundo sua própria possibilidade, se concebe como a clarificação da posição que é determinada em sua essência pelo esquecimento. Se o esquecimento ficar incógnito, também a filosofia permanece questionável… – Assim, agora estamos diante de uma posição 3, segundo a qual não há filosofia no modo como ela se compreende inicialmente, pois o autoesclarecimento é desconhecido a si mesma e isso significa trivial. A frase “trivialidade é metafísica” se torna em “metafísica é trivial”. – Mas uma tal frase só pode ser tomada entre parênteses. Ela continua ambígua enquanto não vermos o sentido distinto de “trivial”. Significa por um lado: superficial e autoevidente; por outro: abissal e em última instância desconhecida. Ousamos formular também uma tal frase para avançar com força rumo a um problema (12) que ainda não foi liberado em todos os seus aspectos.

O esquecimento precede todo fechar-se e todo ater-se-a-si e já é sempre dado e acontecido, quando nos comportamos para com esse e aquele e para conosco mesmos. – O esquecimento não brota de um sentido leviano, mas em toda sua ineludibilidade aponta rígido e mudo para uma necessidade, à qual seguramente obedece a seu modo. A indicação muda, em seu modo silente da filosofia nos dá algo a pensar. O que poderia ser isso que foi encarregado ao pensar a não ser a necessidade à qual o Dasein natural do homem já não mais fala?

Toda necessidade traz consigo uma lei. A lei estabelece o que tem de acontecer.  O acontecer tem sua verdade através dessa necessidade e nessa lei. Assim, o esquecimento tem sua verdade, que não é a verdade da filosofia… o esquecimento não é apenas esquecível; a trivialidade não é apenas trivial. Tem em si mesma uma necessidade e profundidade próprias.

… Assim, por exemplo, revela a arte de um modo que não nos pode ser revelado originariamente por nada além da arte. É verdade que podemos trazer para perto de nós aquilo que está na obra de arte, interpretando-a de diversos modos… Mas isso tudo só frutifica se já antes tivermos claro o que é o artístico da obra de arte… Pintar e poetar decidem eles próprios sobre o que é arte e cria ainda os limites e o espaço de seu próprio criar. Dá a si mesmo sua verdade, ou seja, seu horizonte.

(14) O mesmo se aplica ao político, ao religioso, ao econômico ou à teologia; aqui, desde Tomás, o princípio de que Deus não é conhecido “per suam essentiam” e pode ser explicitado filosoficamente, está do ponto de vista ontológico determinado suficientemente. Aqui a filosofia se impõe seus limite; aqui houve, provavelmente, também no princípio a necessidade de pensar em geral o problema do limite da razão especulativa. É por isso, também, que de Tomás a Kant não há lá tanta distância – e ali vemos uma base por que ambos deixaram o factum brutum do sadio senso comum em sua faticidade.

O próprio de outras verdades permanece fechado à filosofia. Dali, brota sua tarefa de fixar e manter para si mesma a diferença de verdade em relação a essas. A filosofia da arte, por exemplo – se quiser fazer jus a seu nome – deixa a arte para a arte, liberando-a assim para sua própria história.

Essa liberação de modo algum é um comportamento passivo. O liberar exige – e essa exigência precisa ficar clara filsoficamente. As exigências da liberação são as condições sem as quais a arte não pode ser arte, e isso significa: sem as quais ela não pode dar a si mesma, historicamente, sua essência. Deixar sua verdade à arte, ao Estado, à religião não significa precisamente um desinteresse, mas um engajamento próximo e direto nelas e um intenso trabalho.

(15) O esquecimento obedece a uma necessidade e está sob um verdade própria. A necessidade perfaz, portanto, o poder-ser-verdadeiro da filosofia.

(16) O que está implicado propriamente nessa necessidade? … essas reflexões vão na linha de preparar a problemática do problema, ou seja, preparar o lugar certo da questão, o modo e a maneira como se deve perguntar aqui. … se ela (a questão) deve poder ser pensada como uma questão filosófica, então a filosofia deve compreender-se de modo diverso do que se fosse a clarificação de uma compreensão, cujo modo de ser é concebido pelo próprio clarificar. A questão é saber se é possível uma filosofia que coloca como sua base a visão de que a origem do poder-compreender é uma presencialidade que não pode ser compreendida a partir do compreender, mas que tem de ser compreendida se quisermos conceber o próprio compreender.

Na necessidade originária, que é originária porque é a origem do poder compreender, o homem tem clareza de si mesmo de um modo que, nela medido, toda autoclarificação é escura e enigmática. Só pode clarificar a si mesmo aquele ser que antes já se responsabilizou e tomou a si mesmo sob seu encargo. Ter-se encarregado de si significa: vir diante de si mesmo. Vir diante de si mesmo significa: ser mostrado. – essa mostração está desde o fundamento dentro de uma outra luz. Essa luz é aparentemente tal que não apenas mostre o homem,  mas mostrando-o gera-o.

(17) Estar assim na luz é uma necessidade. Usualmente e via de regra chamamos a essa de: finitude. Com esse nome, atesta-se uma essência, um ser que não é a partir de si mas apenas em virtude de seu encarregar-se. Esse encarregar-se não designa naturalmente uma propriedade, anexa a um já-ente. Tampouco se refere a um modo de ser… Antes, poderíamos dizer: a responsabilização aclara a si mesma, por ser o próprio ser-clarificado (a mostração).

Mas isso tudo é concepção prévia;  quiçá necessária – mas também tal que se enleia em si mesma e se obscurece. Mas aqui também só pode provir o tanto que a finitude presente na responsabilização se retrai ao pego (Zugriff) direto da filosofia – e que é ela por fim que de modo tácito dá a compreender um limite à filosofia através do sadio senso comum. Perfaz a essência do esquecimento que constitui o começo e o fim do esclarecimento filosófico.

A filosofia não alcança inclusive para além desse fim, será que pelo menos não alcança até ele? Isso significaria que o fim pode ainda tornar-se um tema da filosofia. É claro que não de tal modo que ela só falasse desse fim, assegurando a si mesma de saber disso. Mas de tal modo que ali ela reconhece a base e a possibilidade do aclaramento de seu ser e de seu si-mesmo. – será que é possível pelo menos isso?

Isso dependeria, seguramente, do fato de saber se ela é capaz de ultrapassar a parda autoevidência – num sentido amplamente idealístico. Será que ela pode isso?

[escrito a lápis: exposição de seminário, expositor: harada]

Ser e manifestação (Erscheinung)

Fenomenologia significa literalmente ciência de fenômenos. Em suas obras tardias, Husserl caracteriza a fenomenologia muitas vezes como autoreflexão (Selbstbesinnung).

Autoreflexão significa autodemonstração, algo assim como movimento interno de aproximação ao si-mesmo. Como tal, fenomenologia, enquanto ciência de fenômenos, a descoberta da possibilidade fundamental de meu si-mesmo como automanifestação. A apreensão mais precisa do conceito manifestação ou fenômeno é uma das condições para uma melhor compreensão da fenomenologia como autoreflexão.

O objetivo desse protocolo é um esclarecimento do conceito de fenômeno por assim dizer para mim mesmo.  E isso numa delimitação bem definida.

Sobre fenômeno, diz Husserl: “Também outras ciências, conhecidas de há muito, voltam-se para o fenômeno. Assim, designa-se a psicologia como uma ciência do psíquico, a ciência da natureza como uma ciência das “manifestações” ou fenômenos físicos; ao mesmo tempo, oportunamente, na história se fala do histórico, na ciência da cultura, de fenômenos culturais; e de modo semelhante para todas as ciências do fenômeno, e seja qual for o significado que possam ter,  é certo que também a fenomenologia está referida  a todos esses “fenômenos” e de acordo com todos os significados: mas numa postura totalmente diversa, através da qual todo e qualquer sentido de fenômeno que encontramos nas ciências que conhecemos de há muito de certo modo se modifica. É só assim modificado que ele adentra na esfera fenomenológica” (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. I. Buch, Einleitung).

Essa modificação acontece na redução fenomenológica.

O que é esse modo determinado do sentido modificado de fenômeno? O que significa “fenômeno” segundo a redução fenomenológica?

Para aproximar-nos um pouco da resposta a essa questão, gostaria de tentar realizar a redução fenomenológica, como ela aparece[2] pela primeira vez de forma expressa nas cinco preleções de Husserl em sequência da meditação sobre a dúvida descartiana.

Husserl começa sua reflexão com uma pressuposição. Essa pressuposição é sua situação histórica como um determinado modo de concepção de sentido.  Husserl chama-a de postura (Haltung) natural.

A postura natural é caracterizada como:  eu vivo voltado para as coisas.

O ser-voltado-para-as-coisas pode ser de diversos modos: Por exemplo: frente a uma flor, um bebê, uma criança, um vendedor de flores, um botânico, um pintor etc.

À multiplicidade de impostações “frente” à flor corresponde uma multiplicidade de concepções de flor.

A postura natural como o começo da reflexão fenomenológica, em nosso caso, é a postura do botânico: a saber, a postura científica[3].

A essa postura, corresponde como sua concepção de ser, o mundo como mundo-coisa. Husserl chama-o simplesmente o mundo.

De imediato, a fenomenologia é fundação e esquadrinhamento da ciência do mundo[4]. Ali a fenomenologia des-cobre o caráter de delimitação (Beschränktheit) da postura natural científica (correlativo do mundo) forçando a vir à luz com isso uma nova dimensão “mais profunda” e mais abrangente (mundo), que embora estando sempre presente, estava encoberta. Husserl designa essa nova dimensão de: Subjetividade transcendental.

A subjetividade transcendental é pois a fonte originária do fenômeno no sentido fenomenológico.

A redução fenomenológica é o desencobrimento dessa nova dimensão. Mais que um desencobrimento, ela é uma irrupção. Como tal, ela  só pode ser “compreendida” em sua essência e em sua abrangência quando nós mesmos “através” da redução chegamos à irrupção da subjetividade transcendental.

Enquanto irrupção, “ela começa” ali onde acaba a ciência do mundo, ou seja, para que cheguemos ao desencobrimento da nova dimensão temos de ter percorrido o caminho do “estar-voltado-ao-mundo” até que o caminho que antes trilhávamos tenha findado sob nossos pés[5]. Isso quer dizer: a redução fenomenológica é de princípio o trabalho de esgotar. Enquanto trabalho, tem de ser prestado. Trabalho só pode ser “compreendido” no próprio trabalhar.

A redução fenomenológica como trabalho de esgotamento do mundo começa em diversos locais: por exemplo, na teoria do conhecimento, nas investigações lógicas,  na psicologia etc. Como tal, executa (ou deveria executar) seu trabalho, porém, sempre até esgotar minha real possibilidade atual, até que a estrutura total do mundo, pelo menos em sua formalidade abstrata, se torne visível. Aqui não é possível prestarmos esse trabalho.

Ora, isso tem uma grande desvantagem: quanto menor esse trabalho de esgotamento, tanto mais abstrata e formal será nossa “compreensão” de redução.

Mas aqui não buscamos alcançar mais que uma concepção prévia formal da redução fenomenológica.

De princípio uma breve observação sobre a interpretação do discurso sobre a fenomenologia. A redução fenomenológica como desencobrimento da dimensão transcendental já foi realizada quando Husserl fala dela. Ou seja: A consideração sobre a redução fenomenológica já “funciona” sempre, de algum modo, a partir da subjetividade transcendental.

A execução e a exposição da redução tem a tarefa de tematizar essa subjetividade transcendental elaborativa. Mas o discurso que se usa para isso se move na postura natural, no mundo. Significa de imediato sempre algo no mundo.

Mas ao mesmo tempo, nesse dizer, ela tem em mente a subjetividade transcendental e a partir daí retoma para a proximidade seu conteúdo de sentido para a compreensão concreta da subjetividade transcendental que se tem em mente. Ela caminha portanto uma via semelhante com a procissão de primavera de Echternach: Vai e volta[6]. Esse movimento deve ser observado na interpretação do texto de Husserl.

Antes, porém, de começarmos com a meditação sobre a dúvida, portanto, com a execução da redução, temos de adiantar uma consideração preparatória sobre a ausência de pressupostos na fenomenologia.

No começo da fenomenologia de Husserl postula-se a exigência de não haver pressupostos: colocar tudo em questão, nada aceitar sem exame.

Qual é o sentido dessa pretensão?

Se começo uma meditação com a firme decisão de não deixar nenhum pressuposto inanalisado, inicio com todo tipo de “pressuposição”: por exemplo, que a pretensão de falta de pressupostos é uma norma ou a norma válida para o começo da meditação;  que posso examinar as pressuposições segundo um parâmetro não-pressuposto. Que estou sentado nessa sala, que faço perguntas; emprego palavras como “que”, “eu”, “aqui”; cada uma dessas palavras pressupõe um ou talvez diversos mundos culturais complexos; essa sala; diversos objetos que me circundam; pela janela, vejo um jardim com manchas vermelhas indefinidas. Atrás do jardim, a estrada, casas da vizinhança, no plano de fundo, vago, a floresta negra, todo o arredor de Freiburg, Toda a Baden-Wüttenberg, toda a Alemanha, toda a Europa, todo o globo terrestre, o universo, o aberto vago, obscuro, infinito. E isso tudo no infinito sombreamento de minhas percepções, fantasias, recordações, recordações de recordações etc.

Isso tudo é “pressuposto” num certo sentido. Ora, se me atenho a cada um dos “momentos” da descrição acima “esboçada”, pontuando-os por assim dizer e considerando-os mais de perto, então vejo-me percorrendo a cada vez diversos caminhos de remissão que me mantém respectivamente aberto um mundo estruturado de forma complexa. Cada momento pontuado é algo assim como o começo de um fio condutor. E novamente, cada momento desse fio condutor é o começo de um outro fio condutor voltado para outra direção. Mas todos esses fios remissivos que partem desse “começo” acabam desembocando de volta nesse “começo” como que num ponto de convergência. Cada objeto é algo assim como um conglomerado ou um ponto nodal de diversas implicações: ele pressupõe inúmeros “mundos”.

Mas, olhando mais de perto, “cada objeto pressupõe mundos” é um modo de falar. Seria melhor dizer: encontro o objeto, com seus inúmeros “mundos” como plano de fundo e implicações.

Então, a pretensão de ausência de pressupostos significa: querer ver “a coisa ela mesma” como a encontro de antemão em toda sua implicação; querer explicitar as implicações encontradas de antemão até que ter-se tornado totalmente transparente em direção “à coisa ela mesma”. Colocar tudo em questão significa então propriamente: tudo ver, tornar tudo transparente, querer clarear tudo.

Isso quer dizer: Por trás da pretensão de “querer colocar tudo em questão” há uma vida que “é” “vidente” (sehend).

Esse vidente é algo assim como vontade, como pulsão para a evidência[7]. A realização completa dessa pulsão abre a dimensão transcendental.

De início essa vontade de evidência se move anonimamente na direção do objeto-coisa-do-mundo.

Ao meu redor, as coisas estão dadas naturalmente, de diversos modos e em diversos modos de ser: coisas vivas, sem vida, animadas, inanimadas, ideais e psíquicas.

Eu próprio sou também uma coisa entre essas coisas ao meu redor, mas uma coisa privilegiada, que voltado a elas, pode reconhecê-las.

Voltado para as coisas, julgando, questionando, pesquisando, respondendo, investigo suas relações, suas modificações, suas dependências funcionais e suas leis; através da abstração, através de uma ideação generalizadora que se eleva para uma universalidade cada vez mais elevada, reúno entes em diversas regiões, sobreregiões e estabeleço um sistema de rede ideal de relações, de leis, horizontes e regiões,  cuja possibilidade de pesquisa se estende ao infinito.

Voltado às coisas da natureza, estabeleço a ciência da natureza. Voltado para as coisas de minha vida psíquica, estabeleço a ciência como a psicologia. Posso voltar-me também para meu próprio conhecimento,  analisar sua estrutura formal e material, estabelecendo uma ciência como a lógica, a teoria da ciência, ontologia formal ou material.

Em todas essas pulsões de meu querer para o conhecimento, permaneço sempre voltado às “coisas” do mundo. Coisas da natureza, “eu” com todos os atos psíquicos, as configurações ideais de meu conhecimento e da ciência, embora dando-se de modo diverso, todas são “coisas” do mundo. Todas elas são unidas e delimitadas pelo “horizonte” o mais universal: objeto (Gegenstand) em geral. Ali a mundanidade do mundo e a subjetividade em sentido autêntico permanece anônima, oculta.

Essa é a situação da postura natural. Nessa situação surge a questão do conhecimento: Como é possível o atingimento preciso de meu conhecimento? Se eu e as coisas naturais somos duas coisas diversas no mundo, então como é possível que meu “interior” atinja certeiro o “fora”?

Essa questão implica outras questões fundamentais: O que significa “interior”, o que significa “fora”, o que significa atingir com acerto?

Mas uma vez que na postura natural, estou voltado às coisas, ou seja, visto que todos os meus conhecimentos se dirigem para “fora”, nelas inere a questionalidade da transcendência. Tenho de procurar, portanto, um conhecimento que seja livre desse enigma, a partir donde talvez seja possível responder à questão acima colocada.

É aqui que Husserl engata na meditação da dúvida de Descartes. Aqui, é importante não perder de vista o que se segue: Para Husserl o importante não é conquistar um lugar seguro na interioridade do conhecimento, a partir donde ele poderia assegurar  o conhecimento do “exterior”. Importa a ele, ao contrário, desvelar o verdadeiro sentido do “interior”, do “exterior” e assim do atingir certeiro.

Mas uma vez que a meditação sobre a dúvida de Descartes, através da ligação com a “transcendência”, é mais adequada ao homem “extrovertido” da postura natural, a demonstrar a interioridade do conhecimento por assim dizer de um só golpe, Husserl lança mão dela como via para sua redução fenomenológica[8]. Mas, nisso, também, esse caminho pode nos desviar e fazer com que coloquemos a necessidade da transcendência como plano de fundo. De tal modo que a dimensão transcendental demonstradora é compreendida por assim dizer apenas subjetivamente, a partir da interioridade; ali, para a compreensão da dimensão transcendental, a “exterioridade” é tão importante quanto a interioridade. Na meditação sobre a dúvida, portanto, está em questão a pergunta pelo sentido do atingimento certeiro, do “interior” e do “exterior”.

Em Husserl a redução se dá em dois níveis: Redução para o fenômeno em sentido psicológico; Redução para o fenômeno em sentido fenomenológico.  É só o último que é redução fenomenológica autêntica.

Agora traçamos um caminho direto. Analisaremos completamente o primeiro nível até visualizarmos nele o segundo nível[9].

Tomar algo de antemão: aqui somos tentados a resumir todo o processo da redução do seguinte modo:

Minha vivência como meu “interior” se dá por si sem sombra de dúvidas, pois enquanto vivencio algo, (eu sou) estou vivenciando. Tudo que não é vivência, portanto, os objetos do mundo exterior, só se dão de modo natural e de modo indubitável enquanto vivenciados. Mas o “exterior” enquanto o não-vivenciado é vivenciado por seu turno como não-vivenciado, e nesse sentido é também dado por si de forma imanente. O mundo exterior, portanto, enquanto não-vivência vivenciada nada mais significa que: a totalidade da possibilidade de vivência que se dá por si em sua formalidade. “Interior” e “exterior” são dois modos do dar-se imanente e uma e a mesma interioridade transcendental. Essa interioridade transcendental é a realidade. “Interior” e “exterior” são dois momentos de interpretação dessa realidade. A interioridade transcendental é o auto-doar-se “em si” e enquanto tal automanifestação (autofenômeno). Ora, o “interior” e “exterior” são também auto-manifestação, enquanto recebem seu caráter de iluminação dessa interioridade  como seus momentos de interpretação e para eles apontam sua meta. Todavia, apenas e enquanto o “interior” e o “exterior” se “manifestam” em seu caráter de interpretação e caráter parcial como momentos do autofenômeno “em si”, a saber, da interioridade transcendental. O “interior” e o “exterior” demonstram seu caráter de fenômeno na medida em que aparecem como momentos do autofenômeno “em si”. Enquanto tal, são fenômenos como descortinamento (Aufdeckung). Mas tão logo são tomados em e por si, por assim dizer fora da iluminação do autofenômeno “em si”, eles encobrem seu caráter de fenômeno, portanto, sua origem. Enquanto tais são fenômeno como encobrimento.

Essa  exposição esquemática corresponde grosso modo ao raciocínio das 5 preleções de Husserl. E no entanto, Husserl se refere a algo bem originário, algo que só pode ser visto na própria realização da redução. Tentemos dar esse passo.

Metodologicamente, gostaria de pedir a vocês a que assumam uma postura semelhante como ocorre na arte japonesa de arremesso de flechas. O tiro aponta para o disco do alvo e atinge o alvo como ele próprio e ao mesmo tempo nesse atingir o alvo atinge também o disco do alvo.

Isso significa: Lemos o texto de Husserl e ali nossa mira continua voltada para  nossa execução, que se dá a cada vez, e interpretamos o texto lido a partir do que olhamos[10].

Husserl diz:

“…: Não tenho nada como certo, tudo me é duvidoso. Mas enquanto tal é evidente que nem tudo me pode ser duvidoso, pois na medida em que assim julgo de que tudo me é duvidoso, que eu assim julgue isso é indubitável, e assim torna-se absurdo querer manter a afirmação de uma dúvida universal. E em todos os casos em que se dá uma determinada dúvida é indubitavelmente certo que eu duvido”.

“E igualmente em toda e qualquer cogitatio.”

“Toda e qualquer vivência intelectiva e toda e qualquer vivência em geral, na medida em que é realizada, pode tornar-se objeto de um contemplar e apreender puros, e nesse contemplar é dadidade absoluta. Se dá como um ente, como um Isso-aí, de cujo Ser é absurdo duvidar”[11].

De imediato nos chama a atenção algo admirável: partindo de uma única “essa minha dúvida momentânea”, Husserl estende a evidência desse único caso para todas as outras “minhas” evidências. E a partir de “minha vivência” para “todas as vivências intelectivas” e depois além, para “toda vivência em geral”.

Essa generalização, seguramente, não é evidente. Mas para o próprio Husserl, essa generalização se justifica, é até necessária, justamente porque no escrever e ler esses textos ele “funciona” sempre já fenomenologicamente. A evidência da generalidade através da ideação, sobre o que, no texto, só se fala mais tarde, é presente para ele[12].

O que propriamente se conquista com essa meditação da dúvida? Conquista-se o “cogitans sum”: que eu duvido, percebo, represento etc.

Como é caracterizado esse que? O que é propriamente esse que?

De imediato, distinguem-se três momentos, por exemplo, em:  Eu percebo a casa:

  1. a) A casa como objeto de meu perceber;
  2. b) Esse meu perceber a casa;
  3. c) O olhar esse meu perceber a casa.

O acima mencionado indubitável que refere-se propriamente a esse olhar (c)[13].

Aqui acrescenta-se uma observação, uma vez que o que se disse não é preciso.

O acima mencionado indubitável que  é de princípio o “sum cogitans” como fato intrapsicológico[14].

Em nosso exemplo: Eu percebo a casa, temos três “coisas”: eu, minha percepção, a casa. Mas essas três “coisas” só vêm à lume quando tematizamos a percepção que é propriamente um “percebendo a casa” enquanto “sum cogitans”. Mas então cada um dos momentos acima mencionados torna-se uma “coisa”, na medida em que se torna objeto de minha nova “percepção”.

Ora é evidente que eu, minha percepção e a casa são objetos diversificados. Ter uma casa (lá fora) como objeto de meu ato e ter minha percepção como objeto de meu ato são duas coisas distintas. Os dois atos, porém, tem algo de comum: ambos estão voltados a seus objetos como “coisas” do mundo. Enquanto tal, num certo sentido a percepção como “objeto” de meu ato, frente a esse ato, é transcendente, portanto, duvidoso.

O acima mencionado que ou sum cogitans como um fato psicológico é sempre um ato, voltado a um objeto, e enquanto tal a percepção da casa (lá fora). Ele próprio é anônimo: a saber, um operador.

A nós interessa descobrirmos um momento de autodoar-se desse ato operativo[15].

Husserl disse acima: “… toda e qualquer vivência em geral, na medida em que é realizada pode ser transformado em objeto de um puro olhar, e nesse olhar é dadidade absoluta”.

Em minha percepção da casa, portanto: na medida em que é percebida, esse meu perceber torna-se objeto de meu olhar puro: nesse olhar é dadidade absoluta.

“Nesse olhar é dadidade absoluta” pode significar: que meu perceber a casa é dadidade absoluta; ou que o contemplar se dá de forma absoluta.

Ora, dissemos acima que o indubitável na meditação sobre a dúvida era o que da vivência, enquanto é realizado. Esse caráter-que de minha realização não inabita nem minha percepção da casa nem o olhar a minha percepção. Enquanto tais, ambas são dadidades absolutas.

A nós, porém, nos interessa o sentido dessa dadidade. Para aproximar-nos desse sentido, façamos a seguinte reflexão, e quiçá sobre o olhar de minha percepção da casa.

O que é pois esse “olhar”?

Aqui só podemos responder através do fato de que vemos a coisa ela mesma.  Mas o que vejo eu propriamente?

Agora estou me expressando “erradamente”, mas as coisas não podem ser diferentes. Aqui o que importa é apenas prestar atenção ao que se tem em mente.

Portanto: vejo que me represento “esse olhar” como meu olhar, como uma realização que tem lugar agora diante de mim; e enquanto “estou/sou” assim olhando, estou (eu) olhando que “esse estou olhando” é o olhar que se tem em mente. Represento de algum modo o olhar no “ver” o “olhar”; mas ao mesmo tempo, olho, por assim dizer para trás e nesse voltar-me para trás tomo pulso desse olhar como “estou olhando”. O olhar é o espaço de fuga que o “olhando” deixa para “trás” no movimento do “direcionar-para-o-olhar-representado”. Como tal não deveríamos mais dizer: o “estou/sou olhando” é o olhar que se tem em mente, mas antes: o que se tem em mente é “sou/estou olhando”, ou melhor, simplesmente: “olhando”.

Esse “olhando” significa algo como “acontecendo”, algo como realização. Nessa medida, perdeu o caráter de fato do que enquanto res cogitans, embora sempre ainda seja compreendido como um algo psicológico. Ali recordamo-nos que propriamente não sabemos o que significa “psicológico” aqui! Nesse “olhando” está implícito também algo como “caráter de ser meu”, na medida em que é “sou/estou olhando”[16].

No texto acima mencionado, Husserl tenta expressar as coisas da forma maximamente precisa possível: “… na medida em que é realizado, pode tornar-se objeto de um olhar e apreender puros, e nesse olhar isso é dadidade absoluta”.

No texto, esse ‘isso’ pode assumir o posto de “toda e qualquer vivência intelectiva” ou “toda e qualquer vivência em geral”; ‘isso” pode também valer como um sujeito neutro, impessoal da frase “isso é absoluta dadidade”.

No primeiro caso: até que ponto toda e qualquer vivência é uma dadidade absoluta? Não enquanto é “objeto” do olhar, pois nesse caso, de algum modo seria transcendente; mas enquanto é vivência como esse próprio olhar, portanto enquanto “olhando”. E se esse “olhando” é chamado novamente de vivência, tornando-se objeto do contemplar, então apenas na medida em que é olhar o olhar, não mais podendo ser tornado objetualmente como “algo”, mas enquanto é simples e puramente “olhando”.

No segundo caso, quando vale como um sujeito neutro, impessoal da frase “isso é dadidade absoluta”, então a frase tem de ser lida assim: “… Nesse olhar, | isso é dadidade absoluta”.

Ouço isso tudo mais ou menos assim, como se alguém fosse me dizer: hoje faz um bom tempo.

Eu interpretaria a frase acima do seguinte modo: olhando, | é dadidade absoluta. Aqui o caráter-meu do “sou/estou olhando” é por assim dizer neutralizado[17].

Isso se torna ainda mais patente quando Husserl diz: “se dá como um ente, como um isso-aí, cujo ser não faz sentido duvidar”.

Porque o olhando é o momento originário do próprio duvidar, porque o olhando é aquela ausência de distância, aquela autoproximidade, que é o movimento ali, que se inicia quando olho para o meu olhar ou no duvidar, quando duvido de meu duvidar.

Por causa desse movimento, que é algo como uma reflexão, Husserl designa esse olhando como: percepção reflexiva olhante. A designação reflexiva ou reflexão não significa: que o olhando ou a percepção seja reflexiva, mas que é olhado na reflexão[18].

A designação me dá uma compreensão mais aproximada de olhando, como dadidade absoluta.

Acima mencionamos que o olhando, enquanto acontecendo ou enquanto execução, perdeu o caráter de fato, e mesmo assim é sempre ainda compreendido como algo psicológico. Nesse “algo” psicológico está oculta uma hipostatização do olhando como “algo” no mundo.

Ora: o movimento da “reflexão” acima mencionado destrói sempre de novo nossa tendência rumo à hipostatização do olhando.

Repetindo, digamos que enquanto percebo a casa, olho para esse meu perceber a casa.  Nesse olhando, é dadidade absoluta.

Mas a percepção do para onde se olha não se dá de modo absoluto, enquanto é o objeto do olhar (portanto, transcendente). E quando o olhar da percepção, por seu lado, é olhado, então o olhar para o qual se olha já não é mais dado absolutamente; e assim por diante ao infinito. Isso significa: Toda vez que eu quero apreender o olhar de alguma forma como um algo, represento-o, trago-o para diante do meu ato funcional de olhar que tem lugar agora como minha vivência, como meu ato, como um fato psicológico, como um “algo”, por mais vago e indeterminado que também possa ser imaginado.  Coloco-o no mundo dos objetos. Ali digo para mim mesmo constantemente que o olhar não é objetual, que o olhando não é precisamente esse “algo”; que é algo assim como nada ou espaço vazio que o olhar deixa para trás no movimento de “olhar-para”. Mas logo percebo novamente que, nesse intento de descrever o olhando acabei novamente hipostatizando-o como “algo”.

Mas esse curso vazio do movimento da reflexão me mostra de repente algo bem importante.

Agora fica claro para mim que trabalhei sob uma determinada pressuposição, a saber,  que o olhando é algo que pode ser tomado como um “objeto” do mundo; portanto, que o olhando é algo no mundo.

Ora, se mostrou que o olhando não é nada no mundo; que, então, há algo que não está no mundo.

O que se disse é então ambíguo: nada no mundo não significa: há um nada fora do mundo. Pois “fora do mundo” é precisamente assim “algo” no mundo, na medida em que é compreendido como “algo”.

Mas haverá algo que não é “algo”? A dadidade absoluta?

O que se tem em mente com isso?

Vamos tentar tomar pulso do caráter de nada do olhando “de algum modo” com um truque. Esse nada tem de ser pensado radicalmente. Portanto, se quisermos de algum modo “determinar” o nada, só vamos consegui-lo “negando” todas as afirmações e negações sobre “nada”, a fim de que o próprio nada venha a se mostrar[19]. Mas, uma vez que o Nada nada é, o que vem a se mostrar é propriamente nada. O que vem a se mostrar é meramente a mesmidade (Selbstheit). Nada é portanto uma formulação formal vazia da mesmidade, a saber, aquele caráter de ser o mais originário de todo ente “ele mesmo”; algo assim como con-dição “originária”, pela qual os entes eles mesmos são. É algo assim como momento de clarificação, momento de demonstração, momento de iluminação  de todo ente do mundo, “eu” e seus atos psicológicos, incluindo inclusive essa explicação do próprio “nada”. É portanto a mesmidade das próprias coisas.

Então, retornando ao nosso exemplo, olhando para “essa minha percepção da casa” resulta o seguinte quadro: O “olhar” para minha percepção da casa  dá essa minha percepção da casa como si mesma, a saber, essa minha percepção da casa apreendida  como essa minha percepção da casa[20].

“Apreendida” significa “olhada” e designa a mesmidade da percepção enquanto essa minha percepção da casa ela mesma.

É só agora que se possibilita à percepção “aparecer a si mesma” como percepção, a saber, com si-mesma, não mais restrita e delimititada num modo de interpretação posto como por exemplo percepção como um ato psicológico, por mais diversificado que possa ser designado como ato, vivência, percepção ou fenômeno psicológico. É só agora que minha percepção recebe ar e espaço, onde ela pode crescer livre de sua essência.

Mas é também só agora que fica claro para nós que algo assim  como fato, ato psicológico, vivência, percepção, era uma interpretação no mundo da coisa ela mesma “essa minha percepção da casa”. E é só agora que algo assim como psicológico recebe a possibilidade de ver, de atingir o que tem em mente, e a partir desse atingimento certeiro compreender a si mesmo como momento de aproximação no movimento de direcionar-se para o que se tem em mente.

Mas como é o que é a coisa “essa minha percepção da casa” na mesmidade? Essa questão só pode ser respondida com um trabalho pelo qual tentamos explicitar toda a implicação de minha percepção da casa. Aqui não podemos fazer esse trabalho. Todavia, podemos dizer que a interpretação das implicações dessa minha percepção da casa descortina todo o mundo da objetualidade, portanto, todo o mundo da postura natural, pelo menos em sua estrutura fundamental; a saber, o “mundo” das coisas naturais, “mundo” das coisas ideais  o mundo das coisas vivenciadas; e por fim a mundanidade em geral que abarca todos os possíveis “mundos”. Ele também descortina os diversos modos de interpretação de mundo e da mundanidade enquanto horizonte, enquanto medium-em etc.

E isso tudo num duplo movimento de trabalho: um movimento que se estende centrifugal a partir dessa minha percepção hic et nunc, por assim dizer partindo dela, numa descoberta “aventureira” de novos mundos, e ao mesmo tempo um outro movimento centripetal da constituição dessa minha percepção da casa, que como movimento de detenção da expansão, conglomera as remissões e os mundos que se abrem sempre de novo nesse ponto de convergência.

Ora, curiosamente esse “trabalho” do movimento centrifugal e centripetal de expansão e contração sou (eu) mesmo enquanto “sou/estou olhando”[21], como “olhando” que trabalha anonimamente, que acima chamamos de nada, mesmidade das coisas.

Ora, essa minha percepção da casa, para a qual estou “olhando”, com toda sua implicação, incluindo todos os nossos enunciados sobre “sou/estou olhando”, não é nada mais que o movimento levado a deter-se do trabalho de autodemonstração enquanto o “sou/estou olhando”.

Esse “sou/estou olhando” em sua “exterioridade” é mundanidade, tudo, ser.

Esse “sou/estou olhando” em sua “interioridade” é egoidade do caráter de ser meu, que torna tudo, o mundo e o ser, “cada vez meu”.

Esse “sou/estou olhando” em seu “meio” é um movimento puro do trabalhar e ao mesmo tempo o aberto, a luz, a claridade, a transparência, a mesmidade, a dadidade absoluta, o repentino dessa ausência de distância no momento de salto da abertura dessa possibilidade de visão: é o instante.

E esse instante como o repentino da origem, como presença de minha totalidade, como nada e tudo, eu e mundo, sou (eu) enquanto “cada vez meu comportamento”.

O lugar do instante é  “em-que” (indem) de meu “cada vez meu comportamento”, e enquanto tal, o instante é temporalidade e eternidade, momento e totalidade, dureza do fechamento pontual e o aberto da abertura infinita, autoproximidade e autodistância, cada-vez-meu e universalidade cada vez minha, abandono do silêncio e cura do trabalho.

A mesmidade do instante é esse e: “enquanto tal” o instante está simples e somente: aí.

A redução fenomenológica é o movimento do retorno para a ingenuidade do [22]. A fenomenologia enquanto ciência do “fenômeno” é o caminho sempre já trilhado e no entanto caminho que sempre deve ser trilhado, do retorno para a ingenuidade do .

Todo e qualquer deter (conter) nesse “a caminho” é fenômeno. Como tal, fenômeno significa: o conteúdo da proximidade (ou da distância) para a ingenuidade do aí.

E como tal, tudo e cada coisa é fenômeno.

Mas uma vez que é precisamente a própria mesmidade, em sentido fenomenológico fenômeno significa a necessária evidência parda da coisa ela mesma.

Tudo que se disse aqui nessa comunicação é bastante confuso e ambíguo. Todavia a autoevidência do é clara, simples e inconfundível. Ela é simples e modestamente a autoevidência parda de nosso cotidiano, mas não do cotidiano velado das “pessoas adultas”[23]. É aquela autoevidência parda dos olhos do menino divino, dessa criança que se constitui na origem, portanto, no começo e meta de todo nosso ser-adulto.

E uma vez que abarrotei essa autoevidência parda do menino divino[24] com muitas conversas, no final dessa comunicação gostaria de retificar as coisas, com uma palavra do mestre da Antiga China:

1

De volta à fonte e ao começo, o pastor tudo realizou.

Nada é melhor do que ser sempre no lugar
Como cego e surdo.

Em sua casinha, ele se senta e não vê
Coisa nenhuma lá fora.

Sem limites flui o rio como ele flui. Vermelha
floresce a flor, como ela floresce.

2

Nunca o ato maravilhoso fica ao serviço
Do ser e do nada.

O que quer que veja e escute, não precisa mais
Da surdez e nem da cegueira.

Ontem o corvo dourado voou para o mar,
Hoje o círculo de fogo ilumina
A aurora como outrora.

3

O pastor já usou toda a força do coração e
Percorreu todos os caminhos até o fim.

Nem sequer a iluminação mais translúcida supera
A surdez e a cegueira.

Debaixo das sandálias de palha termina o caminho,
Que ele outrora já conheceu.

Nenhum pássaro canta. Flores vermelhas florescem
Em magníficos tumultos.

(O boi e seu pastor)

[P. Celan e a poesia – o fracasso e o sucesso dos quadros de van Gogh]

25.07.65 – Sobre o colóquio de sexta-feira

Situação: uma virulenta discussão sobre a poesia de Celan e o diálogo com ele. As observações do Prof. Rombach, sua impressão de Celan: Palavra-artística. Minha impressão sobre a impressão do Prof. Rombach: análise muito temática e massiva da poesia. Por assim dizer, uma crítica com machado. Nesse sentido não atinge a Celan. Mas essa massividade é a força de Prof. Rombach: Na maioria das vezes ele atinge o essencial! Desse acerto na massividade surge com o tempo análises com finura. Mas isso ficou de fora, justo porque o tema não era Celan. O que o professor atingiu com sua impressão? Sobre isso, tenho que pensar, justo porque o que foi atingido é algo muito importante para mim.

O que tinha em mente o Prof. Rombach vêm à lume na discussão sobre van Gogh. Aqui apenas palavras-chave.

– O quadro de van Gogh é o próprio fracassar.

– Mas se a obra significa autoidentidade absoluta,  surge a pergunta: o quadro do fracasso pode “ser” como bem-sucedido? Não: se não, o bem-sucedido e o fracassado são duas coisas. O fracassado, portanto, não pode ser uma “obra de arte”? Não. Portanto: não-obra de arte? Tampouco. Pois não-obra de arte é ainda sempre arte, enquanto é um modo deficiente.

– Há então um fracassar do ter-sucesso como autoidentidade: fracassar-do-fracassar? Sim. Onde? Van Gogh! Enquanto tal, o quadro de van Gogh ou é fracassar-do-fracassar como obra ou simplesmente não existe. Aqui há uma possibilidade de “fracassar” ou de “ter-sucesso”, mas simples e somente:  ou “é” o fracassar ou ele “não é”. E basta! Portanto uma possibilidade para o Kitsh.

– Isso significa: tudo que é o próprio van Gogh é também esse fracassar. Ele é simplesmente o quadro! Esse é o sentido de seu engajamento! Não é um engajamento romântico, portanto!

– É a “coisa ela mesma”!

– Significa: O fracassar pertence essencialmente à imagem! A possibilidade da fragilidade pertence também, portanto, essencialmente à imagem: daí o paradoxo: Girassol e campo preto; casas amarelas e céu preto!

Em Celan isso tudo é um pouco diferente! Sua poesia: perfeita, bem-sucedida. Uma discussão: fracassada. Portanto, dualidade.  Seria coerente: que também ele tivesse alcançado sucesso figurando na discussão ou que ele também fracassasse na poesia!

– A partir daqui, minhas reflexões.

Como seria se eu considerasse esse fracassar como impossibilidade do ter-sucesso-do-fracassar, se o tematizo. Então deve sempre “ter sucesso”. É assim? Sim. Mas esse “ter sucesso” significa simples e somente: a autoidentidade da solidez-compactação da singularidade em meu sentido. Isso significa: A estrutura van Gogh, pelo fato de ser a estrutura da possibilidade do ter-sucesso do fracasar, “alcançou sucesso”. A “estrutura” Celan, pelo fato de ser a impossibilidade do fracassar, é o ter-sucesso.

Com isso, todo o problema repercute no existenciário! No instante como o comportamento cada vez meu! Mas como? De onde? O que? A resposta:

Não se pode dizer isso teoreticamente: isso é a cada vez a plenitude da coisa ela mesma. Mas,  “não-plenitude”? não: não-plenitude nesse sentido só possível se não houver nenhuma evidência da não-plenitude. Portanto, então, não-evidência da não-plenitude? Não: pois se radicalmente não evidência, então não-evidência, portanto, também nenhuma evidência, isso significa: não surgiria a pergunta!

Aqui não deveríamos confundir os objetos! Mas é isso que eu chamo de solidez-compactação. Estou salvo, portanto!

Vincent van Gogh, interpretação de quadro:

Meu tema soa mais ou menos: Vincent van Gogh e as gravuras em madeira japonesas:

Devo restringir e precisar esse tema:

Não se trata aqui das gravuras em madeira japonesas ou da influência das gravuras em madeira japonesas sobre van Gogh ou algo parecido: isso porque infelizmente não tenho qualquer noção sobre essas coisas.

Todavia, se apesar disso a conversa tratar mais ou menos sobre quadros japoneses, então gostaria de pedir a vocês para considerar minhas afirmações como opinião totalmente pessoal. Não são, portanto, “japonesas”!

Nosso interesse é o quadro de van Gogh. E isso bem restrito ao interesse determinado pelo nosso colóquio até aqui.

Van Gogh descobriu alguma coisa nos quadros japoneses. Ele se sentiu atingido de certo modo pelas gravuras em madeira japonesas. Essa descoberta pressupõe em van Gogh a possibilidade de atingimento certeiro (Trifftigkeit). Seu interesse pelo japonês deve repousar sobre uma abertura fundamental no comportamento de ser de van Gogh ele mesmo.

E, para nós, van Gogh nada mais é que o quadro (o respectivo quadro), portanto, um questionar o japonês num ou em alguns quadros dele e sobre sua concepção de ser.

Metodologicamente: uma vez que não sei precisamente o que é o japonês, também não sei o que devo procurar. Van Gogh, porém, copiou alguns quadros japoneses. Além disso… em 31 de julho de 1882: van Gogh a Theo.

Sobre o preto na natureza somos naturalmente da mesma opinião, pelo que posso ver. O preto absoluto simplesmente não ocorre. Mas como o branco está contido em todas as cores e forma as variações de cinza diversificadas em tom e intensidade. De tal modo que na natureza propriamente nada mais vemos que diferenças de tom e de intensidade.

As cores fundamentais só há três – vermelho, amarelo, azul; compostas, são laranja, verde, violeta. Daí, com a mistura do preto e algo de branco surgem as infinitas variações do cinza: cinza vermelho, cinza amarelo, cinza azul, cinza verde, cinza laranja, cinza violeta. Dizer quantos cinzas verdes diversos existem é algo impossível, sua variedade é infinita.

Mas toda a química das cores não envolve mais que essas poucas bases simples. E uma boa compreensão sobre isso é mais valiosa do que cinquenta tons diversos de cores – uma vez que com as três cores principais e o preto e o branco se pode fazer mais que 50 tons e intensidades. Um corista é alguém que, ao ver uma cor na natureza, consegue analisá-la secamente dizendo: aquele verde-azul ali é amarelo com preto e quase sem azul etc.

Breve e bem colocado, um corista é alguém que consegue gerar os diversos cinzas da natureza em sua palheta.

Ora, para poder tomar notas livremente, fazer observações ou traçar um pequeno esboço, é incondicionalmente necessário um sentimento fortemente desenvolvido dos contornos, assim como mais tarde para a execução que se segue. Porém, acho que isso não abaixa simplesmente por si em alguém, mas em primeiro lugar através de observação, depois sobretudo através de um trabalho e uma busca tenazes, e depois certamente deve advir também o estudo da anatomia e da perspectiva…

Quinta-feira, 3.6.65, das 8:15 hs até 0:05 hs (Protocolo da 3. reunião: Interpretação de quadros de Vincent van Gogh

Palestrante: Herr Merlenk (aquele senhor grande, gross, que faz uma tese sobre Edmund Husserl). O seu tema era: Ding. Comentou essencialmente três quadros: (Óleo): A cadeira de van Gogh; a cadeira de Gaugin; o quarto de van Gogh. Para ilustração, comentou também os quadros: Café noturno; Os girassóis. Participaram do colóquio 15 pessoas, fora o professor. Para que você saiba de que quadros se trata, vou descrever brevemente o conteúdo desses quadros:

  1. Quadro a cadeira de van Gogh[25]:

É bom não esquecer que o quadro “o quarto de van Gogh” tem várias versões. Creio que van Gogh pintou o mesmo quadro pelo menos três vezes.

O tema Ding: primeiramente é problemático esse “colocar um tema”, pois isso é um processo de “generalização”. Por exemplo, o primeiro quadro: a cadeira de van Gogh é um “quadro”, isso é a imagem (Bild), essa imagem. Essa imagem é obra de arte. Como obra é singular. O mesmo se deve dizer da imagem da cadeira de Gaugin. O mesmo também do quadro: o quarto de van Gogh! Além disso, o termo Ding é vasto demais. Sob o Ding posso compreender uma infinidade  de coisas. Até o “Stillleben pode ser um Ding!” Além disso, a escolha dos quadros sob a temática Ding pode ser muito willkürlich! (arbitrária) Não há pois uma necessidade em escolher este ou aquele quadro.

Fr. Röhrig OBS! (aquela filosofa que não sabe “reden”! está ficando pior!) propõe portanto tomar somente um quadro. Muita discussão sobre esse assunto metodologicamente fundamental.

O resultado: Se a obra de arte no sentido de “Werk” é o singular, então ela contém o todo. Psicologicamente falando: cada quadro é van Gogh mesmo na sua totalidade. Portanto, em cada quadro podermos encontrar o “Was” (todo). Somente cada quadro é a presença total de Fülle “Was” numa determinada “Wie”. O “Wie”, porém, na fusão ontológica total da obra singular (isto é na terceira dimensão) não é mais separável do Was. Was e Wie é a obra: esse quadro. Isso significa: eu devo encontrar no fundo, em cada quadro sempre esse “Dichte-Werk”, portanto o quadro. O método de interpretação de quadro porém movimenta-se da seguinte maneira: se cada quadro de van Gogh é jeweils o quadro singular, portanto se cada quadro contém o todo (van Gogh todo e concreto), somente aquela pessoa que pode (está crescida para tal) “encontrar esse “o quadro” consegue “ver” o quadro como obra. Mas a obra, por ser o todo-singular é hart. Compacta. Mas esse sólido-compacto pode ser compreendido como “estático”, “rijo”, de tal modo que o contemplador diga resignado ou também inclusive: ali está, por favor veja e contemple o quadro. Sobre isso ou disso nada se pode dizer! Mas aqui é necessário um grande cuidado: certamente: é indizível! Mas a indizibilidade de uma obra não é a indizibilidade de um bloco de pedra! Uma pedra como bloco (na mentalidade da 2. dimensão: é um bloco estático, sem vida) não contém em si a estrutura viva de mundo. Atingir o quadro significa, portanto, deixar aparecer vivamente esse mundo vivo como esse quadro: ou melhor, deixar crescer em si para fora e para dentro. O método fenomenológico não é outra coisa senão esse deixar crescer, ou melhor, deixar ser. Mas não pela comparação ou pela introjeção de uma categoria constituída, mas sim fazendo que os quadros de van Gogh se interpretem mutuamente. Que cada quadro de van Gogh entre em diálogo entre si e assim deixe surgir a imagem: o próprio van Gogh como obra!

Por isso, se fôssemos fortes e crescidos bastaria somente um quadro. Mas como não somos suficientemente fortes, devemos tomar vários quadros de van Gogh e tentar fazer com que os próprios quadros entrem em diálogo entre si mesmos. Como cada quadro contém em si o todo, é “indiferente” que quadros eu deixo entrar em diálogo entre si. Posso portanto tomar uma cadeira e um portrait. Um navio e uma ponte. Mas somente para uma comodidade externa, tomamos um tema como “Ding”, para afinal dar uma pequena Leitfaden que não é absolutamente tomado a sério no sentido de necessidade.

A colocação do Sr. Merlenk durou 20 minutos. Descrição detalhada de cada quadro. Fenomenologicamente não conseguiu fazer “crescer” a obra. Tratou do quadro demasiadamente com sinal: categorias já constituídas; e aplicação das categorias sobre o quadro. P. ex. no primeiro quadro da cadeira de van Gogh:  a parede branca-cinzenta é o Horizonte. Cf. a estrutura da análise: esta parede está no lugar do horizonte: essa parede é um sinal para horizonte etc.

Crítica da parte de dois estudantes muito inteligentes sobre essa falta de “deixar-ser”: Crítica de Rombach também contra esse método que não é fenomenológico.

Nova tentativa de descrição: feita por Prof. Rombach

Primeira etapa: Redução. O perigo de uma interpretação é de “colocar” dentro do quadro um “objeto” já constituído. É necessário portanto liquidificar o meu  com-portamento: ver o quadro, não fixando um objeto porém como que de olhos virados para dentro de si: vagamente.

No primeiro quadro: a cadeira de van Gogh:

Ao mesmo tempo que essa atitude de “suspensão”, ir fazendo crescer em mim o quadro que vai surgindo dessa suspensão:  A cadeira como cadeira,  como um “Ding” por assim dizer deve fazer para “desaparecer”. O que se vê são as cores, e os contornos, não porém como constituindo esse Gegenstand mas sim como limite ou enquadramento das cores. Vendo assim, por muito tempo, começa-se a perceber que para van Gogh, ou melhor, esse quadro, a cadeira de van Gogh não é outra coisa senão densidade das cores. Não é portanto assim: as cores estão em função do Gegenstand que se quer representar. Mas sim: Gegenstand é a densificação da cor. A cadeira está carregada de uma energia que parece querer explodir a cerca das formas: um movimento da transcendência quase dionísíaco, que é como que segurado pela forma da cadeira: pelas linhas bem acentuadas da forma da cadeira. Essa tensão interna da cadeira mesma, parece fazer com que a cadeira surja como que saltando para frente em si mesma, fazendo nesse aparecer também aparecer o fundo e o Boden. Esse “ser-contido-para-dentro-de-si” nesse quadro é um apresentar-se como uma força quase “explosiva”, dificilmente contível. Agora você vendo o último quadro de van Gogh, pouco antes do seu atentado de suicídio “O campo de trigo com os pássaros negros” essa mesma força não é mais “contida”.  A força como que explode e escorre ao infinito! Verrücktheit (Loucura, tresloucamento)!

No quadro: o quarto de van Gogh, pode-se observar o mesmo fenômeno. Ali, cada coisa é como que uma paragem (Halt) em si mesma de força, cor. Aqui somente a tensão de explosão não existe: é harmonia entre força expansiva e força “conservadora”.

Mas na cadeira de Gaugin essa tensão desaparece. Ali tudo é mais calmo. Mas não calmo no sentido de harmonia como as gravuras em madeira japonesas, mas sim sem “vida”, um pouco “impotente”. Nessa impotência paira algo ameaçador: surge um momento de “insegurança”, de “nada”: é frágil como a chama da vela sobre a cadeira de Gaugin. Essa “insegurança” que aqui aparece somente como fragilidade de uma chama (na parede a vela por assim dizer  ainda afirma uma esperança) se torna sinistramente ameaçador: a luz amarela das lâmpadas que não dá livremente a sua luz; os homens fechados cada qual em si etc. O solo como que fugindo em si. A porta entreaberta, donde vem uma luz amarela, que em si deveria ser alegre, torna-se como que sinistramente grell (berrante), acentuando o pesado do ambiente. Resultado da meditação: Cada imagem é o com-portamento de van Gogh como possibilidade de fundo do si-mesmo. Esse comportamento é o ser do próprio van Gogh. Esse ser é movimento como vida:  movimento da transcendência, de elevar-se-para-além-de-si, e ao mesmo tempo: manter-se em si como si-mesmo. O meio dessas forças antagônicas da vida-van gogh, porém, pode estar carregado unilateralmente ou pela expansão ou pela In-ständigkeit (insistência). Cada quadro pois acima analisado diz uma e a mesma coisa, mas em diferente acentuação dos momentos desse com-portamento.

Foi esse, mais ou menos, o conteúdo da discussão.

A seguinte seção será aos 24 de junho. Referente é Frl. Röhrig. Quadro: o semeador

OBS! [A lápis: cartas enviadas enviadas a Vitor Farias!]

A minha exposição é sobre a influência das gravuras em madeira japonesas sobre van Gogh.

Creio que já encontrei um caminho bastante ‘fácil’ de expor o assunto. Nos quadros de van Gogh, tentarei analisar (mostrando simplesmente os quadros: se alguém não conseguir ver o que vejo; anathema sit!) o momento de “harmonia”, o momento de “Mitte”: esse “Mitte” em van Gogh é o resultado de tensão. É portanto produto do movimento de transcendência.

Ora, o que van Gogh viu nos quadros japoneses é esse Mitte. Mas viu europeicamente, isto é, como ingenuidade e descanso, antes da consciência.

E se mais tarde viu neles o Mitte de conquista entre a luta do transcensus e de introversão, viu esse Mitte sempre como o resultado que surge do movimento.

Ora, eu vejo que nos quadros  japoneses, embora exista uma calma e transparência extraordinária, o Mitte jamais é um resultado de movimento. Certamente, existe movimento na mentalidade japonesa, enquanto, por exemplo, o pintor como Hokusai exercitou, exercitou e pintou como maluco, sempre procurando a perfeição. Mas a perfeição não surgiu desse esforço. O esforço, portanto, o movimento, foi somente para eliminar a si mesmo como movimento.  Quando se aniquilou surgiu outra dimensão que nada mais tinha a ver com o movimento, mas que sempre existia e que é imóvel. Nessa imobilidade até o movimento se torna “ser” como simples de presença. Isto é a transparência.

O que acha Victor e Teresa dessa Spinnerei?

Nesses dias, quando voltava da preleção de Rombach para o nosso Instituto (seminar I) (temos o nosso seminário num outro prédio) junto com (OBS!) Frl. Röhrig que está como assistente secundária, ao discutir sobre a Angst de Heidegger, me diz de repente: Eu não sei por que estou vivendo! Não sei por que a gente pode viver adiante! E isso não num tom “existencial”, a la Sartre, mas sem pathos a la Grillet. Levei naturalmente um susto enorme. Aos poucos estou percebendo também no seminário, entre os colaboradores de Rombach: Frl. Rombach, Herr Merlenk e Gross, uma certa tensão. Existe um verdadeiro abismo entre Frl. Föhrig e os dois outros assistentes. De incompreensão e de estrutura. Aqui também é um problema de com-portamento. Recorda você Vitor, que você me disse: Frl. Röhrig tem um olhar visionário, opaco, sinistro? Ali está algo que se refere a Heidegger. A Angst de Heidegger como vazio. Estou lhe contando essa observação justamente porque estou numa luta tremenda contra essa interpretação de Heidegger. Andei tentando afirmar no duro de que a Angst não é outra coisa do que o sorriso de uma criança, uma rosa. Mas não há dimensão de compreensão para isso. Certamente a interpretação de Röhrig é consequente. Mas não é consequente, mas não é consequente no Sache selbst, pois ela espera que do vazio surja a dimensão do terceiro. Aqui a relação é idêntica como entre van Gogh e a pintura japonesa. Herr Merlenk está fazendo uma tese sobre o conceito de fenômeno em Husserl. Não sei se estou sendo imprudente, mas como conto tudo que sei e faço sobre Husserl a ele e também a Röhrig (Gross não tem nenhuma dimensão filosófica: talvez essa a-dimensão também seja uma modalidade de filosofia, mas…) tenho um pouco de receio que as teses não se diferenciem mais uma da outra. Em fim…

Por hoje, adeus. Conta-me se tiver algo.  E se tiver tempo.

A você e a Teresa, e também aos carne-carninhas bênção do Espírito Santo!

Seu (a lápis: um bilhete enviado a Vitor Farias e sua esposa)

Cela 8702 Würzburg, capital, 1, Convento Oberzell!

Obs! Estimado Victor, estimada Teresa, diônico-diônica!

Como estão passando vocês? O resfriado do diônico já passou? Certamente com esse tempo do verão mau-humorado não é muito agradável para ustedes…

Aqui em Wurzburg o tempo está sogra, bandido, bruxa, gemein. Tivemos alguns dias tão abafados que eu seriamente pensei em tomar veneno. Mas como sei que isso é um deficiente modus de ser-para-a-morte, fui comprar gelados…

Atualmente estou com um problema vital fenomenal: existe uma ameaça da parte do ministério da educação bavariense de não reconhecerem os meus estudos, o meu abitur etc. o meu documento escolar brasileiro não tem o reconhecimento do ministério da educação brasileira, pois a minha escola era naquele tempo particular! Em Freiburg nem me perguntaram por isso. Aqui os bávaros examinam até a merdinha da mosca no canto do documento. Vou tentar escrever imediatamente para o Brasil pedindo um documento com o selo do bendito ministério da educação (analfabetização…). Se isso não funcionar,  estou morto, intelectualmente. O que muito pouco me incomoda, ao menos filosoficamente!… Somente não tenho vontade de rir, quando imagino a cara dos meus confrades no Brasil: depois de 7 anos, quando a gente está para terminar,  descobrem que o meu documento não vale! … Ou melhor, então é que tenho vontade de rir… Aporia.

O protocolo da sessão de ontem (hoje é 17.7.65). O colóquio foi transferido para sexta-feira (17.7) devido a um poeta lírico alemão moderno que murmurou suas poesias no dia 16.7.65.

O ser de um europeu seria exsistência: isso é a dualidade da Geworfenheit (Estar-lançado) e do Enfwurf (projeto); necessidade e liberdade; natureza e espírito; universal, individual etc. etc. O Ex exprime aquela direção da transcendência, abrir-se, descobrir-se. Sistência, aquela direção ou momento de detenção, consistência, fechamento. Por exemplo, num ovo, por exemplo, na expansão do universo, como uma maneira de ver do homem. O Pere Tanguy seria nesse esquema centro da existência como imagem, mas está dentro da estrutura ex-sistência = Insistência significa mais a sistência da existência. A existência toma diferentes inclinações, ora para ex, ora para sistência. Os quadros de van Gogh têm de ser colocados dentro desse esquema abstrato. Como imagem, como meio, porém é sempre ameaçado pelo desequilíbrio ou para sistência: torna-se tudo duro, starr (rígido); ou para ex: torna-se tudo fluido, fugaz extático. Um quadro exemplar para exprimir isso é o quadro Oliveiras: em baixo, a terra, como sistência (sistência não deve ser imaginado como maciço, mas uma massa caótica, em blocos) e em cima o céu como Ex; tufo foge, diliu, como lamma. No centro uma raia finíssima: forma de árvore, tronco. Essa forma, isto é, o quadro é justamente aquele centro exsistência.

Depois dessa repetição, examinamos se de fato essa hipótese funciona com os outros quadros. Examinamos os quadros: Campo de trigo com corvos: o seu último quadro: trigal amarelo, céu negro azul ameaçador, no meio pássaros negros. Céu estrelado à noite: depois o portrait do Dr. Gachet, Igreja de Auvres; muitas vezes o centro não está entre acima e abaixo, mas sim entre plano de fundo e plano de frente. No autoretrato, por exemplo,  o centro está nos olhos: o fundo caótico, esse caos sólido-compacto aparece agora nos olhos e no meio está o rosto como que um vaso que contém a escuridão.

Mostra tudo isso a precariedade da delgada linha do centro que é o homem como ex-sistência contra a sistência e ex. Quando o ex e o sistência se tornam tão fortes que o centro desaparece, temos pois a loucura. Um fracasso (sem avaliação). Os quadros de van Gogh na sua elevação avançam sempre mais para esse fracasso do centro. E justamente ali está a genialidade de van Gogh. Que ele tem o olho de ver o fracasso como grandeza humana. A fraqueza, a fragilidade, a miséria humana é para o quadro de van Gogh a grandeza em si, o centro em si.

Aqui desatou uma discussão que durou quase duas horas: tudo isso é muito bonito e certo, mas a arte de van Gogh transforma a fragilidade humana, a dureza da fragilidade num valor superior.  A dureza da fragilidade humana é, pois, algo que não pode ser atingido pela arte; um fracasso é fracasso.  Não pode ser um ter-sucesso na arte.  Se um quadro é quadro do fracasso da fragilidade humana, então o próprio quadro deve ser um fracasso. Assim, propus a tese de que um quadro de van Gogh como fragilidade, para ser bem-sucedido deve ser um Quitsh. Ou melhor, não deve ser um quadro. Quando van Gogh deu o tiro de pistola contra seu peito, foi ali que ele pintou  o seu quadro da miséria humana: autoidentidade. Aliás existe uma frase interessante de Max Frisch (literato moderno alemão): Guernica, o nome de uma cidade espanhola, a primeira a ser bombardeada, nos empolgou por Picasso. O que resta é arte. E Franco!…

Se a arte é res, então deveria ser tão radicalmente res que não houvesse mais nenhuma distância entre res e arte. Por que a banalidade da vida humana não pode ser arte? Mas não assim: a gente poderia ver a realidade como obra de arte. Quanto mais forte um artista, tanto mais profundamente ele vê tudo como arte. Mas sim: Tudo é arte. Justamente onde arte não é arte, ali ela é arte, pois se torna idêntica com a banalidade. Não embeleza.

Mas nesse caso:  que sentido tem ainda falar de arte? Tem ainda sentido existir arte  como arte?

A discussão se estendeu para lá e para cá e não aclarou nada.  Pessoalmente gostaria de ter botado justamente na radicalidade dessa destruição do conceito de arte a possibilidade de entender o nada como lugar da arte no sentido japonês. O vertical do esquema. Mas não houve jeito de convencer aos outros nesse sentido. Assim, terminou a sessão às 15 após meia noite.

Ontem acabei de ler o Tabebücher de Paul Klee: (Du Mont Dokumente, Texte und Perspektiven Sammlung: Paul Klee Tagebücher, 11 DM.). Creio que Paul Klee é um dos filósofos mais “modernos” que conhecemos. Talvez o mais equilibrado e totalizante na procura do centro do nada.  Se a gente pudesse viver “fenomenologia” de Klee! Para mim, ali está um caminho além de Husserl e além de Heidegger. Se a polícia bávara me permitir permanecer  na universidade, então gostaria de tentar meter-me em Klee. Lástima que não sou artista como Teresa. Mas Victor,  talvez a essência da filosofia seja a pobreza. A filosofia tem somente um olho, um ouvido, e defeituoso. Pouquíssima possibilidade. Dentro dessa situação a gente deve tentar sacar  na obra de arte… triste. O que você acha?

Vou terminar desejando a vocês muita felicidade nos seus trabalhos.

Apareceu algum pintor bom na academia?

Um abraço aos dio-dio-monico-minicarnes.

Solidez-compactação (Härte)

A questão ao final da conversa sobre o colóquio do Prof. Gosenbruch (de Frl. Röhrig, em 24.05.65).

Por que não posso “encontrar” a imagem do homem (cf. van Gogh, Cristo e a oliveira) no quadro de uma oliveira.

Se o “quadro” é a totalidade, então o quadro é tudo. A unidade da solidez-compatação, a saber, o quadro da oliveira, uma vez que é tudo,  tem de “carregar” em si necessariamente (Notwendig – Not der Wende) o “homem”.

Ora, supondo que eu tenha outro quadro, por exemplo, os girassóis. A unidade da densidade de Os girassóis carrega em si a “Oliveira” e igualmente o “homem”. A unidade da densidade de A oliveira carrega em si “os girassóis”; a unidade de densidade-homem “carrega” a “Oliveira” e igualmente “Os girassóis” etc. Visto formalmente: aqui se estabelece um intercâmbio mútuo através da totalidade-centro. Esquematicamente: [Espaço em branco]

Designemos a “totalidade” como “o que” (was). Uma a cada vez Realização determinada da “totalidade” enquanto “como”. O quadro como a unidade-densidade, enquanto a “obra” é a plenitude-presença do “o que “ num determinado “como”.

Mas o que dissemos é impreciso: pois não existe:  o “o que” e o “como”, mas só existe a densidade-concreção (o que) e (como) na con-sistência: esse quadro. O quadro é insistência.

Ou seja: os girassóis é o quadro. O quadro é os girassóis. O único! Precisamente no mesmo sentido:  o homem é o quadro. A imagem (quadro) é o homem. O único. Igualmente: a oliveira é o quadro. O quadro é a oliveira. A única.

Portanto: 3 quadros (imagens)? 3 únicos?

Não. Então somente um quadro (imagem)? 1 único? Tampouco.

Mas como?

Aqui é preciso lançar mão de uma retrospectiva. Uma reflexão precisa sobre o “lugar” da questão “como?”.

Pergunto, donde? O que se pressupõe quando questiono: 1 quadro? 3 quadros? O que se tem em mente quando pergunto: se o todo três vezes “todo”, como é possível que ainda seja “o todo”?

1, 3, imagem (quadro), totalidade, único etc. tem seus lugares dentro da estrutura da representação. São por assim dizer diversas “manifestações”  de uma e da “mesma” estrutura:  re-presentação.

Re-presentação significa “universal” [não muito claro: aqui deveríamos analisar mais de perto. Todavia, me parece que o caminho esteja certo.]

Quando pergunto: como é 1 3 e 3 1, estou “operando” sempre dentro da representação-estrutural de que os quadros, ou melhor, o quadro Girassóis, homem, oliveira, são ou é “quadro” (imagem) precisamente no sentido unívoco.

Esse “quadro” último, universal, porém, não é o quadro no sentido: densidade-unidade, “mas um conceito coletivo”.

Ora, se digo o “único”, estou novamente operando na perspectiva de “quadros”, como que em “contraposição”. Determino ali o sentido da “unicidade” a partir do sentido universal dos “quadros”. Portanto estou funcionando numa correlação. Isso significa:  numa de-finição, ou seja, numa delimitação mútua que propriamente nada de-limita porque se desenrola em questões infinitas. Na mesma estrutura está também o binômio: todo e parte.

A partir dessa estrutura da “representação” (diga-se de passagem, concebida bem amplamente), alcançamos a densidade-unidade, não o quadro, justo porque ele se encontra na “outra” dimensão. Mas esse “outro” é tão radicalmente “outro” que está “além” do modo deficiente.

Mas se eu sou próprio “sou” representação por natureza, como posso atingir o quadro? Enquanto quadro? E além do mais: Como posso falar tão “ingenuamente” da outra “dimensão”?

Uma contra-pergunta: será correta a tese: sou por “natureza” representação? Cf. a preleção de Prof. Rombach: Pascal etc., a saber: a experiência originária.

A linguagem da experiência originária é fenomenologia como deixar-aparecer, ou seja, deixar-ser. Esse é o verdadeiro sentido da “descrição”.

Aqui, porém, é preciso precaução: só está em questão saber se compreendemos a fenomenologia como fenomenologia.

A experiência originária e sua linguagem  não está fora da “dimensão” da representação. A representação não é algo diverso do que no sentido do “paralelo”, sobreposto, etc. Nem sequer “um-a-partir-do-outro” “um-contra-o-outro”.

Estão em correlação, mas não na correlação do movimento, como acima. Mas como?

… Se posso falar a partir de “fora”, se dá um movimento da questão (representação) sempre mais adiante até que a questão “se agudiza” até o insuportável: esse cume do agudo se mostra como: falta de sentido, vazio, mas também como mera afirmação, dogmatismo, ceticismo, paradoxo, aporias. Mas, ao lado disso, corre também a “fenomenologia”, descrevendo, deixando aparecer, interpretando o quadro/a imagem.

A partir da representação, surgem questões relativas à fundamentação, à origem etc. dessa “fenomenologia”: insatisfatoriamente, como, por que etc. Essa fenomenologia é uma fenomenologia vista a partir da representação. Por si não é “clara”. Assim se estabelece um abismo. Aqui a representação; lá: a dimensão da experiência originária.

Diga-se de passagem: é necessário que haja esse abismo. Se não, não se dá a guinada! Deixar as duas dimensões uma ao lado da outra é por exemplo não é senão mover-se na dimensão da representação.

Se o abismo se transforma em diferencial (Spanne), então “torna-se” em instante, onde é compreendido assim como o único. Essa é a experiência originária.

Então, talvez, se veja que 3 é 1 e 1 é 3.

Cf. loucura (Verrücktheit); cf. Aleph von Borges.

O que é metafísica? [Heidegger, 1926, Preleção de abertura]. 1-9: “O que é – resposta”] página 24.

“A pergunta levanta a expectativa de que se vai falar sobre metafísica. Nós abdicamos a isso”.

O que significa aqui “abdicar” (verzichten)? Abdicamos a que? Podemos abdicar “a isso”, se a própria pergunta levanta essa expectativa? Pois a expectativa de que se vá falar sobre a metafísica é uma determinada definição da pergunta. Com que direito abdicamos disso? Donde a escolha? O que é aqui o parâmetro? Ou é propriamente uma escolha?

Essa e outras questões semelhantes, todavia,  surgem todas da impressão que nos dá a colocação inicial da pergunta de Heidegger.

Aqui coloca-se uma pergunta na e para dentro da dimensão do cotidiano. Isso é o começo, o ponto de partida onde a pergunta começa a se movimentar. Está fixada de princípio como ponto, como começo. Determinada. No mundo. Num mundo determinado. Ou melhor, num mundo indeterminadamente determinado, que chamamos vagamente cotidiano, a gente.

A colocação da pergunta de Heidegger, portanto, é de princípio uma reação, um ob-jeto (Gegen-stand)  e numa constelação bem determinada. Enquanto reação está contra uma opinião fixada, usual no cotidiano. Essa opinião é indeterminada, embora aparentemente fixada. Precisamente  assim correlativa é indeterminada a colocação da pergunta, embora aparentemente fixada. Ela vai “contra” o cotidiano, como a reivindicação de “autenticidade” contra a banalidade do a gente. Enquanto tal, em suas palavras vibra uma espécie de ironia, ou melhor, algo meio sarcástico. E essa ironia desperta em nós a tendência de excluir aquilo a que se dirige a colocação da pergunta. Operamos, portanto, com parâmetro “moral”: bom-mau, correto, incorreto.

Essa impressão é o primeiro começo necessário enquanto erro: nós o chamamos de “aparência transcendental”.

O que significa isso?

“Aparência transcendental”, justo porque apresenta uma “aparência” (movimento des-ocultador da clareira) que traz à aparição mais proximamente a estrutura transcendental da colocação heideggeriana da questão.

Como é essa estrutura?

De princípio a questão é uma colocação. Ela se coloca contra uma outra opinião. Enquanto tal, a colocação da questão é um fechar-se contra uma determinada possibilidade. Ora, essa possibilidade é avaliada tacitamente como uma possibilidade ou como a possibilidade mais exigente, mais rigorosa, mais filosófica etc. Uma consideração mais de perto da colocação da questão por Heidegger mostra que o que se disse é apenas uma aparência.

Em Heidegger está em questão apenas experimentar o fundamento da própria pergunta, antes de dedicar-se a uma determinada colocação de questão: “em vez disso, discutimos uma determinada questão metafísica”. Depois segue-se: “Ao que parece, com isso nos deixamos ser transferidos imediatamente para a metafísica. Só assim criamos-lhe a real possibilidade de apresentar-se a si mesma!”

Debater (erörtern) a questão significa: determinar o lugar (Ort) da questão, ou averiguar  o lugar da questão. [Talvez devêssemos distinguir debater de  colocar: dimensão distinta na estrutura].

Mas de que questão? De uma determinada. Ora, aqui é preciso cuidado: O que significa aqui: Uma determinada questão? Uma questão num determinado estado de coisas da questão, ou uma questão determinada como questão? Diga-se de passagem: questão (algo) determinada como questão!

Perguntando de modo mais preciso: o que está em questão propriamente aqui?

Trata-se de determinação da questão enquanto questão ou de determinar o conteúdo da questão?

A essa atura talvez devêssemos prestar atenção também a um modo de ser próprio da fenomenologia: São duas coisas distintas: colocar-se na determinação da questão (determinação da questão) enquanto questão, e colocar-se na determinação do conteúdo da questão.

Aqui, em Heidegger, igualmente também em Ser e tempo, cf.: a estrutura “questão pelo questionar do questionar = questão pelo sentido do ser, ambas parecem ser uma e a mesma coisa.

A discussão da questão, nesse caso, deve incluir todas as questões possíveis. Mas assim, objetamos: enquanto questão! Não como um conteúdo bem determinado! É precisamente aqui nessa objeção que se mostra claramente como em Heidegger está em questão a pergunta enquanto pergunta. Ele já pressupõe, portanto,  que a questão é a possibilidade fundamental do ser-aí. Ser-aí significa portanto questionar.

Debater a questão significa portanto: a demonstração da questão enquanto questão, mas compreendida de tal modo que a própria demonstração é a questão, ou o inverso: a própria questão é a demonstração ela mesma.

Isso significa: Em cada pergunta, em cada discurso, seja no cotidiano, seja numa opinião prefixada etc. está em questão só e unicamente a autodemonstração da questão. Essa questão sou (eu) como questionante.

Isso significaria, outra vez: Cada questão já é “metafísica” no sentido próprio da palavra, quando é considerada a partir da autodemonstração do questionar; e a autodemonstração do questionar só pode se “concretizar” em “discurso não metafísico” (Estando fora – Aus-stand). É a essa duplicidade (fonte de mal-entendidos) que chamamos de aparência transcendental.

O debate da questão, que de imediato despertou a impressão, que aqui se trataria de uma determinada questão fixa da metafísica escolar mostra ser uma questão radical, originária pelo sentido do próprio questionar.

Trata-se portanto da evidência do sentido do questionar.

Vontade é pois questionar: tenência (Halt) e abertura da transcendência.

A partir dessa visão, toda a preleção de Heidegger O que é metafísica é uma só questão originária enquanto execução.

Todavia, aqui não se pergunta e depois se responde como num questionário, mas: a demonstração da questão enquanto a  presença da origem do questionar é a resposta. Nessa medida, questionar e responder são um!

No que respeita a inadequação da linguagem, ou seja, a assim chamada ironia de Heidegger ela possui um sentido significativo, me parece. Tive essa impressão quando conversava com o Sr. Merlink sobre a primeira preleção do Prof. Rombach [Semestre de verão de 1965]. O Sr. Merlink ficou surpreso com o tom patético dessa preleção. Ora, como é o professor e nós o conhecemos, ele não é menos que patético.

De onde vem esse Pathos? Não seria um “truque” para comunicar o “além” do patético e não patético? Pois se não quisermos ser radicalmente patéticos, não é suficiente evitar o patos. Aqui, a negação é sempre uma afirmação negada, portanto, um modo deficiente do pathos.

Mas como posso negar o pathos “não-pateticamente”? Através de mesmidade (Selbstheit): isto é, através do fato de ser patético cientemente.

Talvez seja precisamente assim em Heidegger na suspensão e subsunção da  autenticidade a partir da inautenticidade. Se considero essa suspensão como uma contraposição contra a inantenticidade, por assim dizer, num isolamento aristocrático, então decaio na inautenticidade, justo porque a autenticidade autêntica está “além” de autenticidade e inautenticidade. Isto é: a autenticidade só é possível na correlação.

A essência da fenomenologia é pois esse movimento de correlação. Ou seja, é o próprio movimento. A inautenticidade é então a hipostatização (atenção!). Mas só há hipostatização porque há ali movimento. Se o movimento enquanto movimento quiser se garantir só pode ser pelo fato de, enquanto movimento, tomar a sério a hipostatização enquanto hipostatização. Do contrário, acabará hipostatizando, por seu turno, o próprio movimento!

A partir desse estágio, talvez, possamos colocar a seguinte afirmação: o ser em sua verdade significa: viger perguntando – em estado de tenência e de ausência: ou seja, a verdade do ser é a tenência da correlação. Ser é pois essa mesma tenência: portanto sou si-mesmo.

  1. 19 [A metafísica | formada (para baixo) ]:

Esse contém por assim dizer o lugar de principiar, a partir de onde e onde [visto a partir de nós] começa [melhor, inicia] a se mover a questão pelo sentido do ser.

Trata-se aqui portanto de uma tomada de posição, na qual nos colocamos frente a um con-teúdo já fixado da metafísica sobre metafísica  [portanto, sobre si mesmo].

Com tais, perguntamos: O que é metafísica?

Como resposta se diz: a metafísica representa o ser enquanto ser. A discussão mais detalhada dessa resposta nos deu a estrutura onto-teológica da metafísica. Ora, nossa questão soa: em que medida e como se reporta essa estrutura onto-teológica da metafísica em relação à estrutura da “re-presentação”?

E então: Será que essa duplicidade da estrutura onto-teológica é necessária?

Provisoriamente, essas questões permanecem sem resposta.  Todavia, mostram a direção da investigação: Na questão “O que é metafísica?” trata-se da questão: O que é representação?

Mas visto que a representação é a verdadeira estrutura da metafísica, trata-se então aqui do “pré-suposto” da metafísica.

Mas então a contra-pergunta soa assim:  o interesse da metafísica não é o ente enquanto ente? Ele representa o ente enquanto ente e não a si mesmo.

A resposta: ele representa também a si mesmo como ente. Ou seja, independentemente do que aqui se compreende por “ente”, o essencial da metafísica consiste no fato de que ela representa tudo e cada coisa como ente.  Mas uma vez que também essa última designação “ente”, continua indeterminada,  ou pelo menos pode continuar,  parece-nos como se estivéssemos de mãos vazias, sem saber o que fazer.

Aqui, poderíamos tentar safar-nos afirmando que a reflexão mostra exatamente que se trata propriamente da representação. Se não soubermos o que significa o ente enquanto ente, sabemos pelo menos o que significa representação. Essa somos nós! Essa é a estrutura de representação de nosso si-mesmo. Ente enquanto ente nada mais é que a estrutura dita numa linguagem unilateralmente objetivadora de nosso si-mesmo como representação.

Essa resposta pode até ser correta. Todavia não está completamente clara. Ou melhor, distinta (deutlich), pois poderia ainda objetar a isso afirmando que a representação nos é tão indeterminada quanto o ente! De tal modo que nós somos uma determinada perplexidade “difusa”, ou melhor, somos um “pairar”. Isso é pois a única evidência, a única necessidade!…

Todavia, nesse meio tempo, percebemos que  o que foi dito também é um engano. Pois o que é essa perplexidade indeterminada “difusa”? Por mais vaga e indeterminada que seja, nós a representamos! Ora, se esse “pairar” é a única evidência, então podemos dizer com o mesmo direito: essa coisa lá, enquanto esse ente, representado de forma totalmente objetivista, é evidente exatamente assim como é!

O vazio, vacuidade nada mais é que um modo deficiente da coisa.

Não nos afastamos da re-presentação. Mas representação significa essencialmente:  o representar-representante-do-representado. Simplificaremos um pouco: tomar o representar-representante como unidade. O representante e o representado.

A representação é propriamente o todo. Mas o todo não como: o representante mais o representado, mas como o movimento. Mas não entre, porém: o representante e  o representado são momentos, ou melhor, um modo determinado do movimento. Ora, também a representação é um determinado modo do movimento, de tal modo que nós temos três modos de movimento? Não. A representação é o o-que do movimento, ou seja, si-mesmo. Todavia não existe esse si-mesmo. Só existe como o representante e o representado. Ora, a coisa se torna mais complexa. Isso porque estabelece um movimento relativo. Todavia, esse movimento não é um movimento para lá e para cá, mas um espelhamento que se movimenta constantemente. Do representado para o representante, e depois do representante ao representado, onde surge uma espécie de tendência de densificação do todo enquanto vigência-presente, presença ou clareira.

A via heideggeriana haure sua evidência e sua necessidade desse movimento.  Mas uma vez que esse movimento não pode ser “escrito” em um livro, essa via toma a aparência de uma postura corrente-fugidia de um começo assumido.

O corpo

Princípio: Análise fenomenológica husserliana do corpo.

– Uma coisa (Ding) entre outras coisas.

– Uma coisa-alma.

– Num mundo do ser-representado e da representação etc. O que resulta “depois” da redução fenomenológica? Isto é, como transparece a “coisa ela mesma”, na raiz da experiência do corpo, ou melhor, o que ocorre com o “corpo” originariamente, antes da “constituição” da coisa corpo no mundo da concepção-de-ser-de-cousa (Sache)?

Portanto: como é o corpo na concepção-de-ser-de-demonstração (Aufweisung)?

Fio condutor da análise:

De princípio bem “co0isalmente”: vejo, toco, sinto meu corpo como “coisa”. “mais próximo”: sinto-me como coisa-eu-mesmo, por assim dizer, me, a partir de dentro.

Esse “a partir de dentro”, porém, é algo assim como presença-sintonizante-sintonizada, como o conteúdo-aí-do-espaço sentido como abertura originária.

Mas essa abertura originária não pode ser compreendida como um aí vazio, mas como um ser-aí enquanto plenitude-de-conteúdo, enquanto corpo-de-postura como vida! Ou sentimento (sentiment!) [Gefühlung oder Fühlung].

É um conteúdo, ou melhor, uma identidade de postura, um “comportamento”, um tomar de interior para interior, a partir do interior para o interior, como demonstração.

O ser dessa demonstração de corpo é pois algo como humor de afinação, consonância como interesse. Ou seja, entre-jogo como espaço de jogo.

O jogo de corpo cria a espacialidade corporal como tonância de intensidade da proximidade e distância e constitui a estrutura perspectiva do ser aberto do mundo do sentimento.

Ora, a partir dessa corporalidade, poderíamos considerar o espaço, a distância, as coisas, o mundo das coisas da representação, reduzir esse embate e confronto das coisas ao corpo!

O Sr. Prof. Rombach designa essa perspectividade e concentricidade como as propriedades estruturais dessa concepção de corpo. Todavia, não vejo claro como essa espacialidade do corpo deva ter algo como concêntrico… De certo que a proximidade e a distância aponta para algo como direção, portanto, centro, de onde e para onde. Mas esse centro não pode ser um ponto-médio. Pois o ponto é coisa e não corpo.

Eu interpreto, portanto, essa concentricidade do seguinte modo: concêntrico deve ser compreendido con-cêntrico, a saber, como proximidade de intensidade ou distância da con-centração do conteúdo-corpo em si mesmo como:  a concentração monadológica do confronto discerniente da espacialidade do corpo, que é o próprio CORPO.

Vivência como intencionalidade

A essência da fenomenologia é vivência. Vivência é fenômeno, aparição, ou seja, intencionalidade. Nessa designação, porém, já está implícita muita coisa constituída, que corremos o perigo de misturar tudo.

O essencial ali é a vivência. Cogitatio e quiçá cogitatio como evidência, portanto configurado em sua plenitude. Vivência é a identidade da coisa em mim, ou falando de forma bidimencional: a identidade do eu e coisa ela mesma. Coisa ela mesma é a identidade de eu e mundo. E é de, de é vivência. Mas o que significa de?

Um exemplo: uma intenção de desejo. Satisfação realizada do desejo é por assim dizer a intenção do corpo do conteúdo. Não é diverso do que, mas simplesmente a plenitude do conteúdo do corpo, felicidade como bem-sucedido.

Objetualidade, portanto, nada mais é que plenitude de conteúdo. É só nesse sentido que se pode compreender objeto. É algo parecido como o que se dá com a expressão. Cf. Husserl: L.U. Expressão e letras etc. Letra: quando essa se torna plenitude de conteúdo, então satisfação-realização (Erfüllung). Quando não, então não há satisfação-realização. Portanto, visão (Anschauung) só é plenitude se satisfação-realização de conteúdo. Cf. poesia.

Em Husserl: estranhamento: análise na direção de coisa e ao mesmo tempo análise na direção vivência: Física, psicologia.  Mas no fundo, ambas: análise de objeto. Uma vez coisa, outra vez, alma. O próprio Husserl diz: a vivência não aparece! Em Husserl, portanto, diversas camadas numa só vez.

Idéia da fenomenologia

O título é muito exigente. Idéia como estrutura. Nós queremos apresentar um esqueleto da fenomenologia. Ou seja: Os textos de Husserl são considerados no geral como fenômenos concretos, análises. Por exemplo, corporalidade etc. Mas, em nossa opinião, nada mais são que exemplificação, ou abertura da idéia da fenomenologia. Quando alguém considera a corporalidade, por exemplo, como uma análise concreta, então se torna insuficiente aquilo que Husserl fez.

Todavia, é uma chance de considerar todos os textos de Husserl como uma repetição diversificada da demonstração da estrutura interna da intencionalidade. É assim que lemos, aqui junto a nós, todos os textos.

[Escrito à caneta]

Intencionalidade significa: estar voltado.

Mas prestar atenção: a essência da intencionalidade como meio-con-teúdo é, antes: in-habitar ou emergir (em!)


[1] Apostila – anotações escritas em alemão, feitas na época dos estudos na Alemanha (Tradução de EPG).
[2] Die Idee der Phänomenologie. Husserliana, vol. II p. VIII e 43.
[3] Muito embora, em Husserl, apareçam muitas posturas diversificadas, que não podem ser atribuídas estritamente ao título “postura científica”, são sempre consideradas em vista da  postura científica.  Cf. a análise do mundo da vida como postura pré-científica em: Die Krisis de europäischen Wissenschaften und die transcendentale Phänomenologie, Husserliana, vol. VI.
[4] Esse princípio condiciona o caráter da fenomenologia, como ela aparece em Husserl, enquanto mathesis universalis. Como tal, seu interesse está no descortinamento da estrutura universal da subjetividade e correlativamente da objetividade.  Isso porém exclui uma outra direção de mira segundo a qual podemos nos dirigir para a origem da fenomenologia como autoreflexão (Selbstbesinnung). As explanações de Husserl sobre a subjetividade transcendental como fundamento da ciência assumem um caráter um pouco diverso, quando as interpretamos a partir desse ângulo de visão. Cf. Erste Philosophie, II teil, Husserliana, vol. VIII, p. 3ss; sobretudo o ethos de sua exposição.
[5] Der Ochs und sein Hirte, eine alt-chinesische Zen-Geschichte. Verlag Neske, p. 46.
[6] Não é qualquer conversa sobre fenomenologia que é uma autoreflexão. Todavia, eventualmente toda e qualquer conversa sobre fenomenologia pode contribuir para levar a fenomenologia como autoreflexão para autodadidade; “supondo-se” que essa mesma conversa seja reconduzida para a autodadidade originária. Isso significaria que  uma conversa sobre fenomenologia só atinge certeiramente sua coisa na medida em que eu, em cada passo de minha fala, ao falar seja “autorefletente”.
Ora, se uma conversa sobre fenomenologia se identifica tão intensamente com autoreflexão (Selbsbesinnung) que chega a “ser” pura e simplesmente “autorefletente” então esse discurso torna-se autolinguagem. É possível que ali então simplesmente se cale. Mas também poderia ser, ali, que esse “calar” se anuncie tanto no “não-falar” quanto no muito falar banal. Isso significaria que é “indiferente” para a autoreflexão em sua autolinguagem o que e como se fala, não porque tudo teria se tornado “indiferente”, mas antes e precisamente porque  tudo é necessário como si-mesmo. Nesse caso, fala sobre fenomenologia não é fala “sobre”, mas a própria fenomenologia.
[7] Cf. Erste Philosophie, II Teil, Husserliana, vol. VIII, p. 6.
[8] Cf., por exemplo, Cartesianische Meditation, Husserliana, vol. I. Seria de se perguntar se o idealismo, que aqui aparece “expressamente”, não é apenas um dos momentos da própria fenomenologia. Se quisermos levar a sério a correlatividade do método fenomenológico, talvez devêssemos investigar a constituição da objetualidade como o correlativo pólo oposto da redução para com a subjetividade; então determinar a redução e também a  constituição não mais a partir da “subjetividade”, mas da “objetividade”, e novamente considerá-la ela mesma (a constituição da objetualidade) também como um dos momentos da própria fenomenologia e agora tentar encontrar o centro a partir  dos dois pólos.  É só esse meio como a essência da correlação que é talvez a referida fenomenologia. Se essa referida fenomenologia é determinada a partir do “tomar” (Nehmen), então já não é mais idealismo.
Nas  Meditações cartesianas a redução acontece como um mergulho de cabeça na subjetividade transcendental. No Idéias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica, livro I, Husserl evita esse método brusco apresentando de antemão uma análise detalhada da postura natural.
[9] O primeiro nível é realizado estritamente em meu caráter de ser cada vez meu. E uma vez que o lugar da dimensão transcendental descortinada é esse meu cogitans, essa dimensão transcendental exposta ao perigo de ser sempre ainda compreendida como um acontecimento no mundo. Para evitar isso, Husserl procura no segundo nível (e nas considerações que a seguem sobre ideação e constituição, ou seja, sobre universalidade e objetualidade) universalizar a redução realizada num ponto. Mas a dimensão transcendental já foi descortinada no primeiro nível. Uma vez descortinada, carrega consigo como sua essência, a pretensão a ter validade universal, a saber, pretensão à universalidade de seu alcance.
[10] No mais, são citados e analisados bem poucos textos de Husserl. Isso pode dar a impressão de que o todo fique bem pouco contemplado. Mas como justificativa posso dizer que aqui leio textos citados de outras obras e outros textos de Husserl. Metodologicamente porém li também outras obras e textos de Husserl “à moda do arqueiro”.
[11] Die Idee der Phänomenologie, fünf Vorlesungen, Husserliana, vol. II, p. 30, 31.
[12] A evidência de universalidade só se nos mostra quando a consideramos a partir da dimensão transcendental.
No nível do começo da meditação da dúvida, onde o caráter de ser cada vez meu do “em-que” (indem) é interpretado como um fato psicológico, a universalidade, enquanto uma configuração ideal do pensar, é seguramente  uma colocação, ou algo assim como uma “coisa” previamente dada da ciência.  Enquanto tal, como se dá, por exemplo, com o sum cogitans, enquanto um fato psicológico, ela tem de ser reduzida. Cf. Ideen zur reinem Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, livro I, p. 140.
Sobre isso gostaria de fazer a seguinte observação: Embora a ideação, de princípio, signifique a descortinação da consciência universal e assim a descortinação da estrutura universal da consciência, ela mostra também um caráter redutivo, na medida em que demonstra a universalidade enquanto universalidade. Partindo da dimensão transcendental, distingo entre generalidade e universalidade, na medida em que a generalidade é uma interpretação e uma universalidade “hipostatizada” numa configuração ideal. A universalidade é pois a con-figuração da proximidade da evidência do “aí”. Esse “aí” como o instante (subjetividade transcendental), considerado a partir da transcendentalidade, é a (supra)-suprema generalidade como a totalidade de minha possibilidade em seu vazio formal supremo. Nesse sentido, podemos dizer: quanto mais geral uma generalidade, tanto mais próxima à dimensão transcendental do “aí”. Só que, enquanto generalidade, está restrita na inclareza do “Ser/estar-voltado-para-as-coisas” da postura natural. Nesse sentido, a universalidade enquanto generalidade precisa da redução fenomenológica.
Esse modo “não-fenomenológico” de exposição faz parte essencialmente do estilo da fenomenologia. Seguindo o raciocínio do texto citado primeiramente acima, enquanto leitor, eu me aproximo à coisa intencionada pelo texto; vejo a fundo que ela é assim. Aí, por assim dizer, atinge-se certeiramente a coisa; alcança-se a meta; fixo o que vi: aqui, que, enquanto duvido, meu duvidar é indubitável.
A universalização me deixa um pouco indeciso. Ela me aparece como uma colocação nova e não transparente. Ela me impulsiona para diante; ela me move a colocar novamente em questão o visto que foi fixado.
Ora, esse “colocar novamente em questão” já não significa mais duvidar, mas “tornar-se desperto”: para o que é realmente intencionado, a saber, a “coisa ela mesma”.
No nosso caso, a coisa ela mesma intencionada pelo texto é “cada vez meu duvidar”, que agora, no instante, eu “sou duvidando”.
Mas esse “sou duvidando” não precisamente aquilo que antes constatei no ler o texto, mas algo mais.  Isso porque quando olho para esse “sou duvidando”, “sou-em-que”, “estou vendo” que “sou” minha presença total com todas as suas implicações; implicação que está presente especialmente como implicação. Com isso, o estilo não-fenomenológico da exposição trouxe o visto que foi fixado no movimento da autoreflexão. Curiosamente, no preciso momento em que o “fixado” chega no movimento da autoreflexão brota algo assim como universal como o momento “aberto” do movimento. Sobre isso, aqui não podemos começar maiores análises. Aqui, limitamo-nos a chamar a atenção que o fato de eu “ter recalcitrado” foi um sintoma. Mostrou-me que eu não atingira a coisa ela mesma.
A partir de outro lado, o constatado  é um momento necessário do movimento da autoreflexão, na medida em que, sendo ponto de partida do movimento, pertence ao próprio movimento. É, por assim dizer, um modo do próprio movimento…
Todavia, o verdadeiro sentido do intencionado na compreensão constatada do texto só é atingido com precisão quando o constatado, enquanto ponto de partida do movimento, alcança o próprio movimento.
Mas uma vez que esse movimento, enquanto autoreflexão sobre o sentido, é a cada vez minha postura como “minha presença total”, a saber, como “sou/estou vendo”, as respectivas compreensões do texto de minha leitura dos discursos sobre fenomenologia, ou seja, sobre autoreflexão do sentido, são momentos interpretativos de meu si-mesmo.
Esse “eu mesmo”, enquanto presença total do “sou/estou vendo” (na palestra: “sou/estou olhando”), enquanto coisa ela mesma, já está sempre aí. É também medida e meta dos textos que li de Husserl sobre fenomenologia.
Portanto: O curso do discurso sobre fenomenologia, edificado num estilo linear, por assim dizer, em sentenças, “tem como meta” uma exposição completa da figura “fenomenologia”, por assim dizer, na superfície. Mas uma vez que a fenomenologia, enquanto autoreflexão do sentido, no ler os textos do discurso sobre fenomenologia, respectivamente em cada passo da exposição linear, caminha transversalmente na direção vertical para a atualidade, o estilo da exposição se assemelha ao andar da Procissão de primavera de Echternach: vai e volta.
O movimento de ida e volta deve então ‘reduzir’ a colocação, ou seja,  trazê-la à evidência da autodadidade através de movimento, e assim trazê-la ao movimento da autoreflexão de sentido. E ao contrário:  através de seu caráter impactante, as “colocações” no texto nos chamam a atenção sempre de novo para a dimensão da autoreflexão de sentido.
[13] A partir do ponto de vista de descrição fenomenológica, essas análises e as seguintes aparentam ser carentes, por assim dizer, “esqueléticas”. Há ali muita coisa imprecisa e incorreta. Já esse tipo de divisão e o enfoque de colocar ali diante de mim a percepção como se ela fosse uma coisa tripartida, cuja estrutura eu poderia sacar sem mais, isso tudo é muito impreciso. A percepção enquanto minha percepção é vida. E como tal não pode ser descrita de forma “esquelética”. Todavia, no essencial, essa imprecisão e caráter lapidar da descrição não impedem nossa tarefa, na medida em que ela nos deve fornecer apenas uma concepção prévia abstrata e formal da redução. Aqui não está em questão elaborar uma fenomenologia da percepção, mas antes descobrir um momento dentro da percepção, que perfaz a concepção prévia da subjetividade transcendental.
[14] Talvez se devesse proceder a uma discussão do significado diverso de imanência (ou de transcendência), como ele aparece nas cinco preleções de Husserl.
Husserl distingue uma imanência real (ou transcendência) e uma imanência reel (ou transcendência). E uma vez que o sentido do real e do reel só se faz visível em sua clareza a partir da dimensão, uma explicitação do significado de imanência (como real  e reel) corre o risco de ser mal compreendida.  Por isso, deixamos de lado essa discussão e explicitação.
Aqui apenas uma breve observação:
Real (1) significa a totalidade da res. Como tal, significa “depois” a redução: coisa ela mesma.
Real (2) “antes” da redução, como se compreende na maioria das vezes nos textos, significa: “coisa” (Sache) como troço (Ding) no mundo da postura natural. Todavia, a redução nos mostra que enquanto coisa do mundo, ele própria é uma interpretação do real (1).
Reell (1) significa “enquanto vivenciado”. Também mostra uma oscilação da dupla nuanciação em seu significado.  Reell significa de princípio, como se compreende na maioria das vezes nos textos: como vivência psicológica, mas sempre ainda interpretado a partir do facto psicológico. E uma vez que nesse “facto” está à mão algo assim como “troço” (Ding) no sentido de real (2), então reell significa: real reell.
Reell (2) significa também: radicalmente ir-real, a saber: radicalmente purificado do caráter de real (2): ou seja, reell significa: não mais “troço” do mundo da postura natural, por mais psicologicamente que se possa ter em mente esse “troço”. Reell significa então: reell reell, a saber, nada além de pura execução. Husserl designa-o também como irreell (não real-reell).
[15] Olhando a partir desse “fim”, é quase indiferente se eu digo “olhar para minha percepção” ou “olhar para meu olhar a minha percepção”.
[16] Esse “caráter de ser meu” pode significar “caráter de ser cada vez meu” em sentido psicológico ou “caráter de ser cada vez meu” no sentido do “aí”. Cf. nota 16 e as p. 9 e 10 dessa palestra.
[17] O “sou” a ser neutralizado não é o  caráter de ser cada vez meu do “aí”, mas a restrição mundana do equívoco do caráter de ser cada vez meu do “aí” como um “sou” psicológico.
[18] Esse “caráter” de autoproximidade inhabita todas as vivências. Mas nas vivências em que se dá algo assim como colocação, divisão, por exemplo, no julgar, no duvidar, no questionar etc. a autoproximidade por assim dizer salta do movimento circular. Nas vivências onde não se dá divisão e “colocação”, por exemplo, perceber, fantasiar, a autoproximidade enquanto “olhando” está aí como fundamento.
Nas vivências divisivas e impositivas o movimento “reflexivo” (movimento circular) tem de ser realizado para que possamos ver esse “olhando” no próprio movimento. Nas vivências não divisivas e impositivas como perceber,  olhar, muito embora também aqui se dê algo como movimento reflexivo, o “olhando” se demonstra por assim dizer de imediato. É justamente por isso que perceber, ver, olhar etc. são lugares da evidência.
[19] Ora, o que se disse é muito impreciso. Aqui deveríamos apresentar de antemão análises mais detalhadas sobre diversos atos como afirmar, negar, julgar, observar, ver etc.
Em vez desse “negar”, Husserl diz: “Questionar eu e mundo e vivência-eu como tal”: cf. Die Idee der Phänomenologie, fünf Vorlesungen, p. 44.
[20] Cf. Die Idee der Phänomenologie, fünf Vorlesungen, p. 44.
[21] Esse “sou” já não é mais o caráter de ser cada vez meu do “sou” da nota 16, mas o caráter de ser cada vez meu do “aí”. Como tal, esse caráter de ser cada vez meu do “aí”, enquanto “sou”, é a origem do “sou” em sentido psicológico. O psicológico é portanto uma interpretação do “sou” do “aí”. Como tal, só é esclarecido a partir da fenomenologia transcendental. A psicologia depende da fenomenologia transcendental e a fenomenologia transcendental é a ciência fundamental e fundante de todas as ciências psicológicas.  Por outro lado, a psicologia como a ciência da execução “sou” que tem lugar agora, “sou” enquanto o “sou” do “comportamento cada vez meu”, é a “ciência” do lugar do “aí”.  Como tal, pode contribuir de modo privilegiado para a realização concreta da “compreensão” da fenomenologia transcendental, pressupondo-se todavia que ela se purifique  o maximamente possível da coisalidade-troço (Dinghaftigkeit) da ciência da natureza. Podemos até dizer que a psicologia enquanto psicologia fenomenológica é uma realização excelente da demonstração da própria subjetividade transcendental. Cf. Die Idee der Phänomenologie, fünf Vorlesungen, p. 45: “No caminho da redução fenomenológica, portanto, a cada vivência psicológica corresponde um fenômeno puro etc.”
[22] Em Husserl , esse “aí” não é tratado temática e propriamente como momento do caráter de ser cada vez meu. Nele, ao contrário, o que perpassa todo o modo de pensar de Husserl, sem no entanto vir a lume ela própria, é a forma impulsionadora de trabalho anônimo do postulado fenomenológico da ausência de pressupostos. O esforço de Husserl era a fundamentação da ciência. A partir dessa “meta”, Husserl “interpretou” o “aí” a favor da cientificidade. Com isso, a fenomenologia de Husserl adota aquele carater do idealismo transcendental como o caráter do eu transcendental  constituído cientificamente  e correlativamente o caráter do empirismo transcendental como o mundo da objetualidade constituída cientificamente.
Mas uma vez que o postulado da ausência de pressupostos, exercido de forma coerente e completa, o postulado da vontade de evidência, da redução e da correlatividade nos demonstra necessariamente o “aí” como a origem  pura e simplesmente, Husserl teve de, por assim dizer, “reduzir” novamente e de forma radical  sua própria fenomenologia. E isso é a morte da ciência: “Filosofia como ciência séria, rigorosa, sim, apoditicamente rigorosa; O sonho acabou“ (cf. Krisis, Anexo, XXVIII).
Mas o fim da ciência nos abre a dimensão da ingenuidade apodíctica. E é só então que se torna possível algo assim como essa flor, essa criança, esse mar, a solidez-compactação, o frescor, o silêncio,  jogo, arte, e até “necessário”. E isso tão radicalmente “possível e necessário” que a ciência se torna em jogo, arte.
Nesse sentido, a fenomenologia de Husserl, enquanto subjetividade transcendental não passa de uma interpretação da própria fenomenologia.
Husserl está sempre a caminho para “o próprio Husserl”
21a. O que se disse é muito curto.  Mas com isso também não fica claro como posso afirmar que o “aí”, enquanto instante originário da presença total da minha possibilidade, pode perfazer a mesmidade das coisas como a novidade apodíctica.
Vou tentar fazer uma breve reflexão para ver se o que se disse não fica mais claro.
Partimos do que foi dito: esse ‘estou/sou olhando’ em sua exterioridade é mundanidade. Esse ‘estou/sou olhando’ em sua interioridade é a egoidade do caráter de ser meu. Esse ‘estou/sou olhando’ em seu meio é puro movimento do trabalhar e ao mesmo tempo o aberto.
De princípio, percebo o seguinte: enquanto me expresso sobre o ‘estou/sou olhando’ como “exterioridade”, “interioridade” e “meio”, vejo que são três momentos interpretativos do intencionado ‘estou/sou olhando’ enquanto ‘aí’.
Esses três momentos são uma reprodução dos três momentos de minha percepção da casa “eu percebo a casa”, a saber: Casa – exterioridade; eu – interioridade; percebo – meio.
Visto a partir da generalidade, eles são a cada vez as expressões universais dos momentos correspondentes de minha percepção da casa. Exatamente como na minha percepção da casa, posso transformar todo e qualquer momento em objeto de meu “olhar funcionando”, também aqui posso transformar novamente em objeto de meu olhar a exterioridade, interioridade e meio.
De princípio, eu os represento no modo das “coisas no mundo”, como configurações ideais, idéias, conceitos, universalidade (generalidade) etc. E uma vez que o olhar funcionante é por assim dizer o trabalhar da vontade de evidência, representá-lo no “modo-das-coisas-no-mundo” nada mais significa que: querer ver a coisalidade da objetualidade  ou querer descortinar aquele sentido da objetualidade,  que perfaz a exterioridade de todo objeto, o tanto que se tenha em mente aqui e por mais desprovido de coisa-troço se possa pensar aqui o objeto.
Portanto, tão logo tento tematizar “algo”, um olhar se projeta na coisidade-intencionada. [Essa coisade, permanece na maior parte das vezes, não-temática, não analisada, como pressuposto autoevidente no plano de fundo] Em cada tentativa de “olhar” “vige” o olhar pra o sentido da coisidade. Esse mirar para a coisidade traz consigo dois outros momentos de transluzência, que estão por assim dizer voltados a cada vez para outra direção e ao mesmo tempo demonstram um caráter-de-‘vigência’ com outra articulação, a saber: o movimento da guinada-de-volta, que constitui o eu como cada vez meu na origem (interioridade), e de cujo caráter-de-“vigência” é um salto-para-trás; e o movimento da postura que cria no pairar vivo o corpo-conteúdo (meio) da “compreensão”.
Ora, quando a “exterioridade” se torna objeto de meu olhar, então é o olhar, a mira desse ter como meta, e nesse ter como meta ele se dirige para a coisidade ela mesma, cria ao mesmo tempo “atrás” de si um espaço de fuga (eu) como condição de possibilidade da visão da mesmidade e assim [ademais, isso tudo se realiza num e mesmo em-conjunto], aponta a “compreensão” da própria coisidade  intencionada (à qual se dirige) como seu corpo de conteúdo.
Aqui, os momentos de movimento operaram: apontar como meta, guinar-de-volta, manter em função da exterioridade, a saber, da coisa.
Quando a interioridade e o meio é feito objeto de meu contemplar, então meu olhar se move exatamente como acima na “exterioridade”, apenas que com a seguinte diferença de entoação:
Na “interioridade”, a mirada aponta seguramente para a “interioridade” no modo das “coisas no mundo”, portanto, para fora, mas o “olhar” nesse apontar a mira para “fora”, atenta para os respectivos espaços retroativos que são “deixados” em cada momento do movimento do “apontar-para-fora”. Tendo-se voltado para frente, a mira corre em retorno a partir da coisa para trás, portanto, para “dentro” e assim aponta a compreensão da “interioridade”, enquanto raiz do salto, como seu corpo de conteúdo.
Também no “meio” a mirada aponta para o “meio” no modo das “coisas no mundo”, mas no movimento do “apontar-para-fora” e ao mesmo tempo no movimento de empuxo para trás, cria seu corpo-de-conteúdo como puro movimento, e mais uma vez como o aberto do movimento, como nada, como ausência-de-distância móvel-imóvel.
Em seus três momentos, esse movimento é a intencionalidade funcionante.
Ora, acima dissemos: os três momentos, exterioridade, interioridade e meio, seriam uma reprodução dos três momentos de minha percepção da casa: portanto, casa, eu e percepção. Nossa análise na linha do “transformar-algo-em-objeto” foi apresentada mais com a intenção de demonstrar a estrutura interna do “estou/sou olhando”, como intencionalidade funcionante.
Ora, quando agora transforma minha percepção da casa em objeto de meu olhar, em seus respectivos momentos: casa, eu e percepção, então esse olhar é a intencionalidade funcionante. Todavia, essa intencionalidade não é “unitransluzente”, na simplicidade de sua estrutura, como no olhar para “exterioridade”, “interioridade” e “meio”, justo porque ela por assim dizer é um feixe de transluzência.
Esse feixe de transluzência, como um todo, e cada componente desse feixe se estrutura como movimento e momentos de movimento: exterioridade, interioridade e meio, com seus modos característicos de movimento que descrevemos acima.  A intencionalidade como exterioridade, interioridade e meio, em vista da constituição dos respectivos objetos, é uma intencionalidade parcial desse feixe de intencionalidade, mas precisamente aquela que descortina a estrutura fundamental,  a essência do “objeto”: portanto, na perspectiva da casa, a coisidade da casa; na perspectiva do eu, a egoidade do eu como cada-vez-meu da origem; na perspectiva da percepção, o caráter de movimento do ato e ao mesmo tempo o caráter de contenção da tendência-e-guinada-retrospectiva.
Ora, se presto atenção às direções do movimento intencional na constituição do objeto, por exemplo, dessa casa, percebo uma direção do apontar como meta que se concentra ao isso-aí-singular; e outras, que seguindo a remissão infinita desse objeto, por assim dizer se afasta dessa singularidade e ruma para uma universalidade da explicação cada vez mais elevada. O telos do movimento “em direção” à singularidade é a coisa ela mesma como consistência fechada da solidez-compactação.
O telos do movimento “em direção” a universalidade da explicação é aberto infinito, a ausência de distância do vazio.
No meio-centro “entre” a solidez-compactação da singularidade fechada da consistência e a falta de distância do vazio da universalidade (que bem percebido, é e permanece sempre “telos”) está a paragem da tensão dos dois movimentos “contrários” como consistência da força de tensão da compreensão. O telos do  crescimento da força de paragem tensionada é a plenitude da “compreensão” como a total presença da totalidade no instante.
Portanto, a “exterioridade” do “estou/sou olhando”, enquanto mesmidade da coisa, refere-se à solidez-compactação da consistência da singularidade; a “interioridade” do “estou/sou olhando”, enquanto mesmidade do “eu” como “cada vez meu”, refere-se à ausência de distância do vazio da universalidade enquanto “aí” da origem; e o “meio” do “estou/sou olhando”, enquanto mesmidade, refere-se à necessidade de compreensão como vitalidade fechada e no entanto aberta da plenitude do con-teúdo.
Visto com precisão, o que se disse é considerado em vista da constituição da casa enquanto coisa, constituição do “eu” como origem,  e da percepção como ato. Nesse sentido, por assim dizer, falou-se no modo da “ob-jetualidade” (coisa no mundo).
O que é pois o ‘estou/sou olhando’ que olha para o que foi “dito”? Ali chamamos a isso de ausência de expressões. Tudo que se disse o que ainda está para ser dito (todas as designações, incluindo mesmo o “aí”) é apenas um momento de demonstração (interpretação) desse “aí”.
“Aí” significa ao mesmo tempo abertura, mesmidade, ausência de distância, autoproximidade. Para distingui-lo do “aí”  da origem, como “cada vez meu” da egoidade, prefiro  caracterizá-lo como nada ou in-stante. É aquilo que “torna” tudo e cada coisa em si mesmo. Portanto, a coisa-troço (Ding) em coisa-troço; a coisa (Sache) em coisa; a não-coisa em não-coisa; a interpretação em interpretação etc.  Isso que torna tudo e cada coisa necessária.
Mas se é assim, então “aí” é: plenitude e vazio. Densidade e delgadez, tudo e nada, singularidade e universalidade, mesmidade e não-mesmidade, sentido e não-sentido, verdade e não-verdade. É a ”singularidade” de todo e qualquer ente enquanto si-mesmo. [A singularidade da universalidade consiste então em ser universalidade].
Mas se tudo e cada coisa é “necessariamente singular”, então entre os entes já não há mais nenhuma relação; não há mais diferença. E assim também já não há mais identidade.
Mas se tomamos o “aí” de forma radical e coerente, então nem sequer podemos dizer: não haveria mais nenhuma relação, não haveria mais nenhuma identidade e diferença, isso porque agora precisamente se pode dizer propriamente: há a relação, há identidade e diferença, há unidade e multiplicidade. Isso porque “relação entre”, identidade, diferença etc., movem-se numa concepção de ser que possibilita precisamente algo assim como “relação”, identidade e diferença. E “aí” é precisamente a possibilidade de visão do descortinamento dessa concepção e ser enquanto concepção de ser.  Nesse sentido, já não se move mais “dentro” dessa concepção de ser.
Portanto: é só agora que há propriamente diferença, identidade, relação, multiplicidade, unidade, mas não mais como a concepção de ser, mas como uma determinada concepção de ser. [Essa determinada concepção de ser, no entanto, não deve ser compreendida, como se ela fosse uma das muitas concepções de ser possíveis. Ela é propriamente a concepção de ser possível, na medida em que tudo abarca. Mas ela não concebe a si mesma, porém, como concepção de ser se não surgir na clareira do “nada”. “Aí”, portanto, não é uma “outra” concepção de ser.  “Aí” é a impossibilidade da concepção de ser. É só agora que se mostra essa concepção de ser enquanto si mesma.
Isso tudo significa novamente que o “aí” (nada) já não suporta mais nenhuma outra determinação a concepção de ser, e isso, de modo tão radical que, no mesmo instante, poderíamos dizer: portanto, suporta  toda e cada determinação do “aí” a partir da concepção de ser.  Isso significa, novamente: todas as determinações do “aí”, a partir da concepção de ser, trazem em si o caráter de impossibilidade do paradoxo. E “aí” dá a cada coisa e a tudo seu sentido e sua clareza verdadeiros enquanto mesmidade.
Não é isso, precisamente isso que chamamos de olhar?
Não é isso a autoevidência parda absoluta do cotidiano, do in-stante, quando dizemos flor é flor, o céu é azul, tão flor e tão azul, que simplesmente olhamos: flores, céu azul, sempre a coisa sem porque?
[23] Cf. Antoine de Saint-Exupéry. Le petit Prince.
[24] Na mitologia e nos contos, com o toque de suas mãos, a criança faz florir repentinamente plantas secas. Exatamente o mesmo faz, porém, o velho sábio. Cf. Der Ochs und sein Hirte. p. 49, cf. o arquétipo “a criança divina” em C.G. Jung.
[25] NdT: [Abaixo na apostila no restante da p. há quarto quadrados a caneta que provavelmente iria desenhar os quadros, posteriormente, o que não foi feito; só os quadros vazios.]
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