Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução à Fontes Clarianas

05/03/2021

 

Santa Clara nasceu em Assis em 1194. Aos 18 de março de 1212, saiu de casa e se consagrou a Deus na Porciúncula. De 1212 até a sua morte, aos 11 de agosto de 1253, viveu no silêncio e no retraimento da clausura de São Damião.

Da vida do ser humano, por mais brilhantes e influentes que tenham sido suas atuações o que resta gravado na pedra do túmulo é, quando nasceu, quando morreu, e resumidamente o que fez. E na nossa mente, com o tempo, a memória do que ele fez é apagado, restando apenas a constatação de que ele nasceu, cresceu e morreu.

Assim, para conhecer uma pessoa do passado, suas atuações, influências e obras, não há outro meio a não ser seus escritos e relatos feitos por seus contemporâneos, transmitidos oral e graficamente para os pósteros. Quanto maior a distância de tempo que nos separa da pessoa do passado, surge a necessidade de fixar as transmissões orais a seu respeito, em escrita.

Santa Clara no ermo da clausura de São Damião, escreveu: uma Forma de Vida, um Testamento, quatro cartas a Santa Inês de Praga, uma carta a Ermentrudes de Bruges e compôs uma bênção. Das suas escritas, é tudo que até hoje conhecemos e possuímos. Sobre Santa Clara temos os seguintes relatos: Legenda de Santa Clara, uma outra Legenda versificada, Processo de Canonização, Bula de Canonização, Notificação da morte e nos outros escritos franciscanos informações biográficas sobre ela: 1Cel 18-20, 1Cel 116-117, 2Cel 204-206, LP 43, EP 90, Actus 15; 16; 21; 41; 42, Fior. 15; 16; 19; 33; 35, LM 12, 2. E temos ainda documentos pontifícios antigos que se relacionam com Santa Clara: Privilégio da Pobreza, Carta de Honório III, Regra de Hugolino, Regra de Inocêncio IV, e outras Regras posteriores. Assim, as fontes clarianas são constituídas de escritos de Santa Clara e de relatos históricos sobre ela, acima mencionados. É dessas fontes que hoje, 851 anos após a sua morte, haurimos tudo que podemos saber sobre Santa Clara. Mas a descoberta e a publicação de toda essa documentação sobre ela é bastante recente. Por isso apesar de valiosos e inúmeros estudos que hoje estão surgindo sobre a vida e as obras de Santa Clara, é muito pouco o que sabemos dela e sobre ela.

É costume dizer que Santa Clara foi inteiramente dependente de São Francisco, de tal sorte que não é possível conhecer Santa Clara sem São Francisco. A esse respeito observa frei José Carlos Pedroso OFM cap. autor de grande competência e erudição, que traduziu as Fontes clarianas, do latim para o português e as enriqueceu com introduções, notas e índices de sua autoria: “Todos sabem que ela viveu em Assis no tempo de São Francisco e ninguém deixou de ter notícias dela quando leu os livros ou assistiu os filmes sobre seu conterrâneo famoso. Muitos ficaram com a idéia de que  ela teria sido sua namorada. Todos que ouviram falar dela conhecem-na como a santa que levanta uma custódia com o Santíssimo Sacramento. (…) Sempre souberam que ela era uma grande santa, e muitos a associaram à idéia de ‘plantinha de São Francisco’, uma expressão que ela mesma usou. Mas os documentos recuperados no século XX vão mostrar uma figura destacada e ímpar na história da Igreja” (Fontes Franciscanas, Vozes e Cefepal, Petrópolis 1993 pg. 3). E isto de tal sorte que certamente devemos dizer: não é possível conhecer São Francisco e a sua espiritualidade sem Santa Clara. Assim, dizer Francisco e franciscano sem Clara e clariano é uma denominação pela metade. Por isso surgiu entre nós o neologismo francisco-clariano.

Hoje, portanto, é “in” destacar a diferença da identidade de Santa Clara em referência à de São Francisco, e mostrar diversos aspectos da originaridade e grandeza da personalidade de Santa Clara. E seria “out”, insistir na grande dependência de Santa Clara, de São Francisco, no que diz respeito à sua espiritualidade. Assim, nessa perspectiva falar de Santa Clara, como a “plantinha de São Francisco” não cai bem. No entanto, apesar de tudo, vamos nessa introdução, apresentar a Santa Clara como “plantinha” de São Francisco, destacando a sua figura como imagem, semelhança radical e total de São Francisco, que era imagem semelhança radical e total de Jesus Cristo Crucificado, portanto Santa Clara, irmã menor..

Se lermos atentamente os escritos de Santa Clara percebemos de imediato que a sua inexorável e única paixão era seguir a Jesus Cristo, Crucificado. Jesus Cristo Crucificado, como no caso de São Francisco, a fascina, a atrai, lhe absorve todas as suas forças, no grande desejo de unir-se a ele, de ser carne de sua carne, osso de seus ossos. Toda sua luta, toda sua preocupação em sempre de novo seguir a pobreza de Jesus Cristo, sine glossa, sine glossa, em imitando o exemplo de São Francisco, a sua tenaz insistência em guardar a estreitíssima pobreza em tudo, até ao “exagero” da necessidade física extrema, o contínuo pedido de viver a pobreza estrita, como privilégio, a Forma de Vida escrita por ela, seguindo a forma de vida de São Francisco, o seu Testamento, e reiterado pedido de poder vivê-la como regra, concedida somente a ela e às irmãs de São Damião apenas dois dias antes da morte, tudo isso atesta de modo veemente, onde estava o tesouro do coração de Santa Clara. Para irmã Clara, Jesus Cristo Crucificado era tudo, sua existência, sua realização, sua contemplação, sua consagração. Seja o que for, e como for as vicissitudes e as diversidades de formas que tomavam a sua vida e a vida de suas primeiras co-irmãs, no corpo e na alma, em particular e em comunidade, na vida privativa e na vida pública, nas coisas cotidianas e nas coisas extraordinárias de acontecimentos inesperados, na dor e na alegria, nos fracassos e nas vitórias, na doença e na saúde, na morte e na vida, em tudo, e em cada coisa, a cada momento, viver, existir, ser para Clara não era senão, única e exclusivamente seguir de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento a Jesus Cristo Crucificado. Esta era para Clara, a vida franciscana, a vida em pobreza, a vida religiosa consagrada. E isto simplesmente, e não vice-versa! Assim, a Pobreza, i.é, a Senhora Pobreza, i. é, Jesus Cristo Crucificado não era uma das inúmeras modalidades que constituem a vida clariana. Era como que o registro central, a categoria fundamental, a partir e dentro do qual se consideravam e se operavam todos os afazeres da vida clariana, sejam quais forem suas denominações como p. ex. contemplação, fraternismo, minorismo, busca de perfeição pessoal, vida comum, vida espiritual e cultivo de piedade, clausura, vida de mosteiro, vida no eremitério, sim, a própria pobreza, entendida como prática de ascese e de penitência ou também de uso pobre das coisas etc. Todas essas coisas não teriam nenhum sentido por si e em si, se não estivessem enraizadas em Jesus Cristo Crucificado e seu seguimento. Nesse sentido o seguimento de Jesus Cristo Crucificado era radical, i. é, a raiz de todas as coisas para Santa Clara. Nesse sentido diz Chiara Giovanna Cremaschi no Dicionário Franciscano, Vozes e Cefepal, Petrópolis 1993, p. 598: “A essência da vida das Pobres Damas é, antes de qualquer outra coisa, amar uma pessoa, Jesus Cristo, como resposta ao seu amor” (cf. R. Dhont, Chiara, Madre e sorella, p. 23-42). “Trata-se de entregar-se a Cristo. Elas não querem possuir outra coisa que não seja Cristo” (Legenda de Santa Clara 13). “Sem sombra de dúvida a pedra angular de todo o edifício religioso, de toda a vida espiritual de Clara e de suas irmãs é estarem ligadas com afeto pessoal a Jesus Cristo, amor esse ardente e apaixonado. Por causa de Cristo, perto de Cristo, junto de Cristo se realizam todas as suas experiências e se constrói sua vida em sua totalidade” (cf. R. Dhont, op. cit. p. 56-57). A realidade do que aqui é denominado de afeto pessoal a Jesus Cristo, podemos talvez vislumbrar nas palavras do Cântico dos Cânticos: “Coloca-me como marca de ferro, queimado sobre teu coração, como marca sobre teu braço! Porque o amor é forte como a morte, e a paixão é implacável como a sepultura: suas centelhas são centelhas de fogo, labaredas divinas. Águas torrenciais não conseguem apagar o amor, nem rios podem afogá-lo” (Ct 8,6-7). Hoje, não conseguimos perceber que uma tal afeição, não é propriamente nenhuma realidade sentimental, subjetivo-psicológico, sim pessoal, privativa, mas como que uma fenda de entrada para dentro da realidade universal através da qual se anuncia um abismo de realidade realíssima, oculto aos nossos sentidos embotados em inter-esses dispersivos, pragmáticos imediatistas. Realidade realíssima que é o que denominamos Reino de Deus ou segundo São Francisco o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.

Recordando: Santa Clara nasceu em Assis em 1194. Aos 18 de março de 1212, saiu de casa e se consagrou a Deus na Porciúncula. De 1212 até a sua morte, aos 11 de agosto de 1253, viveu no silêncio e no retraimento da clausura de São Damião. O subterrâneo abscôndito sob o silêncio e retraimento dos afazeres cotidianos de Santa Clara e de suas primeiras co-irmãs é a Terra de Fogo do Amor Divino, o Pais do Amor do Deus encarnado, i. é, o ser do Deus feito Homem, o Cristo Crucificado, a Altíssima Pobreza, em cuja habitação mulheres e homens se tornam pessoas, irmãs e irmãos menores, familiares e cidadãos livres, concretos e definidos, reais e humildes, aqui e agora, na jovialidade inesgotável da Perfeita Alegria do Mistério da Encarnação.

Em Assis, há vielas, travessas e becos, murados com pedras de cor marrom-rosa, colocadas uma em cima da outra, formando paredões. Escondidas, insignificantes e mal percebidas, agarradas nas pequenas cavidades das junções das pedras, lá onde há um pouco de terra, vindo não sei de onde, trazidas pelo vento, florescem minúsculas flores, rubras, brancas, simples, ali expostas às agruras das intempéries, sem nada dizer, no frescor e na alegria, na valentia singela, mesmo que durem por algumas horas, um dia, florindo por florir, entregues de boa vontade à graça da vida (Em Comentando I Fioretti, EDUSF, Bragança 2003, p. 196-7). É o poder da beleza e da graça de Santa Clara e de suas filhas, plantinhas de São Francisco, anunciando e se tornando como presença do Reino, do novo Céu e da nova Terra, cujo domínio, cuja realeza é a força menor e melhor do Deus vindouro, cujo poder e cuja sabedoria é inaugurada como loucura da jovialidade da Cruz (I Cor 1, 20-25). Plantinhas e flores, valorosas promessas do fruto, I fioretti de São Francisco.

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