Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

III – Do Oficio Divino, do Jejum e de como os Irmãos devem ir pelo mundo

01/03/2021

 

DO OFICIO DIVINO, DO JEJUM E DE COMO OS IRMÃOS DEVEM IR PELO MUNDO

DE DIVINO OFFiCIO ET IEIUNIO, ET QUOMODO FRATRES DEBEANT IRE PER MVNDVM

Clerici faciant divinum officium secundum ordinem sanctae romanae ecclesiae excepto psalterio, ex quo habere poterunt breviaria. Laici vero dicant viginti quator pater nosterpro matutino, pro laude quinque, pro prima, tertia, sexta, nona, pro qualibet istarum septem, pro vesperis autem duodecim, pro completório septem, et orent pro defunctis.

Façam os clérigos o ofício divino; por isso podem ter breviários, segundo a ordem da santa Igreja Romana, exceto o Saltério. Os irmãos leigos, porém, digam vinte e quatro pai-nossos pelas matinas; cinco pelas laudes; pela prima, terça, sexta e noa, por cada qual sete; pelas vésperas doze; pelo completório sete; e rezem pelos defuntos.

RNB: Diz o Senhor no Evangelho: “Esta espécie de espíritos malignos só pode ser expulsa pelo jejum e a oração” (Mt 9,28). E ainda: Quando jejuardes não fiqueis tristes como os hipócritas” Mt 6,16). Por isso, todos os irmãos, sejam clérigos ou leigos, recitem o ofício divino, as ações de graças e demais orações, como é de sua obrigação. Os clérigos recitem o oficio divino e orem pelos vivos e defuntos segundo o costume vigente entre os clérigos da Igreja de Roma. E pelas faltas e negligências dos irmãos rezem diariamente o Miserere mei, Deus (SI 50) e o pai-nosso; pelos irmãos defuntos rezem o De profundis (SI 129) com o pai-nosso. E só poderão ter os livros indispensáveis para a recitação de seu ofício. E os leigos que sabem ler o Saltério poderão tê-lo. A todos os outros que não souberem ler não seja lícito ter um livro. Os leigos devem rezar: o creio-em-deus-pai e vinte e quatro pai-nossos com o glória-ao-pai, pelas matina,; pelas laudes, cinco; pela prima, o creio-em-deus-pai e sete pai-nossos com o glória-ao-pai; pela terça, sexta, e noa a cada uma sete; pelas vésperas, doze; pelas completas, o creio-em-deus-pai e sete pai-nossos com o glória-ao-pai; pelos defuntos, sete pai-nossos e o “Senhor, dai-lhes o descanso eterno”; e pelas faltas e negligências dos irmãos, rezem diariamente três pai-nossos.

E assim contritos e confessados recebam o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com grande humildade e respeito, recordando que o próprio Senhor disse: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue possui a vida eterna” (Jo 6,55); e: “Fazei isto em memória de mim (Lc 22,19).

Onipotente, altíssimo, santíssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor e Rei dos céus e da terra, damo-vos graças por causa de vós mesmo, porque por vossa santa vontade e pelo vosso único Filho criastes no Espírito Santo todos os seres espirituais e corporais, nos fizestes à vossa imagem e semelhança e nos colocastes no paraíso – e nós caímos por nossa culpa. E rendemo-vos graças porque, se por vosso Filho nos criastes, pelo mesmo verdadeiro e santo amor com que nos amastes e fizestes nascer como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, da gloriosa, beatíssima, santa e sempre virgem Maria, e quisestes que nós cativos fôssemos remidos por sua cruenta morte na cruz. E damo-vos graças porque o mesmo vosso Filho há de voltar na glória de sua majestade para lançar ao fogo eterno os malditos que não quiseram fazer penitência: “Vinde, benditos de meu pai, tomai posse do reino preparado para vós desde a criação do mundo” (Mt 25,34).

E porque todos nós, miseráveis pecadores, não somos dignos nem sequer de pronunciar o vosso nome, suplicantes vos pedimos que NS Jesus Cristo, vosso dileto Filho, em quem tem tendes vossa complacência (Mt 17,5), vos renda graças, juntamente com o Espírito Santo Paráclito, por tudo, conforme agradar a vós e a eles. Pois é Ele quem vos satisfaz por tudo, e por intermédio dele nos cumulastes de tantos bens. Aleluia.

E pedimos humildemente à gloriosa, beatíssima e sempre virgem Maria, a São MIguel, São Gabriel, São Rafael e a todos os coros dos bem-aventurados espíritos, aos serafins, querubins. tronos, dominações, principados e potestades, virtudes, anjos, arcanjos, a São João Batista, a São João Evangelista, a São Pedro, a São Paulo, aos santos patriarcas, profetas, inocentes, apóstolos, evangelistas, discípulos, mártires, confessores, virgens, aos beatos Elias e Enoc e todos os santos que houve, haverá e há no momento, que, na medida de soas forças, vos rendam graças por tudo isto, a vós, o sumo Deus verdadeiro, eterno e vivo, com vosso Filho caríssimo, Nosso Senhor Jesus Cristo e o Espirito Santo Paráclito por toda a eternidade. Amém.

Na tradução antiga da RNB 3, há mais dois textos da Sagrada Escritura, correspondentes ao versículo 2: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 26,41); e “Quando orardes dizei: Pai nosso, etc.” (Lc 11,2); estes textos, porém, não aparecem na edição crítica.

Esta ordem de temas (recepção à Ordem, vestuário, ofício divino, jejum) se encontra também na RNB e no Testamento. Este fato confirma que São Francisco é realmente o autor da RB. Houve sem dúvida um arranjo estilístico neste trecho. Entretanto é bem claro o respeito que se guardou ao pensa-mento e ao vocabulário do Santo, como revela sobretudo a última frase, que dispensa os irmãos do jejum corporal em tempos de manifesta necessidade. Qualquer jurista teria dado uma definição do “tempus necessitatis”, ou indicado a autoridade competente para fixar este tempo. São Francisco deixa evidentemente tudo entregue à consciência de seus irmãos, os quais, como veremos, nem sempre podiam estar junto de seus Ministros provinciais.

Façam os clérigos o ofício divino. A oração do ofício divino é um compromisso antes de tudo comunitário, da fraternidade. A necessidade de ter um lugar onde rezar juntos e celebrar comunitariamente a liturgia foi um fator importante (junto com a formação dos frades) para uma evolução “conventual” da Ordem. As igrejinhas perto dos conventos se multiplicaram rapidamente e logo se tornaram habituais. Em 1224 Honório III concedia aos Frades Menores de conservar nelas a Eucaristia. Mais tarde todas as ordens mendicantes assumiram a obrigação de celebrar “em coro”, isto é, no lugar próprio para isso e na modalidade chamada “coral”, o ofício divino, isso pelo menos nas comunidades com mais de quatro membros. Em 1969 a Congregação dos Religiosos concedeu à ordens mendicantes que o ofício divino pudesse ser “recitado em comum”, preferivelmente na Igreja.

Na terminologia da época o “ofício divino” abrangia a celebração diária da santa Missa e das ho-ras canônicas “segundo o rito da santa Igreja de Roma”, isto é, na mesma forma em que o Papa o fazia em Roma com seus clérigos. Tal disposição constituía grande inovação, numa época em que quase todas as dioceses e Ordens religiosas tinham ritos próprios para as horas canônicas. Os Dominicanos, de origem contemporânea, ainda organizaram seu rito próprio. São Francisco, porém, preferiu ligar estreitamente sua ordem à Igreja de Roma e ao Papa. Era, também, a forma de rezar o Ofício mais compatível com o estilo de vida apostólica que os frades levavam.

Enquanto os clérigos em geral adotavam o rito da Igreja, a cujo serviço se encontravam, os clérigos franciscanos não se subordinavam a uma diocese particular, mas ficavam ligados à Igreja de Roma, e consideravam-se clérigos pontifícios, recrutados pelo Papa para o serviço da Igreja universal. A única particularidade é que não adotavam a tradução dos salmos usada em Roma, o “Psalterium Romanum”, mas a tradução usada em todo o Ocidente, o “Psalterium Gallicanum”. Conheciam-no quase de cor todos aqueles que haviam frequentado a escola.

A obrigação de rezar o ofício da Igreja romana não era só dos frades clérigos, mas também dos frades não clérigos. Para estes últimos, segundo a praxe de então, São Francisco criou uma espécie de ofício, prescrevendo certo número de Pai-nossos para cada hora canônica.

Na Regra Francisco só prescreve a seus irmãos a recitação do ofício divino, mas não especifica a maneira de fazê-lo. Na “Carta a toda a Ordem” 40-42, porém, faz algumas considerações: “Rogo-vos quanto posso… que os clérigos digam as horas canônicas com devoção, na presença de Deus, não atendendo à melodia da voz, mas antes à consonância do espírito, de sorte que a voz se una ao pensamento, e o pensamento a Deus, a fim de poderem, pela pureza de consciência, agradar a Deus e não lisonjear o ouvido do povo com timbre adocicado”.

Para São Francisco, a liturgia era o lugar privilegiado de escuta da palavra de Deus: a liturgia era a fonte principal do conhecimento bíblico de São Francisco e influenciou particularmente os salmos, sua oração pessoal. Ele apreciava o Ofício divino como oração da comunidade, e tinha uma surpreendente dureza para os que não o recitavam. E dava o exemplo, como diz no Test: “Conquanto eu seja simples e doentio, quero contudo ter sempre um clérigo que reze comigo as horas canônicas, como se estabelece na regra”. “Àqueles irmãos, porém, que não o queiram observar, não os considerarei como católicos, nem como irmãos meus. Não quero vê-los, nem falar-lhes, até que tenham feito penitência”. Fazia, com isso, transparecer claramente quanto tomava o ofício divino como índice de catolicidade, pois os hereges não o recitavam.

Pai Nosso. Eram recitados ou cantados na hora litúrgica correspondente. Para São Francisco, o pai-nosso tem grande importância e muita significação. Dizer “pai-nosso” não é só rezar uma oração, mas assumir toda a essência do cristianismo, porque é a expressão de toda uma doutrina e fé. Por isso quem não sabia ler o ofício podia repeti-lo, sem necessidade de mudar de oração. E como o arroz e o feijão na alimentação. Assim, dizer pai-nosso é abrir-se ao modo de ser de Deus Pai, à gratuidade.

A consciência moderna tem dificuldade de entender a repetição porque entende repetição como repetir o igual. “Repetere”, repetir, no fundo é “repedir”. Re = sempre de novo; petir = pedir; para repetir precisa ser cada vez novo. Em geral, porém, quando repetimos, esquecemos de ser novos; como não ficamos novos para repedir, a repetição não fica nova, ela fica igual. Há diferença entre “igual” e “o mesmo”. Iguais são duas cédulas de dinheiro. Mas na dimensão humana nunca há o igual; há o que na filosofia é chamado de “o mesmo”: a identidade. Repetir significa: pedir, buscar, sempre de novo com coração novo o mesmo, nas coisas e situações diferentes; isto é, é uma experiência. A oração do pai-nosso é uma oração que exige que sempre busquemos o mesmo. É fórmula que não muda porque foi ensinada por Cristo, mas quanto mais é rezada, com re-petição “de novo”, tendo coração novo, quem reza começa a entrar em profundidade. A abertura de profundidade é pequena, tem uma forma bem definida, mas quanto mais se entra, mais abre uma paisagem da qual não se dá mais conta: fica tão vasta, tão rica, tão grande que por mais que se busque, por mais que repita, sempre de novo revela cada vez mais perspectivas e horizontes, como fonte inesgotável. Quando se entende isso, começa-se realmente a entrar numa caminhada de busca, concreta e real.

Em São Francisco todos os textos são repetições, isto é, repisa o mesmo. Repisar é como o que acontece na praia: quando você fica repisando no mesmo lugar, onde pensava que não havia água, logo fica úmido e começa a sair água. Imagine agora uma pessoa que fique pisando tanto até sair uma fonte!

Repetir, então, é uma atitude, uma maneira de abordar uma aprendizagem. Na espiritualidade todo método tem que ser repetitivo e todo bom texto repete sempre o mesmo e esse mesmo é insondável. Por isso, ler São Francisco, isto é, fazer sempre o mesmo, esse mesmo abre um mundo e não fica bitolado.

Vinte e quatro, cinco, sete. Esta maneira de falar da oração (só tem formulas e números!) nos parece estranha e seca, num santo como São Francisco, conhecido como místico, cheio de vivências. Parece-nos assim porque temos a mentalidade dualista de oração “oficial”, pública, bonita, mas que não diz muito ao coração, e oração “pessoal”, como contato íntimo da alma com Deus.

Atrás, porém, desse modo de ser da oração apresentado por São Francisco tem algo muito inte-ressante. São Francisco coloca a oração de uma maneira muito técnica; ele não fala do sentimento que nós devemos ter; fala do que temos que fazer; não diz: “Primeiro vamos sentir o louvor ao Senhor, vamos ser profundos…”, diz antes: “Primeiro vamos fazer cinco pai-nossos”: esse modo de fazer é o modo do artesão. Nos dizemos que oração é vivência, os medievais diziam que oração é um fazer, uma obra, um ofício divino. A palavra ofício é composta de “opus facere”, da qual vem a palavra oficina.

Então, atrás dessa maneira de São Francisco falar da oração, tem uma compreensão de oração que nunca tínhamos imaginado: oração é participar do trabalho divino, da obra divina. Se rezar é participar do trabalho divino, então o modo de comportar-se na oração é de um trabalhador. Por isso, diz: “Você quer saber qual é a oração mais profunda e jeitosa? É aquela que o Povo de Deus reza, o Ofício, a Eucaristia. Todas as nossas outras orações têm que ter este mesmo jeito, isto é, tem que ser um Ofício Divino”.

E rezem para os defuntos. Rezar pelos defuntos é manter vivo o elo que unia quando quando ainda em vida terrena. Quem pertenceu à mesma “comunitas”, participou da “alma” do grupo e por isso está na memória da raiz do grupo. Rezar pelos defuntos, além de manter vivo o elo, aponta também para o destino de toda busca humana: o Mistério da Vida, ao qual o frade falecido já está entregue e o frade em vida terrena está a caminho.

RNB: Este gênero de demônios. Tudo o que é toxina do mal, presença do mal é demônio: “este gênero” = esta raça, este bando: há uma raça de demônios que só podem ser expulsos pelo jejum e oração. Temos certa dificuldade de entender a ligação que São Francisco faz entre mal, jejum-oração e ofício divino.

A oração primeira é a oração que o Senhor ensinou, o pai-nosso; depois a profissão de fé, o creio; depois todos os salmos de Davi, e que JC rezou. Então a oração não tem nada de privativo, individual, para si…, como intimidade, profundidade mística. A oração é toda inteira participação numa grande obra que tem como dinâmica fundamental o Criador.

Nós podemos acabar com o mal no mundo trabalhando, nos engajando, lutando, mas há uma espécie de mal diante do qual posso fazer o que quiser, que não sai; é como um câncer, espalhado até o mais íntimo das células da humanidade. O único jeito é com oração e jejum. O jejum e a oração são o último recurso, a maneira mais profunda e mais radical de engajamento.

Certos “males” do universo atravessam a História, porque por mais autêntico que seja um povo não dá conta deles, pois são como que um “gênero de demônios”: por exemplo, você consegue modificar a injustiça, a opressão, a destruição ecológica..? São Francisco diz: “Ha certos gênero de demônios diante dos quais o que podemos fazer é somente o Ofício Divino”. Poderíamos objetar, esse rezar o ofício divino não muda nada. Esta postura de São Francisco, porém, corresponde aos textos de Jesus quando fala da oração: “Se alguém pedir em meu Nome…” (Mt 18,19). Jesus Cristo disse que nós podemos ser onipotentes se nós nos guardarmos em Deus. São Francisco mostra que a oração é o último recurso, o mais forte, o fundamental para nós agirmos.

RNB: Não fiqueis tristes. Por isso, quem jejuar não fique com cara triste, porque se engajou no seguimento de Jesus Cristo, foi chamado para segui-lo no projeto divino, para estar à disposição total dele como servo, cavaleiro, amigo, discípulo e dizer: “Eis-me aqui Senhor!”, e para colaborar com Jesus Cristo nesse imenso trabalho do Povo de Deus; então que negócio é esse de ficar triste? Tristeza e hipocrisia são uma contínua tentação; toda vez que se coloca a si mesmo no centro, amargurando-se com as dificuldades, não se consegue viver o “gratuito”: é a tentação da da subjetividade. É necessário ficar vigilante e aberto para o Mistério. São Francisco diz que só quem se abre radicalmente para Deus, lutando para superar a subjetividade, vence a tentação do egocentrismo e da autossuficiência e se abre à gratuidade, ao “Pai-Nosso”, ao modo de ser de Deus. Por isso quem luta não fica de cara amarrada, mas se alegra porque esse é o modo de ser de Deus.

Oração, jejum e esmola são exercícios de abertura e cultivo da afeição ao divino.

RNB: E assim, contritos e confessados, recebam o corpo e o sangue. Costumamos dizer que a Eucaristia é o centro da nossa Vida Religiosa a célula-mãe da comunidade, a fonte da vida fraternal. Mas o que significa tudo isso? A Eucaristia é o memorial da santa ceia. Memorial não é apenas uma lembrança; é recordação, é tornar presente agora o carisma, a inspiração, que se efetuou na última ceia. Por isso cada vez que realizamos o memorial deveríamos imergir na fonte da inspiração, donde brota toda a energia vital que sustenta e vivifica o sentido do ser-menor.

Ceia, lava-pés são concretizações que expressam materialmente o amor da encarnação: amai-vos uns aos outros como eu vos amei; é o amor de minoridade, a gratuidade. Jesus Cristo deu a vida por esse modo de ser. Dar a vida significa realizar até a extrema doação e generosidade o amor a deus e aos outros. Ao realizar esse modo de ser, ao realizarmos dentro da nossa condição humana esse novo mandamento, fazemos presente e compreendemos o amor do Pai, que ama em superabundância. Essa profunda compreensão do amor é a energética da comunidade.

Et ieiunent a festo Omnium Sanctorum usque ad Nativitatem Domini. Sanctam vero quadragesimam, quae incipit ab Epiphania usque ad continuos quadraginta dies, quam Dominus suo sancto ieiunio consecravit (cf. Mt 4,2), qui voluntarie eam ieiunant benedicti sint a Domino, et qui nolunt non sint astricti. Sed aliam usque ad Resurrectionem Domini ieiunent. Aliis autem temporibus non teneantur nisi sexta feria ieiunare. Tempore vero manifestae necessitatis non teneantur fratres ieiunio corporali.

E jejuem desde a festa de todos os santos até a Natividade do Senhor. A santa quaresma, porém, que começa com a Epifania e se estende por quarenta dias consecutivos, que o Senhor consagrou com o seu jejum, os que nela jejuarem tenham a benção do Senhor; mas os que não quiserem não sejam obrigados; jejuem, porem durante a outra Quaresma, que vai até a ressurreição do Senhor. Em outros tempos não sejam obrigados ao jejum, senão às sextas-feiras; contudo, em tempo de manifesta necessidade, não sejam os irmãos obrigados ao jejum corporal.

RNB: E todos os irmãos jejuem desde a festa de todos os santos até a natividade do senhor e desde a epifania, em que NSJC iniciou o seu jeju, até a Páscoa. Em outras épocas não sejam obrigados ao jejum, segundo nosso gênero de vida, senão às sextas-feiras. E, nos termos do santo Evangelho (Lc 10,8), seja-lhes permitido comer de todas as comidas que lhes forem servidas.

E sempre que lhes sobrevier a necessidade, seja lícito a todos os irmãos, onde quer que estejam, servir-se de todos os alimentos que um homem pode comer, conforme o senhor disse de Davi, que comeu “os pães da proposição, que não é lícito comer senão aos sacerdotes” (Mc 2,26). E recordem o que diz o senhor: “Estai atentos, para que não suceda se embotem os vossos corações pela crápula, pela embriaguez e pelas preocupações da vida, e não vos surpreenda inesperadamente o dia do juízo; pois ele virá como um laço sobre todos os habitantes da terra” (Lc 21,34-35).

Et jejum. Jejum e oração vão sempre juntas porque dizem a mesma coisa. O jejum faz parte da vida evangélica (Mt 9,15): São Francisco quer jejuar porque Nosso Senhor Jesus Cristo também jejuou aqui na terra e Jesus é para ele o Mestre e Senhor; para um cavaleiro tudo o que o seu Senhor faz é importante. Como sempre, São Francisco quer imitar a Cristo com a máxima fidelidade.

O jejum é “abstenção” de alimento. Alimento é o que dá força, então jejum é a abstenção daquilo que dá força. O alimento tem ligação com a necessidade básica e fundamental do ser vivo, por isso o jejum tem a dinâmica de livrar-se do necessário para abrir-se a uma outra radicalidade, para a qual o jejum aponta: o vigor de Deus. Como entender esta abstenção?

Abstenção é “ab-ter-se”: ter a si mesmo aberto, constituir-se dentro do vigor do sentido da coisa. Abstenção, portanto, é ter-se, manter-se aberto, ter a si mesmo no vigor daquilo que dá sentido ao viver. O jejum, como abstenção do que é necessário ao ser vivo, tinha o sentido de concentrar-se no essencial, de recolher as energias de tal maneira que se consiga algo numa radicalidade profunda. Se, por exemplo, a gratuidade é a dimensão essencial do Evangelho, então vou concentrar toda a energia vital nesse ponto, relegando para segundo plano até as preocupações mais básicas como o comer.

Na Bíblia o jejum é praticado como atitude de dependência e entrega a Deus para enfrentar uma tarefa difícil para implorar o perdão, para compreender a palavra de Deus, para se predispor a receber ou transmitir a graça necessária ao exercício de uma missão e para se preparar para o encontro com Deus.

O jejum tem sua forma extrema na greve de fome. Foram as greves de fome de Ghandi que conseguiram a independência da Índia: quando Gandhi começava a jejuar, os ingleses tremiam. Aonde está a força deste jejum? É a força de alguém que diz: “Eu empato tudo nesta causa”; e a última coisa a que nós temos direito é viver e comer; a pessoa empata isso também na sua causa, dizendo: “Aqui estou! Morro, mas combato!” Um ímpeto de decisão assim, absoluto, ameaça qualquer coisa. Este é o significado da greve de fome. Se alguém, porém, pensa: “Vamos fazer uma chantagem, vamos ameaçar porque a turma fica com medo que a gente morra e…”, isso não funciona porque o outro lado pode dizer: “Que morram!”; o jejum não tem significado de chantagem, mas de lançar a última cartada no engajamento.

Desde a festa… Os tempos penitenciais da Regra coincidem com os da Igreja de então. Os frades tem o dever de observar o jejum em força da Regra, na quaresma que vai da festa de todos os santos até o Natal e tanto em força da Regra como da Igreja, nas sextas-feiras e na “Quaresma”. Quanto ao modo de jejuar, a Regra nada diz; vale portanto a praxe eclesial de cada tempo e região (CIC 1249, 1251). Na prática valem as orientações que vêm das conferências episcopais (maior dedicação à oração, obras de caridade, maior fidelidade ao dever, abstinência e jejum na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa) e da legislação própria, no nosso caso o que estabelecem os estatutos provinciais.

Disciplinar o jejum antes das festas significa fazer do jejum um chamado de atenção para o jejum da vida: prepotências, egoísmos… que matam a grande vida e impedem que aconteça a santidade.

Em outros tempos. São Francisco se opôs a jejuns mais numerosos (1220). Os beneditinos, os cônegos regulares, os humiliatas e os dominicanos no verão jejuavam dois dias por semana, e de setembro até a Pascoa, continuamente, não permitindo nenhum uso de carnes a não ser para os doentes.

São Francisco permite aos pregadores itinerantes comer de todas as comidas que são servidas, procurando salvaguardar a liberdade evangélica: ninguém deve tomar-se escravo nem do alimento e nem do próprio jejum como fim a si mesmo, pois o jejum não tem valor em si e portanto não deve ser absolutizado. O jejum é colocado assim a serviço do essencial, a serviço da liberdade evangélica.

Em tempo de manifesta necessidade. São Francisco valorizava muito o jejum e com maior empenho o praticava, mas foi criterioso ao determinar a medida para os frades, e adverte-os de que em tempo de manifesta necessidade não são obrigados ao jejum corporal. Se de repente um noviço, no dia do jejum máximo, grita que está com fome, SF com a maior simplicidade deixa o jejum, e come junto com ele. Estar na necessidade é não ter alternativas e ter que soltar a criatividade.

SF é um medieval; e o medieval é um trabalhador competente mesmo no trabalho do espírito, assim que quando diz “necessário”, “indispensável”, pensa numa situação real, e não no que afirma a opinião pública.

Consulo vero, moneo et exhortor fratres meos in Domino Jesu Christo, ut quando vadunt per mundum, non litigent neque contendant verbis (cf. 2 Tim 2,14), nec alios iudicent; sed sint mites, pacifici et modesti, mansueti et humiles, honeste loquestes omnibus, sicut decet.

Aconselho, admoesto e exorto a meus irmãos em NSJC que, ao irem pelo mundo, não discutam, nem porfiem com palavras (cf. 2 Tm 2,14), nem façam juízo de outrem, mas sejam mansos, pacíficos, modestos, afáveis e humildes, tratando a todos honestamente, como convém.

RNB: Quando os irmãos andarem pelo mundo, nada levem consigo para a viagem, nem bolsa, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem bastão (Lc 9,3). E não injuriem ninguém (Tt 3,2), não murmurem, não caluniem a outros, por quanto está escrito: Os murmuradores e os caluniadores são odiados por Deus (Rm 1,29). Mas sejam modestos e cheios de mansidão para com todos os homens (Tt 3,2). Não julguem, não condenem;~e, como diz o senhor, não reparem nos menores pecados dos outros (Mt 7,3), mas com o coração amargurado (Is 38,15) pensem antes nos seus. E esforcem-se por entrar pela porta estreita (Lc 13,24), porque diz o senhor: quão estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o encontram (Mt 7,14). E todo aquele que deles se acercar, seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade. E guardem-se os irmãos de se mostrarem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas. Mas antes comportem-se como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém.

Aconselho, admoesto e exorto. Entramos agora na parte central da Regra: a vivificação em concreto da “vita minorum fratrum”. Em nossa Regra os trechos “exortativos” são mais importantes que os trechos normativos. Afinal o que pode, ser mandado, como vestes, orações, jejuns, são de alguma forma “periféricos”; quanto mais a fala se aproxima do essencial, menos se pode “mandar” e mais exortar, isto é, convidar para a evidência originária, para se colocar novamente na afeição originária capaz de revigorar todo o viver. A forma literária usada é muito solene e adverte que aqui chegamos ao âmago do viver religioso franciscano: Francisco, depois de ter falado do jejum corporal, fala agora do jejum “espiritual”, do jejum do coração, pois o Frade Menor poderá ser manso, pacífico. modesto, afável e humilde, cortes, somente se engajar-se num trabalho de jejum “espiritual”.

Ao irem pelo mundo. Aqui, como mais adiante, São Francisco pensa em seus irmãos que andam pelo mundo, em grupos pequenos, como pregadores ambulantes, unindo o trabalho ocasional à pregação: homens sem morada fixa, tendo o mundo inteiro por convento. A eles, SF dá, frase por frase, bem práticas para a vida itinerante. Usando frases que lembram São Paulo, exorta os frades, indica como deve ser o relacionamento dentro e fora da fraternidade; as fórmulas são tanto negativas quanto afirmativas, visando concretizar a forma evangélica de vida; que sejam “vere minores” ao exercerem o seu apostolado de pregadores itinerantes. À “minoritas” pertence também a cortesia, por isso acrescenta de falarem honestamente a todos que encontrarem.

Mas a expressão “ir pelo mundo” é mais do que uma expressão “geográfica”. Ir pelo mundo é condição de todo homem. Mundo é a totalidade dos entes nos quais estamos “com sentido”. Estamos em via, este sentido ecoa e tudo entorno a nós e nós próprios tomamos ‘cara’ religioso-franciscana. Ir ao mundo (na RNB em latim é “mittere”, nem ativo nem passivo, mas medial) é dispor-se para o livre fluir daquilo que está se doando, pois o cotidiano e “em-via” de Deus e o “ser-ob-audiente é intérprete, o mediador daquilo que está se doando. O que é em-via, é o sentido do homem; existir e descobri-lo.

O frade, portanto, ande pelo mundo a modo de peregrino e não de zanzão, de turista, ou de patrão. O peregrino está sempre sob o teto do outro, de graça, a modo de esmola: não grã-fino que vai pra cá e pra la e pode contar: estive aqui, estive ali. É o jeito de quem não tem nada de próprio.

Sejam mansos… Depois da fórmula negativa, SF fala positivamente das virtudes que fazem parte essencial da vida minorítica, todas elas necessárias ao frade menor. Quem quer amar como NSJC ama, não pode ser agressivo nem colérico com os seus confrades; quem os ama como Cristo nos amou deve trabalhar pela paz e fazer todo esforço para apaziguar o convívio dos irmãos. Atendendo à exortação do Senhor no sermão da montanha os irmãos não sejam tacanhos e importunos, mas para além de toda a mortificação que sua vida exige, sejam alegres e cordiais, amáveis, dignos do amor de Deus, dos homens e dos companheiros. Com esta jovialidade no trata entre si os minoritas contribuem, talvez de modo específico, para a glorificação de Deus.

Usualmente o que faz muito mal ao convívio dos frades é criticar-comparar uma manifestação da vida com outra, dizendo que uma é boa e outra não, que uma articulação é mais privilegiada e que outra o é menos. Esta comparação horizontal faz com que uma seja aceita, outra rejeitada, criando “prioridades”. Mas se colocarmos a questão no nível fundamental, “espiritual”, haverá um espirito de crítica das manifestações da vida deve ser feita a partir da ligação que cada uma tem com o essencial que lhes da’ origem A crítica feita a partir de comparações tem por fundamento a ideologia e não aguenta o diferente. Julgar a partir do “espirito” faz ver e acolher o diferente. Julgar, por exemplo, a pobreza no nível de “ter-não ter’ é falha porque é crítica feita por simples comparação. O julgar do ‘espírito’ suporta as diferenças dos vários modos de ser pobre e faz perceber em que profundidade ela acontece. O espirito é a unidade interior que salva a Vida Religiosa.

RNB: Os murmuradores e caluniadores são odiados por Deus. Por que são “odiados” por Deus? O murmurar é magoado, cheio de azedume, não tem um coração limpo. É ressentido e queixoso com Deus; no fundo é “caluniador” de Deus. São Francisco não gosta disso!

RNB: Sejam modestos e cheios de mansidão. Modéstia e mansidão se equivalem. Mansidão e plenitude de energia contida e denota muita força. Quem é manso está tão cheio, tão pleno de força que não precisa de violência para ser recebido. O con-crescer é sem barulho.

RNB: Não julguem, não condenem. Estas palavras parecem dizer: cuidem unicamente e primeiramente de sua identidade. É um texto que “provoca”, que convida para um “cuidado”. De fato nós não conseguimos agir sem pensar que temos razão. O texto nos convida a estarmos dispostos á sermos julgados também e a estar abertos para eliminar a ideia de que somos donos da verdade. Tal atitude leva a respeitar o outro. Respeitar o outro não significa nada dizer e nada fazer, mas não ter atitude de dono da verdade. É manter-se na abertura do “somos servos inúteis”.

RNB: Coração amargurado. Coração amargurado, diferentemente de coração ressentido é coração sincero e limpo no arrependimento; é chorar o pecado, sem se lambuzar, isto é, sem se chatear porque pecou. O medieval quando quer corrigir a outro, sempre corrige a si mesmo, pois o registro central, mesmo do erro do outro. está aqui, dentro do coração. No coração temos muita maldade, mas se limpar por dentro, então se pode falar para o outro sem maldade e sem provocação, numa correção fraterna verdadeira. Confrontando-se com o outro aparece a opacidade-maldade nossa. O meio de comunicação de São Francisco é ser. isto é. é processo de auto-esquentamento (e não de publicidade), por isso ele trabalha a si mesmo e trabalhando a si tem comunicação. Ele chama a isso de “exemplo”: antes de dizer paz, você seja obra de paz.

RNB: Porta estreita. O texto não diz que é difícil entrar, mas que é difícil de encontrar, de descobrir: a entrada está escondida. O caminho, a porta parece insignificante, se pensa que não é importante, que é alienante, por isso e difícil de descobrir. Frei Egídio, perguntando do que fazer para ser santo, respondeu: “Jesus Cristo com um pouco de lama sarou um cego”, isto é, não é coisa do outro mundo: a santidade e usar o que está ai, o que somos.

RNB: Cuidem-se de não se mostrar exteriormente tristes e sombrios hipócritas. Por que este “exteriormente”? Aqui também pensamos o contrario dos antigos; dizemos que o exterior não basta, que precisa o interior, dizemos que se temos raiva de uma pessoa, não adiante dar-lhe o bom dia, porque se o fizer só por fora, é falta de sinceridade. Parece ser muito autêntico dizer: o anterior não basta, é preciso o interior e enquanto não tiver o interior não faça o exterior.

Quem pensa assim porém não conhece bem como é o humano. Está excluindo a materialidade, como não pertencente ao humano e sem valor. Mas quem é trabalhador braçal, sabe muito bem que o primeiro passo que podemos fazer com é o exterior, porque o interior é muito mais difícil; ele então primeiro faz o mais fácil! Já tentou mimar uma pessoa depressiva? Você a convida a passear um pouco num dia bonito, e ela responde que não está a fim, que o dia está bonito sim, mas isso não dura muito e que lá já estão se formando nuvens… A única saída é ir, mesmo que por “dentro” não queira; indo materialmente por “fora” já fica melhor; quem sabe que o dentro também não acompanhe? Nunca aconteceu de não estar muito a fim por dentro, até se dar um pontapé e na marra sair de si para alguma atividade e voltar depois todo contente porque aquele negócio ruim que você tinha foi embora?

Por isso, o medieval dizia: “Ah! Você está acabrunhado? Então, exteriormente faça com alegria no Senhor”. Se alguém está acabrunhado, cabisbaixo porque fizemos jejum, penitência ou porque ainda tem dúvida se quer ou não quer ser franciscano. SF diz: Levanta a cabeça! Dá para levantar? Então levanta essa coragem de fazer o que pode material, pobre e humildemente; é isso que incendeia, que se torna um estopim para passar da tristeza para a alegria. E é isso que se chama: “no Senhor”.

RNB: Mostrem-se alegres no senhor. joviais e convenientemente graciosos. Os “netos” de São Francisco, isto é, a 3ª geração, na Inglaterra, tinha frades tão alegres que pareciam bobos alegres. Havia entre eles um jovem universitário, em Oxford, todo esfarrapado, descalço no inverno, mas os rins e o coração estavam quentes e a cabeça também. Este jovem ia sempre ocupar o primeiro lugar para escutar melhor, pois queria ser o primeiro da classe; esfarrapado e mendigo, queria ser o primeiro da classe na busca da Verdade. E Roberto Grosseteste, um grande pensador, reparou naquele estudante, se interessou por ele e se afeiçoou tanto que se ofereceu para ser o seu professa particular e começou a achar interessante todo o modo de pensar do jovem. Roberto Grosseteste não foi franciscano, mas foi o professor de uma turma inteira de franciscanos. Você pode imaginar como essa turma estudava, e dai surgiram grandes pensadores originais, alegres com o espírito de São Francisco.

Tema: O jejum do coração

Et non debeant equitare, nisi manifesta necessitate vel infirmitate congantur.

“E não devem andar a cavalo, caso não os obrigue necessidade ou enfermidade manifesta.

RNB: Ordeno a todos os meus irmãos, tanto clérigos como leigos. ao irem pelo mundo, morarem em lugar fixo, que de modo algum criem qualquer animal, nem junto a si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma. Nem lhes seja lícito andar a cavalo, a não ser que se vejam obrigados por doença ou por grande necessidade.

No fim do terceiro capítulo, há ainda três exortações, importantes para os frades quando anda entre os homens como seguidores da vida evangélica.

Não devem andar a cavalo. Como verdadeiros “minores”, os irmãos não devem andar a cavalo, privilégio então reservado aos nobres e ricos. Não viagem pois à maneira dos abastados e poderosos, mas à maneira do povo simples, dos “minores” da sociedade de então. Cavalo era instrumento de guerra, dava status. Ainda hoje, estamos sempre a cavalo de expectativas, idéias, projetos…!

RNB: De modo algum criem qualquer animal. Deus é o grande Pai e todos os seres são irmãos. A única que teria o direito de vender sua pêra e a pereira: mas o jeito de ser dela é dar. “Vender” e típico do homem. Ao usar de um animal não se pode ter o jeito de “dono”, mas de partícipe da misericórdia de Deus que se doa a você na possibilidade de usar de um animal; por isso o frade menor usa do animal, mas “pedindo licença”. O texto não faz explicitamente essas afirmações, mas o “contexto franciscano” sim: veja o que diz o Cântico das criaturas.

O texto fala indiretamente de pobreza e minoridade. Não é um falar por “tese”, por isso é preciso cada vez tentar de novo entender o que o texto cada vez quer dizer. Postura de “tese”, por exemplo, no vôlei, é quando convidado a bloquear uma “cortada” do adversário, o jogador na jogada seguinte, que vem como “cobertura”, se posiciona para o bloqueio. Assim fazemos muitas vezes com os textos: intervimos com pre-compreensão, assim que se num texto a palavra “corpo” tem um sentido, vamos para outro texto com este mesmo sentido. sendo que a palavra usada no novo texto tem significado diferente e às vezes completamente novo.

Cada texto tem sempre uma “história-experiência” cada vez diferente, que lhe deu origem; cada texto é portanto tarefa e desafio para captar a “alma” que os gerou. A nossa pressa em “achar” o que S. Francisco diz nos leva sempre a teses genéricas, cheias de contradições ou a nos perder no banal; diante de textos como esses, sempre de novo nos perdemos em discussões para estabelecer se ‘fusca sim’ e “avião não”, se fusca ou monza… Aos poucos criamos uma mente massificada: diante de uma palavra temos reações totalmente iguais. Mesmo no “já conhecido”, se deve desconfiar se SF diz de fato o que já sabemos. Isso é chato, irritante e nos provoca confusão; mas aos poucos nasce uma nova compreensão. É necessário fazer este trabalho de “antítese” particularmente com palavras que estão na onda como preferencial, estilo, reação, compreensão, acolhida, partilha, inserção… às vezes o muito estudo não ajuda porque faz perder a experiência originária. Desmascarar este processo é muito difícil, porque é um processo epocal do qual nós próprios fazemos parte.

In quamcumque domum intraverint, primum dicant: Pax huic domui (cf. Lc 10,5).

Ao entrarem em qualquer casa, digam antes: paz a esta casa! (Mt 10,12; Lc 10,5).

RNB: E, ao entrarem numa casa, digam primeiro: a paz esteja nesta casa. Não resistam ao malvado (cf. Mt 5,39), mas antes, se alguém lhes der numa face, apresentem-lhe também a outra; e a quem lhes roubar o manto, não lhes neguem também a túnica. Deem a quem lhes pedir. Se alguém tirar o que é deles, não o reclamem (cf. Lc 6,29-30).

Digam antes: paz a esta casa. Lc 9,3ss foi texto básico na conversão de São Francisco, texto pelo qual estalou a compreensão do caminho “franciscano”. Nos parágrafos anteriores a Regra deu a metodologia de como andar pelo mundo. A serenidade que surge do andar pelo mundo sem “levar nada pelo caminho” leva a dar a paz. Paz é aquilo de que anda cheio o coração; por isso São Francisco usa muito a palavra paz (“Paz e Bem” é da época de São Boaventura).

O homem moderno não sabe bem o que é a paz; usa vários conceitos, mas não sabe o que é o cerne da paz. Paz para nós é o silenciar das armas, a busca de um ponto médio que concilie posições, fazer composição de interesses. A paz de São Francisco é de qualidade inteiramente diferente. São Francisco compreende paz como “salvação”; a paz que Deus tem é a benignidade, isto é, sua capacidade de se dar como “bem” em tudo, até na maldade dos homens; é como mãe que sofre tudo para o filho. São Francisco vive na pobreza e humildade, como forças de Deus que geram o bem; e isso promove a pacificação entre homens.

Quando os irmãos em suas viagens entrarem em qualquer casa, digam aquela saudação de paz ensinada por Nosso Senhor a seus apóstolos ao mandá-los pregar pelo mundo. O encontro dos Minoritas com os outros deverá sempre promover e servir à paz. Sua missão é serem apóstolos da paz e do amor, pois isso o Senhor pediu de seus primeiros apóstolos. A esta missão de paz São Francisco se sentia chamado pessoalmente, como afirmou no Test: “Como saudação, revelou-me o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz”.

RNB: Não resistam ao malvado. Para entender bem porque “não resistir ao malvado” é preciso captar o espirito desta citação; ela está no plano da apresentação de um ideal supremo. A paz de São Francisco está muito ligada a “não resistir ao malvado”, como a mansidão do Cordeiro de Deus do Servo Sofredor. O modo com o qual os irmãos vão pelo mundo é o da benignidade, da paz que nasce em nome de Deus. A luta pela justiça deve ter um ânimo de paz-benignidade, vindo primeiro não a luta, nem a justiça, mas a benignidade. Por isso, se fosse necessário virar saco de pancadas, São Francisco virada e esta seria a sua força.

Esta força para a mentalidade moderna não é nenhuma força, mas alienação; com isso, porém, a modernidade deixa escapar uma força redentora sumamente importante, pois é a força de Jesus Cristo crucificado: uma força decisiva, mais forte que todas as lutas de agressão. A justiça será uma consequência inevitável, São Francisco é “teólogo” importante, porque pegou bem este ponto.

O Fioretto do lobo de Gubio e a dramatização do “não resistir ao malvado”. Usualmente quando se vai pelo mundo, se vai armados: poder, segurança, saber, meios, vontade de mudar os outros… São Francisco se desarmou; foi ao lobo armado unicamente com a fraqueza e a fragilidade de Deus, reconhecendo inclusive ao lobo o direito de o agredir e matar, ficando totalmente exposto. Sua força era qualitativamente diferente da do poder: quando sou fraco então é que sou forte! O fato de estar armado unicamente da graça de Deus, entendida como colocar em risco sua vida e não como garantia de vencer o lobo, fez com que pacificasse o lobo.

Anos atrás uma repórter ganhou um prêmio de literatura por um relato-reportagem sobre uma história de escravatura branca; pobres camponesas e suas famílias, enganadas com a promessa de trabalho na cidade, eram vendidas para a Tailândia. Duas sobreviveram. Quando o fato veio à tona, foi um grande escândalo. A repórter encontrou uma delas na Igreja de Nagasaki rezando na frente da imagem de Nossa Senhora das Dores, carbonizada na explosão da bomba atômica. A repórter tinha estudado a vida dessa mulher; soube que ela tivera um filho e se apresentou como sendo a nora para conseguir se introduzir na sua intimidade. Com um gravador escondido, gravou as conversas por dois anos, visando um ‘furo’ literário. Na medida em que foram convivendo, a repórter foi simpatizando com aquela mulher porque descobriu por trás de sua palavras rudes uma nobreza e uma inocência incríveis. Esta mulher sofrera o diabo, mas estava sem amargura; em todo fato negativo sempre achava algo positivo. Com isso, a repórter começou a se angustiar com o que estava fazendo, mas sua consciência profissional prevaleceu e continuou gravando, até que não aguentou mais a sua consciência, e corando muito, contou à mulher que era repórter e que visava um “furo” de reportagem. Mas a mulher lhe disse: “Não chore! Eu já sabia que você não era minha nora. Mas deixei você no seu fingimento, porque você deve ter um grande segredo para fazer isso. eu quis que vc descobrisse esse segredo”. Isso é o oferecer a outra face! Isso é a benignidade, a misericórdia, a superabundância, este é o modo de ser de Deus!

São Francisco vê Deus como capacidade de acolher a injustiça também e quer o frade nesta dimensão. Um Deus que faz surgir o sol sobre os bons e sobre os maus, parece um Deus bobo! Mas faz isso por decisão. O modo de ser ‘fariseu’, pelo contrário, escandaliza-se com tudo, pude a tudo, a tudo mede. Deus é a mãe que entende tudo, não reclama nada de ninguém. Está além dos direitos e da moral.

A força de Deus é qualitativamente diferente daquilo que usualmente é chamado ‘força’. É uma força que não é “carente” dos próprios direitos e oferece a outra face, pois, carência é fala é falta de superabundância. A superabundância de Deus tem por colorido um amor que não considera agressão que alguém lhe tire alguma coisa. É como criança machucada: a mãe cuida! e se a ferida cresce, não perde a afeição, antes se entrega ainda mais ao cuidado da mãe; a maternidade é uma energia que, agredida por um filho, cresce no seu vigor materno; maternidade é “bonum difusiviun sui”.

Para São Francisco, a força dos frades é a paz; com ela vão pelo mundo afora como peregrinos, mas sua força não está no alforje, no dinheiro e sim na paz, pelo que, quando se lhes tira alguma coisa, acionam a força de dar superabundantemente e não resistem ao malvado. Por isso SF exclama: “É isso que eu quero”. Frei Junípero é a descrição do tipo humano que surge deste versículo.

O modo de ser da paz não pode ser “sacado” no outro, como dizer: isso é bom, toma a qualquer custo! Pois, pode ser que o outro já a tenha. Por outro lado, não resistir ao malvado não é um campeonato de engolir sapos, para se tornar “herói” da acolhida; quando é assim, a pessoa se torna dura e nazista. Não se trata de procurar “sapos”; basta acolher os que a vida impõe e “aproveitar” para crescer na benignidade e na misericórdia, pois Deus não e campeão de engolir “sapos”, mas campeão de misericórdia.

Et secundum sanctum Evangelium de omnibus cibis, qui apponuntur eis, liceat manducare (Lc 10,8).

E segundo o santo evangelho, lhes é lícito comer de tudo o que se lhes oferecerem (Lc 10,8).

RNB: E, ficando nessa casa, comam e bebam do que aquela gente tiver (Lc 10,5-7).

Lhes é lícito comer de tudo. Os versículos 13-14 correspondem quase literalmente ao paradigma evangélico da vida minorítica. O Evangelho imprime rigorosamente seu cunho ao texto da Regra! Os minoritas itinerantes, demorando-se numa casa, não tenham exigências, mas comam de tudo que for oferecido, dentro da liberdade outorgada por Jesus Cristo aos seus discípulos no início de suas missões. Deus seja pois livre em poder remunerar seus mensageiros mediante a liberalidade dos homens.

Não se trata, portanto, de boas maneiras, mas de pobreza que dá liberdade: deixa o outro à vontade e fica também bem à vontade. Escolher comida é de rico. É eliminado assim qualquer tipo de reivindicação, ainda mais a reivindicação que surge da “virtude” e dos “méritos”.

Estes últimos versículos da RB (10-14) falam da minoridade. Minoridade entendida como modo de ser, isto é. um modo de amar, chamado servir, é a essência do franciscanismo. Ela é como o quilate que anima a fraternidade, a obediência, a castidade, a pobreza, a conventualidade. A formação. Fraternidade, obediência, castidade, etc., são apenas momentos, aspectos da minoridade.

O núcleo da minoridade é a gratuidade do amor do Deus de Jesus Cristo. Gratuidade é a dinâmica da liberdade. É a plenitude do movimento, justamente o oposto da inanição. Para que a gratuidade nos acolha no seu vigor é necessário o trabalho contínuo de toda a nossa vida. Dizer que ela não depende do querer da nossa vontade significa: o querer da nossa vontade é fraco demais para causar sua vinda.

Portanto para se abrir à gratuidade, se requer um “esforço” mais totalizante e mais originário do que a nossa vontade finalista. Para colocar um cesto sobre uma mesa, basta o seu querer e sua força. Se, no entanto. você tem um bebê recém-nascido, só o querer e a força não bastam para colocá-lo no berço: é necessária sua concentração para fazer de seus braços um acolchoado de suavidade que coloque a criança no berço. Na lida com a Gratuidade é necessário pois um modo de querer e trabalhar muito mais integral, completo, mais total do que apenas uma finalização coisista e unilateral. Um pianista, para acolher o “pianíssimo” de um tom que raia os limites do silêncio, de quanta concentração, atenção e trabalho não necessita ao tocar no teclado? Ali é necessário mais do que um simples querer tocar pianissimamente. A gratuidade, isto é, a minoridade é isso!

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