EM NOME DO SENHOR!
In nomine domini!
RNB: Prólogo: Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
O primeiro capítulo da Regra contém, como que em germe, tudo o que São Francisco quer dizer a seus frades. Como um proêmio, expõe os princípios fundamentais da Regra toda. Os onze capítulos seguintes desenvolverão estes princípios. A frase final do último capítulo resume-os todos mais uma vez numa frase breve, concisa, mas poderosa.
Em nome. A expressão “In nomine Domini”, encontrada em muitos documentos medievais, era familiar também a São Francisco. É uma profissão de fé que nasce de uma bem determinada maneira de encarar a existência como existência religiosa cristã. Como a chave de uma partitura de música dá o tom à partitura toda, assim também esta expressão dá o tom ao texto todo: é um texto da experiência religiosa cristã. Portanto a expressão “Em nome do Senhor”, colocada como saudação inicial, situa logo a Regra e o “leitor” no interesse do Senhor. Tudo o que será dito depois brota desse inter-esse: é o próprio vigor de Deus, o inter-esse dele, suas dinâmicas que estão articulando a Regra. “Nome” é o vigor, o âmago de uma pessoa. Nessa expressão inicial nota-se a experiência do “nome” feita por São Francisco e seus companheiros; é a dimensão do Encontro com o Senhor. Na manhã da ressurreição, Maria Madalena procura o corpo do Senhor, pelo menos o corpo; Jesus se dá a conhecer chamando-a pelo nome: “Maria!”, e ela responde: “Rabboni!” O nome restabelece logo o re-lacionamento com Cristo, porque o nome é todo o vigor dele em relação a ela e dela em relação a ele. A experiência do nome, feita no Encontro, aciona a atitude de fazer “em nome de”. Este fazer não se origina do sujeito que faz, nem é um fazer para (a favor) o Senhor; é antes um fazer que acolhe o vigor, a cordialidade que o Senhor tem; é atuar com a mesma vontade, a mesma força com que o Senhor faria. E como quando se diz: “Você está preso em nome da lei”: nesta expressão, o preso sente a presença do estado, da sociedade que dá força e autoridade à lei. Ao iniciar o texto com esta expressão, São Francisco entende afirmar que tudo o que será dito pela Regra tem por fundamentação e gênese o Nome do Senhor. Todos os irmãos, façam isto ou aquilo, buscarão estar movidos pelo vigor do Senhor.
Do Senhor. A reverência de Francisco ao Mistério de Deus aparece no tratamento “Senhor”, dado ao Deus de Jesus Cristo e ao próprio Jesus Cristo, tratamento que caracteriza a submissão discipular do Seguimento. Por isso é um equívoco fatal pensar que “Senhor Deus”, “Senhor Jesus” possa ser substituído ou “atualizado” com tratamentos como “chefe, chefão, amigo, amigão, camarada ou companheiro”. No mesmo equívoco caímos quando tentamos evitar a palavra Senhor, pensando ser um tratamento indicativo da dominação do poder impositivo. A palavra Senhor, mesmo que tenha também referência com o sistema “senhor-escravo”, é a palavra básica da reverência discipular e tem conotação de uma profunda intimidade inefável do Mistério do Encontro no Amor. Uma pessoa que de alguma forma não desperta para essa reverência no trato com Deus, com as pessoas e com todas as coisas, dificilmente vai entender o que significa com precisão ser discípulo do Seguimento de Jesus Cristo.
Incipit vita Minorum Fratrum: “Começa a vida dos Frades Menores
RNB: Prólogo: Esta é a vida do Evangelho de Jesus Cristo, que Frei Francisco pediu ao Senhor Papa Inocêncio lhe concedesse e aprovasse; e o Senhor Papa lha concedeu e aprovou para seus irmãos presenties e vindouros.
Começa. O “incipit” é um bom elucidativo: poderíamos ter esperado a fórmula “Incipit regula fratrum minorum” e ao invés encontramos o termo “vida”. Eis a palavra-chave para entendermos corretamente a Regra: ela será pois exposição, descrição e regulamentação de determinada forma de vida. Poderíamos pois traduzir assim: “Origina-se o sentido de vida dos frades menores”.
Substituindo a palavra “regula” por “vida”, mais densa de conteúdo, evidencia-se que a regra da Ordo minorum não pretende regular tudo, até os pormenores, como as regras monásticas. Não se trata, portanto, de uma daquelas regras “qui docent sic et sic ordinate vivere”. A Regra franciscana é antes a tentativa de saturar com bom espírito uma já determinada forma de vida. A regra franciscana é uma coletânea de admoestações, avisos, preceitos, proibições e advertências, sempre com a finalidade de ensinar a legítima forma desta nova vida. O começar, aqui, não é o início-ocorrência de algo que tem um depois. É iniciar como “gênesis”, como origem da vida dos Frades Menores. Começo como momento essencial de uma decisão vital geradora, que se dá no presente como história, como caminho já andado por São Francisco e pela “comunitas” (con-munus: São Francisco e “sócios”).
A vida. O que é vida? A resposta a uma pergunta é sempre consequência das compressões atuantes na pergunta. Quem pergunta pela vida a partir de suas articulações, como se fosse coisa, buscando certeza, segurança, resposta clara e distinta, objetiva, certamente não encontrará resposta satisfatória. Nós não sabemos bem o que é vida! No entanto vivemos! Eu vivo a vida, sem contudo poder agarrá-la e defini-la. No entanto, a vida não é algo irreal e abstrato. É o vigor concreto que movimenta toda a minha existência. Existem coisas realíssimas que nos envolvem totalmente, a partir das quais faço tudo o que faço, e no entanto não sei bem o que são. É como o olho que tudo vê e não vê a si próprio. A Vida é aquilo que está presente em tudo o que a gente faz, em toda articulação do viver. E não se pode pegá-la como se fosse coisa. Vida é assim uma palavra indicativa de uma realidade experimental muito simples, mas que não dá para agarrar e definir. Como entender isso? Veja o exemplo do atleta:
PASSADO FUTURO
IN-STANTE do salto
No momento do salto, o atleta justifica o passado e abre perspectivas para o futuro. O passado é o tempo do treino: o atleta se prepara para o instante do salto. Faz naturalmente várias tentativas. Mas o “instante” chega como dom da conquista do passado. Não é o instante do relógio; é o vigor do salto, cuja energia não é mensurável quantitativamente. O in-stante é o resultado de um vigor acolhido do passado mediante longa preparação que lança o atleta para o futuro. O in-stante dá sentido a todo o passado e abre o futuro, justificando toda a vida do atleta. O in-stante cria, deslancha, faz brotar a história do atleta. E o momento decisivo, o momento da decisão. Decisão não no sentido de “eu” quero; é decisão na con-creção como História, momento decisivo como dom da conquista. Esse in-stante, momento crucial, é fruto de concreção. É o instante criador, pois nele o atleta pode ter êxito ou não; mas ter êxito ou não não é o mais importante. O importante é que neste instante se dá a História do atleta. A Vida tem o mesmo processo. Vida no sentido humano é o historiar-se de uma enérgica decisão, de uma evidência vital; é “história” de uma alma, mas não no sentido de historiografia, pois ela é “fenômeno”: é um processo de amadurecimento no qual vem surgindo aos poucos e vem se descortinando o sentido do caminhar. Neste caminhar, a atitude fundamental é ser ob-audiente, atento, na ausculta do nascer do destino, do sentido da vida no decorrer do caminhar. Vida portanto é uma atitude de abertura para tudo o que der e vier, sem nada determinar ou objetivar de antemão como definitivo a partir de si. A Vida assim entendida é “contemplação”, pois contemplar é o mesmo que “ouvir o tempo”, o tempo oportuno, o tempo da “história”, o tempo do salto. Ob-audiência é o modo de ser que capta o que a vida significa. Assim sendo, aquele que não entende que o ser do homem é “história”, que a “vida” é “história”, aquele que entende a vida como coisa, está perdido! A vida não é isso ou aquilo. Vida é soli-tudo, isto é, num-todo.
Dos frades menores. São Francisco cria um nome para os seus irmãos. Fato inédito na história das instituições monásticas, pois até então as várias formas de monaquismo distinguiam-se pela cor do hábito (Monges Negros – Beneditinos ou Brancos – Premostratenses), ou pelo mosteiro de origem
(Cartuxos, Cluniacenses, Valumbrosanos, Cistercienses). O nome “Minorum Fratrum” vai além de uma denominação de circunstância: exprime uma nota essencial dos ideais da nova Ordem. São Francisco não chama a seus frades “Pauperes catholici”. Como então se chamavam grupos idênticos do movimento religioso favorável “à pobreza dos apóstolos”; nem “pauperes Christi”, termo usado no mesmo movimento; também não há mais a expressão “pauperes minores”, usada no primeiro momento, mas sim “minores fratres”. O que caracteriza essa denominação é pois o de “fratres”, sendo o “minores” um adjetivo. O que vem primeiro é o fato de serem “frades”, a fraternitas, vindo em seguida a minoritas, o fato de serem menores, pobres. A minoridade está em função da fraternidade, razão pela qual SF gostava de chamar a nova Ordem de “fraternitas”.
Infelizmente a pobreza serviu, repetidas vezes na história, de motivo para discussões, contendas e desagregação entre os irmãos. Pobreza externa, compreendida mais a partir do movimento dos cátaros do que da Regra e do espirito de São Francisco, conforme hoje podemos perceber claramente. Por causa desse equívoco, os irmãos comprometeram não só a fraternidade, mas principalmente a genuína minoridade, o “Mysterium paupertatis” de São Francisco, distorcendo o ideal mais genuíno. Valorizando demais o “pauper rebus” dos cátaros, as gerações franciscanas posteriores chegaram a uma mudança valores, de forma que o ideal lídimo da nova fundação, a fraternidade evangélica, veio a ser quase eclipsado por completo.
Regula et vita Minorum Fratrum haec est, scilicet Domini nostri Jesus Chrisri sanctum Evangelium observare vivendo vivendo in obedicentia, sine proprio et in castitate.
A Regra e a vida dos frades menores é esta: observar o santo evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade.
RNB: A regra e a vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem propriedade; e seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: “ Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-os aos pobre e terás um tesouro nos céus, e vem e segue-me”. E: “Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me”. E ainda: “Se alguém quiser vir a mim e tiver mais amor ao pai e à mãe, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e mesmo à própria vida, não pode ser meu discípulo”. E: “Todo aquele que deixar pai e mãe, irmãos ou irmãs, mulher ou filhos, casas e campos, por amor de mim, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt 19,21; 16,24; Lc 14,26; Mt 19,29).
A regra e a vida. O termo “regula” é relativamente recente nos escritos de São Francisco. Nas passagens mais antigas da RNB temos a palavra “vita” em vez de Regula, mesmo ao se tratar da Regra já fixada por escrito. Para São Francisco os dois termos são sinônimos. A estes dois termos está ligada uma dificuldade embaraçosa para a história da Ordem. Tendo os frades aumentado rapidamente em número e tendo-se espalhado pela Europa toda e além, foi perdida a exata noção da “vita minorum fratrum” que a Regra queria vivificar. Como reação, a Ordem começou a se agarrar à letra para salvar o espírito e o “spiritualiter observare”, passou progressivamente e depois até exclusivamente, a ser um “litteraliter observare”, como atesta o Speculum Perfectionis. Não se pergunta qual o elo que existe entre vida e regra, mas sim entre regra e observância. A isso se acrescentou o fato da adaptação às formas monacais já existentes na Igreja. Embora a história nos mostre claramente a necessidade deste fenômeno para o homem medieval, contudo este fato dificultou não pouco a compreensão genuína da Regra.
Entre Regra e Vida, nós simpatizamos mais com “Vida” do que com “Regra” porque Vida dá a sensação de liberdade. “Regra e vida”, porém, pressupõe um modo de ser humano que tem consciência do humano como liberdade; mas liberdade, não entendida como estar livre das dificuldades, como a dinâmica de responsabilizar-se, de entender o viver como sentido de vida, como ter projeto. Vamos então ver como se relacionam “Regra e Vida”. Regra vem de “reger”; tem conotação de dominar, como o rei rege o povo, como o cavalheiro domina o cavalo fogoso: denota o vigor que consegue conter a força; é a energia dirigida, não desbarata. A Regra é portanto o vigor da vida sob o domínio e a regência de uma ordem. Assim, não existe vida sem regra, como não existe pintura sem tinta. A Regra é concreção, é algo estruturado, preso, fixo. E na na estrutura que aparece a vida. Regra é método de trabalho para realizar, firme e claro, o da vida. Na Regra tudo é exercício de como fazer o seguimento de Jesus Cristo.
Vida é vigor nascivo, espontâneo, livre, sem medida. A palavra “vida” aqui não deve ser entendida como vitalidade natural, vivência, sentimento, vibração, mas como impulso originário, enérgica decisão de busca do sentido, capaz de permear toda uma existência. O sentido da vida é o ideal; o ideal é aquele que sempre de novo anima o a cada passo, e coloca a minha dinâmica sempre mais para frente. Ideal não é uma coisa que um dia você poderá alcançar; é aquilo que, sempre que avança vai mais para frente; e isso não porque é utópico, mas porque é dinâmico. Vida significa seguimento de Jesus Cristo. Esse é o ideal.
Para dar dicas de cada passo a ser concretizado na busca do ideal existem “regras”. Regra é o que se tem que fazer agora para, através dela, entender a animar cada vez mais o ideal, e ser cada vez mais progressivo na busca. A vida é portanto o que dá vigor à regra sob o impulso de sua nascividade livre. É a vida que faz surgir as concreções, as estruturas. Assim, não existe regra sem vida, como não existe pintura sem inspiração. Da interpretação e valorização que se dá a esta frase inicial depende a interpretação de toda a Regra. Assim, se acentuarmos a palavra Regra: “A Regra é a vida”, a vida é orientada pela Regra, a Regra é a norma da vida. A vida é objetivada em função de regras; a regra torna-se ensinamento, objetivo, lei. Esta maneira de interpretar provém do nosso modo de ser, bitolado pela subjetividade: tudo é normativo, finalístico, auto-asseguramento que dá segurança e firmeza. Então a Regra é norma do meu viver; seguindo-a, minha vida está segura e eu me justifico.
Mas, se acentuarmos a palavra Vida: “A Vida é a regra”, a Vida dá a medida à regra. Portanto para entender a regra é necessário primeiro saber o que é Vida, pois ela é a fonte, o suco que dá a medida de interpretação da regra. A Vida é a raiz; a regra é o broto, o resultado, a concreção da Vida. Portanto a regra deve ser lida como concreção da Vida e não como ensinamento ou “norma orientadora”. Regra e Vida, porém, são dois momentos de uma mesma realidade, que indicam exatamente o viver humano chamado: “Projeto fundamental de vida”. O segredo está no “e”: o que a Vida faz da Regra e como a Regra acolhe a Vida. O perigo de um lado é cair no idealismo e esquecer a encarnação, abandonando a Regra e ficando no puro campo do idealismo sem concreção; e do outro é cair no legalismo, no empirismo de leis e estruturas sem vigor nascivo. Não existe “forma evangélica” sem “matéria” nem matéria sem forma: as duas coisas juntas constituem o Evangelho. O espírito de São Francisco é muito historial, aproveita da situação concreta “hic et nunc”, sem cair no genérico. Liberdade não é fazer aquilo que está fora da quadratura, mas fazer caminho com o que está dentro dela.
É esta. Para entrar e crescer na vida franciscana é de grande importância saber em que consiste realmente “esta” vida. Com “é esta”, o texto aponta para algo bem concreto e determinado. Usualmente, para “definir” de alguma maneira a nossa vida, falamos uma porção de coisas como fraternismo, vida evangélica, minorismo, apostolicidade, vida fraterna… E no entanto tudo isso tem tantas interpretações diferentes e até opostas que no fim ficamos não sabendo bem o que é “esta” vida. E se, afinal, depois de muita discussão soubermos em que consiste esta vida, no fundo não sabemos se esta compreensão é realmente válida para todos ou apenas para mim ou para um grupo. Torna-se assim difícil estabelecer o critério para determinar o que deveríamos “observar” como nossa identidade, e também como apresentar nossa vida aos “vocacionados”, candidatos à Ordem. A tendência, nessa vaguidade sobre nosso gênero de vida, é de buscar algo comum, geral, que possamos estabelecer como o mínimo de nossa identidade. Mas aqui surge de novo o problema da interpretação deste mínimo estabelecido. E mesmo que estabeleçamos um ideal geral, normas, termos e conceitos gerais, há de novo tantas diferentes interpretações que todo o processo de dúvida começa de novo.
As fontes franciscanas originárias parecem não conhecer esse problema. Sabemos que desde o início houve entendimentos diferentes, por exemplo acerca da pobreza; e, no entanto, as fontes soam de tal modo que dão a impressão que palavras como “esta vida”, “vida do Evangelho de Jesus Cristo”, “gênero de vida”, tinham um significado bem concreto. Em que diferem de nós estes textos no determinar da vida franciscana? A primeira diferença é que esses textos não são abstratos e sim concretos. Concreto significa: estão dentro de um movimento de crescimento, con-creto. Portanto não são palavras que indicam coisa, mas processo, trabalho, exercício, indicam aprender, crescer, concrescer. Assim, se perguntamos a São Francisco o que é Vida Evangélica, como é a vida fraterna, em que consiste o gênero de vida franciscano, ele talvez diria: “Se você quiser saber o que é, como é, é necessário que você examine bem o seu próprio interesse: porque está perguntando por isso. E se esse interesse é pra valer e não apenas uma curiosidade, você tem que entender que um conhecimento acerca do que é, como é esta vida, você só o conseguirá experimentando-a com muito empenho e dedicação. Mas para você ter realmente essa dedicação total nos exercícios através dos quais você vai saber o que é e como é, é necessário que você assuma todo esse trabalho de boa vontade, sem ficar no meio termo. E se você realmente tiver essa dis-posição – disposição aliás que nós vamos examinar se é verdadeira ou não – então vai ter que abraçar esse tipo de roupa, esse horário, este e aquele trabalho. Todas essas coisas bem concretas e fixas que exigimos de você, não são porém coisas jurídicas; são exercícios longamente testados por nós. Esses exercícios no entanto não são para adestrar ou encaixar você numa forma, mas para que, através desses atos concretos bem determinados, você liberte dentro de você uma energia e uma disposição firme, bem trabalhada, de tal sorte que você adquira um núcleo criativo e dinâmico, um volume de trabalho, que serve de fundamento e sustente você par ulteriores crescimentos. Por isso, se você quiser entrar na Ordem e experimentar o que é e como é esta vida, sua própria busca e sua decisão de entrar nesta busca impõem-lhe como tarefa a obrigação de assumir todas essas regras, exercícios e estruturas como um trabalho livre”.
Muitas coisas que nós usualmente apresentamos como sendo esta nossa vida são normas jurídicas ou funcionais, inteiramente justificáveis num grupo social, mas que não tem o mesmo valor formativo das orientações dadas pelos textos-fonte. Uma coisa é entrar numa instituição ou num grupo social e obedecer fielmente às regras do jogo que regem o seu funcionamento, olhando apenas ou principalmente o funcionamento social do grupo, e outra coisa é eu assumir todas essas regras de jogo e as estruturações de uma instituição, até os seus defeitos, como exercícios livremente assumidos para crescer na habilidade, no vigor, na clarividência, na inteligência da busca de um ideal para o qual a instituição foi fundada. Quanto mais as normas, as leis e os costumes de uma instituição estiverem próximos do vigor originário para cuja aquisição foi fundada, quanto mais estiverem a serviço, aumento e aperfeiçoamento desse vigor, tanto mais fácil se torna apresentar aos vocacionados o gênero de nossa vida. Quanto mais estiverem longe do vigor originário ou até mesmo em contradição com ele, tanto mais é difícil apresentar-lhes o gênero de nossa vida. No entanto, mesmo assim não é impossível, pois as instituições religiosas foram inspiradas pelo vigor do Evangelho; o empenho de buscar num estudo existencial bem engajado, o fundamental, o originário, o núcleo vivo de uma instituição religiosa já basta, pois ali sempre está o vigor de um gênero de vida válido e confirmado pela comunidade do povo de Deus, a Igreja. Mas para nós podermos distinguir quais as normas, os costumes e as leis da instituição estão próximas e quais as afastadas ou até contrárias ao vigor fundamental de uma instituição, é necessário que seus membros estejam dentro delas, isto é, tenham-se exercitado bem nelas, por muito tempo, com afinco, empenho e inteligência, adquirindo uma boa experiência. Quem assim estiver por dentro, poderá distinguir nitidamente o que é originário, o que é mais ou menos originário e o que não o é; isto é, saberá o que é verdadeiramente “este” nosso gênero de vida. Poderá assim distinguir o que é essencial e o que é acidental, o que é fundamental e o que é passageiro, o que é da raiz, imutável e o que é de diferentes épocas ou de grupos em diferentes situações passageiras e mutáveis conforme as circunstâncias.
Observar. Usualmente entendemos “observar” como submissão-execução de normas e leis. Mas o termo vai muito além desta compreensão legalista. Observar é palavra composta de “ob” e “servar”. Ob significa abertura, disposição; servar encerra a experiência do servo: aquele que vive não a partir de si, mas a partir do seu senhor. Não se trata portanto do servo-escravo que rejeita sua condição de servo, mas servo como “doméstico”, “familiar”, aquele que tem longa história de convívio, tanto de estar por dentro do mundo do seu senhor. Ob-servar significa, portanto, manter disposição a modo do
servo-familiar. Observar o Santo Evangelho então significa: diante do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo ter disposição, renovar-se e manter-se aberto ao modo de ser de servo do Evangelho. Os primeiros frades, pelas palavras “observar o Santo Evangelho, se sentiam obrigados a observar todos os conselhos evangélicos, como por exemplo, não julgar, não guardar nada para amanhã. Em 1230, a Ordem, entre outras questões, apresentou também esta: se o “observar” obrigaria a todos os conselhos evangélicos. Na bula “Quo elongati” o papa respondeu que os frades estavam “obrigados” no mesmo nível que todos os demais cristãos e “firmemente” como franciscanos.
O Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Desde o começo, Francisco considerava sua vida e a dos frades como uma vida plasmada no Evangelho. Levar uma “vida segundo o Evangelho”, era, naquela época, o ideal de muitos cristãos que tomavam a sério seu cristianismo. Todos entendiam, com isso, a obrigação de viverem na maior pobreza, ganhando o pão com o trabalho das próprias mãos, e, quando necessário, mendigando como os pobres; vestiam-se com modéstia e simplicidade, e em tudo se contentavam com o que podiam conseguir; procuravam servir ao reino de Deus pela pregação itinerante. Muitos desses pregadores mandavam traduzir o Novo Testamento em língua vulgar para poderem propor mais fielmente a doutrina do Senhor e o exemplo dos Apóstolos. Por circunstâncias adversas, muitos desses cristãos e muitas de suas organizações entraram em conflito com a Igreja, apesar dos bons e sinceros sentimentos que nutriam inicialmente, tornaram-se hereges declarados e já não receavam de combater a Igreja e principalmente a hierarquia.
O que nós entendemos quando usamos a palavra Evangelho? O que é Evangelho? Como entendê-lo? É o livro, são aquelas palavras, aqueles conceitos? Existe o sentido do livro sem a interpretação do leitor: Não é assim que o Evangelho só existe nas interpretações? Interpretações como a de São Francisco, de Santo Inácio, de Santa Teresa, de São Domingos… Os próprios quatro evangelhos, como livros, “são a interpretação que as primeiras comunidades cristãs fizeram do Mistério de Jesus Cristo. Nenhuma das interpretações é o Evangelho. nenhuma o esgota. Evangelho é aquilo que está sempre de novo para além de cada interpretação. Mas onde está este além? Este além não é nenhuma coisa atrás das interpretações. Ele só é percebido na experiência. Vamos descrever brevemente a experiência do evangelho: Você lê o livro chamado Evangelho. Ali você lê “Deus e amor”. Você entende a sentença. Você tem uma experiência do que é amor, por exemplo, do amor de seus pais. E a parir dela interpreta o livro do Evangelho. Você então imagina a Deus como amor do pai e com essa imagem na sua mente, vc reza, recorre a ele, e tira dali a coragem de viver. Um dia, na sua vida acontece algo muito dolorido. Vc reza e pede que Deus o sustente e o livre do sofrimento. Mas você são recebe nenhuma resposta deste Deus de sua interpretação. Nessa situação lê de novo e medita o livro do Evangelho. De repente descobre que a sua interpretação era muito infantil. Não era propriamente errada, mas limitada. Agora nessa nova leitura você percebe novas dimensões do Amor de Deus, antes não compreendidas. Corrige pois a interpretação anterior. Agora sua interpretação é mais profunda. E começa a viver com novo vigor, a partir dessa nova e mais profunda interpretação do Amor de Deus. Assim, de experiência em experiência, você lê o livro do Evangelho e cada vez se lhe revela nova profundidade do Amor de Deus. Mas, quanto mais você lê e interpreta o Evangelho, tanto mais percebe que, para além daquilo que você agora compreende, abre-se um abismo de profundidade inesgotável do sentido do Amor de Deus. Essa profundidade para além da minha atual compreensão não é nenhuma coisa. Ela também não é perceptível como presença da profundidade, a não ser fazendo a experiência na concreção acima descrita. Essa profundidade não é pois um “saber sobre” a experiência de tal profundidade, mas uma experiência direta e concreta “a partir de” um silêncio profundo, inefável, feita no próprio caminhar da “história de sua alma”. O que chamamos de Evangelho só se torna presente, só é, só existe como profundidade do silêncio que está sempre para além daquilo que na atual concreção eu compreendo como experiência na minha interpretação. Isto significa: o Evangelho só se toma presente na concreção. Portanto na caminhada da história de uma “alma”. Por isso o Evangelho jamais é uma coisa existente em si, independente da caminhada da concreção, que nós chamamos interpretação. Existem concreções que tiveram intensidade e profundidade muito grande, onde a presença do Evangelho tomou-se muito compacta e densa. Uma tal concreção é São Francisco. Quanto mais densa e profunda a presença do Evangelho numa concreção, tanto mais ela inspira e provoca a nossa própria concreção na caminhada para a acolhida do sentido do Evangelho. É como a obra de arte: quanto mais intensa e densa a obra, a presença da arte, tanto mais ela inspira e provoca novas obras de arte. É por isso que os artistas contemplam com tanta frequência as obras clássicas dos grandes mestres. Deixar-se inspirar e provocar pela obra não é copiar a obra. Não é reproduzir o seu conteúdo. É antes deixar-se colher pelo vigor da caminhada, do movimento da obra, deixar-se evocar para caminhar na própria concreção. Mas, na medida em que a concreção da minha caminhada aumenta em profundidade e densidade, eu me aproximo, identifico-me, isto é, sou atingido e colhido pela mesma presença que colheu a obra do mestre, como o silêncio e o abismo de profundidade do Mistério de Deus, que no nosso caso chama-se Evangelho ou Amor de Deus e Deus de Amor de nosso Senhor Jesus Cristo. São Francisco de Assis é uma tal obra clássica do Evangelho. Ser franciscano é ser inspirado e provocado por essa obra e concrescer a partir dela na nossa própria concreção para aproximar-nos do Evangelho que constitui o além, o silêncio de profundidade, dentro do qual, em cuja acolhida desabrocha a concreção São Francisco. E ao sermos assim também acolhidos na profundidade do Mistério que acolheu São Francisco, somos acolhidos na nossa concreção como nós mesmos e então experimentamos que é justamente essa profundidade do Mistério que acolheu e acolhe também a um São Domingos, a uma Santa Teresa de Ávila, a um simples cristão desconhecido. Cada qual lê o Evangelho; o Evangelho torna-se uma concreção diferente em cada um, pois a concreção de cada um é sempre uma interpretação: o Evangelho toma-se “obra”. Essas obras passam a existir como forças da História. É como na música: no samba, na valsa, na sinfonia, na ópera: em cada uma se dá a musicalidade, mas uma não é a outra. Na profundidade de cada obra deve-se descobrir o que é Evangelho. Descubro então que o Evangelho só é na concreção: ele é vigor que criou aquela e cada uma das concreções. A volta historiográfica e filológica às fontes literárias não é volta originária às fontes. Volta às fontes é antes a aprendizagem da inspiração e provocação do Evangelho. Portanto, “voltar às fontes” não é voltar ao Cristo histórico, ao Evangelho como livro, ou ao Evangelho em si. Voltar à fonte originária significa entrar em contato com a obra que é concreção do Evangelho: deixar-se provocar pela obra (imitar São Francisco, por exemplo) e através dela ir até o Evangelho.
EVANGELHO
O Evangelho só é revelado na medida em que tento vivê-lo, na medida em que se concresce com ele. Esse problema é muito difícil de se entender se se está preso aos conceitos usuais e ingênuos de história. E o conceito da historiografia, das ciências históricas é ingênuo! A “obra clássica” de seguimento do Evangelho de Jesus Cristo feita por São Francisco tornou-se referencial para muitas pessoas, que, assim, tornaram-se “companheiros” de SF no seguimento de JC. Nasceu com isso uma “escola” de seguimento de JC, chamada franciscanismo. A regra é a experiência do seguimento colocada por escrito, feita texto sagrado da escola, texto para onde a escola franciscana sempre de novo volta para reviver o kairós franciscano.
Vivendo em obediência, sem propriedade e em castidade. Nas duas Regras não se fala de “votos’, mas de “promessa”, segundo a terminologia de então. Os três votos, como especificações da Vida Religiosa, aparecem pela primeira vez em 1148, na fórmula de profissão dos cônegos Regulares de Sainte Genevieve em Paris. Foi adotada na regra dos Trinitários em 1198. Na metade do séc. XIII, Inocêncio IV declarou que os três votos constituem a essência de todo instituto religioso. “Voto” tem ligação com “devotio”, devoção, devotamento; quando o medieval dizia “devoção”, pensava em “engajamento”; engajamento significa “estar doado a”, votado a. Quando a LTC diz: “Francisco dava-se ao trabalho da venda de panos”, diz que ele estava devotado, engajado no comércio. Voto, devoção, devotamento, engajamento são palavras típicas das pessoas que têm projeto de vida. Uma pessoa que vive no natural-espontâneo não conhece estas palavras. Quando se começa a ter o modo de ser do assumir, já não se entende a vida como evoluir espontâneo, mas como ter um objetivo e engajar-se por ele. A primeira coisa que se faz no engajamento é a promessa; quando o engajamento fica forte há compromisso. Quando o compromisso fica mais forte ainda, há o juramento; quando o engajamento se toma devotamento que surge do encontro com Jesus Cristo no seguimento, há voto: o voto é, portanto, o grau mais intenso e máximo do engajamento. Os votos não são feitos em particular, mas diante de todo o Povo de Deus, são públicos. Quando o engajamento é pequeno se faz ao pé do ouvido, e já compromete; quando o compromisso é maior apertamos a mão do outro e chamamos testemunhas; e quando é “pra valer” mesmo, o fazemos sobre a Sagrada Escritura; quando o engajamento é pra valer mesmo tem significação para toda a Igreja, o fazemos publicamente, diante de todo o povo de Deus. Não é questão jurídica; é antes expressão do vigor de um engajamento, pois isso pertence à maneira de ser do projeto de vida. Não tem nada a ver com encaixotar o carisma no formalismo. Portanto, “em obediência, castidade e sem próprio…” é expressão uni-comunitária de um compromisso de jura, levado à última radicalidade. É a concentração de toda a nossa força num projeto.
Os três votos e a Vida Religiosa são a colocação mais radical da “questão humana”. A existência humana está continuamente na tentação de esquecer sua própria raiz. Este esquecimento, chamado na experiência religiosa de “pecado original”, se concretiza em três diretrizes: apropriar-se do ser como autorealização, apropriar-se do querer e do saber como poder e apropriar-se do “mundo” e dos bens como ter. Na medida em que cresce no “apropriar-se”, o ser humano esquece a gratuidade do seu existir. Este apropriar-se, porém, não é uma coisa. Ser, poder, ter são antes diferentes modos de ser do homem, nos quais o homem se posiciona, se firma, se realiza; são pois modos da experiência humana. Na Vida Religiosa o ser humano “devota” a Deus ser, ter e poder. O devotamento do ser, no voto da castidade, se concretiza na decisão de se colocar na raiz de toda dinâmica de autoafirmação, particularmente na raiz da afetividade e do amor esponsal. O devotamento do ser é a tentativa de reconduzir o amor ao amor originário, deixando-o ser na sua gratuidade. Só pode ser casto quem procura compreender o amor como Gratuidade do Deus de Jesus Cristo. Assim, a castidade é a alegre acolhida da plenitude da Gratuidade, da Jovialidade da Vida. Enquanto tal a castidade é serva do matrimônio, como Deus é servo de toda humana criatura na regência da vida. O devotamento do ter, no voto de pobreza, é uma provocação, uma recordação que convida para uma caminhada de busca que reconduza a existência á riqueza originária. Por isso, atrás do devotamento do ter está a experiência da acolhida de uma riqueza essencial e radical. Essa riqueza radical é o modo de ser do Deus de Jesus Cristo que é a Gratuidade. A pobreza é por isso a busca de um ter tão radical que é antes dar, criar, fazer nascer, deixar ser o universo na sua graça e gratuidade. O devotamento do poder, no voto de obediência, afirma que o poder do querer e do saber não basta que ele é fraco demais, bitolado demais para ser poder radicalmente jovial, manifestação da Gratuidade: esta sim é a plenitude do vigor de doação livre e generosa. Para que esse vigor jovial aconteça é necessário abrir-se de corpo e alma a ele com precisão e afinação. Mas para isso é necessária uma escuta de todo ouvido para a mais leve inspiração do apelo do Mistério da Gratuidade que ressoa em todas as coisas, nos acontecimentos, nas criaturas, nas imposições, em tudo, sem exceção.
Esse trabalho de reconduzir a existência humana ao originário tem estilo de ab-negação. Na abne-gação não se nega o ser, o ter e o poder no sentido de desprezo ou rejeição, mas no sentido de afirmação, de radicalização, pois a gratuidade de Deus, ao dar Vida aos seres, ao livrá-los à Vida, não se apossa deles; se se apossasse não poderia enviá-los para a Vida. E ao enviá-los à vida, o vigor da Gratuidade de Deus se retrai na sua humildade, como o servo que depois de servir, se retrai no recato do seu servir. Abnegar-se é pois imitar esse estilo da gratuidade de Deus ao servir a vida. Servir assim, porém, é purificar o ser, o ter e o poder não a partir de nós mesmos, mas a partir de sua essência originária: Deus.
RNB: Seguir a doutrina e as pegadas. Para nós, doutrina é ensinamento, e seguir um ensinamento não soa muito bem. É que nós temos uma escolaridade que nos fez perder o elã para um aprender chamado discipulado; quase não temos experiência do que isso seja. Por isso, nos teríamos usado a palavra “seguir a pessoa”! Mas para São Francisco doutrina é mais forte do que pessoa, pois “doutrina” é vibração que brota de uma pessoa. Doutrina vem do latim “doceio”, doctum: dar, transmitir. “Dokéio”, “doxa”, em grego, significa aparecer, glória. Portanto doutrina é ensinar, transmitir a outrem, fazer aparecer, levar a ver como algo aparece no seu “peso”. Aparecer, não no sentido daquilo que na realidade não é, mas naquilo que realmente é, aparecendo. Doutrina é o vigor do mestre, tudo aquilo que o mestre pode, a manifestação do mestre, a manifestação daquilo atrás do qual ele próprio está. Nosso relacionamento com Jesus Cristo muitas vezes é pessoal, individual no sentido dele ser nossa ajuda, nosso amigo; mas que Ele seja Mestre para interpretar a vida, a sociedade, o universo e o meu caminhar; que Ele me dê uma orientação de como entender vida, morte, sofrimento, alegrias, para eu ter uma “doutrina”, isto é, uma orientação, uma verdade que me conduz e que eu espalho mundo afora, porque é princípio de uma nova humanização, esse relacionamento com Jesus Cristo nós não temos. Pegadas é o mesmo que doutrina, pois as “pegadas” anunciam sempre uma presença; como quando o caçador vai atrás das pegadas da caça. É um aparecer que na medida em que se anda, se torna cada vez mais presente e real. Mas por quê “pegadas” de Jesus Cristo? Porque Jesus Cristo Mestre nunca aparece direta e imediatamente. Ele aparece de modo “inacessível” em todas as coisas; em todos os afazeres dentro do engajamento, dentro de um projeto de vida; aconteça o que acontecer, faça o que fizer sempre há o Mestre, continuamente presente provocando, convocando, ensinando; tudo esconde a “passagem do Senhor”. “Seguir a doutrina e as pegadas significa imitar; é um andar no qual vem surgindo a presença de Jesus Cristo. É seguimento de Jesus Cristo. Imitar é ser igual, é identificação. Muitos tratados sobre a imitação de Jesus Cristo feita por São Francisco deixaram a impressão de que a única preocupação do Santo era imitar a pobreza de Jesus. É pois conveniente focalizar o ponto de partida, o âmago da imitação de Jesus Cristo e os pontos concretos que ele tirou da “doutrina e das pegadas” de Jesus Cristo para orientar a sua própria vida. O que é esse centro, esse âmago, o coração de Jesus Cristo? A resposta é: ser-filho. Ser-filho não é somente ter filiação, ter nascido fisicamente de tal e tal pessoa. Ser-filho é antes e essencialmente abrir-se totalmente ao espírito que anima o pai. Compreender, fazer seu o ideal do pai; ver, pensar, sentir como o pai. Ser-filho é colocar-se no centro do coração do pai, dentro dos olhos do pai, sentir, ver tudo a partir dali. E pois ser uma alma e um coração com o pai: identificação, fazer a vontade do pai. Mas como tornar-me uma só alma e um só coração com o Deus-Pai se não o conheço? São Francisco descobriu alguém que conhecia o Pai: Jesus Cristo. Tornar-se uma só alma e um só coração com Jesus Cristo, o Filho, é portanto tornar-se uma só alma e um só coração com o Pai. São Francisco assumiu a concepção que Jesus Cristo fazia de Deus. Concepção essa que não era somente uma teologia, uma ideia, mas sim uma experiência originária, o âmago, a identidade de Jesus Cristo. Qual a concepção que Jesus Cristo tinha de Deus, quando o chama de Pai? A resposta está no Novo Testamento, isto é, na Nova Aliança. Pela leitura meditada da Sagrada Escritura, São Francisco descobriu a concepção de Deus que animava a Jesus Cristo, isto é, deve ter entrado no coração e nos olhos de Jesus Cristo: o amor do Pai é o amor de total gratuidade e doação. Mas essa doação não é doação triunfalista do senhor orgulhoso, impessoal que esbanja os seus presentes para mostrar que ele é bom! É a doação que mendiga, suplica a mesma gratuidade de nós. A nossa doação deve pois ter a mesma estrutura, o mesmo modo de ser da doação do Pai que nos ama não porque somos bons, mas porque ele é bom. Isto é, dizer “Pai” é amá-lo, é ter a coragem de viver, de ser, confiar nele radicalmente, não porque ele serve para sermos felizes, mas porque compreendemos que amar é amar como o Pai ama, que o Pai precisa do nosso amor, amor que é imitação do amor dele. Esse convite para sermos um Tu para Deus-Pai, sermos um parceiro no que toca ao amor de doação, é a maior provocação à nossa pessoa, é a maior dignificação do “humano”, é o radical-humano. O Pai, ao convidar-nos para um amor assim, nos faz iguais a ele no seu modo de ser específico: somos seus filhos. Ver o mundo à luz desse amor-doação é ser filho, é chamar a Deus de Pai. Ser filho, ser assim criatura, São Francisco chamou de ser-menor. Na imitação de Jesus Cristo assume uma posição de destaque o apelo à imitação da Senhor. Esta é realmente a primeira coisa que dá na vista quando o Santo fala da imitação de JC. Mas ao lado da pobreza, a obediência é a atitude fundamental na vida de JC. Na leitura dos escritos de SF, topamos sempre de novo com a obediência, da qual fala ao menos tantas vezes quantas da pobreza. Ele vê na obediência a atitude salvífica fundamental. É da obediência que nascem todas as virtudes, inclusive a pobreza, a cujo apelo ele responde como obediência à vontade do pai.
Outro referencial da imitação-seguimento de SF é a humildade; concretamente, a humildade de JC na eucaristia está sempre diante dos olhos de SF. Também na sua atividade apostólica, SF procurava conformar-se ao exemplo do seu Senhor.
Abrasado pelo ideal da imitação de Cristo, São Francisco compôs a mais bela oração para implorar a graça da imitação do Senhor: “Concedei-nos a nós míseros praticar… o que reconhecemos ser a vossa vontade e sempre querer o que vos agrada, a fim de que, interiormente purificados, iluminados e abrasados pelo Espírito Santo, possamos seguir as pegadas de vosso Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo” (Carta a toda a Ordem).
RNB: Que diz. São citados vários versículos do Evangelho. Por eles São Francisco apresenta a estrutura da busca da identidade e suas características. Todas as citações indicam “decisão” de saída de si e de entrega, atitudes típicas da dimensão religiosa. São todas radicais. Imitação concretamente significa seguir os passos de Jesus Cristo, que viveu e disse tais palavras. E na história concreta de cada um, esta imitação consiste em ouvir e acolher uma decisão radical, que dá identidade nova à realidade. Nós quase não sentimos mais a força deste “dizer. Mas ele ocorre muito em qualquer religião e qualquer filosofia; é que usualmente “dizer” é “meio de comunicação”; mas para os antigos, “dizer” não é meio de comunicação, é antes doação da pessoa. Por isso a Sagrada Escritura usa muitas vezes a expressão: “Em verdade, em verdade vos digo…”, querendo frisar que na afirmação que segue está todo o ser da pessoa que fala. Quando a nossa Regra diz: “Seguir Jesus Cristo que diz” significa: “Repare bem, porque no que Jesus Cristo diz aqui, está o segredo de seu ensinamento e do seu caminhar. Ele mesmo está buscando viver isso”.
RNB: Se queres. Este versículo fala da postura fundamental para entrar no seguimento de Jesus Cristo: é necessário um querer não dividido e que surja de uma grande afeição. E o corpo a corpo do querer ser. É um querer muito solicito, empenhado no fazer; é decisão de jamais querer uma vez por todas, mas antes um querer renovado todos os dias, pois o ter querido ontem não garante o querer de hoje; tem que ser um querer vivo e renovado todo dia com muita criatividade e originalidade. Este “se queres…” é importante: não significa “se quiser…”; significa antes: “já que você quer”; aponta para uma nítida consciência de que o seguimento é um projeto de sua vida. Todo engajamento por si próprio é livre; se é obrigado de fora, não é engajamento. Isso é de enorme importância, porque se o projeto de vida tem a estrutura da liberdade, do querer, do projeto de vida, aquilo que você escolheu, a causa na qual você se engajou, isso é seu, com todas as consequências, de tal maneira que se não fizer o que Jesus disse, você não conseguirá realizar-se no seu projeto de vida.
RNB: Ser perfeito. A palavra “perfeito”, não tem a significação moderna de “sem defeito”. O medieval entende a perfeito como perfazido. Perfazido é aquilo que atravessa todo o caminho e chega até o fim. Um exemplo que o frei Egídio dá de perfeito: o que adianta ter um navio bonito, forte, carregado de riquezas, se no meio do caminho afunda e não chega até o fim? Porém, um naviozinho mixuruca, fraquinho, mas que tem um bom timoneiro dentro, consegue atravessar todas as tempestades, chega ao porto todo arrebentado… mas chegou ao fim: isso é “perfeito”. Nós não dizemos: cheguei todo arrebentado, mas cheguei inteiro!?
RNB: Vende tudo. Este versículo se refere à pobreza. Usualmente entendemos desapegar como jogar fora. Mas Jesus está pensando na parábola do “homem que encontrou o tesouro”: vendeu tudo para comprar. É como dizer: “Senhor, eu tinha energia empatada aqui e acolá; não sabia o que valia a pena mesmo para viver. Agora Tu me chamaste, Te descobri, Tu és o tesouro precioso; juro que eu vou vender tudo, que vou empatar tudo em você!” O texto não está exigindo “sacrifícios”; está descrevendo em que consiste o modo de ser, chamado seguimento; o que é próprio deste fenômeno humano. Esta estrutura não é exclusiva da Vida Religiosa, mas está presente também na vida de um médico, de uma assistente social etc., que se doam à sua profissão como vocação; eles também, no fundo, têm que “vender tudo”; são profissões, que têm por ideal a doação de si. E é nessa doação que o “humano” se realiza; a doação de si realiza muito mais do que o cultivo do espontâneo, no sentido de criar ninho para si.
RNB: Dar aos pobres. É o dar decidido, de quem corta as pontes atrás e só pode ir para frente, pois pobre, mesmo querendo, não pode lhe dar de volta o que vc lhe deu. Como se dissesse: “Quer seguir-me? Quer caminhar comigo “pra valer”? Então em que concentrar todas as forças, e se engajar determinadamente, porque do contrário falta embalo para chegar ao fim”.
RNB: Terás um tesouro nos céus. O nosso engajamento é o Céu; Céu é a presença de Jesus Cristo. Engajamento, numa palavra, é o Encontro; que se caracteriza sendo absoluto, único, todo, inteiro; é o sentido total da minha vida. Esse absoluto é expresso com palavras como: “Odiar pai e mãe…; vende tudo…”. São modos de dizer, para explicitar que este engajamento é absoluto.
RNB: Renuncie a si mesmo. Refere-se à obediência. Renunciar é ab-negar a si mesmo, é saltar fora de si, pegar a si mesmo e jogar-se dentro; assim estará livre para acolher uma estrutura preciosa chamada “carregar a cruz e seguir”. O mesmo vale para “vender tudo”. É necessário precisar bem a nossa visão de “eu”, “bens”, “afetos” e a visão de São Francisco quando diz: abnegue-se. Carregar a cruz não é exemplo de renúncia, mas de recompensa da renúncia. Usualmente entendemos carregar a cruz como renúncia aos bens, aos afetos e ao eu; mas aqui se entende abnegar-se a si mesmo por meio de exercícios de iniciação e entrar no “elã” dos “carregadores-agarradores da cruz e seguidores de Jesus Cristo”. Carregar a cruz é carregar o estandarte, a bandeira, a grande glória de quem pertence à raça dos seguidores de Jesus Cristo. Aí é possível entender a “doutrina” de Jesus Cristo: aquilo que a partir do eu não se entende. Toda a Regra está nisso. São Francisco dá a vida por isso. É preciso muita vontade para renunciar. Há todo um problema existencial aqui, por isso é necessário colher o “tom” da palavra “renunciar”: pode ser caminho para a neurose (renúncia como treino, como peso sem alma) ou manifestação cordial de uma afeição, de uma grande afirmação, de uma grande busca de realização. A experiência usual de renúncia é um pouco do tipo “neurótico”: temos uma preguiça danada. Este texto talvez se dirija para pessoas que estão afeiçoadas, mas têm dificuldade de engatar. Quando uma pessoa engata, começa a ter dificuldade; no início ainda vai (ele ainda não está engatado, mas só afeiçoado), mas depois de um tempo aparece toda a dificuldade do engatar. Quando alguém começa para valer, sente certo a enjoo, pois no cotidiano não há evidências a toda hora. Aí começa o trabalho de ser “per-feito”, começa o engajamento “eu somente comigo”! O querer tem que ter precisão e determinação. Mas na Vida Religiosa necessita-se sim de um grande querer, mas mais ainda de uma grande afeição e de seu cultivo decidido.
RNB: Mais amor a. Refere-se à castidade e afetividade. Afetividade, religiosidade, sociabilidade não são dimensões uma ao lado da outra: o seguimento é o novo princípio fundamental único que subsume as outras dimensões. No Oriente esse processo de maturação humana se chamou de iluminação, que é o normal para tal dimensão religiosa. Na determinação de seguir Jesus Cristo há a possibilidade de permanecer envolvidos ambiguamente em laços afetivos, por isso tem que se jogar fora tudo, até o mais sagrado laço da afetividade com pai, mãe… Não é ascese, mas método, senão o salto não acontece. Largar a afetividade, ninguém a larga por largar, mas a larga porque descobriu um princípio tão absoluto que faz largar tudo. Não se trata de substituir a afetividade por Jesus Cristo; trata-se de tomar Jesus Cristo como princípio de uma nova afeição; o seguimento dele pobre e humilde é o novo tesouro que vai trazer uma nova afetividade, dentro da qual cabe pai, mãe…
RNB: Por amor de mim. “Seguimento” é o novo sensorial que cresce dentro do religioso: é como se o meu olho visse de noite ou meu ouvido ouvisse os sons que o cachorro ouve. A experiência religiosa torna-se “sensorial” quando tem um estalo de grande evidência. É necessário muito tempo, atenção e trabalho, pois não é talento, mas conquista. São Francisco fundou uma escola para se exercitar a criar esta afinação: é a Regra. A Regra é um conjunto de vestígios deixados pelo mestre para, através deles, engatar nesta habilidade que chamamos seguimento. E este é o sentido da instituição: abrigar em concreções a intuição originária. A Vida Religiosa Franciscana tradicional tinha esquecido esta postura: o conceito de “escola de seguimento” não estava mais claro. São Francisco não foi muito original a respeito aos movimentos da época, mas foi originário: levou ao cerne o que era “moda” da época.
Frater Franciscus promittit obedientiam et reverentiam domino papae honorio ac successoribus eius canonice intrantibus et ecclesiae Romanae. Et alii fratres teneantur fratri Francisco e eius successoribus obedire.
Frei Francisco promete obediência e reverência ao Senhor Papa Honório e a seus sucessores, canonicamente eleitos, e à Igreja Romana. E os demais irmãos estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.
RNB: (prólogo): Frei Francisco, e quem for superior desta Ordem, prometa obediência e filial respeito ao Senhor Papa Inocêncio e seus sucessores. E todos os outros irmãos sejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus sucessores.
Frei Francisco. Há novidade neste “frater”, “frei”: irmão. A Ordem franciscana já nisso se diferencia das demais. Francisco não se sente um superior, um prior; sente-se irmão, companheiro de frades numa opção de Vida que cria novo vínculo de parentesco, tão forte quanto o do sangue, ou mais. Por outro lado, São Francisco tem consciência do lugar que lhe cabe na “fraternidade”: é o do “sócio fundador”, aquele que por primeiro “é tido” pela experiência religiosa franciscana.
Promete obediência. “Obediência e vassalagem” era o que prometiam os feudatários a seus suseranos: deviam então servi-los com fidelidade. Em seu brio cavalheiresco, São Francisco se faz vassalo do Senhor Papa, submetendo-se em tudo às suas determinações. Era a primeira vez que uma Ordem em sua totalidade se unia tão estreitamente ao Papa, sujeitando-se em tudo diretamente a ele. Por esta obediência, absoluta e impregnada de fé, à autoridade eclesial, Francisco preservou a Ordem de cair em posições heréticas. Assim São Francisco põe a si mesmo e a sua Ordem a serviço da Igreja, para sentir, querer e trabalhar com e para ela. Nesta Igreja e para ela, São Francisco toma compromisso também para o futuro; operar no interior dela com uma ação pastoral que se tornará extraordinariamente frutuosa para os cristãos e na missão entre os infiéis, missão que a partir deste momento torna-se uma característica dominante da vida eclesial. Obediência aqui não é subserviência. Obediência significa pertença. Um livro da medicina chinesa afirma que as pessoas que obedecem, que estão no elã, fluindo, pertencendo à força do céu e da terra, vivem cem anos. E mais ou menos essa a concepção que São Francisco tem ao escrever este versículo da Regra. Pois na Igreja pulsa aquela imensidão que se chama “crer na vida eterna”. “Vida Eterna não é crer que depois da morte a alma vai continuar vivendo; isso é muito pouco. Crer significa que a “vida eterna” está presente já agora. E nós, no fundo, vivemos a aparência de uma coisa que é muito maior do que nós imaginamos.
O que significa esta obediência? Significa que o Evangelho não está assentado no ar, mas situado, enraiado dentro de uma situação histórica. Este “estar situado” é o que chamamos de instituição: Papa, Bispo, Superior. A “vida do Evangelho” está sempre colocada dentro de um contexto concreto, numa situação histórica (com este papa, tal bispo, tal comunidade…). Volta então a pergunta: o que significa obediência dentro destas concreções? Quando falamos de obediência, geralmente a entendemos como obediência de execução: seguir normas, executar o que é mandado pela instituição. Mas não haveria a possibilidade de entender a obediência como desafio de ouvir o sentido que está pulsando atrás da instituição? O pianista que executa uma melodia. toca na medida em que escuta: se escuta bem ou mal, profundamente ou mediocremente a melodia que está tocando, também tocará bem ou mal, profundamente ou mediocremente, porque se coloca no envio de si mesmo e de sua sensibilidade. Na obediência acontece o mesmo: como o súdito ouve, interpreta a ordem, assim ele obedece. Não se trata, pois, de executar normas, mas acolher o “sentido” daquilo que se ouve nelas. Desta forma a obediência torna-se tarefa constante de ouvir, ob-audire o sentido da norma e da ordem a partir do vigor de Evangelho. O importante é o “a partir de onde eu escuto”. Assim, cada vez que obedeço, eu me revelo naquilo que sou: aquilo que escuto me determina no meu modo de ser. Obediência é um modo de ser esquisito pelo qual se faz aquilo que se é e ouve. Assim se é fraterno, então se age e obedece fraternalmente. Se se ouve com certa animosidade, também se também se obedece com certa animosidade: se se obedece por medo do superior, a pessoa se revela medrosa, infantil. Esta é a estrutura do humano: eu determino a mim mesmo em tudo o que faço. Nós só conseguimos ouvir a partir de nossa identidade. Portanto. obediência é problema de identidade, maior capacidade de assumir a obediência. O ponto de partida da obediência (a identidade), deve ser tão fundamental que se possa obedecer em toda e qualquer situação, como um artista tão vigorosamente artista que de todo material ele pode fazer uma obra de arte. Assim, é necessário ver bem o pivô onde coloco a minha identidade, pois dele depende e provém a obediência. Se ele for bom poderei fazer de qualquer coisa uma obediência.
Nesta perspectiva, a obediência é conduzir tudo para a ausculta do vigor do Mistério. SF nunca “executou normas”, pois colocou a si próprio e o papa numa outra medida. Para ele, não existe o problema da obediência, porque ele ouve a partir de sua identidade evangélica. Por isso, se o papa lhe ordenasse virar cambalhotas, ele o faria.
Vigor de identidade é ter a capacidade de assumir a situação, a quadratura. Uma característica relevante da espiritualidade franciscana é o fato de ver a obediência muito situacionada, encarnada, historial. Assim, o “problema das estruturas” deixa de ser problema quando a pessoa se mantem na jovialidade e no vigor, pois desse jeito o horizonte onde são colocadas as estruturas se alarga e todas elas, juntamente com a autoridade, são iluminadas por nova luz. É nessa situação, nesta enquadratura que se ouve o vigor do mistério que envolve a tudo e a todos. Mais uma vez a obediência depende da medida em que a identidade está ancorada no Mistério.
E reverência. S. Francisco ao dizer “reverência” ao papa toma a atitude típica do cavaleiro medieval, atitude de abertura diante de um vigor de ser que atua no papa; é a atitude de relacionamento de simpatia para o vigor dos outros, sem humilhação, acolhendo a autoridade que o outro tem. Reverenciar não é bajular nem e medo nem subserviência; a capacidade de dar simpatia para aquilo que é bom; é a consciência da realidade maior que atua por trás das pessoas e das instituições.
Você já imaginou o Pai de Jesus Cristo, Jesus Cristo, o Espírito Santo como fonte de todo o deslanche da humanidade, que o Apocalipse define “Novo Céu e nova Terra”? E que a Vida Religiosa e o seguimento de Jesus Cristo está dentro desse elã? E essa imensidão de visão que S. Francisco chamou de ser católico. Católico não significa confessional, significa ter presente a imensidão e a grandeza do Povo de Deus. Isto e comunhão dos Santos. Nós pertencemos a um povo, a uma família fantástica. É quase necessário avivarmos a nossa própria imaginação, para termos uma representação mais adequada daquilo que cremos. E atrás deste texto tem esta imaginação.
Senhor Papa. Ao contrário de tantos movimentos heréticos daquele tempo, que pretendiam levar vida evangélica em oposição à Igreja hierárquico-sacramental para preservar-se a si mesmo e a seus frades presentes e vindouros da ameaça de heresia, Francisco ligou-se por obediência irrestrita ao “Senhor Papa”. Por mais que se reconhecesse o chamado por Deus Altíssimo para uma vida Segundo o Evangelho, não quis viver sua vocação, sem que a Igreja o aprovasse.
A atitude de ir ao papa confirma que S Francisco recebeu “esta” vida como dom de Deus; Francisco pede à Igreja de poder experimentar o seu carisma, mas não a modo de “direito” e de dono, mas a modo de “dom”, de pobre, de esmoler: de joelho perante o papa; é o modo com que S. Francisco está diante de tudo e de todos, feito servo de toda humana criatura.
“Senhor papa” para nós tem ressonância de poderio, mas em S. Francisco não. Senhor é eco do mistério da benignidade de Deus que se doa no papa (vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo) e no senhorio de Jesus Cristo; ele não vê prepotência mas a disposição de doação do servo. Na palavra “Senhor” ecoa a experiência da primeira comunidade cristã diante do “Senhor Jesus Cristo”.
À Igreja Romana. S. Francisco nunca fala do que seja a Igreja em sua essência. Leva-a simplesmente em conta na forma que a vê diante de si e se preocupa exclusivamente com a atitude a tomar, ele e seus irmãos em face dessa Igreja. Ele fazia questão de integrar a sua Ordem em comunidade eclesial. Os limites, que nunca deviam ser ultrapassados pelas pessoas que pretendiam pertencer à Ordem, eram em primeiro lugar, os limites determinados pela fé e pela vida da Igreja católica. Quem não quisesse respeitá-los deveria ser “definitivamente excluído de nossa fraternidade”. Como por volta de 1200 havia muita gente que queria levar vida pobre segundo o Evangelho, mas afastada da Igreja, S. Francisco exigia que cada candidato à Ordem fosse diligentemente examinado “sobre a fé católica e os sacramentos da Igreja”.
São Francisco entregou a Ordem e a regra sem reservas aos cuidados da Igreja. Jamais pretendeu ser livre em relação à ela, nem mesmo no plano jurídico. Quase todas as grandes organizações religiosas existentes por volta de 1200 procuravam, por meio da isenção canônica, subtrair-se à autoridade dos bispos. SF no entanto detestava romper a organização diocesana da Igreja por meio de privilégios. Ele reverenciava bispos e sacerdotes. Contava até com a possibilidade de ser hostilizado por eles ou até de eles serem pecadores. Esta última circunstância vem muito a propósito, pois havia na época fortes correntes de opinião que não admitiam que um sacerdote ou um bispo pudessem pecar, contestando até a validade dos sacramentos ministrados por sacerdotes e bispos indignos. O seu respeito partia da consciência dos “poderes” conferidos a eles pelo Sacramento da ordem; o poder de perdoar os pecadores, de celebrar a Eucaristia e de ministra-la aos fieis; enxergava simplesmente no ministério de sacerdotes e bispos a atuação de Jesus Cristo, chamando-os por isso de seus senhores.
Nós sempre nos perguntamos e discutimos o que a Igreja quer de nós hoje; mas isso não deixa de ser abstrato. S. Francisco foi pedi-lo à Igreja! E a igreja deu-lhe esta Regra para os frades atuais e futuros; então aqui já está bem determinado o que é Evangelho de Jesus Cristo: a Regra. Nesta esta “’empacotado” o que significa Evangelho para nós franciscanos. A Regra é a vontade de Deus condensada para nós. Está intimamente ligada ao papa e a seus sucessores.
Como hoje obedecer a Igreja a seus apelos e como distinguir os apelos da Igreja dos apelos do próprio eu, encoberto, camuflado por grandes motivações e ideologias? S. Francisco na Regra nos indica como fazer para ter clarividência e distinguir a submissão covarde e as camuflagens do eu, da verdadeira reverência e sub-missão à Igreja. Quem quer saber o que é Evangelho, Igreja pastoral, hoje, deve colocar três elementos que dificultem o entender o que é Evangelho, Igreja pastoral hoje: a Regra, o Papa e o Ministro geral. O querer do eu e suas camuflagens é excluído por estes três fatores e é checado por eles. Usualmente dizemos que a Igreja Romana e o Ministro geral deveriam ajudar, apoiar o nosso querer próprio!
Os demais irmãos estejam obrigados. O viver religioso não é um viver subjetivo; é indivíduo mas não individualista. Por isso, como Francisco busca no papa e na Igreja o arché, o fundamento, a raiz do seu viver religioso, também os Frades Menores devem buscar nele e nos seus sucessores o arché, o kairós originário e originante, que mantenha unido todo o corpo da Ordem e o mantenha na identidade própria ao longo dos séculos.
Neste chão existencial lança raízes o aspecto jurídico do viver “ministerial” interno à Ordem e em referência à Igreja. Trata-se de uma obediência hierárquico-pessoal, como era entendida pela lei feudal da vassalagem e expressa nas fórmulas de juramento de fidelidade feito pelos bispos ao papa e pelos clérigos ao bispo. A Regra introduz na Vida Religiosa dois elementos novos, raros antes da primeira metade do século XIII: a dependência direta ao papa e a centralização da Ordem sob o governo de um ministro geral.
São Francisco põe assim à disposição da Santa Sé uma força apostólica de vanguarda, cuja dinamicidade é assegurada pela mobilidade dos frades e a ligação com a autoridade central. Submetendo os frades à “jurisdição” do ministro geral, a Regra cria as premissas para uma evolução importante: a clericalização. Sem dúvida a Igreja dava à Ordem um meio eficaz para manter intacta a pureza de sua vida; mas isso criava as condições para que os cargos internos mais importantes só fossem exercidos por frades sacerdotes. A clericalidade da Ordem tem aqui uma de suas raízes.