Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Da pessoa – I

03/03/2021

b

 

Introdução

É bem conhecida a definição da pessoa, de Boécio: persona est naturae rationalis individua substantia[1]. Pessoa aqui se refere ao indivíduo humano, portanto ao ser do homem.

A respeito dessa definição, Tomás de Aquino diz ser ela aplicável também às três pessoas da Santíssima Trindade, contanto que se entenda rationalis como intellectualis e individua como incommunicabilis[2]. Nessa perspectiva a definição soaria: persona est naturae intellectuali incommunicabilis substantia[3]. Pessoa aqui se refere às pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto ao ser de Deus num sentido todo próprio, a ser explicitado mais tarde, no fim do comentário.

A seguir, tentemos comentar a 17ª conversação espiritual[4] do Mestre Eckhart, intitulado: Como deve o homem manter-se em Paz, quando não se encontra em penoso labor externo, que Cristo e muitos santos tiveram; como o homem,<então>[5] deve seguir a Deus[6]. Só que o que segue como comentário tem pouco a ver com comentário, pois  o seu modo de proceder é em vários excursos, a modo de hipóteses, divagar para dentro de pressuposições, presumivelmente pré-jacentes sob os termos usados pela definição acima mencionada da pessoa, e então a partir dali tentar ler a 17ª conversação espiritual de Eckhart, ouvindo a ressonância de fundo, ontológica, das suas exortações espirituais-morais, digamos ônticas.

Mas, pergunta-se de imediato, diante desse texto de Eckhart: o que tem a ver esse texto com a definição de pessoa de Boécio e de Sto. Tomas? A implicância desse texto com a definição de pessoa, embora Eckhart não use palavra pessoa no texto em questão, está presumivelmente justificada pelo fato de Eckhart exortar com repetida e acentuada insistência que cada um dos seguidores de Cristo deve segui-lo a seu modo, no modo próprio de cada um. Aqui o modo próprio se refere ao próprio de cada um de nós, a saber, ao que há de mais “substancial” em mim, à ‘pessoa’ de mim ou talvez digamos nós hoje, ao meu Self ou Selbst.

Nessa 17ª Conversação, Eckhart descreve frustração e desânimo usuais das pessoas, seguidoras de Cristo, quando se descobrem medíocres, ao se compararem com Ele e com os santos, seus discípulos extraordinários. E segue o texto:

Texto

Por isso, essas pessoas, quando no Seguimento se acham deles tão desviados, se consideram longe de Deus, a quem elas não poderiam seguir.

Ninguém, jamais, deve fazer tal autoavaliação! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham os teus grandes transgressões, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como próximo a ti. E, há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

Assim também é com o rigor do Seguimento. Observa em que pode consistir nesse caso o teu Seguimento. Tu deves conhecer, deves ter percebido em que tu és exortado por Deus de maneira a mais forte; pois, de nenhum modo os homens são chamados a Deus em um caminho, como diz São Paulo <1 Cor. 7,24). E tu, se achas que o teu caminho, o mais próximo não corre sobre muitas obras exteriores e sobre grande penosa labuta ou privações – nas quais, nesse caminho, também como tal não se coloca tanto acento, a não ser que para isso o homem é propriamente impelido por Deus, e que tenha a força, para realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da tua interioridade -, se, pois tu, portanto, de tudo isso, nada encontras em ti, então estejas totalmente em paz e nisso não te deixes importar muito.

Tu poderias sem dúvida dizer: Se não há nisso importância, por que então assim o fizeram nossos antepassados, muitos santos?

Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também a força, para assim agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim e justamente ali, nisso ele encontrou sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si. Pois, Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem, isto, não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E por isso a gente devia perceber por si, que não se age retamente, se, ao ver ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido, por não seguir o modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em conta o seu bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas deve-se atentar mais a isso que eles possuem uma boa intenção, e que não desprezam o modo de ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo de um homem.

Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu precises segui-lo.

Mas, tu poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual devemos seguir constantemente por causa da retidão.

Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor jejuou 40 dias, jamais, porém, deve-se empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos segui-lo, espiritual e não corporalmente.

Por isso, devemos ser aplicados, para que o possamos no modo espiritual, pois,ele mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo no próprio modo. Como, pois?

Ouças: em todas as coisas! – Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas vezes: eu considero uma obra espiritual por muito melhor do que uma corporal.

Como?

Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que tu estás bem mais inclinado ou pronto: sobre isso de concentres e com acuidade fica de olho em ti mesmo. Muitas vezes te convém, te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que tu te privares totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil, silenciar uma palavra do que se abster-se simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que talvez admitir um pesado golpe, para a qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes mais difícil deixar alo pequeno do que  algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma, que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

Comentário[7]

I: Indivisibilidade e incomunicabilidade

Com uma proibição incisiva, Eckhart não nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreensão dessa partícula conjuntiva “e” distância de separação. Antes o seu modo de falar é o de nos incentivar a compreender relação Deus-criatura como radicalização cada vez mais intensa de união, união essa, a partir de Deus é tão séria que é imediatez e totalidade ab-soluta:

Ninguém, jamais, deve fazer tal autoavaliação! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tenham os teus grandes transgressões, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como próximo a ti. E, há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

Essa ab-soluta proximidade de Deus da sua criatura, da parte de Deus se chama communicatio (comunicação). Trata-se da incondicional doação de si de Deus à criatura, de tal sorte que a recepção, da parte da criatura, dessa doação de si do próprio Deus se chama participatio (participação). De um lado, a partir de Deus, Ele se dá a si mesmo todo inteiro, de tal sorte que fora, ao lado, para além ou para aquém desse Deus em se dando a si todo, nada há que seja ser. Aqui nesse relacionamento, Deus é tudo, e tudo é Deus. De outro lado, a partir da criatura, o que ela pode receber cada vez é sempre uma parte, por maior que seja a recepção, pois em sendo criatura finita e contingente, não pode receber a Deus enquanto tudo, i. é, ser total, pleno, pois do contrário, criatura seria simplesmente Deus. Tudo na criatura enquanto ser é parte, em parte, por isso do ser absoluto, ele só pode participar. Se colocarmos Deus em cima e criatura em baixo, temos: De cima para baixo, na ordem descendente: Comunicatio. De baixo para cima, na ordem ascendente: Participatio. No entanto, se aqui Deus é tudo e nós nem sequer “parte” como um ente em si fora de Deus, talvez houvesse uma única possibilidade de criatura ser, em sendo como Ele, doação absoluta de si inteira e totalmente no receber.  Isto significaria que participar do ser de Deus não é outra coisa do que ser pura e simplesmente nada a não ser apenas pura recepção, a tal ponto de aqui não haver um sujeito que recebe, mas apenas o receber. Mas um tal receber seria então não algo fora de Deus mas sim um momento da própria doação absoluta de si que é Deus.

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Excurso 1: Enquanto lermos esse n. 17 das Reden der Unterweisung como conversas de uma orientação espiritual, não surgem problemas especulativo-ontológicos. Pois, hoje entendemos o espiritual como índice da área da região do ente subjetivo-interior, portanto não há questão da ordem do ser no aspecto denominado ora ético, ora espiritualista, ora psicológico-moral. Nesse sentido de conversas espirituais, a instrução de Eckhart seriam conselhos piedoso-práticos para orientar o comportamento de seus discípulos. Mas, o pensamento medieval se rege por um princípio ontológico que diz: natura sequitur esse. A natureza, i. é,  a vigência, a dinâmica de um ente segue a esse, i. é, ao ser. Primeiro ser, e a partir do ser, se dá a atuação, a dinâmica do ser, i. é, a natureza. Com outras palavras, esse e natura dizem o mesmo, mas uma vez, focalizado no seu ser e outra vez, na sua atuação essencial. Isto significa que em última instância, o que vale examinar é a ordem do ser, em todas as atuações, atividades, relacionamentos etc. do homem, sejam eles essenciais ou acidentais; o que deve ser visto é o ser como a priori, i. é, em primeiro lugar, não simplesmente como o primeiro instante de uma compreensão, mas sim como o horizonte da captação do todo da paisagem da realidade, a partir e dentro da qual se dão as manifestações do homem, seja a respeito de si, seja a respeito dos entes que não são ele. Com outras palavras, a compreensão real dessa conversação espiritual n. 17 de Eckhart depende de, e já pressupõe a pré-compreensão do ser que pré-jaz como o fundo da acima mencionada proibição incisiva, na qual Eckhart não nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreensão dessa partícula conjuntiva “e” distância de separação. A questão é portanto especulativo-ontológico, diz respeito ao ser do relacionamento Deus-e-criatura, a saber ao ser Deus, ao ser criatura e ser relação Deus-e-criatura. E então, colocados primeiramente nessa “perspectiva”, é que deveríamos a seguir examinar a pergunta: o que é afinal pessoa, pensado na definição de Boécio e aplicada às pessoas da SS. Trindade por Sto. Tomás.

Na sua instrução espiritual exorta Eckhart o homem a jamais fazer uma auto-avaliação, na qual ele se considere longe de Deus. E isso por nada, seja o que for a causa desse distanciamento. Pois o homem se avaliar longe de Deus não é outra coisa do que: deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta. Deus, segundo Eckhart no seu ser próprio é proximidade, e de tal modo proximidade que Ele se cola, todo inteiro ao Homem, seja ele como for, o que for, se avalie e avalie a Deus a partir e dentro desse seu se avaliar, como e o que for. Deus é ser, de imediato, primariamente, antes de tudo, aderência, proximidade, imediatez de ser junto, com, no ser do Homem. Deus assim é ser-em do Homem. Essa colocação de Eckhart contém em si a afirmação de que Ele é ab-soluto no seu ser, i.é, Ele mesmo, solto, livre na sua identidade, de tal sorte que toda a avaliação que não venha a partir dele mesmo, e não permaneça nele mesmo, não seja idêntica com ele mesmo, não faz jus ao seu ser. Com outras palavras ele é desprendido de todas as medições, medidas, avaliações, de toda e qualquer mediação que venham de fora dele mesmo. Essa ab-soluta liberdade de ser ele mesmo se chama Abgeschiedenheit, traduzido como Desprendimento, tematizando-se a plenitude de soltura, o não-redutibilidade a nenhuma realidade que não seja tout court Ele mesmo na plenitude da liberdade de ser. É Deus na sua Deidade. Deidade é pois o ser de Deus. De uma tal colocação de Eckhart se tira precipitada e usualmente a conclusão de que da Deidade nada sabemos, nada queremos, nada sentimos, nada temos, resumindo: nada podemos ser. Em Eckhart essa formulação negativa, parece acenar a uma absoluta afirmação que é anterior à afirmação e negação entendidas como ajuizamento e avaliação sobre objeto chamado Deus. Essa “afirmação” enuncia: dizer que da Deidade nada sabemos, nada queremos, nada sentimos, nada temos, resumindo: nada podemos ser significa simplesmente: nada precisamos fazer de tudo isso, a não ser apenas deixar ser Deus no seu ser, na sua ab-soluta liberdade do seu Desprendimento. Aqui nada podemos ser significa: receber i. é, acolher a Deus no seu ser, na liberdade da sua Deidade: “E por mais que tenham os teus grandes transgressões, te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves, acolher a Deus como próximo a ti”. O pivô da questão aqui é como entender esse receber ontologicamente. No pensamento medieval esse puro receber se chama nada enquanto ex nihilo sui et subiecti, nada de si e de substrato subjacente. É a pura matéria-prima enquanto potentia oboedientialis: pura possibilidade de receber. Isto significa que essa potência é uma possibilidade de receber, cuja possibilidade é por sua vez recebida, de tal sorte que o receber aqui está impregnado da receptividade cada vez nova e renovada, de receber o receber da receptividade. Portanto, puro receber aqui não é a não contradição lógica formal de uma neutralidade escancarada a modo de um vácuo indiferente, sem nenhuma disponibilidade, mas é a soltura totalmente livre na disposição de acolher, cada vez mais dócil, imensa, profunda e originariamente, tudo, cada vez, e em tudo se deixar ser obediente, cordial. Esse ser-assim-nada é o ser da criatura. É no homem e através dele que vem à fala esse modo de ser do ente na sua totalidade. É nesse sentido que diz Eckhart ao homem: Tu deves acolher a Deus como próximo de ti. Mas então o que sugere: próximo de ti? Em referência a essa imediata proximidade de Deus, na recepção do homem, Eckhart ventila o pensamento: o Homem deve ser assim nada, como quando ainda não era.[1] Se substituirmos a palavra nada por possibilidade de receber o receber da receptividade, podemos dizer: o Homem deve ser assim receptivo, como quando ainda não era. Esse “estado do ser” é dito numa expressão devocional-espiritualista:[1] Estar desde a  eternidade na mente de Deus. Essa evocação traz o modo de ser da mãe, gestante que concebe, cuida, deixa ser a vida, dando lhe forma, tirando de si o “material”, de sorte que o ser que surge, cresce e se consuma é filho, i. é, obra máxima da doação de si do ser da mãe. Só que no caso da filiação humana, a mãe não pode dar a existência, nem se dar total e absolutamente a si mesma, pois sempre dessa gestação resulta um dois indivíduo, cada qual com a sua existência. Se doar total e absolutamente e receber essa doação total e absolutamente é possível somente se o ente que se dá e o ente que recebe são, ou melhor, é um, na igualdade absoluta na coincidência total, de tal modo que o dar-se é o receber e o receber é o dar-se. Para que tal operação se dê, o ente que se dá e o ente que recebe, além de ser um, deve ser a plenitude do ser, de tal modo que o que é dado e o que é recebido é o mesmo, cada vez na dinâmica da concreção do dar-se e se receber. Esse ente que é ser simplesmente, como tal, além, fora, ao lado do qual não há ser,o ente que é ipsum esse se chama Deus e a sua dinâmica abissal de possibilidade da plenitude de ser, solto, livre nela mesma se chama em Eckhart Deidade, cujo processo se expressa na assim chamada processão trina das pessoas divinas: Pai-Filho-Espírito Santo, que em Eckhart aparece mais centrada na assim chamada Filiação, i.é, nascimento do Filho do Pai, e do surgimento do Pai no Filho como mútua vigência do dar-se e  do receber-se na cordialidade ab-soluta da plenitude na alegria de ser. Trata-se pois da ab-soluta vigência da mútua comunicação, operada na intimidade de Deus, cujo “rebento” são as pessoas divinas.

Os termos communicatio e participatio são termos usados pelo pensamento medieval para viabilizar o relacionamento Deus-criatura, salvaguardando a absoluta alteridade de Deus, a sua aseidade; o reconhecimento do apriori de que o seu ser é a plenitude do ser, de tal modo que ‘fora’ de Deus não há ser, nem sequer nada, enquanto este ainda de alguma forma pode ser predicado pelo verbo ser[8]. Mas ao mesmo tempo, com essa afirmação, sob o termo participatio, tenta-se salvaguardar a in-seidade da criatura, e evitar que criatura seja apenas um prolongamento de Deus. A criatura é um ente in se, não in alio, embora seja totalmente ab alio e não a se como Deus. Nesse sentido,  criatura não é o ser de Deus, mas apenas participa do ser de Deus[9].

Segundo a observação de Sto. Tomas, mencionada no início desse comentário a definição de Boécio persona est naturae rationalis individua substantia, aplicada às pessoas divinas, pode ser modificada pela sugestão de Sto Tomas em: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia. Em Boécio: substância individua se refere às criaturas. Em Santo Tomas: substância incomunicável se refere a Deus, não enquanto natureza, mas enquanto pessoa. Examinemos brevemente em que consiste a individualidade do indivíduo e da sua individuação, e em que consiste a incomunicabilidade da pessoa divina e da sua processão. Pois aqui no termo pessoa aparece a conotação da indivisibilidade[10] e incomunicabilidade,[11] como nitidez da perfilação da substância enquanto ens in se, de tal modo que nessa definição da pessoa, se acentua mais a distância do que a proximidade no relacionamento Deus e criatura.

 

Excurso 2: Para que aqui possamos ver a diferença entre substantia individua e substântia incommunicabilis é necessário evitar três equívocos. O primeiro é de identificar o indivíduo do pensamento medieval como um momento pontualizado de funções de um conjunto, dentro do sistema das ciências naturais físico-matemáticas, onde o sentido do ser ali operante reduz todo e qualquer realidade à realização da classificação generalizante funcional, quantitativo físico-matemático. O segundo é, a partir do primeiro equívoco, pensar que a ordenação medieval do universo em intensificações do ser nas “graduações”, ou melhor, nas ordens de esferas de entificações, portanto a ordenação do universo em gênero, espécie e indivíduo a modo da definição essencial da árvore porfiriana, não é outra coisa do que uma modalidade antiquada da classificação generalizante, funcional, quantitativo físico-matemático, sem perceber que se trata de dois modos de ‘classificação’ bem diversos. Assim, na ordenação das esferas das diferentes intensidades de ser, a saber, da esfera da substância material (o ente sem vida como pedra, metal), da esfera da substância vivente (as vegetais), da esfera da substância sensível (os animais), da esfera da substância racional (homem) não se percebe a diferença ôntico-ontológica da intensidade de ser na escalação da qualificação de ser das esferas.[12]   E o terceiro é, já dentro da ordenação medieval a modo da árvore porfiriana, entender a palavra substantia da expressão substantia individua e a palavra substantia da expressão substantia incommunicabilis como se fosse unívocas. Com outras palavras, esquecer que a ordenação a modo de Porfírio, somente diz respeito às substancias compostas, e que nas assim chamadas substâncias simples a intensidade do ser que qualifica o ente em questão entende o indivíduo, não como um caso da realização da espécie, e esta do gênero, mas como universal, cuja densidade faz coincidir espécie “indivíduo” com espécie, de tal modo que essa universalidade singular caracterizar a ordem dos entes não “materiais”.

Examinemos brevemente na ordenação dos entes denominados substancias compostas[13], em que consiste e o que significa a individuação. Repetindo, a ordenação das esferas dos entes, substâncias compostas, se escala, iniciando de baixo em:

1) a substância dos entes simplesmente ocorrentes ou não vivos (coisas  físico-materiais físicas, p. ex. pedra, metal etc.: = espécie ínfima substância que é também gênero para a espécie superior próxima vivente)e o seu modo de ser: ocorrer; 2) a substância dos entes vivos (coisas vegetais, p. ex. plantas: = espécie vivente e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo animal) e o seu modo: viver (vivere). Aqui se inclui de algum modo a substância dos entes sensíveis (coisas animais, p. ex. gatos, pássaros = espécie animal e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo homem) e o seu modo: = vivenciar ou sentir; 3) a substância dos entes racionais (coisas humanas, p. ex. homens, mulheres, crianças etc. = espécie supremo homem) e o seu modo: = conhecer. Nas três modalidades de ‘ser’ substância: substância coisal (1); substância vivente (2); substância racional (3), o termo substância parece ser unívoco, mas se bem examinado é em cada nível na escalação da ordenação, diferente essencialmente. Na passagem de um nível para outra, não se dá apenas um acréscimo de uma qualidade diferencial específico, a uma substância-bloco, fixa, mas se dá uma transmutação substancial qualificativo no ser, a modo de “subsunção” da ordem inferior pela superior. Há ali na escalação das ordenações em diferentes níveis ascendentes e descendentes um movimento da dinâmica de qualificação do ser.[14] Assim, a substância-coisa da espécie-ínfima, ocorra como gênero na espécie superior-vivente, para ser qualificado por diferença específica-vivente, embora na descrição da sua “composição”  soe como ajuntamento de uma especificação a um genérico, está ali não como uma classe mais geral em vista de uma especificação mais delimitado do campo de extensão geral, mas sim de um movimento de gênesis (daí o termo gênero) donde brota, cresce e se consuma uma totalidade própria na sua perfilação. Nesse sentido o termo espécie pode e deve ser lido aqui como intensidade da presença como perfil do seu esplendor (esplendor da face, beleza). Portanto a “lógica” da escalação não é classificação do mais geral para mais específico e então terminar no indivíduo como o extremo de delimitação ou vice versa, do indivíduo para mais geral, e do geral específico para o geral o mais extenso na abrangência, com o mínimo de conteúdo. Portanto, na escalação da ordenação das esferas das substâncias compostas a modo porfiriana, no pensamento medieval, trata-se de um movimento de essencialização que continua na ordenação das esferas das substâncias simples até culminar no Ente, que é em si e a partir de si simplesmente a plenitude do ser, denominado Deus. Trata-se, pois do movimento da concreção dinâmica da imensidão, profundidade e da vitalidade, denominado pelos medievais de Obra máxima da Criação.

Dentro dessa perspectiva o que significa substantia individua, o indivíduo?

Individua significa propriamente indivisível. A essa impossibilidade de dividir, opomos a divisibilidade, a possibilidade de dividir. E entendemos por dividir, partir, separar uma parte da outra, fazer em pedaços. Essa ação de dividir parte o que é aparentemente uno, em seus componentes, e se não for componentes, em pedaços, até que não se possa mais dividir, pois se chegou ao último elemento nuclear, ao derradeiro átomo.[15] Aqui podemos logo perceber que esse modo de divisibilidade e indivisibilidade pertence ao modo de ser acima descrito como o primeiro equívoco. O segundo equívoco era de pensar que esse modo de ser físico-matemático seja uma versão modernizada, cientificamente mais limpa do modo de ser físico-corporal, ainda subjetivo e antiquado da ordenação do ser no pensamento medieval, a esfera a mais elementar, a ínfima da substância composta coisal. Para os medievais, nessa esfera, no entanto, os entes subsistentes sem-vida, p.ex. pedras, possuem peso, tamanho, densidade etc., que podem ser medidos em números, ‘matematicamente’, mas aqui peso, tamanho, densidade não são no seu ser reduzidos à pura “quantidade” matemática a modo das ciências naturais físico-matemáticas, mas são tomados concretamente dentro da experiência de uso, a partir, dentro e a modo de uma existência artesanal.[16] Como é aqui, nessa  perspectiva concreta da experiência do mundo circundante no uso e na vida, o que chamamos de gênero, espécie e indivíduo, p.ex.no mundo das pedras? A espécie pedra aparece sob a denominação a pedra. E o indivíduo é denominado esta pedra, aquela pedra[17]. Aqui a pedra, a espécie é denominada universal. E esta pedra, aquela pedra, o indivíduo é denominado singular. O relacionamento do universal para com o singular e vice-versa é bem diferente ao do geral ou comum para com o individual ou particular. Trata-se de outro teor de ser. Aqui é preciso ser vista a diferença do teor de ser.

Para compreender com maior precisão o que significa propriamente a individualidade ou indivisibilidade da substância humana como pessoa e incomunicabilidade da substância, una em natureza e trina em pessoa, e então perguntar o que tem a ver tudo isso com imediatez da proximidade de Deus com a criatura, é necessário ter em vista a diferença do teor do ser, portanto o sentido do ser operante em cada nível da intensificação do ser na escalada da ordenação dos entes no seu ser. Aqui, quanto mais elevada for o nível do teor do ser na dimensão a que pertence um ente, tanto maior é o teor da imensidão, profundidade e liberdade do seu ser, que aparece na densidade, envergadura e na qualificação do modo de ser de uma “totalidade” denominada por Eckhart de Um, cuja vigência oculta unitiva se desvela na dinâmica do intercâmbio das três pessoas divinas, acima designadas de incomunicáveis. Esse “modo de ser” da intensificação no ser se chama universalidade. Uni-versal significa vertido, virado, convergido ao Um ou Uno, e designa a intensidade do ser, e não generalidade em oposição a particularização.

Ex-curso 3: Tentemos “ver” o universal, à mão de um texto que descreve como um artesão “viu” a obra perfeita, antes de ela estar diante dele como realização da realidade. O texto é do pensador chinês Chuang-tzu, e se intitula: O entalhador de Madeira, na tradução de Tomas Merton.[18]

 Kihng, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos,/De madeira preciosa. Quando terminou,/ Todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram /Que devia ser obra dos espíritos./O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:/“Qual é o seu segredo?”.

Khing respondeu:“Sou apenas operário:/Não tenho segredos. Há só isso:/Quando comecei a pensar no trabalho que me ordenaste/Protegi meu espírito, não o desperdicei/Em ninharias, que não vinham ao caso.

Jejuei, a fim de pôr /Meu coração em repouso./Depois de jejuar três dias,/Esqueci-me do lucro e do sucesso./Depois de cinco dias/Esqueci-me do louvor e das críticas./Depois de sete dias/Esqueci-me do meu corpo/Com todos os seus membros.

“Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza/E da corte se evanescera./Tudo aquilo que me distraía do trabalho/Desaparecera./Eu me recolhera ao único pensamento/Da armação do sino.

“Depois, fui à floresta/Ver as árvores em sua própria condição natural./Quando a árvore certa apareceu a meus olhos,/A armação do sino também apareceu, nitidamente,/Sem qualquer dúvida./Tudo o que tinha a fazer era esticar a mal/E começar.

Se eu não houvesse encontrado essa determinada árvore/Não haveria/Qualquer armação para o sino.

“O que aconteceu?/Meu próprio pensamento unificado/Encontrou o potencial escondido na madeira;/ Deste encontro ao vivo surgiu a obra/Que você atribuiu aos espíritos” (XIX. 10).

Todo o fazer do artesão era desprender-se de tudo quanto não era apenas a pura disposição de deixar ser. Assim tornou-se límpida e pura transparência de receber. Esse vazio, essa suspensão, plena de acolhida é o pensamento. Nessa aberta do receber se dá o que os medievais chamavam de Matéria ou potentia[19] (a árvore certa) e simultaneamente forma ou actus (o aparecer da armação do sino nitidamente)[20]. Matéria e forma e potentia e actus na sua simultaneidade é modo de expressar a dinâmica ‘uma’ do vislumbre da totalidade (eidos) que se manifesta como archétipo, como exemplar, uni-versal de toda e qualquer individuação desse protótipo. Aqui, portanto, a espécie (eidos) é vislumbre da totalidade, cuja medida é a plenitude da unidade da possibilidade consumada no e do todo.[21] Nesse sentido, universal significa literalmente virado, concentrado na acolhida do uno: uni-verso. A espécie, o eidos, o universal como perfilação compacta, concreta e coerente do ser todo no seu assentamento, na sua insistência na autopresença do ser, é o que o medieval chamava de substantia. Essa subsistência na plenitude de ser é que era captada como coisa indivisível, individua. Assim, individual, indivisível não tem própria e primariamente a conotação de atômico, átomo, fechado em si, portanto também incomunicável, mas sim da consumação da plenitude do todo no seu ser. Assim entendido o indivíduo, para o medieval, o uni-versal e o individual coincidem, dizem o mesmo. Para não confundir esse modo de ser uno, virado, concentrado no uno do todo, portanto do indivíduo, como particular oposto ao geral da nossa classificação hodierna usual, usemos para esse tipo próprio do individual o termo singular. Assim, o universal e o singular coincidem.

Acima na nota 15 dissemos que no universo medieval distinguimos a região das substâncias compostas e a região das substâncias simples. Se caracterizarmos a dinâmica da escalação ascendente dessas ordenações, como crescimento na intensificação do ser, percebemos que aqui, os termos intensificação, intensidade não podem ser com rigor entendidos como sinônimos de aumento quantitativo, graduação, potencialização energética ou escalada de força. Mas como entender o aumento, a intensificação de outro modo? Costumamos responder: tratas-se não de quantidade, mas sim de qualidade do ser. Como, porém, entender o aumento, a graduação, a escalada de qualidade? É possível colocar as qualidades a modo de uma escalação de aumento ou de diminuição a modo quantitativo? Qualidades não constituem cada qual uma totalidade de tal modo que não é possível falar de aumento gradual de uma qualidade para uma outra? Aumento ou diminuição só é possível, não entre as qualidades, passando-se de uma para a outra gradualmente, mas apenas há aumento ou diminuição dentro de uma mesma qualidade, não no sentido de quantificação, mas no sentido de limpidez, claridade e pureza do quilate de qualidade em tornar-se ela mesma, sem mistura com uma outra dimensão que não seja a dela. Quando na ordenação das esferas do ser do universo medieval falamos de intensificação ou aumento do ser, devemos entender ‘intensidade’, ‘crescimento’, ‘escalação’ do ser no sentido acima insinuado da qualificação. E, no entanto, embora não entre aqui a quantificação, há constante onipresente em todas as escalas, qualitativamente diferentes do ser, algo como vigência ou presença que caracteriza um modo todo próprio de identidade e diferença, tratado na escolástica medieval sob a denominação da questão da univocitas et analogia entis.

Deixando para mais tarde a questão da identidade da onipresença do ser em todas as esferas dos entes na sua diferença qualitativa, cada vez como ser de cada esfera, observamos como é o relacionamento do universal e do singular nas esferas do ser da região das substâncias compostas. Na esfera das substâncias materiais-físicas, p. ex. temos o universal a pedra. O indivíduo é esta pedra. Aqui, nesse nível da intensidade do ser, a pedra só se torna presente, somente é como esta pedra. Portanto a pedra e esta pedra não são duas coisas, uma ao lado, dentro, a cima ou a baixo da outra. A pedra-e- esta-pedra é o mesmo. No entanto, a coincidência aqui se dá como repetição[22] da tentativa sempre renovada de esgotar a intensidade uni-versal como esta, aquela individualidade. Nesse nível do ser, no individuo a pregnância da uni-versalidade se apresenta mais rarefeita. Essa rarefação é o que aparece como a diferença específica dessa esfera na ‘qualificação’ da substância como morto, sem vida. O mesmo modo de ser da coincidência se dá nas outras esferas das substâncias compostas, portanto, na esfera da substância vivente; na da substância dotada de sensibilidade, e até certo ponto na da substância dotada da racionalidade. Só que na medida em que cresce a intensidade do ser, portanto, como vida, sensibilidade e racionalidade, o indivíduo de cada uma dessas esferas cresce na pregnância do uni-versal, de tal modo que a coincidência universal-individual se torna cada vez mais imediata, direta como ‘indivisibilidade compacta’. É nesse sentido a possibilidade da reprodução dos indivíduos no nível do ser da pedra  é maior do que p. ex. no nível do ser da planta; desta, maior do que no animal, deste maior do que no homem[23]. Isto significa que quanto menos pregnância da presença do universal no indivíduo, tanto mais universal e indivíduo aparecem por assim dizer ‘separados’, e o universal como geral e o indivíduo como particular. E quanto menos pregnante, ou mais rarefeita a presença do universal no indivíduo, tanto mais a indivisibilidade ou incomunicabilidade, ou melhor, a unicidade, a singularidade do indivíduo é relativa e rarefeita, possui menos ‘assentamento’ em si mesma, é menos ‘substancial’. O que equivale a dizer que quanto mais pregnante, mais coerente a presença do universal no indivíduo, tanto mais a incomunicabilidade ou a unicidade singular do indivíduo é absoluta, está mais assentada em si mesma, é mais substancial. Se continuarmos esse modo de ver a coincidência do universal e indivíduo, da mais relativa para cada vez menos relativa até à absoluta, agora para dentro da região das substâncias simples, portanto no reino dos espíritos, podemos dizer que quanto mais se ascende na ordenação da intensidade do ser e se aproxima do ser por excelência que se chama Deus, tanto mais intensa a identidade do universal com indivíduo (singular) de tal sorte que na região das substâncias simples não há mais nem universal que de alguma forma saiba à generalidade, nem indivíduo que saiba à particularidade ou individualidade, mas ali o ente é cada vez totalidade, plenitude do seu ser, portanto é simplesmente uni-verso ou uni-versal, o que equivale a dizer é simplesmente singular, único, cada vez. Aqui, o ente é o em-sendo-cada vez totalidede,[24] todo um mundo ab-soluto na unicidade, no uno da sua propriedade, única, plena, consumada.

Recordemos aqui a definição de Boécio da pessoa: naturae rationalis individua substantia. E a sua aplicação às pessoas da Santíssima Trindade na formulação sugerida por Santo Tomas é: persona naturae intellectualis incommunicabilis substância. E dentro da perspectiva do que viemos falando nos Ex-cursos, perguntemos como devemos entender a indivisibilidade e a incomunicabilidade.

Usualmente entendemos o caráter próprio do indivíduo indivisível. E entendemos o pré-fixo in como não, como negação. Assim não-divisível ou não-dividido insinua uma representação de algo compacto a modo de um bloco duro, difícil ou impossível de ser partido. Essa compactidade sugere a dificuldade ou impossibilidade de partilhar, de dar ao outro algo de si, portanto de não-communicável, de incomunicabilidade. Essa imagem de compactidade quantitativa coisal é projetada p. ex. numa obra de arte, quando dizemos: essa obra é indivisível, não é reproduzível, não se pode repetir, é singular. E cometemos aqui o equívoco de pensar que o característico da intensidade e pregnância da totalidade é a compactidade-bloco, esquecendo-se de que um bloco quantitativo material jamais é indivisível, pois por mais que se atomize um bloco sempre é possível ser dividido infinitesimalmente.

As colocações acima feitas nos Ex-cursos, porém, nos mostra que quanto mais se cresce na intensidade do ser, digamos, ‘qualitativamente’, cresce a compreensão da totalidade em todas as direções, no sentido de imensidão, profundidade, originariedade, vitalidade, sensibilidade, interioridade e liberdade. Assim, em vez de fixação e dureza compacta sem vida de coisa, aumenta o volume e a qualificação na mobilidade, finura, complexidade, diferenciação de estruturação, na coerência interna, possibilidade da generosa e cordial partilha, livre, sem constrangimento. Com outras palavras quanto mais se ascende na escala da ordenação dos entes em direção à região das substâncias simples o significado do indivíduo se afasta da acepção de duro, imóvel, compactidade de amontoação, de não-partilhável, para indicar cada vez mais a intensidade, a grandeza, a subtileza e vigência criativa e livre de ser, portanto o aumento da unidade da dinâmica de difusão generosa e livre, portanto o aumento da comunicabilidade. Dito de outro modo, isto significa que quanto mais se intensifica na qualificação do ser, tanto mais a indivisibilidade significa intensidade, coerência, unidade da fidelidade e autocomprometimento na doação de si, na comunicação, portanto da comunicabilidade. Tentemos entender nessa perspectiva a definição: Persona est naturae rationalis individua substantia.

II: O racional e o intelectual

Os adjetivos racional e intelectual na sua acepção usual se referem à faculdade chamada razão dentro da classificação tradicional das faculdades da alma em razão, vontade e sentimento. Sem negar que em Eckhart o racional e o intelectual possam se referir também à razão como uma das faculdades da alma e de suas ações, primariamente o racional e o intelectual dizem respeito ao ser ou ao modo da intensidade e qualificação do ser no nível da esfera Homem (animal ou ânimo racional). Nessa perspectiva racional e intelectual devem ser entendidos ontologicamente e não tanto onticamente. Assim, racional e intelectual primeira e primariamente significa o específico, o próprio ser do homem, aquilo que perfaz a diferença essencial, i. é, substancial da sua natureza, i. é, da sua nascividade originária. Como tal, nesse sentido ontológico sob o termo razão ou intelecto estão subsumidas as três faculdades do homem de conhecer (razão ou inteligência), de querer (vontade), de sentir (sentimento)[25].

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Ex-curso 4: No pensamento medieval a definição do homem é animale rationale, animal racional. Ratio, Racional, aqui, primariamente, não tem tanto a ver com a nossa razão na acepção do “racionalismo”, mas muito mais com Verbum, que é tradução do Lógos e Nõus gregos. E animale não se refere ao bruto, ao  bicho, mas sim a animus, a dinâmica vital do vivente sensível. Animale rationale é na realidade a tradução latina da determinação do ser do homem, em grego, tò zõon lógon échon: o vivente atinente a lógos. Isto significa: a vigência, a animação, cuja vitalidade é ser pertença, atinência fiel e obediente a Lógos é o que perfaz a essência, o ente, ou melhor o em-sendo chamado Homem.[26] E Lógos aqui entendido mais na acepção arcaica de ajuntamento, acolhida, colheita.[27] Essa significação de colheita, acolhida aparece na conotação existente no termo alemão Vernunft, no alemão medieval de Eckhart Vernünfticheit, cujo significado vem do verbo vernhemen  que mais do que tomar, agarrar ‘ativo’ acena para o ‘passivo’ receber, colher, dispor-se a acolher. Ratio, rationale portanto diz respeito à vida do homem, à sua essência, ao seu ser, a saber: disposição de acolhida, prontidão obediente e fiel de recepção. Dentro dessa perspectiva podemos interpretar o intellectus do pensamento medieval como  potência ou disposição, o ânimo cordial de intelligere. Intelligere se lê inter-légere e de imediato significa ler entre linhas. Na palavra portuguesa ler (em alemão lesen) está a mesma raiz do verbo grego légein. E “entre linhas” conota o medium, o inter-meio, a saber, o “espaço” livre, a aberta, a partir e dentro da qual se estruturam as ‘coisas’ que nos vem de encontro. Nesse sentido, intelligere, intellectus, intellectualis significa acolher, acolhida, receber, recepção da abertura a partir e dentro da qual nasce, cresce e se consuma a totalidade de um mundo.

Olhemos, agora numa visão panorâmica o todo da ordenação do universo no pensamento medieval, estruturado em duas grandes regiões dos entes na escalada da intensificação qualitativa do seu ser, a saber em região das esferas das substâncias simples e compostas. E tentemos localizar o Homem nessa escalação. De imediato percebemos que ele ocupa o lugar de destaque, no meio, entre as duas regiões. O Homem, na direção ascendente da escalação na intensificação do ser, iniciando-se da substância-morta, pertence à região das substâncias compostas, e ocupa a esfera suprema dessa região ‘inferior’, onde a vigência do ser dessa região é a mais intensa. E ao mesmo tempo pertence, na sua identidade que o diferencia de outros entes da região das substâncias compostas, pertence ao e se torna, digamos partícipe do modo de ser da substância simples, não propriamente à sua esfera ínfima, mas digamos a uma feixe vertical ascendente de implicação entificante que partindo da ‘substância’-nada[28], coisa,  vira vida, depois ânimo-sensibilidade e alma, e por fim ânimo-racional, e na racionalidade, se adentra para dentro da região ‘superior’ das substâncias simples, perfazendo-se na escalação ascendente de intensificação no ser da sua racionalidade como alma, espírito, intelecto e mente (mens), através da qual penetra para dentro do abismo da possibilidade de ser denominado Deus[29]. Isto significa que o Homem se estende no seu ser desde a matéria-prima até Deus, não apenas somente até, mas muito mais, a saber para dentro do abismo do ser de Deus, para dentro do abismo da vida íntima, para dentro da interioridade de Deus que nos vem de encontro i. é, se desvela como a dinâmica da estruturação do enigma das três pessoas e uma natureza de Deus, portanto do Mistério da santa unidade-trina.  Isto significa por sua vez que é no Homem, pelo Homem e através do Homem que vem à luz a vigência da plenitude do ser que se torna presença em Deus-Homem-Universo, denominada pelos medievais de Opus maximum: Creatio, obra máxima da Criação. Se porém o Homem per-faz o espaço livre, a aberta que perpassa desde a realidade e realização ínfima  até para dentro da suprema e para além da suprema realização da realidade, nele podemos encontrar um fio condutor que perpassa toda a Criação e adentra o abismo da interioridade do ser de Deus. Esse fio condutor se chama natura rationalis e quando se é subsumido para dentro da interioridade do ser de Deus se transforma em natura intellectualis, termos usados pela definição da pessoa em Boécio e da sua aplicação às pessoas da unidade trina de Deus. No extremo ínfimo desse fio condutor encontramos a matéria prima que se denomina potentia oboedientialis. E no ‘extremo’ supremo dentro do abismo da interioridade divina encontramos o Verbo, a pessoa Filho, cuja natureza é divina-humana como Deus feito Homem e Homem feito Deus no mistério da Encarnação. E lá onde o ser humano (todos os homens), portanto o homem na sua humanidade, i. é, a natureza humana é tocada pela natureza divina, nesse toque e na sua recepção, nessa unidade na “plenitude” singular, a natureza divina e natureza humana co-incidem, e o quilate, a cristalização dessa comunicação absoluta é dita pelo nome, Filho, pessoa.  Essa parte do ser humano, em participando da mesma sorte do Filho de Deus incarnado, na linguagem de Eckhart a parte suprema da alma que também pode ser chamado de espírito, é assinalada como puro ou supremo intelecto. Se agora, entendermos o termo intelecto como acima tentamos interpretar, a saber, como Vernünfticheit, como pura e absoluta disponibilidade de receber, e também interpretarmos a matéria prima como potentia oboedientialis, e esta também como pura disponibilidade de receber, então finalmente encontramos um denominador comum para caracterizar o quê, ou melhor, o como desse fio condutor que perpassa de baixo a cima o todo do universo-Criação, o qual poderemos definir como a disposição pura, límpida, grata e cordial de receber: a alegria e liberdade de receber.

III: Recepção

Receber é um termo correlativo ao dar, como o são os binômios esquerda-direita, em cima-em baixo, desvelado-velado. E na Tradição cristã, na qual Eckhart se acha como medieval, o binômio receber-dar, uma vez referido a Deus e ao seu opus maximum, a Criação, está intimamente ligada a Filiação divina e esta ao Nascimento do Filho Unigênito do Pai, portanto, à processão das pessoas divinas. E o que procede do Pai e Filho se chama Espírito Santo, que é caracterizado como Amor. Nessa Tradição medieval Criação significa no fundo Filiação, e Filiação significa comunhão no Amor.  Assim, seguindo a usual Tradição cristã, também Eckhart define a essência, o âmago visceral de Deus, a deidade, como amor. Ο termo usado no alemão medieval de Eckhart para Liebe (amor) é Minne. A palavra Minne possui parentesco com grego μένος (= sentido), μιμνέσκειν  (recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar). A raiz indogermânica men que está em todas essas palavras significa pensar.  Pensar, aqui, é estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo coração. Nessa acepção do termo pensar como a liberdade de disposição da cordial jovialidade, Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente[30], sem cessar, recordar, i. é, avivar de novo no e do âmago do ser a cordialidade amorosa. Ceia íntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemão Minne trinken (beber a Minne)[31]. Originariamente, Minne designava amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência interpessoal de tu para tu. Assim Minne era uma palavra boa para indicar a intimidade do nobre enamoramento em total doação ardente de corpo e alma no encontro entre Homem e Mulher: o amor esponsal. E dali Minne começou a ser usada na “mística” dos cavaleiros medievais do século12/13, para indicar o protótipo da paixão nobre de dedicação no amor de um cavaleiro para com a mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso móvel de busca para um cavaleiro medieval a incentivá-lo a realizar atos heróicos a serviço e para a honra da sua senhora, a quem doava a vida e o ser como à sua Rainha e Senhora.[32] A partir dessa acepção cavalheiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da Mística medieval cristã, numa acepção ainda mais radicalizada de doação, nobreza, intimidade e paixão e finura como Gottesminne[33] e se tornou a tonância de fundo da assim chamada Brautmystik (a mística esponsal)[34].

Portanto, o caráter comum e unitário do fio condutor que perpassa todo o universo medieval assinalada há pouco como receber deve ser compreendido totalmente na sonoridade do toque, da percussão da” realidade” disso que Eckhart denomina de Minne. Assim a Minne, o amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência inter-pessoal de encontro, tu a tu, a Misericórdia é medium, onde se deve entender o quê e o como da ‘definição’ da pessoa. Aqui todas essas palavras referentes ao Amor, principalmente à Misericórdia, jogadas assim, nada dizem, se não as examinamos com cuidado, rigor e discrição, de que se trata no pensamento de Eckhart, principalmente quando ele fala do inter-relacinamento intra-trinitário, no nascimento do Filho, do Pai. Deixemo-las assim, pois fazê-las ressoar, não tanto psicologicamente, mas ‘ontologicamente’, seria uma tarefa impossível para esse comentário. E no entanto, apesar de toda essa limitação, mesmo apenas assim referido à Minne, que assim nada diz, suponhamos como o tom fundamental a toar no fundo do sentido do termo receber, a dinâmica inter-pessoal da Minne, e examinar brevemente como ligar esse receber com a compreensão da pessoa nas suas definições.

Segundo o que foi dito acima, o modo de ser receber atravessa de baixo a cima, desde o a matéria-prima, o nada criado enquanto potentia oboedientialis até o modo de ser do Filho Unigênito no nascimento, ao proceder do Pai. A cada momento dessa escalada, se olharmos por assim dizer horizontalmente se espraia a imensidão da dinâmica criativa do receber, fazendo surgir, crescer e se consumar cada vez todo um mundo de entificações que formam os entes de uma determinada intensidade do ser. E todos esses entes são como que faíscas, constelação das constelações de eclosões, como rebentos da gratuidade e generosidade de ser.  Acima dissemos que receber é correlativo ao dar. Na escalação dessa ordenação do universo medieval, no entanto, parece existir somente o receber em potencialização e qualificação cada vez mais imensa, profunda e criativa, de tal sorte que sempre de novo nos vem à mente a pergunta: receber, pois não; mas receber o que e de quem? A tentação é estabelecer uma lógica de ordenação no receber e no dar dizendo: a esfera de baixo recebe da esfera próxima superior até subir para dentro da dimensão Deus; e a partir de Deus,  descendo, a dimensão de cima, dá à dimensão próxima inferior. Mas dá e recebe o quê? Porque acima dissemos que o tonância, a sonoridade na qual se dá o receber é o Amor-Misericórdia, a Minne, a tendência lógica da resposta seria: dá e recebe no Amor, vida, ser, graça, filiação, existência etc. Como todas essas palavras a essa altura da reflexão estão como que suspensas no toque da percussão do sentido do ser do Amor, da Minne, deixemos aqui tudo suspenso, a modo de um lusco fusco, e nos concentremos numa hipótese que nos faz suspeitar que aqui, nesse universo medieval-cristão tanto dar como receber, portanto o binômio dar-receber está em suspensão no médium do receber todo único e singular, acenado no modo de ser do Filho Unigênito do Pai, incarnado em e como Jesus Cristo, e nele, por ele e através dele, “re-incarnado” em todos, i.é, em cada um dos entes humanos, e neles, por eles e através deles  “re-re-incarnado” em todos os entes sensíveis, viventes, e coisais, estatuindo o Reino uni-versal da disponibilidade grata, generosa do receber, como da pré-ferência do receber como liberdade de ser. Essa liberdade de ser, se diz no pensamento de Eckhart, o Desprendimento, em alemão Abgeschiedenheit. Mesmo que aqui quase tudo esteja um tanto vago, ou melhor, não propriamente vago, mas suspenso, percebemos que há predominância do receber, há prioridade, preferência do receber em retraimento do dar. E surge a suspeita:não poderia ser assim que em Eckhart que ele chama de Minne,  saber, Misericórdia não é um modo de amar todo próprio, absolutamente singular, portanto,uma difusão generosa da comunicação de doação de si, que é incomunicável, por ser tão próprio, tão ele mesmo que é desprendido de tudo, mesmo também de dar-se, a ponto de em se dando tudo, toda inteira e incondicionalmente se retrai como que recebendo o ser recebido como doação feita a ele como esmola?

Tentemos agora embora de modo formal, examinar melhor o movimento do dar e receber como se dá na estruturação do universo em duas regiões, em região das substâncias compostas e em região das substâncias simples. 1) Na região das substâncias compostas começa-se na esfera da substância-sem vida com ‘receptividade’ como passividade, onde não há  no ‘padecer’  nenhum movimento de dar-se do e no receber. Mas na medida em que se sobe na escalação da intensidade do ser, a passividade passa na substância vivente, e depois dela na substância animal, do apenas ‘padecer’ para disposição de receber, onde começa o movimento de dar-se do e no receber de tal modo que o dar-se passa a ter predominância no homem como animação racional, i. é, o dar-se um sentido do ser a si mesmo (saber) e se produzir como realização desse sentido do ser (querer). Essa predominância pode crescer de tal modo que no homem o dar-se pode ir eliminando cada vez mais o receber, para se transformar na auto-doação de si a si mesmo, a partir e dentro de si, na autonomia absoluta de autocausação como causa sui, a ponto de não haver mais composição binômica do receber e dar, mas apenas o dar, pura e simplesmente, de modo que o próprio dar-se é dado, num movimento assintótico de querer o querer do seu querer. Esse modo de ser puro ato é atribuído à substância simples. Aqui a pessoa coincide com o eu super-acionado como sujeito e agente do seu próprio ser. No entanto, esse tipo de escalação da intensificação do ser, na potencialização predominante do dar, em diminuição do receber, para culminar na autonomia da causa sui, seria para o medieval uma errância, a saber, de qualificar o ser do homem e a fortiori das substâncias simples (espíritos) com o modo de ser das substâncias compostas emprestado da esfera ínfima no nível de ser: com o modo de ser da coisa, na sua quantificação. Aqui o pensamento medieval parece ser muito mais diferenciado e subtil, mesmo na região das substâncias compostas, quando processa a escalação qualificativa do ser na sua intensidade constitutiva das esferas das substâncias compostas: esfera da coisa, esfera da vida, esfera da sensibilidade, esfera da racionalidade. Mas em que sentido mais diferenciado e subtil? No sentido de o relacionamento do receber e dar, não se processa simplesmente nem no movimento unilateral, nem na bilateral, portanto da dominância do receber ou do dar, nem na simultânea dominância do receber e dar, deixando intacto e fixo o sentido do receber e dar, mas sim num movimento digamos espiral de continua transformação qualitativa tanto do sentido do receber como do dar, de tal sorte que esse movimento espiral pode ser circum-escrito da seguinte maneira: 1) Receber como pura passividade onde o sentido do receber não contem a dinâmica da insistência nem da a-seidade, possibilidade de ser atuado, dependência total de uma outra dimensão que possui mais in-seidade e a-seidade. 2.No vivente o receber contem em si maior intensidade do dar-se,, iniciativa e inventibilidade de buscar; 3) no animal essa auto- receber; recebe e dá o dar e o dar recebe e dá o receber e nessa mútua implicação do receber e dar, como que do fundo desse movimento espiral se intensifica um receber todo próprio, que impregna e ao mesmo tempo libera o dar e receber como receber cada vez mais gratuito,cordial, e uno, numa doação total e solta à disponibilidade obediente da liberdade de acolher. Se observarmos essa circunscrição um tanto desengonçada do movimento de dar e receber, não mais unilat4eral nem bilateral, mas espiral, percebemos de imediato que está em jogo três “momentos”, e isto quanto mais se ascende nas esferas das substâncias simples, até em Deus esses três momentos aparece na dinâmica da vida uma e trina de Deus como três pessoas da SS.Trindade. Temos assim no movimento 1) o receber, 2) o dar, 3) o receber o receber e o dar. Esse último receber que é receber o receber e receber o dar num modo de receber que se afunda cada vez mais para dentro do ponto de fuga do movimento centripetal e centrifugal da espiral é vem à fala como do princípio, do abismo de onde e dentro do qual se articulam os três momentos acima mencionados,em cuja dinâmica faz saltar de cada instante e cada estância do movimento espiral eclosão de um modo de ser, cada vez plena, intacta, na medida plena da intensidade do ser a que pertence. O ponto de fuga desse movimento espiral na direção ascendente de e para dentro do abismo da recepção se dá na dinâmica do movimento como o fator unitivo de todos os pontos desse movimento como Unitivo, como Um.

IV: Pessoa e retraimento

Mas o que tem tudo isso a ver com pessoa? Com naturae rationalis individua substantia? Com naturae intellectualis incommunicabilis substantia?  Se traduzirmos agora os termos natura, substantia, rationalis, intellectualis, individua, incommunicabilis e substantia, conforme o que até agora nessas reflexões viemos desviada e indevidamente amontoando sobre eles, podemos talvez quem sabe circum-escrever de um modo um tanto esdrúxulo e enrolado a definição de Boécio e de Sto. Tomas mais ou menos da seguinte maneira: no ser humano falamos de pessoa quando a sua natureza, i. é, o seu ser dinâmico na sua nascividade, se torna pura e limpidamente ela mesma, vindo a si como o que ela sempre foi, é e será, a saber, a pura disponibilidade de ser o receber, e assim surge, cresce e se consuma num plenitude de acolhida, bem assentada nela mesma, não avoada, não espúria, mas reta, de pé na consistência da sua identidade como pura recepção, portanto como subsistente em si, sem fragmentação, sem parcialização, mas na unidade em si sem divisão: natura (nascividade) rationalis (pura receptividade e acolhida no ser) substantia (assentamento na própria identidade) indivisa ou incommunicabilis (destacada como perfilação e nitidez da auto-identidade). Falamos de Pessoas no ser divino, quando nos referimos na vida da intimidade abissal da sua deidade à nitidez e perfilação da sua subsistência constante, toda própria na nascividade única e no singular novidade da Filiação Divina, da processão do Filho do e no Pai e processão do Espírito Santo do e no dar-se e receber-se de ambos na concreção do movimento do dar e receber que se manifesta na mútua implicação das pessoas divinas.  Mas nessa concreção cada vez mais intensa, cordial e gratuita de receber que na mútua implicância das três pessoas divinas se perde num retraimento cada vez  mais profunda para a interioridade de si mesma, se desvelando como a dinâmica unitiva cada vez mais una a se ocultar como Um, na linguagem de Eckhart se acena para um receber cuja atividade, cuja doação se perfaz em nada poder, nada querer, nada saber, nada será, nada se exigir a não ser límpida e unicamente em se doar sempre mais incondicional e gratuitamente, a tal ponto de em se doando total e inteiramente, nada reter para si, e como si, nada ter de próprio, a não ser apenas estar na disponibilidade de receber e acolher o dom de ser recebido a quem se doa: esse retraimento e aniilação de si, essa Abgeschiedenheit, permite que como esse humilde e pobre presença oculta na sua receptividade inominável possa ser  cada vez, sempre de novo e sempre novo o instante da vitalidade e vigência da criatividade, em toda e cada entificação, desde o ente supremo deus, até o ínfimo pó da materialidade de um excremento, tornando-se livremente o como de cada ente constituindo a jovialidade do modo de ser de cada ente. Essa grandeza de ser no ocultamento, essa Agbeschiedenheit é o pudor e a modéstia da finura e delicadezas de um Deus, cuja divindade se chama deidade, e que em Eckhart recebeu o nome de Minne, a Misericórdia, realizada como obra máxima da sua criatividade, como Uni-verso Criação, denominado Mistério da Encarnação.

Depois de todo esse falatório desajustado e desajeitado acerca do que supostamente está ali como a paisagem de fundo da fala de Eckhart na sua orientação espiritual nr. 17, possamos talvez compreender por que Eckhart acentua com tanta insistência conservar sempre de novo o modo de cada um de nós como a medida apropriada do seguimento de Cristo.  A seguir, apenas repitamos aqui algumas partes do restante do texto que não foi diretamente comentado, para apenas pinçar alguns termos, agora já dentro e na perspectiva do que foi refletido e exposto como o fundo da paisagem do texto de Mestre Eckhart:

Eckhart fala a mim que leio seu texto, na 2ª pessoa singular: tu. Isto significa que o que aqui é dito possui uma grande proximidade comigo, de tal sorte que se me torna um dever, uma tarefa o que ali me é dito, a saber, conhecer e perceber em que consiste no meu caso o meu Seguimento e descobrir o como, o meu modo em que sou chamado por Deus de modo o mais próximo e o mais forte. Pois Deus não chama a ninguém de um modo geral, não há um caminho geral, mas sim para cada um e cada vez o seu um, único ou singular caminho. Esse caminho é cada vez o modo próprio que é dado a cada um como o seu caminho o mais próximo. Portanto, o que me importa, i.é, o que me conduz para a realidade de mim mesmo é o como, é o modo meu próprio, lá onde Deus me toca, na imediatez e proximidade, a ponto de ele, se ele não pode entrar porque eu não o deixo, fica colado à porta, à espera da primeira chance de estar mais junto de mim. A paz eu só a tenho, nesse modo meu próprio, pois só lá é que eu tenho o toque de Deus e eu sou eu mesmo na verdade, de tal modo que se eu almejo coisas maiores para mim, ou sinto-me obrigado a buscar determinadas medidas superiores, devo somente examinar se sou propriamente impelido por Deus, e que tenha a força, para realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da minha interioridade[35].

A seguir, respondendo a uma objeção, “Tu poderias sem dúvida dizer: Se não há nisso importância, por que então assim o fizeram nossos antepassados, muitos santos?”,  insiste na importância decisiva de o homem permanecer junto da interioridade de si mesmo, usando a palavra modo para designar a subsistência enucleada, lá onde o ser do homem se consuma numa perfilação na nitidez e transparência da sua igualdade com Deus, portanto como pessoa. Diz pois Eckhart:

Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também’ a força, para assim agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim e justamente ali, nisso ele encontrou sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si. Pois, Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem, isto, não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E por isso a gente devia perceber por si, que não se age retamente, se, ao ver ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido, por não seguir o modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em conta o seu bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas deve-se atentar mais a isso que eles possuem uma boa intenção, e que não desprezam o modo de ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo de um homem.

Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu precises segui-lo.

Mas, tu poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual devemos seguir constantemente por causa da retidão.

Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor jejuou 40 dias, jamais, porém, deve-se empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos segui-lo, espiritual e não corporalmente.

Por isso, devemos ser aplicados, para que o possamos no modo espiritual, pois, ele mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo no próprio modo. Como, pois?

Ouças: em todas as coisas! – Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas vezes: eu considero uma obra espiritual por muito melhor do que uma corporal.

Como?

Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que tu estás bem mais inclinado ou pronto: sobre isso de concentres e com acuidade fica de olho em ti mesmo. Muitas vezes te convém, te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que tu te privares totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil, silenciar uma palavra do que se abster-se simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que talvez admitir um pesado golpe, para a qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes mais difícil deixar alo pequeno do que  algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma, que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

Conclusão

Finalizando essa longa e esdrúxula reflexão-comentário podemos definir a pessoa como: o ser do Homem enquanto a nascividade receptiva da disposição pura, grata e cordial, levada à límpida e bem assentada consumação de ser a própria disponibilidade receptiva do Filho unigênito do Pai, no seu nascimento do Pai e no Pai e nesse nascimento divino, o homem no seu ser pessoa nascer como filho no Filho e deixar nascer crescer e consumar-se todo o universo, cada ente na sua entificação, em milhões e milhões de possibilidades variegadas, de sorte que tudo seja um na repercussão do toque no modo-retraimento da Deidade de Deus, da Abgeschiedenheit.

E esgotados pela algazarra desse falatório sobre pessoa e sua intimidade como abismo de Abgeschiedenheit de um Deus feito Homem e Homem feito Deus, possamos ouvir sobriedade simples do pudor de uma fala “pagã” a cerca do seu princípio vital a mais originária e excelente:

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?”. “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?”. “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?”. “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando ‘toda escala do ser’, como se o que chamássemos ‘mínimo’ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a Realidade é o Uno. “Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures onde todas as muitas coisas são uma só: Lá,  finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao ´é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranqüilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente Pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em “limites”, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se “plenitude”. O ilimitado do limitado chama-se “vazio”. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um, nem outro. O Tao congrega e destrói. Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo”.

Mas talvez, essa mesma toada asiática da imensidão inominável que não é nem imenso, nem vácuo, nem totalidade, nem se quer nada, é entoada pelo som medieval ‘ocidental’ do absoluto, no retraimento da sua Abgeschiedenheit como sonância e dissonância agraciadas de um cântico finito, cuja melodia sai arranhada, esfregando-se dois galhos secos, nas mãos também secas de um pobre-medievo que nada quer, nada sabe, nada tem, nada pode e nada faz a não ser a louvação da misericórdia, ‘personalizada’ como a Senhora Pobreza, hino pátrio da Terra, onde todas as coisas são pessoas como irmãs e irmãos do mesmo Pai:


[1] Pessoa é substância individua da natureza racional.
[2] Tomás de Aquino, S. theol. Ia, q. 29,a.3, ad 4.
[3] Pessoa é substância incomunicável da natureza intelectual.
[4] Reden der Unterweisung (conversações instrutivas), traduzido em Mestre Eckhart, O livro da Divina Consolação e outros textos seletos, Vozes, Petrópolis 1991, como Conversações espirituais.
[5] Os textos alemães de Eckhart são em alemão medieval (Mittelhochdeutsch) que na edição moderna de suas obras foram vertidos em alemão atual. As aspas <…> indicam que a(s) palavra(s) ali cercada foi acrescentada, ou para suprir lacunas ou para melhorar a fluência atual da linguagem, por ocasião dessa versão.
[6] Wie sich der Mensch in Frieden halte, wenn er sich nicht in äusserer Mühsal findet, wie Christus und viele Heilige sie gehabt haben; wie er Gott <dann> nachfolgen soll.
[7] Como acima já foi mencionado, o que segue não é um comentário propriamente dito. Nesse sentido não fala diretamente muito do texto acima mencionado. De um modo esdrúxulo tenta fazer aparecer  a suposta paisagem do fundo, a partir e dentro do qual fala o texto da 17ª conversação espiritual de Eckhart. Abusando do uso de rodapé, intercalamos as reflexões com longas considerações, assinalando-as como excurso 1, 2, 3etc. NB: Ex-curso significa ‘fora, mas a partir do percurso’. É algo como comentário(s) do comentário; são pensamentos laterais ou colaterais que servem para indicar certas pré-suposições ou pré-compreensões úteis para evidenciar melhor o pensamento.
[8] A partir de Deus, ele é todo o ser, de tal modo que se “fora de Deus ainda houver algo que seja ser, ou esse ente não é senão apenas uma quimera ou Deus não é Deus. As criaturas seriam nessa perspectiva como palavras que saem da boca de Deus, é de Deus: comunicação de Deus.
[9] Usualmente tenta se explicar tal colocação, dizendo-se que tudo isso, toda essa manobra, é para não cair no panteísmo, ao falar do relacionamento Deus e criatura. O problema do panteísmo, no entanto, parece surgir, somente se, não se tiver suficiente sensibilidade ontológica, i.é, senso de diferenciação pelo sentido do ser operante na fala do relacionamento Deus e criatura. Se o sentido do ser ali operante é o do ser na acepção do ser físico-coisal quantitativo, então o relacionamento entre Deus como todo o ser, o ser absoluto e a criatura como ser em parte, resulta na relação de coisa e coisa, cuja diferença é apenas de quantificação, o todo e um lado e do outro lado o em parte, ou o todo e o em pedaço. Aliás, numa tal colocação do relação entre Deus e criatura, não se dá de modo algum uma relação, muito menos relacionamento, pois tanto Deus como criatura são reduzidos à coisa, de tal sorte que aqui nem se quer se dá o toque ‘entre’ coisa e coisa. Esse modo de o homem se entender e a tudo quanto de alguma forma está referido a ele, e resultado da dominância de um determinado sentido do ser, denominado coisal, a partir e dentro do qual o homem se posiciona como esta coisa-sujeito e agente da relação que ele lança sobre aquela coisa-objeto chamado Deus, do cujo ser ele, o homem participa. Como ser aqui e entendido como ser-coisa, coisa aqui e coisa lá, por mais que se diga ser diferentes, uma finita, outra infinita etc., é feita de mesmo elemento. Surge a perspectiva do panteísmo que na realidade deveria ser chamado de panrealismo.
[10] Pessoa como substância indivisível, da natureza racional, i.é, do homem (criatura).
[11] Pessoa como substância incomunicável, da natureza intelectual, i.é, do Filho de Unigênito do Pai. Os medievais caracterizavam a imagem e semelhança de Deus na alma, referindo a memória ao Pai, intelecto ao Filho e vontade (coração, afeto) ao Espírito Santo.
[12] Assim, colocam-se pedra, planta, animal e homem como entes (substâncias), um ao lado do outro, em diferentes conjuntos, como gênero, espécie, cada qual contendo os indivíduos correspondentes do conjunto, lançando sobre os diferentes conjuntos uma lógica de divisão, em cuja razão classificatória, o conteúdo como tal apenas funciona como elemento de delimitação quantitativa da ordenação em maior ou menor extensão lógica, a modo de conjunto de funcionalidade a modo quantitativo físico-matemático. Com isso se mistura dois modos bem diferentes de classificação, de sorte que não se está nem na ‘classificação’ funcional quantitativo moderno,nem na ordenação essencial da intensidade do ser, medieval.
[13] Como é usualmente conhecido,  o universo medieval apresentava-se em ordenações da intensidade de ser que partindo de Deus (ens a se, absoluto e infinito), a fonte da possibilidade de ser e a plenitude absoluta de ser (Deus ipsum esse) formava algo como cascata de ser, em diferentes esferas ou níveis da intensidade de ser, até alcançar a esfera a mais longínqua e diluída do ser, a saber, o mundo dos entes materiais sem vida, que por sua vez por assim dizer se esvaia na pura possibilidade de ser denominada prima matéria ou nada. Essa “realidade” última da Criação ou do universo criado era descrita como “feita” “ex nihilo sui et subiecti” a saber, do nada de si e do substrato anterior prévio.Essa pua possibilidade de ser era também denominada de “potentia oboedientialis”. A totalidade dessas ordenações se constituía em duas grandes regiões do ser, que visas na ordem ascendente, eram 1. a região das substâncias compostas, a saber: esfera a) da substância material sem vida (pedras, metais etc.; b) da substância viva (vegetais); c) substância dotada de sensibilidade (animais); d) substância dotada de racionalidade (homens, animal rationale). 2. a região das substâncias simples ou dos espíritos: esfera a) dos nove coros dos anjos na sua hierarquia ascendente b) Deus. Nessa ordem dos entes do universo medieval o Homem pertencia tanto à região das substâncias compostas como à das substâncias simples. E enquanto pertencente à região das substâncias simples, o que o caracteriza específicamente, a saber racionalidade (ratio, rationale) se escalonava na intensidade da perfeição do ser e recebia então na dinâmica ascendente como animus (alma), intellectus, mens (spiritus). Essa posição do homem por assim dizer no meio da graduação das ordenações do ser como que mediando a região de cima (das substâncias simples) com a região de baixo (das substâncias compostas) e vice-versa era devido a doutrina da Encarnação. Homem aqui era entendido a partir e dentro do ser do Mistério da Criação,interpretado como Mistério da Filiação divina: a saber, Jesus Cristo Deus feito Homem e Homem feito Deus.
[14] Por isso a expressão substância composta não é muito adequada para indicar essa implicação na escalação da qualificação no ser.
[15] Se entendermos a realidade a partir e dentro da realização sob o sentido do ser do físico-matemático das ciências naturais modernas, a coisa entendida como quantidade e quantificação sempre é divisível infinitesimalmente. De tal sorte que na direção do máximo e do mínimo se abre total indeterminação em indefinido. Aqui não pode aparecer uma realidade e realização do tipo “totalidade”. Se nessa dimensão físico-matemática podemos de alguma forma pontualizar estaticamente o ente como algo, é porque delimitamos a extensão quantitativa, de aqui até aqui, e criamos a possibilidade de dentro desse trecho delimitado estabelecer medida válida em si, conforme a delimitação.
[16] Aqui a medição ‘métrica’, mesmo usando matemática, não significa que o sentido do ser dominante nesse uso dos números e da sua medição seja o do físico-matemático no sentido hodierno das ciências naturais. A medição concreta em números, operante no rigor de exatidão artesanal nas construções dos medievais, pode ser por assim dizer a experiência concreta pré-científica, no uso e na vida, a partir da qual incoativamente as ciências naturais físico-matemáticas podem ter a grosso modo ter tirado provisoriamente os conceitos fundamentais da sua construção como do seu “positum”. Mas na medida em que a construção se afasta desse início, pode ter sofrido uma modificação na intencionalidade, de tal modo que o que vem à fala como medida destacada de exatidão objetiva físico-matemática se torna a medida básica de toda e qualquer objetividade e exatidão, da realidade como tal.
[17] Aqui evitar a compreensão classificatória usual a modo “semi”-lógico-matemático de “pedra na acepção geral, comum” e “esta pedra, aquela pedra na acepção particular, individual”, ou também o indefinido desta, daquela pedra como uma pedra. Evitar também a compreensão da pedra na acepção geral-comum como uma representação abstraída desta e daquela pedra individuais.
[18] Merton Tomas, A via de Chuang Tzu,.4ª edição, Petrópolis 1984, Vozes., p.158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. Feiffel, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959, p. 47.
[19] Hýle, matéria-prima – potentia oboedientialis, a concreção do receber.
[20] Não é assim que primeiro ou simultaneamente aparece a árvore e depois ou simultaneamente a armação do sino. A nítida auto-presença da armação do sino na sua perfilação concreta é o apriori que determina o material certo para a configuração certa e a maneira de como conduzir a confecção para o seu vir à fala individualizada dessa perfilação concreta. Os gregos chamavam essa perfilação concreta apriori de eidos, que não é idéia, muito menos representação, mas a dinâmica energética do ser consumado (dýnamis, enérgeia, entelécheia): a obra.
[21] Não representar aqui o todo ou a totalidade como soma das partes ou conjunto de múltiplas entidades, mas sim como intensidade da consumação, da ‘compactidade’, ‘concretudo’ e ‘coerência’ da identidade como auto-presença de si a partir e dentro de si mesmo, como assentamento, insistência no ser. Nesse sentido pertencem essencialmente à totalidade, a imensidão, profundidade e originariedade.
[22] Podemos exemplificar esse estado-de-coisa numa experiência da criatividade. Quando a inspiração é rarefeita e pouca, o que vem à fala é também apoucada, de sorte que sua reprodução se torna como que repetição em série, sem a pregnância do próprio, do único e necessário.
[23] A superioridade numérica da repetição aqui indica a rarefação da intensidade da presença do ser. Ou melhor, dito de outro modo, a rarefação da pregnância do ser que aparece no maior ou menor possibilidade numérica de repetição constitui as diferenças das esferas na ordenação da região das substâncias compostas.
[24] Insistindo, cf. a nota acima 19.
[25] Por isso o destaque que se dá aqui na definição da pessoa, da natureza racional e intelectual não tem muito a ver com racionalismo ou intelectualismo, muito menos com “cartesianismo!”,, mas com um determinado nível da intensidade do ser. Por isso em vez de questionar se aqui se trata da prioridade do intelecto ou da vontade ou do coração, fosse talvez mais útil perguntar: nesse nível da intensidade do ser denominado natureza humana (aqui ânimo racional ou intelectual = lógos, nõus) como seria onticamente o que denominamos na psicologia popular de razão, vontade e sentimento como faculdades da alma.
[26] Esse ser do homem se formula onticamente como: o vivente que tem a linguagem. Linguagem aqui não tanto meio de comunicação, mas mais originariamente a potência da dinâmica criadora em trazer à fala, à concreção o eclodir do mundo.
[27] Cf., Légein, a raiz leg-: ajuntar, colher.
[28] A saber, matéria-prima como nada ‘criada’, como pura possibilidade da potentia oboedientialis.
[29] Cf. uma expressão como a da obra de São Boavengura: Itinerarium mentis in Deum. E observemos também o seguinte: o que denominamos a região das substâncias compostas não é outra coisa do que o homem e seu mundo vital circundante que nele, através dele e para ele ali está como elementos constituintes do homem, e nessa pertença, como seu prolongamento participas da sua sorte e da sua realização.
[30] mens, -tis; νος, mente é o nível de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu ápice, no e atraves do qual o ser humano é tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cfr. Itinerarium mentis in Deum, São Boaventura.
[31] Em grego é ἀγάπη, a ceia do encontro de amor, termo assumido por cristianismo para indicar o amor de doação livre e cheio de bem-querença de si de Deus; em latim charitas e dilectio e lembra a última ceia de Jesus no NT, na qual lavou os pés dos apóstolos.
[32] As gestas e as canções da gesta.
[33] Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo objetivo, i. é, amor que Deus tem para conosco e do amor que nós temos, tendo como ‘objeto’ a Deus.
[34] Cf. São Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cfr. São Bernardo de Claraval.
[35] Paz significa então estar assentado no modo próprio seu, recebido de Deus, e esse assentamento no que é o seu próprio é a interioridade.
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