Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fragmentos de reflexões fenomenológicas XIV

05/02/2021

 

  1. Algumas reflexões para nos aproximarmos da constatação: “…para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”.

A palavra Da-sein, sua tradução para o português como existência, pré-sença e similares como existencialidade, existencial, está sendo usada na reflexão no sentido do Ser e tempo (Martin Heidegger). Indica o próprio do ser do homem ou da “vida humana”. Em vez de o próprio do ser do homem, podemos também dizer o ontologicum do humano. Geralmente, quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não “entre” o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra Da-sein, existência, pré-sença e seus derivados, no seu uso específico da compreensão usual fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica, mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é a de não representar a diferença “entre” ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala, se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando na mira de nossa atenção a diferença entre ente e ente, divisarmos numa “mira”, digamos oblíqua, a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse “intus” “ire” como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez, nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser, se chama homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é Da-sein, existência, pré-sença.

  1. Em nosso caso, quando falamos de fenômeno e de fenômeno-logia ou, num sentido mais “geral”, quando falamos de ente e ser, sabemos muito bem que não devemos entender fenomenologia ou ser como se fosse o comum ou o geral no sentido da classificação de generalização para com os objetos classificados ou mesmo do gênero e suas espécies, e da espécie e seus indivíduos. Esse tipo de conceitos “gerais” que ultrapassam os entes subsumidos sob o seu âmbito, os medievais chamavam de “transcendentais”. Isto quer dizer, transcendiam o gênero. Mas tudo isso não significa que era um tipo de gênero mais geral do que o gênero supremo das classificações. “Transcendiam” todos os entes, no sentido de estarem “implicados” em todos os entes como que marcando sua presença, cada vez de modo diferente conforme o “conteúdo concreto” do ente, mas não a modo do ente. Surge aqui um impasse, pois se de algum modo representamos o ente como algo, e isso a modo disto e aquilo, concreto e individual, que coisa é essa que está em todos os entes e ao mesmo tempo não é nenhum ente? Surge assim o problema dos universais. Os universais são entes ou são apenas “coisas” mentais? Sem adentrar essas questões, observemos que nós, quando lemos: “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia”, temos dificuldades de entender, ou melhor, ver essa simultânea identidade e diferença. A saída imediata e fácil de fugir dessa questão é dizer simplesmente isto surge porque a realidade diante de mim em si é uma coisa, ao passo que o nosso conhecimento é uma “realidade” mental, de sorte que o ser e sua universalidade são conceito, algo mental, embora de algum modo com fundamento na realidade etc. etc. A estrutura elementar e básica desses problemas, a formulamos naquele esquema S – O, Sujeito – Objeto que constitui o positum da Teoria de conhecimento. Na fenomenologia colocamos esse positum entre parênteses, suspendemos o positivismo, o dogmatismo do seu posicionamento, a saber, o reconduzimos à sua dinâmica anterior: ao fenômeno. O fenômeno é a partir de si, nele mesmo, para ele mesmo a dinâmica do surgir, crescer e se consumar. É o movimento de presenciação, patência, e-vidência. E não algo que se torna presente, se torna patente, se evidencia. É o próprio movimento, a própria dinâmica de adensamento, de plenificação, do tomar corpo, do vir à fala. No esquema S – O, por termos fixado esse movimento como uma “ligação posterior acrescentada” entre algo chamado sujeito e outro algo chamado objeto, não vemos que os três “algos” assim fixados e ligados são possibilitados pela dinâmica anterior do fenômeno acima mencionado. Por isso, Brentano, no texto já há muito citado num dos nossos fragmentos de reflexões fenomenológicas, chama o esquema S – O de fenômeno psíquico. Em nossas reflexões anteriores, já dissemos que nessa formulação de Brentano Husserl des-cobriu a intencionalidade, não como intencionalidade na sua acepção usual da tendência da imanência (dentro do sujeito) ao objeto transcendente (coisa fora do sujeito), mas correlação do ego cogito cogitatum como um todo. E ao assim captar o todo e ao chamá-lo de fenômeno, estava trazendo à fala o ser do conhecimento, o ser, i. é, a entidade, o ser do conhecimento, a con-sciência. Toda a passagem do fenômeno em Husserl para a fenomenologia consiste em se aproximar do ser enquanto ser do conhecimento. Isto significa que o ser não vem à fala a não ser enquanto ser do conhecimento, ou como con-ciência transcendental. Como tal, a identidade do ser e pensar, do ser e perceber, do ser e consciência não é pensada, mas pressuposta. E todo o ingente empenho e desempenho da fenomenologia de Husserl é se esgotar na tentativa de no limite da sua possibilidade, i. é, na impossibilidade possível da sua tentativa e tentação, anunciar o ser pressuposto operativamente na colocação da consciência transcendental como condição da possibilidade de ser consciência.

Diz a exposição do prof. Carneiro: “Já para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Da-sein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todos e em todo fenômeno”. Isto significa: o Da do Dasein é a dinâmica do recolhimento e acolhimento (légein) que no seu movimento constitutivo é fenômeno, a saber, phainesthai.

  1. 3. Segundo a conferência de E. Carneiro em Goiânia: “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia”. Formulando o dito de modo equivalente em termos do ente e ser, podemos dizer: todo e qualquer ente (em sendo) já é em si mesmo, como ente, ser. Podemos de modo recíproco virar (Kehre) a equivalência e dizer: o ser já é em si mesmo, como ser, ente? Essa virada é apenas formal e diz apenas: ente = ser; ser = ente; fenômeno = fenomenologia; fenomenologia = fenômeno. É que aqui não se trata de igualdade mas de identidade e diferença. No fundo, temos aqui uma tautologia. Fenômeno e fenomenologia, ente e ser, ser e ente dizem o mesmo. Dizer o mesmo se chama passagem, Kehre no fundo diz o modo de ser da tautologia. Com outras palavras fenomenologia é tautologia. Nesse sentido: tò ón, tò phanómenon, tò autón dizem o mesmo: o ente no seu ser. Manter-se suspenso na tênue vibração do ente no seu ser é o pensar (Physis: Lógos-Nõus. No pensar se dá o salto da mira: a aberta da eclosão do mundo: é Er-eignis, Er-äugnis, o evento, a apropriação. Essa nira é o que denominamos de modo banal: ver simples e imediato. No salto há o ponto de toque da percussão como repercussão. Esse ponto de toque é a passagem, o ponto da Khere. Aqui a viragem é antes vira-vira do que virar de uma direção para a outra. Por isso, passagem. De cá para lá e de lá para cá, simultaneamente. É o movimento da entrada que é ao mesmo tempo saída de uma cantina num filme de Bange-bange. E entrada e saída simultânea da vira-vira num Western é o ponto de decisão da vida e/ou morte de um pistoleiro. É no ponto de salto que se dá a de-cisão, se o salto se dá. Mas aqui não é assim que seja a decisão que de-cide se o salto se dá ou não. Se é ponto de salto, o salto já se deu, mesmo que quando não se dá. O não acontecer do salto em nada tira do salto o seu ser decidido. O que usualmente chamamos de o salto que se não deu, não é salto. É apenas escolha de possibilidades já existentes. No salto, por menor que seja a altura, a intensidade e o volume do salto, ele faz saltar o infinito ab-soluto do qual o salto é repercussão. Assim o ponto de salto é lá onde se dá o uno do finito e infinito, ou melhor, o finito do infinito. Esse uno é o ente como em sendo: o finito na sua finitude. Na fenomenologia, essa finitude se chama de Da-sein. (“Já, em Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”).
  2. Aceitamos como algo óbvio e real que os nossos conhecimentos científicos sejam tirados desta ou daquela coisa, deste ou daquele objeto que é dado diante de nós para observação. Olhamos, observamos esta coisa de diversos ângulos e vamos adquirindo sobre ela muitos conhecimentos, os quais vamos ordenando num sistema. É assim que representamos o nosso conhecer (generalização). Mas, na realidade, não tiramos os nossos conhecimentos científicos dessa coisa ali diante de nós, dada simplesmente. Nós os tiramos, antes, da experiência do nosso próprio viver. Quando nos colocamos diante dessa coisa, para conhecê-la, antes de assim nos colocarmos e visualizarmos esta coisa e antes de esta coisa se nos apresentar assim como esta coisa, antes de tudo isso, há muito tempo, já somos de antemão uma abertura plena de vivências, usos, experiências, relacionamentos, convivências, pertenças, costumes, histórias. Antes de tudo, nós somos uma extensão viva, a priori, dinâmica, um prévio pulsante de pre-compreensões e sentidos, dentro e a partir do qual podemos tematizar um momento ou um aspecto de todo um mundo de compreensão atuante e operante como vida. Ex. jarra: para dizer devo estar dentro da cultura do (utensílio). No entanto não é assim que nessa tematização possamos, por assim dizer, olhar para nós mesmos como quem vê de fora uma área aberta, um grande espaço cheio de experiências dinâmicas pulsantes e então ressaltar desse todo uma parte, a qual enfocamos com a nossa atenção. É que esse suposto espaço aberto cheio de experiências somos nós mesmos enquanto somos, em olhando a nós mesmos, isto é, nós somos, em sendo, essas próprias experiências. Esse em sendo é compreensão. Não precisamos, portanto, ir pra fora e nos ver à distância, “objetivamente”. Basta sermos, pois, em sendo, já somos compreensão. Certamente, não uma compreensão conceptual, não uma compreensão elaborada numa definição, não objetiva como um determinado objeto de nossa investigação, mas sim uma compreensão prévia, anterior, uma precompreensão, viva, que pode ser bem concreta, cheia, clara, mas também pode ser apagada, indeterminada, vazia, confusa, obscura. Essa realidade concreta e dinâmica aqui denominada precompreensão é o que somos e o que, sem pensar muito, chamamos de compreensão da vida, isto é, em sendo, em vivendo, somos cada vez compreensão. É uma compreensão, em sendo, anterior a toda e qualquer explicação, conceitualização e definição. É uma compreensão em sendo, a que está referida toda e qualquer explicação, conceptualização e definição posteriores. Estranhamente já, há muito tempo, não conseguimos mais ver essa realidade simples e concreta nela mesma. Pois essa realidade que somos nós mesmos, em sendo, é o que somos no dia-a-dia, em concreto, em lidando com isso e aquilo, em trabalhando, em negociando, em construindo, em organizando, em repousando, em vivenciando, em teoretizando etc. Com outras palavras, é o que somos no uso e na vida, ou melhor, o que somos como uso e vida. Não conseguimos ver adequadamente essa realidade simples e concreta que somos nós mesmos em sendo, pois já há muito tempo nós nos representamos como sendo uma entidade ocorrente, simplesmente dada, um sujeito, um indivíduo, um algo, uma “substância” que através de volições, afeições, intelecções, através de atos, se relaciona com outros entes que são também simplesmente dados, entes que o cercam de todos os lados. Isto significa que o que pensamos usualmente ser o homem no seu mundo não é o fenômeno direto e concreto, mas sim uma representação, dogmatizada e tradicional. Isto, porém, quando nos perguntamos: o que sou? O que é o mundo? O que é o ente ao redor de nós?

Tudo muda quando, em sendo, vivemos no uso e na vida. Antes, na representação, havia o mundo, o universo como imenso espaço, dentro do qual estão diferentes entidades, sendo que eu sou um ente entre esses entes, também dentro do mundo. Temos assim o esquema: um mundo como imenso invólucro, dentro dele os entes, um ao lado do outro. Agora, quando, em sendo, vivemos no uso e na vida, ou melhor como uso e como vida: o mundo não é mais espaço que me envolve e envolve os outros entes ali simplesmente dados, um ao lado do outro. O mundo é agora, cada vez de novo e novo, a dinâmica do movimento de estruturação. Movimento de estruturação que somos nós mesmos, em sendo esse afazer, esse trabalho, esse engajamento, movimento de estruturação que faz desabrochar todo um leque de entes, inclusive a nós mesmos, interligados entre si, um no outro, um do outro, um para outro, um com outro, como uma totalidade cada vez viva e determinada, mas não fixa, totalidade que cada vez constitui a nossa situação, aquilo que somos cada vez em sendo concretamente. O ente não é mais esta coisa, ali dada simplesmente como algo-bloco. Pois, nesse movimento de estruturação, o ente ali presente con-cretamente é um momento visível de todo um mundo de entes, ali implicitamente pulsante, como outros momentos constitutivos do todo da situação que somos nós mesmos, cada vez em sendo concretamente.

Em sendo no uso e na vida, em sendo uso e vida, somos cada vez tudo, isto é, um todo unificado, explícito ou implícito, de entes, objetivações, sentidos, valores, vivências, experiências, idéias, recordações, imaginações, criatividades, cuidados etc. Um todo assim uno é o mundo. Nós somos cada vez, sempre de novo, uma totalidade. Ser mundo assim se chama ser-no-mundo, isto é, em sendo, constituído e se constituindo como mundo. Aqui o termo “no” não significa dentro de um espaço, mas sim em sendo, isto é, o movimento de ser cada vez totalidade dinâmica de eclosão e estruturação do mundo.

Esse modo de ser não é um fato simplesmente dado. Mas sim um modo de ser, isto é, maneira de ser, diferente do ser simplesmente dado.

Como já dissemos acima, esse ser-no-mundo somos nós mesmos como compreensão. Nós somos cada vez, em sendo compreensão de nós mesmos como eclosão e estruturação do mundo. Talvez seja melhor dizer, em vez de compreensão, conhecimento. Mas conhecimento entendido como conascimento. Em francês conhecer diz co-nâitre = conascer. Nascemos continuamente como e com mundo, nos desabrochamos, eclodimos, crescemos e nos consumamos, definimo-nos como mundo: somos esse eclodir, isto é, ser-no-mundo. Abrir-se como mundo se chama em grego epoché. Daí, somos época, somos epocais, cada vez: história.

Mas, tudo isso não é racionalismo? Reduzir tudo à compreensão? Ao conhecimento intelectual? Não somos também coração, sentimento, volição, vontade, não somos concretamente corpo físico, real e material? Não somos apenas intelecto, apenas compreensão…

No entanto, não se está dizendo que tudo é racional, que tudo dever ser reduzido à compreensão racional. Está-se dizendo que no homem nada há que não seja ele mesmo, que nada há nele que não tenha o modo de ser próprio do ser-no-mundo. Nenhum momento, nenhuma parte do homem tem o modo de ser do simplesmente dado. Mesmo aquilo que nele é a modo de ser do simplesmente dado, na realidade, não é simplesmente dado, mas sim um modo deficiente do conascimento. Pascal cunhou uma frase que de tanto ser citada, se tornou careta: Le coeur a ses raisons, que la raison ne connâit point: on le sait en mille choses (Pascal, Pensées, nº 477). O nosso ser físico e material, o nosso querer, o nosso sentir, tudo tem suas razões que a razão desconhece. Com outras palavras: tudo em nós é compreensão viva, em sendo: conascimento, conhecimento. Aqui não se trata de conhecer sobre uma coisa. É, como já foi dito, conascer. Conascer significa: em sendo, deixar que esse ser se mostre de dentro para fora, se e-videncie, se abra como clareza, apareça. Em sendo, ter compreensão de si, em sendo se clarear: esclarecimento, iluminação, ciência do aparecimento, fenomenologia.

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