Para confundir um pouco mais a leitura do § 4 – A tomada de conhecimento
Quando falamos de “tomada de conhecimento”, tomamos o conhecimento como algo conhecido e óbvio. Há diversos tipos de conhecimento: os cotidianos, os científicos, os filosóficos etc. Assim, a tomada de conhecimento na experiência fáctica da vida, seria aquele tipo de conhecimento cotidiano, o mais concreto, vital, imediato. Trata-se, pois da experiência da vida. Os termos, portanto, conhecimento e vida nos são óbvios, conhecidos imediatamente.
Como tomamos conhecimento desse conhecimento imediato do conhecimento e da vida? O que chamamos de experiência fáctica da vida, a vivência da vida como ela é, coincide com a vida? O nosso pretenso conhecimento do conhecimento e da vida responde: não coincide, pois a vida é uma coisa, ao passo que o conhecimento, a experiência, a vivência da vida é outra coisa. Pois conhecimento, experiência, vivência dizem respeito ao sujeito homem, ao passo que a vida em si existe por si só, independente do homem. Nessa colocação há algo interessante e estranho, a saber: a vida aqui, enquanto existente por si, não está clara. Significa a vida biológica? a vida psíquica? a vida da planta? do animal? do homem? Sim, tudo isso? Mas essa vida biológica, vida psíquica, vegetal, animal, humana são vidas que eu observo em mim, nos outros entes como objeto da minha captação. Essa captação de todas essas vidas, o que é? Respondemos: ora, conhecimento, experiência, vivência. A que tipo de vida pertence essa captação? Dizemos: psíquica; espiritual; intelectual etc. O interessante e estranho em tudo isso é que nesse tipo de explicação, não aclaramos nada, apenas estamos girando em círculo, dentro de uma pressuposição não analisada, a saber: há uma realidade em si, diante de mim; há um sujeito que capta a realidade; a captação da realidade, seja qual for o nome que damos a essa captação, é um ato do sujeito. Esse pressuposto, essa base sobre a qual tudo explicamos, é considerado por sua vez como a realidade óbvia, realidade em si e por si, anterior a todo e a qualquer tomada de conhecimento. Assim, quando dizemos “experiência fáctica da vida” pensamos em atos do(s) sujeito(s) homem(ns) que capta os fatos da vida. E por vida aqui entendemos o percurso da história do homem enquanto dura a sua vida biológica.
Se permanecermos nesse posicionamento da “realidade” óbvia factual, jamais entenderemos de que se trata, quando o texto de Heidegger nos fala da experiência fáctica da vida e da sua tomada de conhecimento. É que, segundo Heidegger, toda essa “realidade” óbvia factual já é produto de um tipo de conhecimento, denominado por ele de “teorético”[1]. Mas atenção, o nosso conhecimento do conhecimento não-teorético, como p. ex., da vivência, experiência etc., é também já “teorético” …
Mas, então, de que se trata, quando se fala da experiência fáctica da vida?
Trata-se aqui de ver, apenas ver. Mas ver não já compreendido “teoreticamente” como um ato do sujeito homem, diferenciado de outros atos de captar, como ouvir, sentir, tatear etc.
Trata-se de ver, experienciar, de vivenciar não um objeto, não um sujeito(-objeto), não um ato (-objeto), mas sim a própria presença, a própria abertura, a clareira que é o próprio experienciar, o próprio vivenciar, o manifesto, a aparecência, o phainómenon: o Da-sein ou o ser-no-mundo. É o que na fenomenologia de Husserl se chama intencionalidade ou ato ou vivência ou mesmo apercepção da coisa ela mesma. É o que no nosso texto se assinala como facticidade (daí o adjetivo fáctico) ou experiência fáctica da vida.
A experiência fáctica da vida aqui não é nem subjetivo (do sujeito), nem objetivo (do objeto), nem um “ato” do sujeito. Mas sim o manifesto. Mas então o que é? O que é, percebemos, só em o vendo.
Através de um exemplo, tentemos ilustrar de que se trata, quando dizemos experiência fáctica da vida:
Uma situação preocupante: estou perdido, sozinho, numa excursão à mata atlântica. A noite se aproxima. O que é aqui, nessa situação o sujeito? e o objeto, o subjetivo e o objetivo? Usualmente dizemos como a coisa mais óbvia do mundo: o sujeito sou eu, só, perdido na imensidão da mata. O objeto são: esta árvore, esta pedra, aquele ruído sinistro que vem de não sei donde; o burburinho de um riacho que se oculta na floresta, a mata atlântica que me cerca, que por sua vez é conjunto de árvores e outras coisas que a constituem. Eu, sujeito, cá. Lá, o objeto, diante de ou ao redor de mim. Eu sujeito, aqui dentro dessa carcaça chamada meu corpo, com todas as suas sensações, emoções, idéias e vivências; e lá, o objeto, ali presente, indiferente à minha angústia, a coisa em si, brutalmente ali real. O que é o real, o que é a coisa, o objeto diante de mim, nos parece evidente. Ali, tudo é obviamente, naturalmente claro, objetivo, em si, real e verdadeiro. Mas, e o sujeito? Dizemos: o sujeito sou eu. Quem? Eu! E me aponto a mim mesmo: este sujeito cá; diante dele, aquele objeto, aquela coisa lá. Eu! e o dedo apontado…para onde? Para o meu peito. Mas e esse eu, para o qual eu aponto, onde está? Ora, aqui! Aqui…mas onde? Quando eu aponto a mim mesmo, onde está, nisso que eu aponto como sujeito, este “mim mesmo”? Atrás do coração? dos pulmões? Dentro do estômago, acima do fígado?…E começamos a ficar um tanto perplexos e confusos. Pois, então, sigamos o percurso do movimento que termina nesse ato de apontar, com o dedo indicador sobre mim mesmo. Tenho diante de mim, ou melhor, ao redor de mim a floresta que me envolve. Dentro da floresta sou eu um ponto minúsculo, que está diante de um tronco caído. A floresta é objetivo. O tronco também. Estou vendo o tronco; entre o tronco e mim está o chão úmido que me molha os pés. Os meus olhos rastreiam o tronco, passo a passo o chão molhado encontra os pés, sobe pelo corpo até a altura do pescoço, desce seguindo o braço direito e chega na extremidade do dedo indicador, que está apontando o meu peito. E digo: eu, aqui, o sujeito!?…
A essa altura perguntemos: tudo que meus olhos rastrearam, etapa por etapa, os meus próprios olhos, e eu mesmo, o eu mesmo apontando com todos os ‘seus’ órgãos internos, não são objetos, não são objetivos? E o que é esse sujeito eu que tudo isso observa, julga, sente, valoriza em o apontando? Se está em mim, o que é esse “mim”? O corpo? a alma? o espírito? consciência? Dizemos: …mas alma, espírito, consciência, tudo isso é invisível, insensível…!? Mas então o que é? É nada? Fumaça de ilusão? É real, realmente? E se o é, é objeto? Um objeto chamado sujeito…?! Mas sujeito, como? em que sentido? “Quem” é, o que é, como é o ser desse quem que é um ponto dentro da imensidão da floresta, que por sua vez é uma minúscula área da Terra, a qual é um grão de areia na vastidão abissal do universo… E, no entanto, um ponto infinitamente pequeno, perdido nesse universo, que é capaz de julgar, pensar, avaliar todo esse universo infinito, dentro do qual está.
Esta estranha coisa que somos nós mesmos, que tudo abrange, tudo capta, inclusive a si mesma; tudo representa como isto e aquilo, seja coisa visível ou invisível…é ela objeto? ou é sujeito?
De repente, se me ilumina a “mente” e me surge uma resposta ‘genial’…: É objeto e sujeito ao mesmo tempo; é objeto enquanto captado e observado; é sujeito, enquanto capta e observa. Mas, se com isso, representamos o sujeito, o observador como um objeto “diante de mim” e assim ficamos marcando os passos, não dissemos nada, não vimos nada, nem sentimos nada. Na realidade, isso que chamamos de sujeito, opondo-o ao objeto, não é nada dessas coisas que vemos. A coisa ela mesma é muito mais simples, e por isso mesmo difícil de ser percebida e ser dita.
….é objeto, enquanto observado e captado; …é sujeito, enquanto capta e observa; e o observador, enquanto captado e observado, é objeto… de um outro observador que é por sua vez observado, e é objeto e assim indefinidamente…!?
Ora, nada disso acontece. É que…a situação, a facticidade é essa:
Estou inteiramente perdido na mata atlântica. Já é noite. Uma densa escuridão me envolve, os estranhos ruídos por toda parte, os gemidos, os suspiros da mata virgem…De súbito, estalo seco de galhos pisados…depois, silêncio… De novo estalido…, algo se aproxima! Não consigo me orientar, donde me vem a ameaça. Tento dominar o pânico que me sobe do fundo obscuro de mim mesmo… Objetivo? Subjetivo? Observado e observador? Enquanto capta, sujeito? Enquanto captado, objeto?…Essas questões não se dão. Se se dão, não de imediato. De imediato sou todo inteiro uma presença, um “corpo teso”, prenhe, atingido e afetado pela angústia da noite na floresta. Aqui, nem mim, nem eu, nem a mim, nem floresta, nem os estalidos dos galhos pisados, nem cada momento do meu sentir, imaginar, pensar e vivenciar são objetos que um sujeito apavorado tem.
Tudo e cada “coisa”, tanto “dentro” de mim como “fora”, não são outra coisa do que pulsações, modificações, tonâncias de toda a extensão, de toda a presença e pregnância de ser, cuja intensidade e densidade perfaz todo um mundo de situação, a qual no nosso exemplo acima descrito nomeamos desajeitadamente de “perdido inteiramente na mata atlântica”: presença povoada de mil e mil diferentes perspectivas e profundidades da vida e da morte, abrangendo, implicando tudo, todos os entes na sua totalidade. Esse modo de estar manifesto, aberto, essa totalidade imediata e concreta é a facticidade, portanto, a experiência fáctica da vida.
Segundo o texto que viemos lendo até agora, essa experiência fáctica da vida é o elemento, dentro e a partir do qual se abre a filosofia.
No entanto, a experiência fáctica da vida e a filosofia não se identificam simplesmente. Na medida em que a Filosofia surge da experiência fáctica da vida, e se torna ela mesma, filosofia, há uma tomada de conhecimento. Essa tomada de conhecimento porém não se deve afastar da experiência fáctica da vida, antes ela deve caracterizar a própria filosofia como essa tomada de conhecimento que não se identifica com a experiência fáctica da vida, porque entre esta e aquela há uma transformação, transformação que caracteriza a filosofia. Mas exatamente por causa dessa transformação, a filosofia se torna mais próxima à experiência fáctica da vida. Dito de outro modo, a filosofia salta da experiência fáctica da vida e volta a ela.
Nessa busca da tomada de conhecimento, ao modo adequado à participação cada vez mais clara à experiência fáctica da vida, há na própria experiência fáctica da vida uma tendência ambígua. Ela implica num modo todo próprio de vir à fala, modo todo próprio de vir a si, tornar-se ela mesma como tomada de conhecimento de si mesma. Essa tomada de conhecimento não é um saber sobre si mesma, não é uma tomada de conhecimento a modo “teorético”, mas em sendo, se saber, vir à fala como desvelamento de si, se manifestar. É o tematizar-se da experiência fáctica da vida em operação. Mas tematizar que é uma incandescência do operativo a partir de si, no desvelamento cada vez mais claro de si mesmo: o vir a si. Como deve ser pois esse vir a si como o clarear-se da própria experiência fáctica da vida? Se nós conhecemos usualmente somente um modo de tomada de conhecimento a modo do saber “teorético”?
A dificuldade aumenta mais e mais porque, segundo o texto, a própria experiência fáctica da vida tem a tendência de, no desvelar-se, no eclodir como um leque (mundo) de estruturações, em vez de vir à fala como mundo, começa a se encaminhar para objetivação coisificante, e depois objetivante, constituindo a hipostatização como coisa, objeto-coisa, objeto, significação, conceptualização, representação etc., cobrindo a totalidade dessas objetivações com uma camada aparentemente homogênea e mediana de coisidade.
A experiência fáctica da vida e sua tomada de conhecimento no sentido originário é o que está expresso no slogan da fenomenologia: (Volta) à coisa ela mesma.
Ela não tem nada a ver com o preconceito do positivismo; nem com a expressão da tese que diz: toda filosofia é necessariamente fruto concreto da sua situação factual espiritual; nem com a assim chamada fenomenologia descritiva.