Nesse ano de 1997, celebramos o centenário da Morte da nossa Fundadora, Madre Alphonsa Kuborn (1830-1897). Celebrar é recordar. Recordar, não é tanto evocar à memória o passado, mas sim, re-cordação, no sentido pleno e vivo do retorno ao coração, ao vigor cordial da origem-fonte. Assim, ao celebrarmos a Morte de nossa Fundadora, queremos retornar ao alento vital originário, ao espírito a partir e através do qual pulsou a Vida de nossa fundadora. Por isso, celebrar o centenário da Morte da Fundadora é voltar ao sopro de Vida, ao Espírito no qual ela se consumou com a dedicação apaixonada de toda a sua vida. Esse sopro vital originário é o carisma fundacional. Somos filhas e herdeiras dessa vida. Em nós continua pulsando esse sopro vital, que a nossa fundadora recebeu do Espírito santo e nos transmitiu como herança, como carisma fundacional. O nosso carisma fundacional, recebido do Espírito Santo, através da Madre Alphonsa é a Misericórdia (CC.GG, art. 5).
Passados 100 anos desde a Morte da nossa Fundadora, hoje, no ano de 1997, no limiar do terceiro milênio, sentimos cada vez mais a importância desse retorno.
Pois, nós, irmãs franciscanas de São José, enquanto membros da comunidade religiosa de Vida regular Consagrada, não somos um mero aglomerado de cristãs em busca da perfeição pessoal ou de trabalhos pastorais, mas sim em sentido muito mais profundo, participação e testemunho qualificado do Corpo Místico de Cristo, cuja Cabeça é Jesus Cristo, o Deus encarnado, cujo corpo é a Igreja. Enquanto Congregação, como membros desse Corpo Místico, Irmãs Franciscanas de São José, queremos e devemos ser expressão viva e realização privilegiada da peculiar “comunhão”, que a Igreja tem, através de sua Cabeça, Jesus Cristo, com o insondável Mistério da Comunidade de Amor da Santíssima Trindade, de cuja ternura e vigor o Pai quis fazer participar os homens no Filho e no Espírito Santo. Assim, em tudo que somos, agimos e buscamos, queremos como Comunidade religiosa, assumir o compromisso irrenunciável e a missão de nos tornar e ser focos da comunhão do Amor que pulsa nos abismos do Mistério da Santíssima Trindade, e dali, através de Jesus Cristo e do seu Corpo Místico, como do manancial da Salvação, se estende toda humanidade (cf. Documento da CIVCSVA, A Vida Fraterna em Comunidade, Introdução, 2, a).
Esplendor, a vitalidade, a beleza que emana da profundidade do Mistério da mútua doação comunitária entre Pai e Filho e Espírito Santo, se torna visível em Jesus Cristo, Deus Humanado. Assim Jesus Cristo é o Carisma, a Graça, o Esplendor da Santíssima Trindade, a Bondade e a Benignidade do Deus Uno Trino, a presença do Belo Amor de Deus no meio de nós. Esse Carisma, essa Graça que é a doação difusiva de si do próprio Deus Uno e Trino, do Deus que é a Caridade, se derrama sobre nós, multiplicando-se, recriando-se em infinitas gerações, cada vez de diferentes modos, originais e criativos, como os assim chamados carismas fundacionais, dando origem a diferentes ordens e congregações. O carisma fundacional é portanto a faísca, o foco que salta da presença visível do Amor da Santíssima Trindade, que é Jesus Cristo, desvelando a multifária riqueza e profundidade do único Carisma de Deus, Jesus Cristo, Deus Humanado, no meio de nós. Assim, “os membros de uma comunidade religiosa” estão “unidos por um comum chamado de Deus na linha do carisma fundacional, por uma típica comum consagração eclesial e por uma comum resposta na participação “na experiência do Espírito”, vivida e transmitida pelo fundador e na participação em sua missão na Igreja” (Documento da CIVCSVA, A Vida Fraterna em Comunidade, Introdução, 2, c).
O carisma fundacional, para nós, a Misericórdia, se torna assim um tema essencial, decisivo para a continuidade do vigor e da união comunitário-fraterna, do compromisso e da missão da nossa Congregação. Por isso, no ano jubilar, centenário da Comemoração da Morte da Madre Alphonsa Kuborn, nos concentramos intensamente no estudo do nosso carisma fundacional, Misericórdia, tentando fazer uma cuidadosa releitura da nossa História, e nela escutamos com novo fervor e disposição o convite do nosso Salvador, dirigida a cada uma de nós pessoalmente e à comunidade religiosa, através das palavras, atitudes, ações, da nossa Fundadora: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso!” (Lc 6,36). Os esforços e trabalhos das Irmãs Franciscanas de São José, na celebração centenária da Morte da Madre Alphonsa Kuborn, que através dos estudos, encontros, reflexões, elaboração de trabalhos escritos sobre os pensamentos, ações, palavras da vida da Madre Alphonsa, se concentraram ao redor do tema Misericórdia, resultaram na elaboração desse texto, como colaboração das Irmãs para a celebração centenária. O texto é propriamente um resumo dos estudos das Irmãs e gostaria de ser um pequeno subsídio para ulteriores estudos de aprofundamento e vitalização do nosso carisma fundacional Misericórdia. Como resumo, porém, o texto não reproduz literalmente as contribuições das Irmãs, que foram riquíssimas e variegadas, formuladas de diferentes modos e sob diversos enfoques. Na impossibilidade de resumi-las, o texto, à mão dos pensamentos que estão nessas contribuições, tentou traçar um esquema de “definições” e “princípios” refletidos acerca da Misericórdia, por meio do qual, todas as contribuições das Irmãs pudessem ser mais tarde colocadas numa compreensão digamos mais ordenada. O texto primeiramente se concentra em definir melhor o nosso carisma fundacional, à mão do que já está determinado nas CC. GG das Irmãs Franciscanas de São José. Tenta dizer em que consiste a Misericórdia. No entanto a definição aqui não deve ser entendida como fixação da verdade acerca de uma realidade dinâmica que não pode ser prefixada, numa sentença simples e sintética. Definir aqui significa obter uma determinação mais clara acerca de um vigor originário que na realidade não pode ser delimitado no sentido estático. Aqui definir e determinar quer antes dizer: compreender com maior decisão e amor, distinguir com maior nitidez o tesouro do nosso coração, para que num assunto tão decisivo para a vida da nossa Congregação não permaneçamos indefinidas, vagas e confusas, como alguém que não sabe por que e para que vive de fato. A partir dessa definição, então, tentemos mencionar alguns princípios decorrentes dessa definição, que podem servir de orientação viva, i. é, de dicas fundamentais comuns, para que na praxe de nossa vida concreta e quotidiana, tenhamos uma boa condução de nossas ações e de nossos exercícios práticos.
Definição
- A definição do carisma fundacional Misericórdia, e tudo que a ele se refere, já se encontram nos artigos 5, 6, 7, 8 das CC.GG das Irmãs Franciscanas de São José:
Art. 5. O carisma que identifica a Congregação é o espírito de misericórdia. Misericórdia é o amor de Deus revelado em Jesus Cristo (cf. DM 89-90). “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da misericórdia, o Deus de toda consolação” (2Cor 1,3). “Deus que é rico em misericórdia é aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai” (Ef 2,4)
Art. 6. A Irmã Franciscana de São José busca realizar em si o espírito de misericórdia, tornando-se ela mesma corpo misericordioso. “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36). “Vós, pois, como eleitos, santos e amados de Deus, revesti-vos de misericórdia, bondade, mansidão e paciência” (Cl 3,12). A fundadora Madre Alphonsa quis tanto o espírito de Misericórdia que o propôs como voto, isto é, como carisma próprio da Congregação (cf. CC.GG. 1869, Cap. II, & 4).
Art. 7. Desde sua origem, a Congregação se dedica a tarefas de seu carisma, prestando serviços de ajuda aos pobres e doentes, às crianças desamparadas e a outros necessitados, trabalhando em hospitais, em creches, em asilos, em escolas e cooperando com os bispos e sacerdotes na atividade apostólica. Com isso, elas produzem em si frutos de misericórdia (DM 5,7). “Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,6). “Vinde, benditos de meu Pai… porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, preso e viestes ver-me… Em verdade, todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos menores, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,35s).
Art. 8. Para manter vivo o carisma da Congregação, as irmãs tenham como base de sua formação religiosa os Evangelhos, os Escritos de São Francisco de Assis, os Escritos de Santa Clara, outras fontes franciscanas e as Constituições de 1869 de Madre Alphonsa.
- Segundo as CC.GG distinguimos:
- a) Misericórdia como o Amor de Deus, revelado em Jesus Cristo (art. 5).
- b) Misericórdia como Espírito de Misericórdia (art. 5).
- c) Misericórdia como Virtude da Misericórdia, i. é, o Espírito de Misericórdia “tomando corpo” nas Irmãs (Art. 6).
- d) Misericórdia como ideal objetivo do projeto de vida das Irmãs (Art. 6).
- e) Misericórdia como obras de Misericórdia (Art. 7).
- f) Misericórdia como frutos de Misericórdia (art. 7).
Todas essas significações de Misericórdia, podem estar direta ou indiretamente incluídas na compreensão da Misericórdia como do carisma fundacional das Irmãs franciscanas de São José. No entanto, essas diversas significações de Misericórdia não estão uma ao lado da outra, como que enfileiradas, mas elas se constituem numa implicância de fundamentação. Há ali uma espécie de escalação de aprofundamento, da significação mais usual e superficial para a significação cada vez mais profunda e essencial. A significação, a mais fundamental e principal é a da Misericórdia como o Amor de Deus, revelado em Jesus Cristo.
- Misericórdia como o Amor de Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo (cf. a).
Deus é Amor (1Jo 4,16). Misericórdia é Amor que é o próprio Deus, tornando-se visível, desvelando-se em Jesus Cristo. Jesus Cristo é, pois, a revelação do que é e como é o Amor de Deus. Por isso, se quisermos realmente compreender quem é e como é Deus que é Amor, e o que é e como é o Amor que é Deus, devemos ouvir, acolher, seguir a Jesus Cristo, sim pensar, sentir, agir e ser como Jesus Cristo. Por isso, Ele é “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6-7; cf. São Francisco de Assis, Admoestações, cap. I: Do corpo do Senhor). Na medida em que nesse Seguimento de Jesus Cristo, imitando a sua forma de vida, nos tornamos existência “cristoforme”, começamos a compreender que a Misericórdia tem a sua origem e fonte na fornalha de Amor do Mistério da Santíssima Trindade. Como, na fornalha, sentimos e vemos o fogo, a sua chama, saindo e irradiando brilho e calor, sentimos e “vemos” através das chamas, do seu brilho e calor, a sua origem, a sua fonte insondável, sentimos e “vemos” como deve ser intensidade, força e veemência da profundidade oculta da fornalha. Jesus Cristo é brilho e calor, o esplendor que sai da fornalha do Amor de Deus é o vir ao encontro do fogo do Amor Divino a nós. Esse Amor de Deus que vem ao nosso encontro, em e como Jesus Cristo, é Misericórdia. Mas Misericórdia nos conduz, nos faz “sentir e ver” o que é e como é o Amor de Deus nele mesmo, na sua intimidade a mais íntima, na sua ternura a mais terna, na sua abissal imensidão, profundidade da bondade, benignidade e generosidade (cf. Ef 3,14-19; Rm 11,33-36), no arcano insondável do “amor entranhado” que é a Santíssima Trindade, o interior, o âmago do Deus de Amor (cf. João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-sinodal, Vita Consecrata, Cap. I).
Assim, Jesus Cristo que é a manifestação visível da Bondade e Benignidade da Santíssima Trindade. No mistério da sua intimidade com o Pai, na comunhão com o Espírito Santo, através da sua humanidade, no seu próprio ser, na sua própria existência na carne mortal, pelas palavras e obras, pelos ensinamentos e exemplos, pelo testemunho corpo a corpo da absoluta e incondicional doação de si aos homens na oblação da cruz, nos revela como é esse amor entranhado que é o âmago do abismo do Mistério da Santíssima trindade, quando ele se derrama sobre nós em e como Jesus Cristo, seu Filho. Esse Amor de Deus Uno e Trino, a bondade difusiva de si, i. é, “a Caridade é paciente, a Caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não é orgulhosa, não se ensoberbece; não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor; não se alegra com a injustiça mas se compraz com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera” (1Cor 13,4-7). O Amor do Deus Uno e Trino, assim “voltado para fora”, assim tornado visível e assim se doando à humanidade, nos criou, se nos deu no seu próprio Filho Jesus Cristo, se entregando a nós de uma forma tão absoluta e incondicional, sim apaixonadamente, até a morte na Cruz. O Amor do Deus Uno e Trino, assim “externado”, i. é, fora de si pelo Amor, assumiu em Jesus Cristo Crucificado todas as nossas culpas, se condenou, se culpou em nosso lugar, nos desculpando, para assim nos resgatar, e nos reconduzir à salvação, à realidade originária, nos fazendo renascer a cada um de nós como seu próprio filho, cada vez como filho único, singular em Jesus Cristo. Esse Amor entranhado do Deus Trino e Uno, revelado em e como Jesus Cristo é Deus da Misericórdia, a Misericórdia, origem e fim do sentido da vida das Irmãs Franciscanas de São José, cujo carisma fundacional é Misericórdia.
- Misericórdia como Espírito de Misericórdia (cf. b).
Misericórdia como Espírito de Misericórdia e Misericórdia como o Amor do Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo são o mesmo. Apenas, quando dizemos Espírito de Misericórdia, queremos focalizar a atuação desse Amor Difusivo da doação de si do Deus Uno e Trino. Pois Espírito é o sopro de vida, a Vida. O Amor do Deus Uno e Trino em e como Jesus Cristo é doação da Vida (cf. Jo 13,13). Doar a Vida significa doar-se todo e inteiro, o modo de ser, o gosto, o sentir, o pensar, o fazer, todo um mundo de existência. Portanto, aqui o termo Espírito indica a dinâmica de doação de si. Por isso, quando recebemos o outro no seu ser, todo ele, na sua essência, dizemos que temos o seu espírito e o seu modo de operar (cf. São Francisco de Assis, RegB cap. 10). Assim, Jesus Cristo, a presença visível do Deus da Misericórdia, em se doando a nós, quer nos transmitir tudo que Ele sente, pensa, faz e é, como bom mestre, bom pai que quer se reproduzir nos seus filhos e discípulos. Essa doação de si implica toda a iluminação, todo o saber e conhecimento, todas as verdades, todos os sentimentos, atitudes e modos de ser que Ele tem, ou melhor, que Ele é, sim até a própria possibilidade de nós o recebermos: tudo isso é sopro vital Dele, Ele mesmo como Vida, vigor e essência da sua Vitalidade: o Espírito de Misericórdia. Sem essa doação gratuita e generosa, cheia de benevolência, sem essa doação do sopro de Vida do próprio Deus de Misericórdia em e como Jesus Cristo, nós, mesmo que sejamos competentes e habilidosas em muitas coisas do nosso ser natural, em referência à participação e recepção, ao nascimento e crescimento no Amor do Deus Uno e Trino, nada podemos fazer, nada podemos saber, sim nada somos (cf. Jo 15,5; 1Cor 12,3).
- Misericórdia como Virtude da Misericórdia (cf. c).
Virtude, usualmente é vigor, força, habilidade de maturação humana adulta que nós, seres humanos, adquirimos no exercício repetido e bem orientado de nossa liberdade, de tal sorte que o vigor, a força, a habilidade assim conquistada se torna uma segunda natureza nossa.
Quando falamos da Misericórdia como Virtude da Misericórdia, de nossa parte há todo esse engajamento da doação livre e do empenho repetido para nos dispormos sempre de novo na dinâmica da boa vontade, mas não para conquistar ou desenvolver uma possibilidade já naturalmente existente em nós, mas sim para acolher e receber com gratidão e solicitude o Espírito de Misericórdia, no sentido acima explicitado. Assim, em sempre de novo nos dispondo a receber a dinâmica do sopro vital do Deus da Misericórdia, com Ele colaboramos com toda a nossa solicitude, para que Ele transforme todo o nosso ser no “corpo misericordioso”, de tal sorte que em nós o Espírito de Misericórdia e o seu santo modo de operar sejam como que a nossa segunda natureza. Quando o Espírito de Misericórdia toma corpo em nós, tornando-se nosso vigor, nossa força, nosso sopro vital, então denominamos essa realidade da graça de Deus em nós de Virtude da Misericórdia.
- Misericórdia como ideal objetivo do projeto de vida das Irmãs (cf. d).
Misericórdia como Virtude da Misericórdia, no sentido acima mencionado, pode ser considerada como ideal, como objetivo do projeto de vida das Irmãs Franciscanas de São José. Essa empostação da busca como busca de conquista de ideal, de objetivo, é um procedimento usual nos nossos empreendimentos. No entanto, se a busca da Virtude da Misericórdia for empostada como uma busca do ideal e do objetivo de um projeto, posso correr o risco de não estar bem colocada, com devida precisão e cuidado adequado no cultivo e crescimento do nosso carisma fundacional Misericórdia, se não estudar bem e compreender a fundo o seu sentido originário e primeiro, explicitado nos números 3 (a), 4 (b), 5 (c)
- Misericórdia como obras de Misericórdia (cf. e).
Misericórdia como obras de Misericórdia se refere a tarefas e serviços prestados pelas Irmãs no exercício do seu carisma, cujo sentido originário e primeiro está explicitado nos números 3 (a), 4 (b), 5 (c).
- Misericórdia como frutos de Misericórdia (cf. f).
Misericórdia como frutos de Misericórdia diz respeito a méritos obtidos pela prática das obras de Misericórdia, diante de Deus.
- Todas essas significações mencionadas nos números 3, 4, 5, 6, 7, 8, pertencem ao carisma fundacional Misericórdia. No entanto, entre as significações, existe uma ordem de fundamentação, numa escalação de significações mais superficiais para significações mais profundas e originárias. As significações 6, 7, 8 devem sempre de novo ser examinadas e purificadas a partir das significações 3, 4, 5. Estas estão ordenadas de tal maneira que 5 se baseia no 4, e 4 no 3, sendo esta a significação a mais originária.
A partir dessa “definição” do carisma fundacional Misericórdia, tentemos deduzir alguns princípios que possam servir de orientação geral para normas mais particulares, e rapidamente tecer acerca de cada princípio algumas reflexões elucidativas.
Princípios
- No empenho e na busca do cultivo, cada vez mais clarividente, da Misericórdia, como do carisma fundacional da Congregação das Irmãs Franciscanas de São José, é preciso conscientizar-se vivamente da necessidade e da importância decisiva da compreensão adequada do que seja na sua profundidade a essência da Misericórdia, para a melhoria e o crescimento qualificado na:
a)- Vida espiritual-religiosa
b)- Vida fraterna
c)- Vida de trabalho e serviço
- a) – Princípios derivados da misericórdia para a vida espiritual-religiosa
Princípio 1: Segundo a definição de misericórdia como a) Amor do Deus Uno e Trino em Jesus Cristo, como b) Espírito de misericórdia e como c) Virtude da misericórdia, todo o nosso ser como vocacionadas à vida religiosa consagrada não deve ser outra coisa do que acolhimento grato e a prontidão solícita para entrar na comunhão de intimidade absoluta e incondicional com Jesus Cristo, tornando-nos “existência cristoforme” (cf. João Paulo II, Vita Consecrata, n. 14), no seguimento, imitando-o, identificando-nos com Ele através da doação total do nosso ser pelos votos de Virgindade, Pobreza e Obediência. Essa conformidade com Jesus Cristo, que é a presença visível da intimidade do Amor entranhado da Vida Interna da Santíssima Trindade, é uma tarefa intensamente pessoal e vocacional, compromisso e incumbência para mais e mais nos doarmos e nos conformarmos ao “Amor que nos amou primeiro” (cf. 1Jo 4,9-10. 14-16. 19) em Jesus Cristo, a misericórdia do Pai. Con-formar-se é buscar, compreender, conhecer, amar, identificar-se, deixar-se tomar e continuamente acolher em gratidão e solícita humildade, é dispor-se inteiramente a, como ao único e absoluto projeto de vida, ao único e absoluto sentido da vida.
Assim, se essa intimidade com o Amor da Santíssima Trindade em Jesus Cristo na existência cristoforme, no seguimento, é nossa vocação, nossa profissão, nosso projeto de vida consagrada, então tudo que se refere à Vida Espiritual-Religiosa, como p. ex. Oração, seja na execução particular ou coletiva, meditação, contemplação, reflexão, leitura espiritual, formação e estudos religiosos de espiritualidade, cultivo das virtudes, exercícios de devoção quer particulares, quer coletivos, a Eucaristia, o Sacramento da Reconciliação, enfim tudo isso e mais, deve ser pensado, realizado, vivenciado não como atos de “piedade” e “devoção” no sentido espiritualista, subjetivista, mas sim como momentos de uma busca intensa e tenaz de trabalho e estudo para criar todo um “corpo” de disponibilidade para em Jesus Cristo se adentrar cada vez mais na intimidade, na interioridade do Amor do Deus Uno e Trino, revelado em e como Jesus Cristo. Essa busca absoluta e incondicional do Amor do Deus Uno e Trino, em Jesus Cristo, como tarefa e incumbência oficial da nossa Vida Religiosa Consagrada, se expressa nas formulações a nós usualmente conhecidas como p. ex. “Amar a Deus sobre todas as coisas”, “Em tudo fazer a vontade do Pai”, “Unicamente o Salvador preencha o coração de uma verdadeira franciscana” (MAK), ou como dizem as nossas CCGG art. 3: …”seguir a Jesus Cristo, como discípula a seu único e supremo Mestre, como esposa a seu esposo”. Essa realidade realíssima e fundamental deve ser o princípio primordial que orienta todo o nosso ser, pensar, sentir e agir, nas buscas, nos empreendimentos na assim chamada vida espiritual e vida religiosa consagrada.
Princípio 2: Segundo a definição da misericórdia como d) ideal objetivo do projeto de vida, como e) obras de misericórdia, como f) frutos de misericórdia, todos esses empreendimentos de busca expressam o trabalho de traduzir em objetivos, obras e merecimentos o Amor-Misericórdia do Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo, doado a nós como Espírito de Misericórdia, impregnando-nos como Virtude da Misericórdia e nos transformando em “corpos misericordiosos”(cf. CCGG art. 6).
Esse trabalho é de traduzir a realidade realíssima, absoluta da Vitalidade essencial e interna da Boa-Nova do Deus do Amor entranhado no Mistério da Santíssima Trindade, para a realidade, por um lado, fugaz, relativa e limitada da nossa vida cotidiana mortal, mas por outro lado, também concreta, palpável, cheia de resultados visíveis, de apelos e atrativos provenientes da opinião pública e do reconhecimento social. Aqui é necessário sempre de novo não perder de vista a compreensão clara de que todos esses empreendimentos de concretização empírica da misericórdia devem ser orientados, iluminados e alimentados pela busca incessante e apaixonada da Misericórdia como do Amor do Deus Uno e Trino em Jesus Cristo. Pois, no momento em que negligenciamos a busca da Misericórdia no sentido essencial (Misericórdia como Amor de Deus, revelado em Jesus Cristo, Misericórdia como Espírito de Misericórdia e Misericórdia como Virtude da Misericórdia), imediatamente começamos a nos fragmentar e ficar confusas, deixando facilmente nos guiar pelos interesses e objetivos alheios ou até contrários ao nosso carisma fundacional.
- B) – Princípios derivados da misericórdia para a vida fraterna
Princípio 1: Segundo a definição da Misericórdia como a) Amor do Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo, como b) Espírito de Misericórdia e como c) Virtude da Misericórdia, todo o plano de doação do Deus do Amor, entranhada na ternura e benevolência da mútua comunhão comunitária do Mistério da Santíssima Trindade é o destino, o sentido, o móvel fundamental de toda a vocação e profissão da Vida Religiosa Consagrada. Pois, participar desse Amor de Deus em íntima união com Jesus Cristo, Nele, por Ele e tornar-se dentro do Corpo Místico de Cristo uma célula viva de comunhão fraterna à imagem e semelhança da comunidade trinitária é a tarefa e incumbência, “compromisso irrenunciável e missão”(cf. Documento da CIVCSVA, A Vida Fraterna Comunitária, Introdução, 2, b) da Vida Fraterna Comunitária das pessoas que se doaram total e incondicionalmente a Jesus Cristo, que é a manifestação da Misericórdia do Pai.
Princípio 2: Tudo isso significa que a intimidade de amor, encontro e união com Jesus Cristo no seu Seguimento, e Nele, por Ele e com Ele, o relacionamento de absoluta Intimidade de amor na participação e acolhida da Santíssima Trindade, com outras palavras, toda a nossa Vida Religiosa, a assim chamada Vida Interior é fonte, donde brota a força, a clarividência e o calor que sustenta, ilumina e acalenta o amor fraterno comunitário.
Princípio 3: Isto significa também que, para se poder viver a Vida Fraterna Comunitária no sentido plenamente cristão, não basta motivações, animações comunitárias e incentivos usados geralmente para formar uma comunidade fraternal “anímica” (cf. Dietrich Bonhoeffer, Vida Comum, São Leopoldo: Editora Sinodal), mas é necessário buscar a concepção e a vivência do que seja amor fraterno cristão, na experiência da vida de Intimidade de Encontro com o Amor-Misericórdia, vindo dos abismos da Santíssima Trindade, em Jesus Cristo.
Princípio 4: Isto significa por sua vez que a obrigação e a insistência na Vida Religiosa Consagrada Regular em, com solicitude e amor, cultivar a vida comum, viver em comunidade, espiritual, psíquica e fisicamente pouco tem a ver com conveniência prático-social, com mera disposição jurídica e disciplinar, mas sim com o sentido essencial da nossa vocação e profissão de sermos religiosas, i. é, de termos sido chamadas para sermos focos, lares da presença e do prolongamento do Amor do Deus-Misericórdia no meio da Humanidade.
Princípio 5: Tudo isto significa por fim que no nosso empenho de revitalizar a Vida Comunitária, ao abordoarmos as nossas falhas, as defasagens de nossa vida comunitária, suas dificuldades, não devemos nem podemos ser vagas e indeterminadas na impostação de nossa busca, mas sim, temos a tarefa de sermos mais nítidas e claras em colocar todas as nossas buscas e tentativas de solução na perspectiva do plano comunitário salvífico do Deus-Misericórdia, que nos quer coparticipantes no trabalho de, em toda parte, ocupar sempre mais lugares que sejam focos e lares, habitações, através da nossa vida fraternal comunitária, onde reinem o Espírito e a Virtude do Amor-Misericórdia, da Bondade difusiva de si.
Princípio 6: Segundo a definição da Misericórdia como d) ideal objetivo do projeto de vida, como e) obras de Misericórdia e como f) frutos de Misericórdia, todos os nossos esforços, cuidados e sofrimentos, todas as nossas lutas, preocupações e dificuldades para constituir uma boa e fraternal comunidade são expressões da nossa vontade de estabelecer já na Terra a comunidade do amor fraternal em Jesus Cristo, a partir e na força do Amor trinitário do Deus-Misericórdia.
Segundo os Princípios A) 1 e B) 1, a força de sustentação, a luz de iluminação e o calor do aquecimento dos nossos corações vem primordialmente do Amor-Misericórdia do Deus Uno e Trino, revelado e presente em Jesus Cristo. Esse Pai de Misericórdia, cuja medida é superabundante (Mt 5,20), nos amou primeiro, nos convida a sermos como Ele, que faz nascer o sol para bons e maus e chover sobre justos e injustos, quer que amemos os inimigos, a sejamos perfeitos como Ele é perfeito no amor (cf. Mt 5,43-48).
Se esse é, em última instância, o nosso ânimo de fundo, então deveríamos e poderíamos viver as mixórdias e as vicissitudes conflitantes da vida comunitária com muito mais humor, mais cordialidade, mais coragem alegre de ser, sem cairmos tão facilmente em murmurações pessimistas, amando a vida comum como escola de crescimento real na aprendizagem e na imitação do amor-misericórdia, na maneira de pensar, julgar, sentir, fazer e ser, segundo a imensidão, profundidade e jovialidade de Deus.
- C) – Princípios derivados da Misericórdia para a vida de trabalho e serviço
Princípio 1: Segundo a definição da Misericórdia como a) Amor do Deus Uno e Trino em Jesus Cristo, como b) Espírito de Misericórdia e como c) Virtude da Misericórdia, todas as nossas ações e atuações e obras, todos os nossos trabalhos e serviços, devem estar impregnados do Espírito e Virtude da Misericórdia que emanam da profundidade da intimidade do Amor interno da Santíssima Trindade, em e através de Jesus Cristo. Isto significa que as nossas obras e ações, os nossos trabalhos e serviços, sim mesmo as assim chamadas obras de Misericórdia, somente poderão ter a qualificação e excelência propriamente cristãs, no sentido originário e eficaz, se haurirmos a força de sustento, a luz da iluminação e o ardor do aquecimento dos nossos engajamentos em favor do próximo, da intimidade de união e encontro com Jesus Cristo, e través Dele e Nele com o Amor-Misericórdia do Deus Uno e Trino.
Princípio 2: Nesse empenho essencial de continuamente estarmos ligadas à fonte de todo o vigor, de toda a luz e de todo o calor do Amor Divino Misericordioso, essa atinência ao Espírito de Misericórdia e ao seu santo modo de operar, é de decisiva importância para nós irmãs franciscanas de São José, que no contato imediato da intimidade de encontro com o Amor do Deus Uno e Trino em Jesus Cristo nos concentremos cada vez mais e de modo especial no Mistério da Misericórdia encontrado em Jesus Cristo Crucificado. Em Jesus Cristo Crucificado se oculta na profunda discrição e no delicado pudor de um Amor insondável, a paixão visceral do Deus-Misericórdia, cuja humildade, cuja ternura é tolice para os gregos e fraqueza para os judeus (cf. 1Cor 1,22).Esse Amor-Misericórdia nas entranhas da sua ternura, revelada em Jesus Cristo Crucificado, nos fala de uma Misericórdia única, absolutamente singular, “misteriosa, escondida e predestinada”(1Cor 2,7) do Amor do Deus Uno e Trino, que não contente em se doar todo e inteiro a nós, fazendo de tudo, dando o melhor de si para nos amar, quando ignorado, quando preterido e desprezado, “não se irrita, não guarda rancor”, antes “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera” (1Cor 13,5-7), carrega sobre si a culpa de toda a nossa indiferença, de toda a nossa ingratidão, do fazer pouco caso de um amor tão dedicado, se culpa como se Ele ainda não tivesse feito o suficiente para que nós o amássemos, e para nos poupar, se oferece como expiação e oblação em nosso lugar, dando-nos o seu último sangue na morte da cruz.
Há aqui, nessa Morte do Deus Crucificado, revelação da humildade e da ternura de uma paixão do Deus-Misericórdia, paixão incondicional por nós, por cada um de nós, tão imensa, tão profunda que é forte como a morte, penetrante como abismo, cujas centelhas são incendiárias como labaredas divinas (Ct, 8,6), que ultrapassa em dedicação, interesse e doação todo e qualquer engajamento humano que possamos imaginar em favor do próximo. Estudar profundamente esse amor-misericórdia, revelado em Jesus Cristo Crucificado é tarefa fundamental das Irmãs Franciscanas de São José, que têm por compromisso irrenunciável e missão estar no meio dos mais abandonados, dos mais pobres, dos mais injustiçados, servindo-os em humildade e ternura do Deus-Misericórdia que não hesitou em morrer na cruz por nós.
Princípio 3: Segundo a definição da Misericórdia como d) ideal objetivo do projeto de vida, como e) obras de Misericórdia e como f) frutos de Misericórdia, todo o nosso engajamento pelas obras de Misericórdia, em suas modalidades, variações e denominações modernas, toda a nossa dedicação para com os mais abandonados, pobres e necessitados, toda a nossa participação na luta pela justiça, pela paz, pela sociedade mais humana expressam o nosso desejo, a nossa vontade, sim a nossa necessidade interna de como seres humanos e como cristãs trabalhar e servir, fazer alguma coisa para o próximo. Esse grande desejo de participar e agir, essa vontade de ajudar, de solidarizar-se brota do fundo da nossa capacidade e necessidade de compadecer-se, da força da compaixão, existente em nós. Através dessa força e sensibilidade da compaixão, a realização empírica da nossa vontade de fazer as obras de Misericórdia está continuamente em contato com sofrimentos, tribulações, contradições e fraquezas, limitações, sim com as inúmeras vicissitudes da maldade humana. Quem se doa seriamente nesse engajamento de solidariedade, de trabalho e serviço aos necessitados nessa Terra dos Homens, sente na sua própria carne todas as vicissitudes da Humanidade mortal em suas intermináveis falhas, defeitos, limitações e fraquezas, tanto em si como nos outros. Aqui, exatamente nesse engajamento pelas obras de Misericórdia, no qual estamos dia por dia envolvidas em sofrimentos, lutas e dificuldades dos mais fracos, dos mais pobres e cercadas por injustiças, humilhações e maldade sofridas pelos inocentes, nós, as Irmãs franciscanas de São José, sentimos profundamente a necessidade de uma força maior, necessidade de um enraizamento mais consciente e buscado num vigor de bondade, mais forte, mais profunda e inesgotável, que transcenda todas as nossas forças de compaixão, que possua uma compreensão do Homem e do Mundo que vê e intui para além da morte, para além de todas as medidas, idéias, ideologias, além de todos os valores que são projetados por nós humanos a partir de nós mesmos. Necessitamos a força radical de uma Bondade divina que, em sendo inocente, carrega todos os crimes, pecados do Mundo, sem jamais deixar de amar, trabalhar, lutar para que cada ser humano seja amado, respeitado, promovido como só um Deus de Misericórdia, só um Deus Crucificado pode e sabe amar. Para isso, para esse enraizamento mais profundo e mais originário do nosso ver, sentir e agir no Amor Misericordioso inesgotável, é necessário não somente aprofundar e intensificar a confiança na força do poder de Deus e da sua presença, mas antes de tudo compreendê-Lo cada vez melhor, considerar diligente e atentamente o Espírito de Misericórdia do Deus de Amor e o seu santo modo de operar, e principalmente aprender de Jesus Cristo Crucificado o sentido mais profundo dos sofrimentos, das maldades, da miséria e do pecado da Humanidade. E tudo isso, justamente para podermos atuar com tenacidade, com coragem de ser, junto dos homens nesse mundo, a partir da ternura e do vigor de um Deus tão singular e próprio como o é o Deus-Misericórdia, revelado em e como Jesus Cristo Crucificado.
Conclusão
Misericórdia é o nosso carisma fundacional. Ela é o centro de convergência do vigor e da vitalidade da nossa Congregação, a partir do qual crescemos, nos multiplicamos e nos difundimos na unidade pluriforme da comunidade viva no Corpo Místico de Cristo. Tal realidade-fonte de uma Congregação, tal força-origem da unidade interior de uma Congregação, deve ser sempre de novo buscada, estudada e purificada de entulhos que com o tempo podem se depositar ao seu redor e sobre ela. Esse retorno à fonte, ao carisma fundacional queremos e devemos trabalhar. Sempre de novo, sempre novas, no vigor renovado e cordial, a exemplo de São Francisco de Assis que no fim da sua vida, prestes a morrer, vibrava ainda no frêmito juvenil do seu primeiro amor: “Vamos começar a servir a Deus, meus irmãos, porque até agora pouco ou nada fizemos” (Tomás de Celano, Vida I, 103).