Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A leitura

29/04/2021

 

HARADA, Fr. Hermógenes*

No empenho de uma busca espiritual, a leitura é uma atividade elementar. Por ser elementar, é um trabalho difícil de ser aprendido e executado. Exige-se portanto um tenaz e longo exercício de aprendizagem no trabalho denominado fazer a leitura espiritual.

Como pois fazer a leitura espiritual?

Para fazer a leitura espiritual é necessário pegar o livro. Costumamos dizer melhor pegar no livro. Pegar no livro não é apenas estabelecer um contato qualquer entre uma coisa chamada mão e outra coisa chamada livro. Pegar no livro é um contato humano todo especial.

Eu posso p. ex. agarrar o livro com as duas mãos e dar-lhe uma dentada. Com isso ainda não peguei no livro. Pegar no livro para fazer a leitura significa certamente também segurá-lo, agarrá-lo, tocá-lo com as mãos. Mas esse sentido físico de pegar está assumido por um sentido concreto humano específico, todo próprio, de pegar. E, ao pegar o livro para a leitura, o que im-porta é esse sentido concreto humano próprio de pegar. Esse pegar sui generis aparece na expressão como essa, quando dizemos p. ex. “Meu amigo, agora sim, te peguei!” A exclamação pode supor diversas situações. Talvez ando há muito tempo atrás do amigo para cobrar dele uma dívida; talvez o surpreendi numa fossa, a ele que me intrigava por estar sempre alegre e jamais triste; pode ser que o convenci de uma idéia, depois de muitos argumentos. Mas, seja qual for a situação em que se dê essa exclamação, ela nos indica o pegar como um contato bem concreto de afeição do interesse. É nesse sentido concreto humano que o camponês pega na enxada; o piloto da fórmula 1 no volante; o sacerdote, o cálice; a mãe, a fralda; o moribundo, o crucifixo, o “Romeu”, na mão da “Julieta”…

Pegar no livro como ser pego por uma afeição

Pegar no livro é, portanto, um fazer, movido por todo um mundo de afeição do interesse. A grande dificuldade da leitura na espiritualidade está justamente nesse modo de ser do pegar no livro. Pois pegar no livro aqui significa ser pego pela afeição de todo um mundo do interesse, afeição essa que me faz pegar o livro como as mãos trêmulas de um sedento pegam o copo de água que lhe dá a vida.

Portanto, a condição mais profunda da possibilidade da leitura espiritual não está tanto na capacidade de manejar o alfabeto. Antes, é a afeição do interesse do analfabeto, na sua sede e fome de pegar com ambas as mãos do não-saber reverente o livro o que possibilita a leitura autêntica. Sem essa afeição, não podemos ler no sentido próprio. Sem essa afeição não pegamos no livro. Apenas o roçamos na indiferença do consumidor, cheia de letras mortas. Estar na indiferença saturada de letras mortas é a nossa situação, hoje. A indiferença saturada pode aparecer também sob o disfarce de uma sofreguidão frenética. Assim, talvez a saturação apareça mais lá, onde o nosso saber engole tudo, lê tudo, sempre mais e mais em quantidade, sem poder demorar-se na acolhida de um questionamento simples e bem experimentado. É que perdemos o sentido para o elementar da leitura.

Leitura como colher e ser colhido

Ler, para nós, usualmente é passar olhos nas informações e notícias para satisfazer a nossa curiosidade e a ânsia do saber. Saber que, dizemos, é poder. O elementar da leitura é mais recolhido. E está insinuado na própria significação da palavra ler. Ler, no latim, é legere (lego, lexi, lectum, legere). Legere significa eleger, escolher. Mas significa também ajuntar, colher; significação essa que está implícita na palavra grega légein, da qual deriva o legere em latim e o ler em português.

Ler é pois fazer a colheita do e no texto. Um texto é todo um conjunto de letras que se ajuntam em palavras; palavras que se compõem em sentenças ou enunciações; enunciações que por sua vez se entrelaçam em orações. É como se fossem as parreiras de um vinhedo, onde se colhem uvas. Raízes, troncos finos e esguios, galhos, folhas, flores, frutos: todo um conjunto que se chama parreira. O suco que vem da terra através das raízes se consuma nas uvas. E das uvas se espreme o suco do vinho. Mas raízes, troncos, galhos, folhas, flores e frutos da parreira são como que diferentes concreções, digamos formas em que o suco da terra tece a sua trajetória para vir à consumação. Assim, o vinho é o espírito do céu e da terra que se doa generoso e benigno à acolhida da colheita humana e vem à fala como vigor que alegra o coração dos mortais.

De modo análogo, no texto, o que vem à fala na tecitura de letras, palavras, sentenças e orações é o pensamento: a água cristalina da inspiração, o sopro da vida, o vinho do espírito que alegra e revigora o coração do leitor. Mas o autor, muito antes do leitor, é o fiel operário da colheita da vinha do espírito. Pois autor não é nem o sujeito nem o agente nem o dono do pensamento, mas sim aquele que se recolhe e cresce, acolhendo o vigor da inspiração. É que a palavra autor vem do latim auctor, o qual por sua vez vem do verbo augeri (forma medial-passiva de augere, augeo, auxi, auctum, augere) que significa crescer, aumentar. Tudo isto significa que o leitor que colhe e acolhe o pensamento no texto e do texto, entra em comunhão dialogal com a disposição do autor, que é também de acolher e colher a inspiração, cujo pensamento tece como a tecitura do texto. Tanto o leitor como o autor se banham na mesma fonte da água cristalina do espírito, respiram o mesmo hálito, o mesmo sopro vital. Há portanto uma vigência, uma presença anterior, que toca tanto a mim, o leitor, como o autor, no que temos de mais íntimo e profundo, não no sentido de uma intimidade subjetiva particular e fechada em si, mas sim a modo de uma dádiva longínqua, proveniente de uma imensidão, profundeza e originariedade que me carrega, me im-porta e me recolhe para dentro de uma interioridade mais íntima, para uma altura mais alta, para uma propriedade mais própria do que eu a mim mesmo. Essa “realidade” anterior a mim mesmo é o espírito, a nossa imagem e semelhança com Deus.

Leitura espiritual e leitura como instrumento para aquisição do saber

O recolhimento para dentro da interioridade de mim mesmo, onde reina a pura disposição de acolher a inspiração do livro, só se dá, se na nossa compreensão do que seja a leitura, suspendermos o pre-conceito, i. é, o conceito prefixado de antemão da leitura como de um meio-instrumento para a aquisição do saber. Do saber que é poder.

Certamente, a leitura pode e deve ser exercitada também como meio de aquisição do saber. É a leitura de informação e da informática. Mas, na nossa vida espiritual, é necessário também aprender a fazer a leitura elementar, no sentido acima insinuado, de recolhimento ao fundo de nossa alma, para lá, onde, segundo o Mestre Eckhart, o nosso ser, o nosso espírito, i. é, o nosso sopro vital (o qual Eckhart denomina de mente) originariamente, naturalmente, está no toque de Deus, orientado para ele e nele recolhido. Diz assim o Mestre Eckhart em suas Conversações espirituais:

Antes de tudo, é necessário isto: que o Homem acostume e exercite a sua mente bem e totalmente em Deus; assim se torna, no seu interior, divino. À mente, nada é tão próprio e tão presente e tão próximo como Deus. Ela jamais se volta para outro qualquer lugar. Às criaturas, ela não se volve, a não ser que lhe aconteça violência ou injustiça, pelas quais ela é quebrada e pervertida[1].

E quanta violência não há no frenesi da informação!

Mas, para que a nossa mente possa se recolher para o fundo de nós mesmos, para a realidade “a mais íntima, a mais alta e a mais próxima a mim do que eu a mim mesmo”, é necessário que façamos a colheita, portanto a leitura, junto dos livros que foram escritos no mesmo recolhimento do espírito. Com outras palavras, é de grande importância a gente saber escolher, na vida espiritual, o que ler, i. é, escolher livros escritos em espírito. Assim, escreve Friedrich Nietzsche em “Assim falou Zarathustra”, ao falar do “Ler e escrever”:

De tudo que é escrito, eu amo somente o que alguém escreve com o seu sangue. Escreve com sangue: e tu hás-de-experienciar que o sangue é espírito. Não é possível compreender o sangue alheio facilmente: eu odeio os leitores ambulantes ociosos. (…) Quem escreve em sangue e provérbios não quer ser lido, mas quer que se aprenda de cor o que se escreve.

Diz a sabedoria chinesa que o melhor remédio é a comida. Talvez seja por isso que os grandes médicos da China antiga eram na sua maioria grandes conhecedores da culinária. Cozinhavam bem. É que, se todos os dias, nas três refeições, assimilo substâncias devidamente endereçadas a melhorar os empenhos e desempenhos dos meus órgãos internos, não há melhor e mais bem organizada terapia do que a de bem comer todos os dias. Com outras palavras, é de grande importância para a saúde do corpo escolher com inteligência e cuidado o que alimentar todos os dias. Isto que vale para a saúde do corpo, vale com muito maior urgência para a saúde da alma e do espírito. Se, na vida espiritual, nos empanturramos com “fast-food” e coca-colas espirituais, todo o corpo do meu espírito se torna pançudo, cheio de banha, inchado de colesterol, avolumado em peso morto de obesidade anímica, perdendo inteiramente a mobilidade, disposição e o frescor de um espírito sadio, sóbrio e desperto, que sabe considerar “o Espírito do Senhor e se ater a ele, e ao seu santo modo de operar” (cf. São Francisco de Assis, RB, cap. X).

Nesse modo da leitura espiritual, vale o provérbio latino “non multa, sed multum”, i. é, não isto mais aquilo, mais aquilo e mais aquilo, não portanto muitas coisas, mas muito, a saber, intensamente, profundamente, corpo a corpo no recolhimento da busca do mesmo, único necessário e essencial: da disposição da acolhida do que nos toca e sempre de novo nos já tocou, por ser o amor que nos amou primeiro. O saber que é poder quer “multa” (muitas coisas). O espírito, porém, “sabe” a “muito”, i. é, tem o sabor da cordialidade do sopro da vida.

Não diz pois o poeta Hölderlin: “Para saber, pouco; mas da alegria, muito, é dado a mortais?”(IV, 240).

Terminemos a nossa reflexão, citando um texto de Martin Heidegger que se intitula: O que evoca ler?

O que evoca ler? O que im-porta e conduz no ler é o recolhimento. Acerca de que se recolhe o recolhimento? Acerca do escrito, acerca do dito na escrita. O ler próprio é o recolhimento acerca disso que, sem o nosso saber, um dia, falou à nossa essência, reivindicando-a, seja que nisso lhe correspondamos ou o recusemos. Sem o ler próprio, não podemos também ver o que nos mira, e intuir o que aparece e transluz[2].

* In: O Mensageiro de Santo Antônio,  p.  5-7, Março, 1997.


[1] ECKHART, M. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 133.
[2] HEIDEGGER, Martin. Denkerfahrungen (Experiências do pensar). Editora Vittorio Klostermann, p. 61.
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