Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Como se fosse uma introdução… A leitura de textos-fonte

29/04/2021

 

Frei Hermógenes Harada

Antes de lermos os textos de São Francisco de Assis, pensamos um pouco no que vamos fazer, a saber, leitura de um texto medieval. Não haveria nenhuma dificuldade acerca do fato de uma tal leitura, se nós fôssemos:

– Medievalistas, cientistas e pesquisadores, que, sob diferentes pontos de vista, estudam como objeto de sua investigação as coisas da Idade Média.

– Eruditos e curiosos de notícias e informação sobre as realidades que estão fora de nossa realidade atual hodierna.

– Religiosos católicos tradicionalistas do tipo TFP.

Surgem, porém, objeções e dificuldades, por sermos religiosos franciscanos, sim, mas de hoje. É que, diante da leitura de um texto medieval, logo de início nos surge a interrogação: Por que e para que ler um texto medieval, escrito por alguém, escrito sobre algo e escrito de modo próprio, do tempo que está há mais de 8 séculos para trás da história? Costumamos responder a uma tal interrogação, dizendo:

– somos franciscanos, pertencentes à Ordem, cuja origem remonta a Idade Média;

– e sendo modernos, é muito útil, sim necessário, conhecer a história, pois a história nos ensina muita sabedoria;

– em seu conteúdo e na sua mensagem, o que foi escrito há 8 séculos pode ultrapassar o tempo e pode nos falar das verdades que permanecem válidas para sempre etc. etc.

Sentimos que todos esses argumentos são corretos, mas provavelmente não nos atingem no âmago, a ponto de nos sacudir e nos tirar a indiferença que pesa sobre nossas mentes modernas acerca do medieval. É que, em ouvindo os argumentos, e em vendo as suas razões, mesmo aceitando a sua validez, o medieval não nos atinge existencialmente o interesse da nossa presença, hoje.

Para sairmos dessa indiferença estrutural, institucionalizada na sociedade de hoje, fazem-se necessárias várias coisas, por exemplo: sondar a fundo qual é e em que consiste o nosso interesse pelos tempos presentes, que ocupam todos os nossos interesses, a tal ponto de não nos deixarem espaço para outros tempos; detectar e trazer à luz a compreensão de tempo, pressuposto na nossa atual compreensão da história; ter a possibilidade real e concreta de conhecer a época medieval e a nossa própria época hodierna, para podermos realmente averiguar as diferenças e as identidades entre os tempos tão distantes.

Vemos de antemão que tais empreendimentos estão fora do nosso alcance, pois extrapolam inteiramente a finalidade do nosso fazer, nesses dois dias. Vamos por isso abordar essa dificuldade de outro modo, de maneira talvez menos produtiva e rigorosa, mas mais viável e prática para o nosso uso. Vamos simplesmente, material e diretamente ler o texto, e tentar entendê-lo do melhor jeito possível, como podemos, e estranhar bastante o que e como ali está sendo exposta a realidade. Vamos fazer tudo isso como alguém que na estrada encontra um estranho, um estrangeiro, cujo costume, cuja concepção mal conhecemos, mas cuja língua entendemos de alguma forma. Deixemos que ele nos relate suas idéias, seus ideais, suas críticas, suas dificuldades e facilidades. E, em o escutando, estranhemos o mundo diferente, e em estranhando o diferente, tentemos aos poucos nos estranhar a nós mesmos, naquilo que nos é óbvio, mas que é tão diferente desse modo de ser do nosso estrangeiro. Mas, para que tudo isso? Tentemos pois fazer bem esse nosso trabalho de deixar o nosso estrangeiro falar a sua coisa. Quem sabe, se o fizermos bem, talvez recebamos uma resposta para a nossa atual pergunta: para que tudo isso?

O nosso trabalho é a reflexão. Há muitas interpretações acerca do que seja a reflexão. Uns contrapõem a reflexão à informação e dizem que reflexão é viver, é sentir, meditar a  e participar da vida, ao passo que informação é algo externo, intelectualizado, dados gerais que enchem a cabeça de erudição, mas não nos conduzem à realidade. Para outros, reflexão é um raciocinar intelectualmente muito complexo e sofisticado, ação de fazer arrazoados racionais, ao passo que informação é notícia concreta sobre a realidade etc. etc. Deixando de lado essas interpretações contradicentes, nós, nesses dias de reflexão, vamos entender a reflexão da seguinte maneira, a partir de uma questão.

Como nos indica a palavra reflexão, refletir é re-flectir, isto é, flectir-se, flexionar-se, dobrar-se de volta, de novo. Mas dobrar-se de volta, de novo sobre o que? Sobre nós mesmos?!… Tentemos nos dobrar sobre nós mesmos. O que vemos? Temos a impressão de vermos uma porção de coisas: o nosso corpo com tudo que sabemos acerca dele a partir da biologia, zoologia, fisiologia, as faculdades de intelecção, de volição, de sentimento, idéias, opiniões, conhecimentos, o nosso psiquismo, o eu e as suas potencialidades, as nossas  qualidades, positivas e negativas, a nossa própria existência no tempo e no espaço, em resumo, vemos um ente chamado homem com tudo que sabemos a seu respeito, e, ao mesmo tempo que vemos esse ente homem que sou eu mesmo, vemos também outros homens e as coisas ao nosso redor, o universo com tudo que nele está. Ao nos desdobrarmos sobre nós mesmos, não voltamos de novo a nós mesmos, mas antes nos achamos  no meio de mil e mil conjunturas de saberes acerca de nós mesmos, dentro de uma bem determinada representação da realidade.

Temos assim desdobrado diante de nós todo um mundo de explicações, de conceitos, hipóteses e teorias, que adquirimos bem ou mal na nossa formação científica, informações colhidas da mídia, informações dadas como realidades ali presentes diante de nós, ao redor de nós como o mundo universo. E então a partir desse saber, falamos da nossa vida religiosa, da Igreja de hoje, da missão do religioso no tempo presente, das necessidades de nos “ajornarmos”, dos diferentes tipos de espiritualidade, da vida de oração, da vida ativa e contemplativa, da pastoral, do celibato, da sexualidade, da ecologia, da paz, enfim, de tudo.

Mas tudo isso que dizemos e vemos, o estamos vendo realmente, imediatamente, evidentemente? Ou não é assim que todas essas coisas ou a maioria dessas coisas que vemos, passam por cima do que realmente, imediatamente, bem proximamente sentimos e vemos, o encobrem, fixando o nosso olhar e a nossa atenção para longe de nós, como no caso de alguém ao olhar a tela da televisão e as cenas de um bang-bang, esquece totalmente, olhos fixos na tela, que ele ali está bem perto de si, sentado sobre si mesmo, na poltrona. Com outras palavras, não estamos nós como que prisioneiros de um mundo de representações que, em ultrapassando o que realmente vemos, sentimos e somos, encobre um saber que mora bem perto de nós, um saber elementar, vigoroso, imediato e simples, concreto na evidência existencial, um saber do toque corpo a corpo?

Refletir é, em suspeitando, sim em já de alguma forma se apercebendo do toque desse saber originário, rastrear, investigar, em tudo que sabemos, o fio condutor ali oculto, em cuja seqüência, voltamos de novo ao primeiro conhecimento, ao conascimento, grande, profundo, saudável e belo de tudo que se nos desvela, ele mesmo a partir do mistério da vida. É na medida, em que assim recuperarmos o olhar aberto, claro e cheio de pudor e reverência ao mistério da vida, teremos cada vez mais acesso direto, simples e grande à verdade da nossa religião, sem precisar reduzi-la a outra explicação, que por ser menor, menos profunda e derivada, não nos conduz à verdade ela mesma, no âmago da sua essência.

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