Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Ler a Biblia – Dom Odilo

22/04/2021

 

Ao ler os Lineamenta do próximo Sínodo, que tematizarão a Palavra de Deus, percebi que a realidade central e fontal a partir da qual, dentro da qual e para a qual converge toda a fala do documento é o amor do Deus, Pai de Jesus Cristo, que o mesmo Jesus Cristo anunciou como o Grande e Novo Mandamento do Amor, deixando-o a nós como sua herança na última ceia.

Veja-se, por exemplo, o n. 1 que diz: “Palavra de verdade e de amor para todos os homens”. Ou o n. 10: Deus manifesta-se de forma tão gratuita quanto direta para estabelecer uma relação inter-pessoal de verdade e de amor com o homem e com o mundo que criou”. Ou ainda o n. 30 Revelação é comunhão de amor…

Como o documento (Lineamenta) é muito vasto e profundo, pode haver dispersão e fragmentação nas soluções que serão oferecidas. De repente, sai do Sínodo algo como uma colcha de retalhos! Para evitar isso, seria importante fazer brotar as sugestões e propostas do Amor de Deus, como é descrito de modo tão belo e grandiosos na Dei Verbum: fio condutor que coordena, dá sentido unitário, e dinâmica de compreensão e ação. De forma imperfeita e provisória, experimentei fazer essa ligação. O que me sugeriu tal tentativa foi a anotação de um aluno de teologia que dizia: “A Bíblia não passa de um produto da ação social de um povo, em cuja história Deus, como criador e doador de todo o saber e de todas as coisas, se torna presente e se nos faz conhecer”.

O que segue é cheio de imperfeição e lacunas, mas insinua mais ou menos em que estilo se poderia encaminhar a tentativa de unir as diversas interpretações, sem eliminar ou ignorar outras interpretações.

Moção:

Ter como princípio exegético ou a condição da possibilidade da leitura da palavra de Deus a Revelação de que o amor de Deus (genitivo subjetivo = o amor cujo sujeito e agente é Deus; e o amor do ser humano como ato humano optimal, que tem por objeto a Deus, portanto, o amor de Deus como genitivo objetivo como resposta e correspondência a esse amor primeiro que vem de Deus) é o princípio, fonte de toda a dinâmica e iluminação de orientação segura de nossas ações cristãs, quer na vida interior, na espiritualidade, mística, quer na ação pastoral, nos engajamentos sociais, políticos e culturais, conforme a Palavra de Deus.

Reflexão-exemplo para apoiar a nossa moção

Distraidamente podemos estar instalados na compreensão de que povo é mera aglomeração de gente, massa, coletividade ou agrupamento ideológico. Ser povo, porém, é conquista de um empenho. É uma qualificação humana. Povo é encontro de seres humanos que acordaram para a questão da essência do seu próprio ser e a tematizaram. Ser povo é uma experiência compartilhada, a partir da qual e na qual, cada qual, no pleno exercício de sua capacidade de compreender, saber e querer – vale dizer, na sua plena liberdade – dá o melhor de si como oferenda, como contribuição livre e generosa, para formar uma pertença mútua do mesmo destinar-se, ou seja, da mesma história.

Povo é mutirão de combate ao ensimesmamento egocêntrico, à escravização do apego ao que não é o próprio da grandeza, beleza e nobreza do ser humano. O ser destinado a esta qualificação se chama ser-pessoa.

Povo, portanto, na sua caracterização do que seja comum, deve ser diferenciado de coletividade, massa, ajuntamento de indivíduos, agrupamentos ideológicos etc.

Essa qualificação ou esse modo de ser explicado como comunidade ou como o popular (os gregos diriam democracia = força, vigor do povo) é que forja o que, de modo muito vago, indeterminado e geral, denominamos de social. Forja os sócios, companheiros, irmãos e irmãs de uma mesma causa nobre da humanidade (da essência do ser humano). O modo de ser, e a seqüência do proceder desse modo de ser, portanto, o método na formação da comunidade do povo, é o do encontro, é o caminhar aberto ao novo e ao inesperado.

A mania de caracterizar a comunidade não a partir do modo de ser humano universal, mas a partir da quantificação numérica, reduz o fenômeno humano a coisas simplesmente ocorrentes. Este método é válido quando se quer averiguar a quantidade numérica de um agrupamento humano. Mas o ser do ser humano, nesse caso, não vem à fala, pois o que ali é tematizado não é o ser humano enquanto humano, mas o ente humano enquanto enumerável como um outro ente qualquer.

Para entender, portanto, a Bíblia, é necessário ter a mente de quem pertence ao povo do qual surgiu, cresceu e se consumou a Bíblia. Estudar o fruto de um povo, tendo como fundo e como princípio a dinâmica histórica da gênese, do crescimento e destinar-se da liberdade e criatividade de uma comunidade humana, não é estudar um fato qualquer, simplesmente dado como um objeto e uma coisa, mas é sim entrar na dinâmica e na implicância de um feito, cujas implicações ontológico-existenciais exigem muito mais e de outro modo do que a simples impostação da ciência historiográfica. Uma das exigências, a mais importante e decisiva, é a de repensar a essência da História e estudar como deveria ser a ‘cientificidade’ própria da ciência cujo positum tem o modo de ser da temporalidade da existência como acontecer da facticidade.

Em que consiste o enfoque próprio do ser cristão ao ler a bíblia? E como essa leitura a partir do ser cristão está em referência a outros enfoques provenientes das ciências e de outras mundividências?

A anotação do aluno citada fica muito rasa e se torna insuficiente se não nos dermos conta de que nos movemos no mundo do nosso saber usual ao estudarmos e ao transmitirmos o que sabemos aos outros. Um exemplo de saber usual: o sujeito e o agente do livro é o autor; o livro é expressão dos pensamentos, vivências e planos do autor; que o autor seja indivíduo, coletividade, povo, pode trazer implicações de detalhes e complexidade maior ou menor, mas na estruturação do que seja uma causalidade, a coisa permanece a mesma. Dizemos: o autor da Bíblia é o povo de Israel e a primitiva comunidade que seguiu a Jesus. Deus jamais é autor imediato do livro. Deus está no livro presente como inspirador do que se relata no livro. Como distinguir, discernir o que é da ‘autoria’ do sujeito homem e agente de um livro, usando tudo que estava ao seu redor, cultura, língua, mundividências etc. etc. e a autoria de Deus que fala através do autor sagrado? O processo de escrever um livro, mesmo que ele seja tido ou se denomine divino, inspirado por Deus, revelado, é o mesmo do processo de se escrever um livro que não é sagrado nem inspirado? A inspiração é algo como mediunidade!? Algo como psicografia!?

Se colocarmos essas perguntas a nós mesmos, aos biblistas ou às autoridades da Igreja, em geral não obtemos maiores explicações ou mais do que usualmente sabemos dessas coisas. E surge então uma questão: por que declaramos depois da leitura pública da Bíblia, principalmente na liturgia, “Palavra de Deus?” É permitido, é possível, é necessário, é recomendado para a fé cristã, i. é, para o cristão, para o ser-humano, para o homem e a mulher da fé, deixar o nosso saber acerca dessas coisas fundamentais do nosso saber cristão assim sem determinação, vago, para não dizer confuso? Ou temos tudo isso bem claro na fé?

A FÉ É ATO IRRACIONAL DE CONFIANÇA E ENTREGA AO OUTRO?

No método historiográfico existe um saber que pode ser confundido com a fé: o saber baseado no testemunho de alguém que averiguou diretamente os fatos. Isto porque se trata de acreditar no que um outro me relata, confiando na autenticidade do seu relato. Como nesse acreditar, há um momento de confiança, a fé passa a ser considerada confiança. E se carrego a confiança com um ato não racional, de densidade emocional e de sentimento, então se deixa de lado o caráter do saber ou conhecimento adquirido através de conclusão, de ilação, ao lado do saber ou conhecimento através da averiguação imediato-empírica,  se deixa tudo isso e, aos poucos, a fé se transforma num ato irracional de total confiança e entrega ao outro.

Outra definição é a fé como adesão de identificação com a outra pessoa. Visto que a fé, entendida como confiança no relato de outro, pode esquecer que (a fé) é conhecimento ou saber e carregar a confiabilidade com o aspecto de emoção e sentimento de confiar-se, de entregar-se ao outro, deve ser distinguida da fé de confiança-emocional, fé como adesão, que preferimos chamar de pertença.

A FÉ ENTENDIDA COMO PERTENÇA

Definição: a fé é um saber ou conhecimento todo próprio no seu ser que tem a sua evidência a partir da experiência da pertença.

Segue a tentativa de deixar bem nítida a compreensão dessa definição, para evitar que seja confundida com qualquer das compreensões acima mencionadas.

Trata-se de:

  1. Saber ou conhecimento todo próprio no seu ser a partir da experiência. Usualmente, quando falamos dos atos de conhecimento ou de saber, logo os classificamos no rol da razão ou do racional, distinguindo-os dos atos de volição e de sentimento. No fundo desse modo de impostar o problema, está pressuposto um ajuizamento. Esse ajuizamento já colocou um posicionamento da compreensão do ser-homem com sendo: homem como sujeito-eu (nós), agenciador de suas faculdades (razão, vontade e sentimento) que age (agente) através ou por meio dessas faculdades, conhecendo, querendo e sentindo sobre um objeto. Esse esquema mental pré-suposto acerca do homem está expresso no slogan muito usado nas nossas reuniões pastorais: ver-julgar-agir. Sem entrarmos em pormenores desse esquema e pressuposição antropológica que domina todos os nossos atos, é decisivo percebermos que essa pré-suposição bitola e delimita a nossa percepção, excluindo todos os atos que não sejam juízos, que não sejam julgar, como sendo inexatos, imperfeitos, incertos, não científicos, digamos, irracionais. E isso de tal modo que o próprio ver é considerado a partir do julgar, como um modo de saber e conhecer racional ainda não suficientemente elaborado, incapaz, por isso, de ter a excelência dos juízos. Desta forma, surge uma imensa área de “realidades” e “modos de ser”, assim chamada pré-científica ou pré-predicativa, que é apenas domínio das opiniões, mas não da verdade, entendida como da certeza de controle e cálculo fundamentado na asseguração do agenciar-se do sujeito-eu (nós). Um dos trabalhos de um sínodo sobre a palavra seria examinar se uma pressuposição, como a acima insinuada, não está no fundo de todos os nossos saberes do tipo científico, seja das ciências naturais, seja das ciências humanas.
  2. Isso significa que, a imensa área da ‘realidade’ pré-científica que, num modo geral e vago, denominamos de cotidiano, de popular, de irracional, de sentimental, de religiosa, espiritual, de prática etc. etc. não é vista no seu modo próprio de ser e o homem educado, treinado, sim adestrado para esse modo de bitola, perde aos poucos o sensorial para realmente ver e perceber, de modo que não mais consegue co-nascer (conhecimento, conaître) com as realizações da realidade. Não mais, consegue ser pensar, a saber, estar na suspensão atônita da ad-miração e do cuidado do deixar ser o ente no seu ser e “pensar” (na acepção do aquecer, colocando a mão quente sobre a ferida) as defasagens e os desvios de um nascer, crescer e perfazer-se do desvelamento do ser. Com outras palavras, a imensa área da assim chamada realidade pré-científica tem o seu modo de ser e de se perfazer, de se mostrar, ela mesma, como a própria revelação do ser. E o homem é o pastor, aquele que cuida de e fomenta, alimenta a possibilidade desse aparecer da realidade concreta e perfeita (per-fazida) na plenitude do seu ser, na sua totalidade chamada imensidão, profundidade e liberdade de ser. A grande Tradição do Ocidente chamou essa abertura própria do Homem em diferentes eclosões de épocas, de espírito, nõus, logos (gregos); ratio, animus, spiritus, intellectus, mens (medievais); cogitatio, penso, logo, sou (Descartes), ésprit de géometrie e ésprit de finesse (Pascal), Handlung, Tat, Wissenschaft, Geist (idealistas alemães), vontade para o poder (Nietzsche); trabalho (Marx e modernos) etc. sempre de novo em diferentes níveis de amplidão e profundidade e também de defasagens de fixações e bitolamentos. E o cristianismo chamou essa abertura própria do homem no seu ser e deixar ser de amor (Caritas). O cristianismo entendeu o amor não como um dos atos do sujeito e agente homem, no agenciamento de suas faculdades “razão, vontade e sentimento”, mas como a aberta do homem, como o privilégio do ser chamado humano, imagem e semelhança de Deus-Encarnado, que não é outra coisa do que a fonte, o princípio da eclosão de todo um mundo inteiramente novo, do novo céu e de nova terra. 
  3. Essa abertura denominada pelo cristianismo de amor de Deus e do próximo não corresponde à compreensão usual, na qual separamos razão, volição, sentimento e agir como três elementos distintos e separados, muitas vezes em contraposição entre si (chega de tanto saber racional, é necessário, antes, sentir e agir etc.) mas é, ao mesmo tempo: “compreender; querer o que se compreende; e fazer o que se compreendeu e se quis” = amar. Amar aqui não é um dos atos humanos, relacionado à faculdade de sentimento e de volição, mas sim, primordial e primeiramente, o ato do ser humano, a vigência da sua essência, i. é, do seu ser: amar é o mesmo que pensar, querer, agir, i. é, ser humano.
  4. Ao definirmos no início a fé como um conhecimento ou um saber todo próprio que tem a sua evidência a partir da experiência da pertença, tentamos acentuar que a fé é um conhecimento (leia-se: com-nascimento), um saber (leia-se: sabor, sabedoria) todo próprio, cuja evidência não vem do projeto de um sujeito, dentro e a partir do inter-esse de agenciamento do autoasseguramento do seu eu, mas a partir da evidência da experiência da pertença. Esclareçamos melhor os termos evidência, experiência e pertença, contrastando-os com os termos experimentação ou experimento das ciências.
  5. Evidência vem do verbo latino evideri. Compõe-se de e + videri. E ou ex significa: saindo de dentro para fora, vindo de dentro, a partir do seu fundo originário, a partir de si e no médium do próprio de si, limpidamente. Videri é infinitivo da voz passiva do videre, ver. Essa forma da voz passiva, no entanto, esconde aquela voz que, nos verbos gregos, não era nem ativa nem passiva, mas se denominava medial, e que, em português, se formula com o reflexivo: se ver. Na voz ativa, a ação passa para o objeto da ação, atingindo-o. Na voz passiva, se recebe a ação do outro, sendo atingido e afetado. Tanto no ativo como no passivo, a ação do verbo transita para o objeto. Quando o verbo, na sua atuação, não tem o modo de ser de uma ação que transita para o objeto da sua ação, quer ativa quer passivamente, temos uma “ação” intransitiva. A ação contém a sua dinâmica nela mesma, se adensa sem sair de si, tornando-se cada vez mais ela mesma, ela própria, tornando-se ela mesma médium, meio ambiente de si mesma: é a voz medial. Assim, videri no sentido da voz medial, não significa ser visto nem se ver, mas incandescer, mostrar-se no seu próprio, manifestar-se a partir de si e no médium do seu esplendor. Esse modo de ser da manifestação, da evidenciação, do esplender, do transluzir é o próprio do saber originário, do com-nascimento. Deixar ser esse vir à luz, esse vir à fala a partir de si, nele mesmo, de cada ente nele mesmo, é o que denominamos de experiência.
  6. Experiência: a palavra vem do verbo latino experiri, que se compõe de ex + periri. Quanto ao ex é à voz medial, cf. n. 5 acima. Periri significa: pôr-se à prova, tentar, expor-se ao perigo, arriscar, aprender a conhecer, estar em plena atenção. No periri o per conota através de, ir através de, do início até o fim, atravessando; penetrar a fundo até o fundo abissal, ser toda atenção na ausculta do que der e vier, na espera do inesperado, sem nenhuma pré-tensão de uma expectativa preestabelecida, inteiramente na aberta, tinindo no inter-esse da recepção obediente. Um modo de caminhar-se e se encaminhar assim se chama, em alemão, Er-fahren, onde Er significa: originário, e fahren, ir, caminhar, viajar. Trata-se do modo de ser de uma caminhada, na qual, na medida em que se caminha, na decisão de perfazer-se, crescer e se tornar na caminhada, se vai assimilando, como momentos de transformação e crescimento, tudo que vem ao encontro, abrindo-se para um ser que é o conascimento na realização da realidade, enquanto se vai. É o modo de ser da dinâmica do destinar-se ao próprio do seu ser que denominamos de história. É nesse modo de se encaminhar e se perfazer no destinar-se do seu ser que surge, cresce e se consuma o que, logo no início, denominamos de povo. Esse modo de ser é bem diferente do modo de ser do experimento, da experimentação, do experimental que nas ciências, principalmente nas ciências naturais, denominamos de método ou meio instrumento da aquisição do saber exato e objetivo. Aqui, o homem se faz sujeito e agente de suas ações, como regente do agenciamento do seu inter-esse e lança sobre a “realidade” as condições da possibilidade do ser e do aparecer dos entes como objetos do projeto, enquanto processados para se tornarem afins a esse enquadramento, como comprovação e verificação da validade do projeto lançado. Fazer experimento significa então averiguar se a hipótese lançada a partir de um inter-esse como projeto é confirmada ou negada em contacto com a “realidade”. Percebemos sem mais que aqui se trata de dois modos diferentes da abordagem da realidade. Rubem Alves diz que a ciência é uma rede de buracos muito largos, lançada ao rio da realidade, mas que, por ter buracos grandes, só pega peixes grandes, e pensa que com isso ‘pesca’ toda a realidade.
  7. Pertença: pertencer aqui não significa aquele tipo de adesão, que as ideologias costumam programar e propagar sob o slogan: ‘Vista a camisa do nosso partido’ etc. Aqui, conforme a definição de fé acima colocada, pertença é o que nasce, cresce e se consuma como uma obra “perfazida”, i. é, per-feita de uma longa caminhada a modo da história, acima explicitada.

Esses arrazoados levam a desconfiar se o fundo dos textos da Bíblia não pressupõe a fé como nascer, crescer e se consumar nessa aberta do mundo chamada amor de Deus e do próximo: amai-vos uns aos outros como Eu (Deus Encarnado) vos amei. Se assim o for, então o princípio exegético dos textos da Bíblia seria o amor, entendido nesse modo todo próprio de conhecimento, do saber (sabor) todo próprio do co-nascimento no modo de ser do Deus Encarnado: amar.

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