Geraldo: Como é que Eckhart sabe que é isso? Deve ser fala de Santo Agostino, não é?
Marcos: É uma pergunta que a gente logo faz: Como é que sabem disso? Claro que a tradição cristã repete isso continuamente: que somos filhos de Deus, que no âmago da alma somos à imagem de Deus. Eckhart diz que somos iguais a Deus. Então, é um argumento da razão e da experiência dos sentidos. É argumento da autoridade, porque os sábios e os santos disseram isso. É a revelação divina? Qual é a fonte desse saber?
Cláudio: … lá vou eu com meu atrevimento: não será que ele conseguiu colocar tudo aqui, com seus sentimentos e palavras?
Marcos: Todas as palavras são aceno.
Dorvalino: Mas, acho que aqui são repercussões dessa herança de nós cristãos, da cruz de NS Jesus Cristo que, como coloca S. Paulo, Ele é a chave da verdadeira sabedoria e que, aos olhos do Mundo, é loucura. Porque cruz é o in-stante, como fala o texto. Cruz não como fato histórico, mas como experiência dessa fusão de Deus e a alma do homem ou no homem. E esta sabedoria foi desejada, buscada pelos mártires. Acho que na Idade Média se chegou ao máximo dessa busca e o texto de Eckhart está nessa ambiência.
Claudio: O que este texto tem a ver com o tema do nosso encontro: SENTIR E PENSAR? Fico imaginando Eckhart sentindo isso, esse tema. Nem sempre é possível descrever a sensação, o sentir da sabedoria, não é? É difícil ser transmitido a outros!
Marcos: Vamos tomar Jung – o pouco que a gente sabe sobre ele. Como psicólogo, ele percebeu que na dinâmica da vida, da psychè, havia como que uma tendência para alcançar o seu centro. A este centro ele chamou de arquétipo do Si mesmo – o Self ou Selbst. Então, investigando empiricamente, ele notou que aquilo que, na clínica, ele estava descobrindo, através da análise, correspondia muito àquilo que lia na tradição cristã e era chamado de imagem de Deus – imago Dei. E a Igreja, os santos estavam continuamente falando disso. É claro que aqui, não podemos simplesmente equiparar o arquétipo do Si Mesmo, este centro de estruturação da psique e para onde a individuação vai conduzindo, aos poucos, com a imagem de Deus, mas falando em duas linguagens diferentes – a linguagem científica da psicologia – ele viu ali uma dissonância, – uma dissonância no âmbito da investigação científica. A dissonância desta fala com aquilo que é a grande tradição cristã. Mas, a gente pode dizer: isto é empírico. Quando a gente coloca um problema desses, como é que a gente sabe disso? Nós estamos preocupados porque nós somos sempre tomados pelo problema da teoria do conhecimento, não é? Não nos basta só o conhecimento, mas estamos sempre preocupados em nos assegurar se tal conhecimento é válido ou não. Neste caso, Jung diria – esse conhecimento é empírico no sentido de ser experimental – através da observação dos pacientes na clínica, ele percebeu que a dinâmica da individuação ia acontecendo nessa direção de sempre mais alcançar este centro de si mesmo, esta unidade e totalidade de si mesmo que ele chamou de Si Mesmo. Agora, se agente pergunta ao medieval, eles estão por dentro disso. Isto era estranho para Jung, de certa maneira, ele como psicólogo se depara com aquilo que a tradição cristã também estava falando, mas numa fala que era a partir da fé, fala que era repercussão de um saber, mas um saber da fé e que, nem por isso, esse saber era sem evidência e sem experiência. Por exemplo, um pensador como Roger Bacon deu muita importância à experiência, à ciência experimental. Mas, o que ele chama de ciência experimental não é o que a gente hoje chama de experimental porque quando Roger Bacon diz: “o que é a experiência?”, a experiência é um saber imediato, é um saber que não vem simplesmente de um raciocínio, não vem de uma dedução. É um saber que se sabe no contato pleno, corpo a corpo com o que é sabido. Então, ele fala que questão fundamental do saber, do conhecimento, é a experiência. E quando você pergunta a ele o que é experiência, responde que tem dois sentidos de experiência: experiência externa – que é experiência daquilo que os sentidos exteriores nos revelam – ou mesmo os sentido interiores – e há uma experiência, que é a experiência interior, que chamamos experiência da alma. Então, os cristãos não somente receberam um anúncio: somos filhos de Deus, somos imagem e semelhança de Deus, mas também fizeram a experiência. A esta experiência chamamos de espiritualidade. O saber dessa experiência se dá no sabor dela.
Débora: É vivenciar?
Marcos: É, hoje, usamos a palavra vivenciar. Mas experiência é muito mais do que vivência. A vivência é momentânea, subjetiva. A experiência vai crescendo, corpo a corpo. Só que esta experiência é saber de um anúncio de fé, como Dorvalino falou, a partir do in-stante da cruz, ali aparece o humano como Filho de Deus. Ali aparece que a alma humana é capaz de um desprendimento tão grande, de uma liberdade tão grande, de uma disposição de receber Deus, mesmo no abandono de Deus, que ali a alma humana aparece como Filho de Deus e que isso vem repercutindo ao longo do cristianismo. Então, quando diz: “veja que grande coisa nós sermos chamados de filhos de Deus. E não somente sermos chamados, mas sermos de fato”. Então, todo o saber medieval é um saber feito de experiência, mas este saber feito de experiência é um saber que, onde ecoa, repercute, está o anúncio do Evangelho, o anuncio da Boa-Notícia que diz: “Você é filho de Deus. Eu sou filho de Deus”.
Então, toda fala é sempre aceno dessa experiência e desse anúncio. Esse sentir, a experiência, a gente coloca no nível sentimental. Mas acho que Eckhart não colocaria nesse nível. Pois, ele diz que mesmo se você não sente nada, não tem êxtase nenhum, se você não sente consolação nenhuma, se isso não toca o seu coração, no sentido do sentir, isto não tem importância alguma. Mas se você entender isso já é grande coisa.
Débora: Entender ou perceber?
Marcos: entender e perceber são a mesma coisa. Mas não perceber sensivelmente. Isto é o que se chama de intelecto.
Débora: Essa percepção?
Marcos: Sim, esta percepção.
Dorvalino: Ele fala de intuição, de percepção….
Marcos: Sim, mas não como experiência do sentimento. Ele achava que o pessoal dava muita importância a isso. Êxtases, experiências “místicas”, aquelas coisas todas… Ele dizia que, primeiro, mística não tem nada a ver com estas vivências. Vamos limpar a mística dessas vivências.
Claudenice: poderia ser o voltar ao acolhedor… voltar assim… a percepção poderia vir como algo aconchegante. Não precisaria ser fisicamente… necessariamente.
HH: Quando a gente está rezando, como uma chateação terrível, olhando para o relógio para ver quando é que vai acabar; e enquanto está rezando, está lá longe e etc. e fica lá. Daqui a pouco não agüento e vou embora. Se minha oração for sempre assim, eu querendo viver vida de oração profunda e me sai sempre desse jeito; e se a gente perguntasse a Eckhart: “Que oração ruim, não é?” Diria: “Bem, mas, quem disse que não está bem perto da oração?”
Frei Egídio diz assim: “se Deus te ouve, reza! Se não te ouve, reza! Porque Deus abre as narinas dele para o sacrifício de uma ovelha. Quando a gente oferece sacrifício para Ele, vai cheiro de churrasco gostoso, mas vai também cheiro de pelo junto e Deus abre as narinas para os dois, tranqüilo. Isto seria: eu rezo para ele, não sinto nada e continuo rezando, por fidelidade a ele.
Marcos: e se depois de todas essas confusões de nossas questões, alguém perguntasse: “e agora, como é que eu rezo?” acho que temos uma resposta concreta, unânime e firme: rezando diretamente.
HH: Nós falamos de santidade, falando disso, falando daquilo, pensamos em lógica. Então, no momento que a gente pensa da parte de Deus, acho que esta pessoa é santa. Então, por isso, há quem fique escandalizado porque Santa Teresinha do Menino Jesus andava desesperada. Santa Terezinha tinha sentimento de ateu diante da vida e pediu que tirasse, da cabeceira da cama, remédio que podia ser veneno. Tinha ímpeto de se suicidar? Devido à dor da sua doença? Então, a gente acha santidade fantástica, sempre com Deus, mas se não for assim? O problema da santidade não é do ser humano, mas do próprio Deus. A questão é que a gente se abra para isso.
Marcos: Dom Luciano Mendes de Almeida fez uma palestra, no nosso instituto, em Goiânia, poucos meses antes de morrer. Então, no meio da sua fala, que era sobre o Concílio Vaticano II, não sei como, ele fez entrar esse assunto. Ele encontrou-se com Madre Teresa de Calcutá e – parece que os dois já se conheciam – e ela lhe teria confessado que ela não teria consolação de Deus nenhuma. Não sentia nada de Deus, por anos a fio. Inclusive, hoje, publicam-se anotações dela, em que ela declara que não sentia nada de Deus, mas todo dia ela se levantava como se tivesse uma consolação de Deus. Levantava quatro horas da manhã, ia para a capela, rezava e, sem sentir nada, ficava na capela. Depois, ela saia e ia cuidar dos pobres.
HH:… e ao cuidar dos pobres, pode ser que ela tivesse essa questão: “por que Deus não ajuda? Quem é esse Deus que não ajuda os pobres?”
Dorvalino: … não será este o sentido de os apóstolos pedirem ao Senhor que os ensine a rezar? Aconteça o que acontecer Ele (Deus) é Pai.
Claudenice: Santa Teresa d’Ávila que dizia que se Jesus estivesse no inferno ela queria ir lá.
Marcos: É que, no fundo, todos nós somos ateus, isto é, sem Deus. Mas, esta disposição, ela mesma nos é dada como disposição da própria fé. A fé que não temos, temos que recebê-la através de Deus.
Regina: …temos que aprender a receber?!?
Marcos: … o próprio receber nos é dado. Recebemos inclusive a possibilidade de receber, por isso, dizemos: Pai-Nosso. Nós, por nós mesmos, somos nada. Nós somos sem Deus.
HH: Eckhart não diz ser assim como quando nós não éramos? i.é, deitados que nem bebê na possibilidade de Deus?
Claudio: Santo Agostinho também dizia algo assim, não é?
Dorvalino: … receber também o não ter Deus. Se o ponto alto do cristianismo é Jesus, então, o auge do cristão é viver esta graça de Cristo na cruz, que foi a experiência da ausência, sem Deus
Fábia: viver sem Deus e considerar isso suficiente. Viver hoje para hoje. Pai-Nosso que estais no céu nos dai hoje…
Marcos: … por que a gente está ansioso por uma meta? Não há meta!
Dorvalino: As pessoas a quem Jesus acolhe no Evangelho são sem Deus: publicanos, prostitutas… e depois diz: “Estas pessoas vos precederão no Reino de Deus”.
Regina: Nessa, nossa idéia de santidade vai por água a baixo.
HH: Então, o simples fato de existir é uma graça muito grande. Esse fato sou eu, o Self, o Selbst!
Dorvalino: …o ter que viver não é igual para todos?
Fábia: Há o ter que viver? Alguém tem que viver?
HH: Como está escutando esse ter que viver? Como, puxa vida, nem dá para acreditar, posso viver!?
Cláudio: Sempre encarei os sofrimentos como obstáculos, que me vinham nas horas mais impróprias, e que eu era convocado a superá-los, e cada vez que os superava sentia que algo em mim mudava para melhor. Quem sabe Deus colocou sofrimentos no caminho das pessoas que estão sofrendo para que elas trilhassem o caminho do amadurecimento…
Marcos: … a gente toma o caminho cristão como se fosse um programa de vida, até como se fosse uma moral. Mas, quando você lê o Evangelho parece que não é nada disso. Todos nós queremos ser éticos, pessoas que se formam, se superam… Mas, o evangelho nem dá um programa de santidade para gente. Parece que o Evangelho é só um anúncio alegre. A gente acha que é muito pouco isso?
Dorvalino: Nem precisa ter consciência. Os publicanos, as prostitutas não tinham consciência de estarem atingidos pelo Evangelho.
Claudio: Como entender isso?
Marcos: Sugiro (nota do gravador: HH está reclamando da pronúncia) que tomemos a parábola dos dois filhos. O filho mais velho reclama que, não-obstante sua fidelidade ao pai, nunca havia ganhado um cabrito para fazer churrasco com os amigos. Ele não sabia que era filho e que podia fazer churrasco quando quisesse.
Claudenice: Ele se achava um empregado.
Marcos: A cabeça dele é cabeça de empregado. Só conhece (conasce) nec-ócio. Não tem a escholalidade da liberdade dos filhos de Deus.
Regina: …ele é politicamente correto
Dom Mamede: Não fala no Evangelho, mas acho que ele trabalhava que nem os empregados.
HH: …o filho arrependido queria pedir perdão e o pai nem o deixa falar, abafa o pedido com um abraço.
Claudenice: … nesse momento da nossa vida, qual dos dois filhos a gente é?
Marcos: Não somos os dois?
Fábia: Será que somos os dois, ou somos mais o que ficou com o pai e não saiu de casa?
HH: Quando alguém era eleito papa se prostrava no chão e chorava por se achar indigno. Quando João XXIII foi eleito, perguntaram-lhe: “você aceita?” Ele: “Aceito!” Alguém o questionou: “Como é que é? Você não se sente indigno?” Então, falou: “Bom, isso não precisa nem dizer!”
Marcos: Porque será que Eckhart em vez de falar de imagem de Deus, fala de igualdade com Deus? Ele afirma que a alma, quando filha de Deus é igual a Deus.
HH: Ele foi condenado por causa disso.
Marcos: Aquelas bulas contra Eckhardt estavam censurando aquelas afirmações. Em que sentido estavam censurando?
HH: Quando é que o igual faz de dois uma ameba?
Claudio:… de dois uma ameba? Esta aí foi para arrematar, hein!?!
HH: O panteísta faz de todas as criaturas e Deus um igual. As autoridades eclesiásticas da época vigiavam muito para que uma doutrina não se tornasse panteísta. Deus e a alma são iguais… Eckhart se defende, dizendo que nunca falou disso. Mas se a gente olha os textos dele estão continuamente falando que é igual. Hoje a gente diz: “não é igual não. É o mesmo”. A gente fica com medo da palavra igual. Professor Ênio, que traduziu os textos dos sermões alemães que estamos lendo, deixou a palavra igual para nos provocar a pensar. Esse igual dá uma mistura de ameba se você considera Deus e alma como coisa. Então se é igual, um é pedaço do outro. Mas, quando se trata de encontro, é exatamente o contrário, quando é igual, cada qual é único, singular na doação e na recepção do que é o mais próprio de cada qual. A esse modo de ser, todo próprio que de dois faz um sem tirar em nada a identidade de cada um, essa união de identidades na sua diferença, na ternura e vigor da sympathia, o famoso filósofo da Filosofia da religião chamado Martin Buber denominou de relação eu-e-tu.
Dorvalino: Pai igual é igual ao filho é o mesmo, idêntico.
HH: A identidade ali traz consigo toda a liberdade e nitidez da diferença.
Marcos: Não perde a individuação. Somente os diferentes podem ser iguais.
Regina: Como é que é?
Marcos: Somente os diferentes podem ser iguais. Identidade é uma relação de si consigo mesmo, não é? Aquela cadeira é aquela cadeira. É idêntica a si mesma. Mas as duas cadeiras são iguais. São iguais porque não a mesma. Cada uma é uma nela mesma.
Geraldo: Na matemática, a gente tem isso claro: quando é igual, o símbolo é os dois tracinhos (=), quando é idêntico é três tracinhos.
HH: … só que quando Eckhart diz igual não dá para pôr os dois tracinhos. Tem que colocar os dois pontos (:), por exemplo, Pai: Filho: Espírito Santo. Então, quando é igual – dois tracinhos – trata o Pai, o Filho e o Espírito Santo como se fossem coisas. Colocando-se os dois pontos, trata o Pai como pessoa, o Filho como pessoa, o Espírito Santo como pessoa.
Marcos: Eckhart fala também da igualdade como ter a mesma essência. Depois ele fala de gerar. O Filho é da mesma essência. Dito de modo bobo: filho de peixe, peixinho é. Mas, alguém poderia dizer: “Espera aí! Nós não somos Deus”.
HH: Na Ásia em vez de peixe se diz dragão: “filho de dragão, dragão é”. Filhote de dragão nasce pequenininho e ele nem sabe que é pequenininho, mas sabe que é dragão. Então quando encontra o tigre – mamãe dragão andou muito rápido e filhotinho ficou perdido na estrada – então o tigre, que apareceu de repente, vai em cima dele e faz: “nhahh!”, escancarando a guela como abismo da porta do inferno. E o dragãozinho nem pestaneja, responde na mesma moeda, abrindo a guelinha com toda a coragem “nhahh!, sem estar nem aí com ser pequinininho.
Marcos: Então, Eckhat nos convida: que tal se a gente visse cada ser humano como filhotinho de Deus e cada criatura como cria de Deus, e o mundo inteiro participando dessa filiação! É o universo cristão, na “fascinante ideologia” de Cristo, Filho de Deus.