Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Vida fraterna – V

05/03/2021

 

As dificuldades da vida fraterna são inumeráveis. São em grande parte resultados de várias causas. P. ex. antipatia entre pessoas; diferenças de idade, de culturas, raças e educação, descontentamentos acumulados no decorrer dos tempos, heranças psicofísicas recebidas dos pais, condições atuais climáticas, etc. etc. etc. Mas, se com atenção observo a mim mesmo e aos outros por um bom espaço de tempo, percebo que no fundo o que fazem todas essas diferenças e contrastes e contrariedades tornarem-se insuportáveis são os defeitos, os vícios, as má vontades, carências não esclarecidas e assumidas, total ausência de autoeducação e autocontrole de si mesmo das pessoas que compõem a fraternidade, seja quem for etc. etc. E se eu examino ainda mais com atenção, todas essas falhas que chamamos p. ex. de má vontades, maldades etc. etc., nas pessoas que na vida consagrada convivem conosco, eu inclusive, percebemos que essas pessoas nas quais estão essas “maldades” são na realidade pessoas boas, até boas de mais no sentido de sentimentais que choram por nada, ficam com pena das outras pessoas que sofrem, na medida do gosto e da disposição da hora que muitas vezes é de lua, se doam aos outros etc. etc., mas que no fundo ainda não cresceram, são bastante infantis por dentro: são bebês, buscando e dando e recebendo a felicidade vital da qual continuamente estão carentes. Tudo isso é natural, é até charmoso, ou melhor, bonitinho, se as pessoas são bebês mesmo, fisicamente, indefesos, carentes, necessitando dos cuidados etc. etc., mas já imaginou, se com esse modo de ser carente do bebê bonitinho, a pessoa em questão tiver cabelos compridos, cheio de pose de madame, a chamar continuamente atenção sobre si em voz alta e gargalhada estridente e se for homem, com barba, voz grossa de um coronel em comando, contando vantagens das suas escapadas amorosas, como um adolescente querendo mostrar que é um machão etc. etc., a situação p. ex. no matrimônio se torna insuportável. Porque no bebê é bonitinho e muitas vezes também, quando a pessoa fica velhinha e gagá, e no adulto, no barbado, tudo isso se torna insuportável? É porque uma tal pessoa ficou parada no nível da necessidade vital; não cresceu por dentro, no compreender e querer assumir-se a si, capacitando olhar-se e se ver e ir se assumindo, ir assumindo sua própria educação, na sabedoria e na disciplina de alguém que se responsabiliza do seu destino e da sua história, da sua existência humana. Essa defasagem é o que está muitas vezes ou quase sempre atrás das nossas desavenças, choros e ranger de dentes, desânimos e depressões, mesquinharias, explosões incontroladas, alfinetadas covardes, julgamentos quase irracionais da situação, etc. etc. Aqui não se trata de pecados, nem de falhas morais. Essa imaturidade, nem sequer chega a ser má no sentido de uma responsabilidade moral e de pecado, pois responsabilidade moral e pecado só pode ser atribuída à pessoa que pensa, quer, sabe e quer mesmo o que diz e faz. É por isso que na sociedade hoje, provavelmente também antigamente, as pessoas que são más mesmo, e conscientemente criam e seguem um projeto de vida de poder e de exploração, de um reino do “mal”, entre elas mesmas se ajudam, se querem, se conhecem mutuamente, treinam continuamente para trabalhar unidos numa equipe, são disciplinadas, obedecem prontamente e com inteligência, responsabilizando-se das suas tarefas como se fossem elas mesmas as interessadas como sua causa, a saber Cosa nostra, vestem a camisa do sua equipe etc. etc. Ora o que denominamos Vida Consagrada está estruturado, está feito para levantar todo um exército de pessoas de boa vontade, dispostas, cordiais, buscando a grande realização de seguir a Jesus Cristo, amando a ele e a sua causa com profundo amor e doação pessoal numa consciência e num querer bem trabalhado de uma autonomia e liberdade para, portanto, na necessidade livre, considerando esse educar-se a si mesmo para a disciplina (dinâmica da aprendizagem), precisão, para a paixão de realizar, em si e nos outros, o desejo, o plano, o projeto de um novo céu e de uma nova terra como a sua causa, como o seu interesse, como a sua realização. Ver a vida humana em todas as suas manifestações, encarar e estudar, assumir as dificuldades e as agruras do nascer, crescer e se aperfeiçoar desse caminho de realização para um tal serviço como tarefa, dever e trabalho que eu quero, que eu compreendo e que nele me exercito sempre de novo, para me aperfeiçoar e assim poder se servir, e ser capaz disso, isso é a FELICIDADE E REALIZAÇÃO da vida consagrada. Isso é sair do cueiro da necessidade vital para o ser adulto da necessidade livre. Não se trata aqui de ficar lamuriando, se queixando que por causa disso e daquilo eu não consigo, tenho dificuldade. Não se trata de fazer um exame de consciência para confessar e se livrar da má consciência de se comportar dessa ou daquela maneira, ou ficar perguntando sem compreender muito de que se trata se é ou não vontade de Deus. Antes de todas essas coisas “religiosas” que quase sempre embrulhamos com “sentimentos” de amor e paz, de submissão humilhada, é de, independentemente de se consigo ou não, se estou fazendo ou não, se sou fraco, iletrado, estudado, forte ou não, antes de tudo isso é de eu me perguntar a mim mesmo, se uma tal existência humana, se uma tal visão da vida, é algo que eu quero assumir, quero entrar nessa, se eu gosto, quero amar e então quero caminhar para valer na aquisição de habilitação e qualificação para um tal projeto de vida. É nessa perspectiva que se deve colocar a tarefa da Vida fraterna, a tarefa de construir uma tal consciência dentro de mim, bem exercitada, calcada, firmada e participar da equipe, do grupo, da comunidade de pessoas que se movem, se animam, lutam e se aperfeiçoam nesse ideal, nesse projeto de vida chamada cristã, ou vida consagrada de Seguimento de Jesus Cristo.

Em geral, diante de uma tal colocação do sentido da vida religiosa consagrada, é nosso costume dizer: isso é exagerado, isso é radical, isso é fanatismo. Ora, se a gente examinar bem esse tipo de consideração do bom senso, sempre de novo ele desvia o foco de atenção, de pesquisa e de exame para um outro lugar. Nem se trata de ficar em dúvida, se eu consigo uma tal caminhada ou não. Se é Deus que quer isso ou não. Mas sim, antes de todas essas perguntas há uma única pergunta: Se eu quero, se quero buscar, se quero comprar um tal campo onde está oculto esse tipo de tesouro precioso. Ninguém é menos gente, é inferior, é menos responsável se digo: não, assim não quero, eu quero coisa mais do meu gosto, onde não preciso fazer tanto esforço. Eu não vim a este mundo só para trabalhar, para buscar, buscar, seguir, seguir, seguir um caminho cheio de vicissitudes, subidas e descidas etc. etc. Eu quero, sim, quero uma vida também de folga e bem estar a meu gosto. Ora, se é isto que eu quero, tenho todo o direito de escolher esse modo de ver e pensar a vida e a sua realização. É pois procurar realizar esse tipo de projeto para você. E se não encontro esse tipo de projeto e vida, modo de ver e interpretar a realização, num determinado grupo, numa instituição, etc. eu digo tranqüila e rapidamente tchau, e sem ressentimento, sem saudades sentimentais, começo a buscar o caminho de felicidade que eu quero, quis e hei de querer. Não fazer essa decisão e permanecer num outro tipo, num outro estilo de caminho, que no fundo eu não quero, e querer transformar ou adaptar um outro tipo de caminho ao modo do caminho como gosto e desejo é muitas vezes o motivo porque surgem tantas confusões na vida fraterna quer na comunidade pequena, quer na regional quer em toda a província e ordem.

Não pensemos que esse modo de colocar-se na vida, seja soft, seja hard, é uma especialidade da vida religiosa consagrada. Esse impasse, essa necessidade de me confrontar com a minha escolha e minha decisão, é de todo e qualquer caminho da existência humana, mesmo o de dolce far niente (o doce não fazer nada é um estilo de vida que uma pessoa assume). Nesse sentido, o poeta e escritor cristão, jornalista inglês Gilbert Keith Chesterton (escreveu um livro interessantíssimo sobre a vida de São Francisco intitulado São Francisco de Assis, existe tradução portuguesa) diz num outro livro mais ou menos o seguinte pensamento: Se de manhã eu estou com tamanha preguiça, a ponto de não querer me levantar e fico deitado, ficar deitado assim é gostoso e não preciso me esforçar. Mas se num dia de feriado, eu me decido a ficar o dia todo deitado na cama, eu necessito me esforçar para continuar decidido a assumir essa postura. Uma pedra pode sem esforço ficar deitada eternamente. Ser humano, porque o seu ser é vida, não somente no sentido da necessidade vital, mas sim no sentido da necessidade livre, não pode natural e espontaneamente ficar ali deitado como uma pedra horas a fio. Para isso devo me decidir. Seja no matrimônio, seja na vida titia ou titio de uma solteirona ou de um solteirão que não conseguiu casar por falta de parceiro ou parceira, seja numa profissão, mesmo de um lixeiro, seja dentro de um estilo de vida ou de uma profissão nessa dificuldade, naquela dificuldade, seja onde e como for, na vida, na existência humana, você, cedo ou tarde vai estar na encruzilhada de ter que se assumir, se decidir, seja para o que e como for. Uma tal coisa você não consegue fazer, se sempre se alimentou e se impregnou e motivou sua vida só em sentir, vivenciar o momento, como vem, como vai a vida, sem fazer, compreender e querer um projeto de vida.

Os nossos estudantes frades, inclusive e principalmente eu, que não consigo crescer para além de um certo grau de maturidade, portanto é melhor dizer nós frades, que muitas vezes dizem mas não fazem, gostam de caçoar do confrade que fica lamuriando muito das suas dificuldades, usando figura caricatural das freiras da congregação do Sagrado Coração de Jesus da França e cantam: Ninguém me ama, ninguém me quer, quero ser freira do Sacra Coeur. Talvez, as irmãs que em vários aspectos são muito mais claras, decididas em assumir o seu projeto de vida do que nós barbados e des-barbados frades, possam caçoar de nós cantando: Ninguém me ama, ninguém me quis, quero ser frade de São Francisco de Assis? Bem, é brincadeira, mas tudo isso não vai. Que tal se todos nós, antes de ser freira e frade, fossemos mais sadiamente, mais elementalmente, sim mais diretamente religiosos e religiosas, i. é, seguidores de Jesus Cristo, seja em que etapa da formação, i. é, do caminho da Liberdade ou da Autonomia estivermos, seja na formação inicial ou na permanente?

Experimente agora, depois dessa reflexão, ler o texto do capítulo X da admoestação de São Francisco de Assis. Não é isso tudo que São Francisco está a nos dizer?

Quando eu começo a me viciar em me aconchegar num ninho quente e bem acolhedor, posso começar a criar um sensorial, uma maneira de ver, julgar e re-agir à realidade, a si e aos outros, criar um sensorial, que tem o modo de ser e re-agir ninhal, i. é do ninho. E um dia sai ou cai do ninho  para um ambiente diferente do ninho, posso achar, sentir, vivenciar esse ambiente usual, natural e normal para as pessoas que ali vivem, como terrivelmente frio, duro, áspero, desumano.  E quem já saiu muito tempo do ninho, e está acostumado e gostando de um campo aberto ou cimo da montanha, o calor morno e enjoativo do ninho pode se tornar insuportável. Se uns frades ninhais e uns frades ventais (do ar dos pampas) ou glaciais (das montanhas nevadas) começam a viver juntos, cada grupo, cada um, deve poder sentir o ambiente que vive, também a partir do ponto de estadia e de vista de cada um, na sua diferença. Como se aprende a fazer isso? Um carregando o fardo do outro, como diz São Paulo. Mas, se esse exercício de carregar um o fardo do outro, for praticado, fazendo sacrifício, digamos por “caridade”, este começará numa tal fraternidade cheio de boa vontade mas também continuamente preocupado demasiadamente em ter a consciência limpa, serena, em criar o ambiente fraternal de paz e amor, sentido, vivenciado, um artificialismo afetado, dengoso, e crescente irritação abafada e insatisfação que começam a sufocar um relacionamento mais sadio e natural entre as pessoas, cheio de cuidado, medo, melindro entre as pessoas, mutuamente, até que a gente fica saturado de tudo isso, e começa a se tornar ou indiferente, ou individualista enclausurado em si mesmo como a dizer, deixa-me em paz ou cada qual para si, ou agressivo, debochado, zangado, descontente consigo e com todos. Provavelmente tanto os frades ninhais, como ventais e glaciais no fundo não estão construindo a sua existência humana no compreender e querer, num assumir não soft, mas sim hard da responsabilidade de crescer e se realizar no estilo do Seguimento.  Aqui, cada qual deveria perceber que é sempre ninhal, seja hard ou soft, se se aninhar seja no deserto, seja nas montanhas, seja nos vales, seja nas montanhas nevadas, seja no calor de uma praia amena, cheia de encanto e beleza, portanto seja onde e como for que seja. É necessário buscar como realização um estilo de vida a ponto de conseguir ser cada vez de novo, buscando, lutando e se consumando a experimentar cada situação, seja ninhal, vental ou glacial como lugar para se exercitar no compreender e amar, i. é, querer.

Uma senhora velha tinha 10 galinhas. As galinhas começaram a ficar pestiadas. Foi a um sábio monge, lá na periferia, o que fazer para as galinhas não morressem. O monge mandou das às galinhas grãos de arroz com casca. A mulher obedeceu. Mas morreram  duas galinhas. Foi consultar de novo o monge. Este mandou dar arroz descascado. Morreram mais duas.  O monge mandou dar metade do grão de arroz descascado. Morreram mais duas. Decepcionada, irritada a mulher interpelou o monge e disse: Até quando o Sr.  vai ficar prescrevendo arroz a minhas galinhas? Quando é que me livro desse sofrimento e preocupação em ter que ver as minhas galinhas morrerem? Disse o monge: Enquanto a Sra. tiver galinhas. Qual é a moral da estória, para quem leu o capítulo X das Admoestação de São Francisco de Assis?

Um homem poderoso e rico, Senhor de muitas terras tinha uma garrafa, feita de material preciosíssimo chamado jade (é pedra preciosa), garrafa belíssima, lembrança da sua falecida mãe. Um dia encontrou um pequenino filhotinho de dragão, belíssimo, cheio de escamas multicores que brilhava como ouro. Guardou o filhotinho de dragão na garrafa preciosa. Mas o dragão cresceu e ficou entalado na garrafa. O gargalo da garrafa era estreito de mais para que o dragão em crescimento pudesse sair. Foi falar com um velho sábio das montanhas que era desdentado, tão velho que era. E perguntou: Mestre, como faço para tirar o precioso dragão da garrafa preciosa, sem quebrar a garrafa ou matar o dragão? O velho mestre abriu a boca desdentado bem à vontade, deu uma gargalhada e respondeu: Meu filho, nunca metas um dragão, por menor que seja, numa garrafa!

Qual a moral dessa estória, para nós que estamos fazendo retiro sobre a Vida Fraterna, á mão dos textos de São Francisco?

Nós estamos refletindo sobre a Vida fraterna porque queremos que ela seja melhor. No percurso de nossas reflexões vimos que uma meta como essa, se realmente queremos melhorar, não basta lançar-se a agir simplesmente mexendo nisso e naquilo. É necessário, antes examinar bem para captar onde é que devo aplicar os meus esforços (pois no que diz respeito à energia humana, todos nós humanos, não somos capitalistas e milionários, mas temos a nossa economia bem delimitada para podermos sobreviver às fadigas e aos trabalhos de todos os dias). A nossa intenção de querer e os esforços para melhorar a vida fraterna podem vir de vários interesses. Em geral é assim que um dos interesses mais comuns e urgentes para nós é eliminar os obstáculos para que o bem estar  da nossa fraternidade melhore em vários sentidos, conforme a necessidade nossa, aqui e agora. Há assim, uma intenção e esforços bem imediatos para melhorar a vida fraterna. Nessa perspectiva já fazemos bastante ou não somos de modo algum negligentes ou omissos. P. ex. melhoria na moradia, tentativa de criar um bom ambiente, tanto físico, psíquico e espiritual. Esse trabalho todos nós fazemos e devemos fazer, de imediato, todos os dias, cada dia. Mas se só ficamos nesse nível de trabalho da melhoria, com o tempo vamos perceber que a coisa não funciona realmente e em muitos casos, piora, pois aumenta cada vez mais exigências e buscas para sofisticar, aumentar a melhoria. Assim,  boa intenção e sincero esforço de melhorar a vida fraterna p. ex.  no aspecto de ambientação físico-psíquico, porque estava péssima, aos poucos se transforma em ânsia e desejo cada vez maior de uma melhoria em sentido que nos leve a buscar sempre mais, digamos o tipo de ambientação rica, sofisticada a ponto de físico-psiquicamente nos tornarmos cada vez mais exigentes, mas cada vez menos resistentes, fracos e facilitados. Isso pode acontecer não somente no nível físico-psíquico, mas também no espiritual. P. ex. precisamos de muitos estímulos, muito ambiente, muita preparação, para podermos nos concentrar. Ficamos em todos os sentidos, exceto fisicamente, pois hoje há muito bom esforço para isso, cheios de banha, lerdos, pouco acordados, pouco resistentes. É que na dimensão psíquica e espiritual há também alta pressão arterial, aumento do nível de colesterol ruim, astenia, diminuição de massa muscular, amolecimento e endurecimento dos ossos, da coluna etc. etc. Quando o estado da saúde da Vida fraterna começa a se tornar assim periclitante, então na nossa boa vontade de melhorar podemos e devemos perceber que a melhoria imediata de uma vida fraterna que é uma realidade comunitária, digamos social, portanto, pertencente a uma totalidade maior, para além do simples indivíduo, portanto à congregação ou à ordem, só tem resultado real e duradouro e crescente, se examinarmos cada qual pessoalmente (i. é, nesse trabalho ninguém me pode substituir, nem Deus) o que há com a minha inserção (real inter-esse, o estar dentro), consciência (saber de que se trata) e vontade de fazer “minha causa”, a intenção e o objetivo do grupo humano a que pertenço, intenção e objetivo que por sua vez estão enraizados numa realidade de profundidade, que denominamos fonte, princípio, fundamento etc., donde tiram as suas forças e para onde convergem os seus esforços. Um exemplo concreto: Se eu pertenço a um instituto de pesquisa na medicina, e no ambiente onde trabalho, há goteiras, tento de imediato dar um jeito, provisória ou permanentemente, para que não precise abrir guarda chuva no nosso lugar de trabalho. Pois isso é importantíssimo para que eu possa realmente trabalhar para a melhoria, progresso da intenção e meta, objetivo do instituto de pesquisa da medicina. Digamos que no instituto trabalham 10 pessoas com diferentes funções. Digamos que desses 10, 8 pessoas não se interessam de melhorar  o ambiente e ajudar a dar um jeito em acabar com goteiras. Em vez disso cada qual dessas 8 pessoas tira o corpo fora, dando vários motivos reais ou virtuais ou falsos, e se queixam e ficam abatidas que a coisa não vai, e ameaçam não mais vir trabalhar. Mas vem, tristes, cabisbaixas, para aturar o ambiente de goteiras, porque querem sobreviver no sentido de necessitar do salário. O exemplo não é lá muito adequado, pois no caso do instituto de pesquisa, há instâncias maiores, na gestão e na coordenação, e a crítica e o exame das causas porque não se cuida da goteira devem ser dirigidos para lá em cima nos andares superiores do instituto. Mas imaginemos que nos andares superiores também há situação semelhante. E digamos que com raríssimas exceções as pessoas que se comportam como aquelas 8 pessoas, não tem muito gosto, nem entusiasmo de arregaçar as mangas e na medida do possível trabalhar para ao menos ir trocando de hora a hora, as bacias que ficam cheio de água das goteiras. E por dentro estão indignadas com a negligência dos chefões dos andares superiores, mas ficam quietinhos, pois com razão, se criticar, vão ser despachados. E adeus o salário mensal. Ninguém pode acusar essas 8 pessoas de serem preguiçosas, egoístas, de maus funcionários, sem primeiro acusar os funcionários dos andares superiores. Mas digamos que 3 dessas 8 pessoas são pesquisadores e estão ali no instituto  porque sabem que o instituo na sua pesquisa e o que ela já fez até agora é muito boa, eficiente. Pois há institutos onde no aspecto de prédios, maquinários etc. são excelentes, mas na excelência da pesquisa são medíocres e de pouca eficiência, embora na propaganda tudo pareça excelente. Digamos que as 2 pessoas que não pertencem ao grupo daquelas 8 pessoas que tiram o corpo fora do trabalho de acabar com as goteiras, são faxineiras. Mas são pessoas muito espertas e clarividentes e sabem que na pesquisa, o instituo cujas dependências elas limpam é muito útil, e já até salvou um dos seus filhos. Com todas aquelas vicissitudes de perder o salário se criticar, da chateação de cada hora precisar esvaziar as bacias de água da chuva, com queixumes, desânimos etc. etc. que  podem tomar conta do grupo, uma coisa parece ser certa: se de alguma forma vier um movimento real, clarividente de uma reforma que pode não se dar imediatamente, esse movimento virá daquelas duas faxineiras e daqueles 3 pesquisadores (se estes mudarem sua postura em referência a sua vocação e missão de pesquisadores), pois esses 5 sabem, para além das aparências miseráveis dos prédios com goteiras, de que se trata, no que diz respeito à intenção, meta e projeto do Instituto a que pertencem.

O instituto, o grupo a que pertencemos é grupo da vida consagrada. A intenção e o objetivo desse grupo é o Seguimento de Jesus Cristo. A intenção e o projeto dessa pessoa excelente que dizemos nós todos os dias na nossa fala “litúrgica” cantando (nós damos todos os dias muitas cantadas… mas para quem?) que ele é divino e humano de excelente qualidade e de uma boa vontade fora de série, estão empacotados, codificados no Grande mandamento do Amor e do Novo Mandamento, cujo sentido tentamos nesse retiro colocar como fonte e princípio do vigor da Vida Fraterna. Perguntemos se toda nossa congregação fosse comparada às 10 pessoas daquele Instituto com goteiras, pertencemos ao grupo das duas faxineiras, ao grupo dos três pesquisadores, ou ao dos restantes 5? Atenção, por favor, a moral da estória não é moral dessas pessoas. O pivô dessa parábola está nesse ponto: que as  2 faxineiras (de excelente moral) e os 3 pesquisadores (de moral ambígua, fraca ou confusa) tinham suas mentes claras em referência ao Instituto no que ele tem de essencial e fundamental. As restantes 5 poderiam ser de moral bastante boa, ou talvez também não; mas eram totalmente ignorantes no que diz respeito ao essencial e fundamental do instituto onde trabalhavam. No fundamento, na fonte, na raiz não estavam bem colocadas. Por isso, mesmo que se “convertessem” e começassem a participar do trabalho de acabar com as goteiras, seus esforços, enquanto não recuperassem uma cuca legal a respeito da intenção e do objetivo do Instituto, recairiam de novo na indiferença, desânimo e revolta desgastante, e  permaneceriam na indeterminação e confusão mentais, i. é, não teriam luz suficiente para não andar às tontas.

Gostaria de agradecer a cada uma das irmãs que me suportaram com tanta bondade e benignidade que caracterizam, como disse numa das conferências, as irmãs Franciscanas da N. Senhora do Amparo. Se fossem outras, já me teriam expulsado de casa, pois andei dizendo bobagens, bastante chutadas e simplificadas e exageradas a respeito da Vida Consagrada. Mas de modo algum, estava de imediato falando da sua congregação ou das pessoas da sua congregação. Tudo que disse com a expressão você, vocês, que variava com eu, nós, se referia a mim e a vida fraterna que eu como franciscano vivencio e experimento. É que cada qual quando fala, mesmo que pense que está falando dos outros, está é falando de si, i. é, a partir de suas “tripas” interiores. É que como repetimos tantas vezes nesse retiro, cada qual, seja quem for, como for, cozinha com água. Água aqui da cozinha é a nossa finitude, a nossa existência humana. E a existência humana finita é sagrada. Pois é o dom precioso, o Tesouro precioso do Evangelho, i. é, da intenção e objetivo, projeto de vida, de nada menos do que de um Deus, que é o Deus de Jesus Cristo, de um Deus feito homem, no duro, para valer, porque se apaixonou doidamente da nossa humanidade mortal. Não falemos mal portanto das nossas tripas. As agruras, as boas digestões e más digestões, as vicissitudes das nossas tripas psíquico-espirituais pertencem ao insumo da nossa produção espiritual-cristã. Tentemos usá-las com inteligência e com bom pulso da realidade terra a terra da Terra dos Homens (Cf., livro Terra dos Homens de Antoine de Saint Éxupéry). No retiro, falamos muito mal, aparentemente, do sentimento, do sentir, das vivências a la sentimentalismo. Para que não fique um equívoco de mal entendido tentemos melhorar a fala desse retiro de que os sentimentos cultivados e tidos como o máximo da experiência do amor e caridade cristã e mesmo caridade no sentido usual humanitário, é o que chamamos de interpretação um tanto defasada que vem do sentimentalismo, misticismo e espiritualismo da granfinagem no trabalho do cultivo do Espírito do Senhor e do seu modo real de operar. É algo como uma comida, na qual a dosagem de açúcar é demais. É pois necessário não construir a existência humana num tipo de doce assim. Principalmente de comida açucarada com o açúcar das fábricas de refinação espiritual do “espiritualismo” do consumo “capitalista” hodierno. É que há perigo na vida consagrada da doença chique denominada diabete espiritual. O gosto salgado, amargo, azedo para a saúde do espírito é também de grande importância. Mas no fundo do sentimentalismo, do muito consumo da vida cheia de doçura açucarada, existe na sua raiz, na sua fonte, a verdadeira afeição que nada tem a ver com sentimentalismo, mas sim com o Amor de Deus, com a Presença de Deus que é o Amor. E essa doçura, sadia, autêntica da verdadeira afeição a gente percebe no fundo, grande, imenso e profundo das irmãs de N. Amparo. Por isso, por favor, aquilo que relatei do que falaram frei Dorvalino, etc. a respeito desse aspecto da sua congregação, tome como uma afirmação séria e objetiva, e não como uma espécie de captação de benevolência no fim do retiro, pois essa afeição de fundo é herança do carisma da sua congregação e, custe o que custar, deve ser conservada e cultivada. Só que se não trabalhar melhor e com mais cuidado tudo isso no compreender e querer, tudo isso pode se transformar na superdose de açúcar refinado, e isso para o engajamento na vida consagrada pode nos trazer muita confusão, sofrimento e “galhos”, como o faz aquela doença chamada diabete.

No retiro de reflexão não finalizamos o mesmo no último dia do retiro, pois o retiro é um exercício da formação permanente. Por isso, no fim do retiro é que começamos a sério o retiro do trabalho aplicado no fundo elementar do nosso viver consagrado, em voltando para a vida ativa de todos os dias, agora mais sóbrios, mais concentrados, menos angustiados, com mais sangue frio, de um trabalhador que com calma, mas com muita boa vontade inicia o labutar básico de firmar, afundar o fundamento da nossa vida consagrada. Mas como no início de um trabalho a gente deve se concentrar para não dispersar nossas forças, vamos moralizar, dessa vez bem forte, pois a verdadeira moral não é moralização barata, fácil, geral e sem clareza de que se trata, mas sim seriedade de disposição e decisão de agarrar com duas mãos o trabalho da construção do reino de Deus: Vamos tomar a sério, sim numa seriedade mortal de quem, sem angústia, sem precipitação, sem confusão mental, vai a um combate mortal, i. é, de vida e morte para a vida consagrada, o nosso, o teu, o meu relacionamento com Jesus Cristo. E isto não só, ou melhor, menos no nível de devoção, piedade, de rezas, de “intimidade” ensimesmada espiritualista, mas sim no compreender e querer, no saber de que se trata, quando entramos para valer nesse estilo da existência cristã chamada vida consagrada; Relacionamento que é muito mais real e existencial e engajado do que paixão físico-anímico-espiritual de duas pessoas, uma masculina, outra feminina, num matrimônio, não de conveniência, não de imposição alheia, mas sim de uma opção livre, clara, do amor que sabe de que se trata e quer o que sabe de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente, para toda a vida, num laçar a si total e absolutamente para dentro de uma aventura e ventura do que a Grande Tradição do Povo de Deus denominou de Vida consagrada, i. é, existência do Seguimento de Jesus Cristo. E não caiamos na confusão de achar que uma tal busca apaixonada de relacionamento com Jesus Cristo, é algo subjetivo, particular, para o ensimesmamento à la santificação e perfeição da alma na interpretação defasada de um espiritualismo alienado, mas sim da doação cordial, livre, total e absoluta das e dos que querem a todo custo, usando tudo que está ao seu redor, dentro de si, do seu passado, da sua herança genética, ser não esposas-madames-grã-finas, mas sim companheiras e companheiros de Jesus Cristo, no ser e no trabalho, pessoas livres que querem entrar na intimidade de Jesus Cristo, assumindo todo o Seu ser e agir, unir-se a Ele, tornando-se como Ele, fazendo seu todo o projeto de vida e projeto da transformação encarnada da humanidade, para a realização do Novo Céu e da Nova Terra, e isso, não lá em cima das montanhas, lá nas alturas, nas nuvens dos céus, não na avoação de planos grandiosos e espetaculares, mas cada qual como trabalhadores conscientes nos buracos cavados no subterrâneo da Terra dos Homens, i. é, aqui e agora, ali onde estamos, no encargo, na comunidade fraternal, na idade, no corpo doente ou sadio que temos, como trabalhadores, como camponeses que por fora suave, terno, benigno e por dentro ardendo no fogo de uma paixão divina, valente, intrépido, pois o nosso Deus é Deus de Amor, desse Amor vivido e anunciado por Jesus Cristo, amor que é um incêndio de fogo devorador, mais duro do que a morte (diamante é duro porque foi forjado pelo fogo), o qual nenhuma torrente de águas caudalosas pode apagar. Que tal se, desde o postulantado, cada qual de nós se decidisse a mandar brasa numa caminhada de vida inteira, sem ficar ali querendo evitar dificuldades e perigos, incertezas do futuro, mas decididos sempre de novo a renovar o trabalho de decidir de novo, de se firmar na decisão, e assim viver a nossa vida, e ir até o fim, como aquelas árvores do cerrado, do sertão que ficam velhas mas cada vez ficam com maior animação de pé, e morrem em de e em pé, louvando o Senhor. Ora Jesus Cristo foi o protótipo dessa valentia humana sertaneja, e por isso, se eu começo a me enamorar de uma tal caminhada, com ele, por ele, dele e para ele, pensa você que ele vai ficar indiferente a uma tal afeição? Nessa perspectiva, não fique ali a pedir uma tal graça, pois quem está doido para dar e estar junto da gente para caminhar com a gente é Ele. De tal modo que, a nós que agora estamos aqui como consagrados, como seguidores Dele, estamos prestes a voltar para nossas labutas, a nós seus seguidores, Ele já há muito tempo deu essa graça e continua dando a graça. O problema é que, por não termos nem olhos, i. é, o compreender, nem gosto, i. é, a vontade de a receber, mesmo Ele estando a nos dar a graça a cada momento, nós não a recebemos. Vamos deixar de nos bobear? Fim da moralização.

Muito obrigado. HH.

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