Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Votos 2009 – Reflexões

05/03/2021

 

 Reflexão

A nossa formação inicial para a vida consagrada começou a ser defasada de modo visível nos últimos tempos. Não que não tenha havido boa vontade, renovação e tentativas inúmeras. Mas as tentativas, na sua maioria, são inflacionárias no sentido de muito oba-oba, sem uma séria e competente concentração no essencial. Por isso a nossa formação para a vida consagrada é hoje apoucada, fragmentada, mal-cozida; estamos crus em diversas dimensões. O que dissemos acima da formação inicial, vale de modo muito mais contundente para a formação permanente. Assim, nós que estamos dentro das ordens e congregações, os mais velhos, os professos, por sofrermos de uma carência quase total da formação permanente bem trabalhada, não nos tornamos aptos a receber os que procuram a vida consagrada de modo adequado e próprio. Assim, podemos talvez exclamar: Haja vocação que sobreviva a tal carência do essencial.

O que foi dito acima de modo aparentemente exagerado e pessimista, ao meu ver, não é exagerado. Pelo contrário, está dito de modo ainda muito formal, geral, digamos neutro, indiferente, desanimado e depressivo.

  1. Reflexão

Antes de todas as nossas ações perguntemos: o que vamos fazer

O que vamos fazer? Concentrar-nos a estudar o significado existencial dos votos. Os votos, dentro da vida religiosa consagrada, se referem ao empenho e desempenho de uma plena atenção na busca do Seguimento de Jesus Cristo. Do Seguimento de Jesus Cristo que antigamente se dizia Imitação de Cristo ou Discipulado, ou simplesmente Vida Religiosa ou ser religioso, religiosa; ou mesmo ir para o convento, ou ser frade, ser freira. E para o varão, alguém de fato pode ser religioso e padre. Mas ser padre não coincide com ser religioso. Todo esse modo de falar e compreender a vida consagrada não está com nada e por isso está nos deixando cada vez mais confusos, equivocados e ambíguos na compreensão, pois estamos usando uma linguagem que não é adequada para a compreensão própria da nossa vocação cristã.

Portanto: O que vamos fazer neste encontro? Concentrar-nos a estudar o significado existencial dos votos. Isto é o que queremos fazer nestes três dias de reflexão.

Mas aqui, já de início, começa a dificuldade. Eu não sei me concentrar.

Vamos nos concentrar primeiro ao redor dessa dificuldade, para desde o início, ver, ver, e ver que essa dificuldade é falsa. Pois, por mais incrível que seja, aqui está o ponto nevrálgico, porque somos, todos nós, tão pusilânimes e desanimamos tão facilmente.

Mas, em que sentido, falsa? No sentido de que a sua, a minha, nossa compreensão acerca da nossa própria vida e a compreensão que temos da nossa dificuldade, aqui de nos concentrarmos, é falsa; não se afina com a realidade.

É que você representa ou imagina tudo que você faz e não faz, e tudo que você é e não é, como alguma coisa ali em si feita, físico-material, o qual você, ou tem ou não tem. Assim, concebe o próprio saber como essa coisa. Por isso, nem experimentou e já diz de antemão: não sei. E se experimenta adquirir o saber ou poder, de antemão, aborda o trabalho de modo defasado, entendendo o adquirir na expectativa de o ter como se tem ou não se tem uma coisa. Por conseguinte, quando se trata de agir, fazer e ser humano, não pode usar a linguagem: eu não sei, eu não posso, eu não tenho. Aqui, a linguagem adequada é dizer: eu não quero. E querer e não querer só pode ser querer: quero, e/ou não quero. Não um querer neutro, dado de antemão, algo nascido antes de nascer.

Agora atenção: Todo querer é fazer, e todo fazer, se não é querer, não se torna obra.

Mas querer não tem muito a ver com desejar, com queria. E nada tem a ver com sonhar. E tem tudo a ver com querer buscar, querer fazer. Por isso, é melhor formular tudo isso assim de imediato, como o faz Beato frei Egídio de Assis: Querer é fazer. E esse fazer, de novo nada tem a ver com fazer por fazer, mas sim fazer para fazer fruto. E distinguir esse fazer fruto do obter resultado, alcançar um objetivo. Fazer fruto aqui se diz no sentido literal: pro-duzir-se, se perfazer.

Nesse ponto, aqui acentuado, distingamos nitidamente entre escolher ou optar e se decidir. Escolher ou optar está no modo de ser do desejo. Decidir-se no modo de ser do querer.

Leitura particular

A condição da possibilidade de querer é a atenção

Reflexões sobre o reto uso dos estudos escolares em vista do amor de Deus (SIMONE WEIL)[1]

“A chave para uma concepção cristã dos estudos é a compreensão de que a oração consiste em atenção. E a orientação para Deus de toda a atenção de que a alma é capaz. A qualidade da atenção conta muito na qualidade da oração. O fervor do coração não consegue compensá-la.

A parte superior da atenção só entra em contato com Deus, quando a oração é suficientemente intensa e pura para que tal contato seja es­tabelecido; mas toda atenção se volta para Deus.

Certamente os exercícios escolares desenvolvem apenas uma espé­cie de atenção mais baixa. Apesar disso, são extremamente eficazes no aumento do poder de atenção que será útil na hora da oração, sob a condição de que sejam levados a cabo em vista desse propósito e somente desse propósito.­

Embora o mundo hoje pareça estar inconsciente dele, o desenvolvimento da faculdade de atenção constitui o objeto real e quase o úni­co interesse dos estudos. A maioria das tarefas escolares têm um certo interesse intrínseco, mas tal interesse é secundário. Todos os deveres que realmente exigem o poder de atenção são interessantes pela mesma razão e até quase igual grau.

Os escolares e estudantes que amam a Deus nunca deveriam dizer: “Particularmente gosto de matemática”. “Gosto de francês.” “Gosto de grego”. Deveriam aprender a gostar de todas essas disciplinas, porque todas desenvolvem a faculdade de atenção que – dirigida a Deus – é a própria substância da oração.

Se não temos aptidão ou gosto natural pela geometria, isso não significa que nossa faculdade de atenção não se desenvolva pela labu­ta com um problema ou o estudo de um teorema. Pelo contrário, é quase uma vantagem.

Nem mesmo tem muita importância sermos bem sucedidos em achar a solução ou compreender a prova, embora seja importante tentar real e diligentemente fazê-lo. Em todo caso, tudo que é genuíno esforço de a­tenção nunca é desperdiçado. Sempre tem efeito no plano espiritual e consequentemente sobre o nível inferior da inteligência, porque toda luz espiritual ilumina a mente.

Se concentrarmos nossa atenção na tentativa de solucionar um problema de geometria e, no fim de uma hora não estivermos mais perto de consegui-lo do que no começo, assim mesmo estávamos fazendo progres­so em cada minuto daquela hora noutra dimensão mais misteriosa. Sem sa­bermos ou senti-lo, esse esforço aparentemente estéril trouxe mais luz à alma. O resultado será descoberto um dia na oração. Além disso, ele pode muito provavelmente ser sentido em algum departamento da inteligên­cia de forma nenhuma relacionado com a matemática. Talvez aquele que fi­zesse o esforço sem sucesso, um dia seria capaz de captar, por causa dele, mais vivamente a beleza de um verso de Racine. Mas é certo que esse esforço produzirá seu fruto na oração. Não há qualquer dúvida so­bre isso.

Certezas desta espécie são experimentais. Mas, se não acredita­mos nelas antes de experimentá-las, se, ao menos, não nos comportarmos como se acreditássemos nelas, nunca teremos a experiência que leva a tais certezas. Aqui há uma contradição. Acima de determinado nível, es­se é o caso de todo conhecimento útil ao progresso espiritual. Se não regularmos a nossa conduta por ela antes de tê-la provado, se não per­sistirmos nela durante longo tempo unicamente pela fé – uma fé tempestuosa e sem luz no inicio – nunca a transformaremos em certeza. Fé é a condição indispensável.

O melhor apoio da fé é a garantia de que, se pedimos pão ao Pai, ele não nos dará uma pedra. Inteiramente independente da crença religi­osa explicitada, toda vez que um ser humano tem bom êxito em fazer um es­forço de atenção com a idéia única de aumentar seu entendimento da ver­dade, ele adquire aptidão maior de entendê-la, mesmo que seu esforço não produza fruto visível. Uma história esquimó explica a origem da luz co­mo se segue: “Nas trevas eternas, incapaz de achar alimento, o galo de­sejou a luz e a terra foi iluminada”. Se há real desejo, se a coisa de­sejada é realmente luz, o desejo da luz a produz. Há real desejo quando há esforço de atenção. É realmente a luz que se deseja, se estão ausen­tes todos os outros desejos. Mesmo que nossos esforços de atenção pare­çam não estar produzindo resultado durante anos, um dia, uma luz que es­tá na exata proporção deles inundará a alma. Cada esforço acrescenta um pouco de ouro a um tesouro, que nenhum poder da terra pode roubar. Os esforços inúteis feitos pelo Cura d’Ars durante longos e penosos anos em sua tentativa de aprender latim produziram fruto no maravilhoso discer­nimento que o capacitou a ver a própria alma de seus penitentes atrás das suas palavras e mesmo seus silêncios.

Portanto, os estudantes devem trabalhar sem nenhum desejo de ti­rar boas notas, passar nos exames, alcançar sucesso escolar; sem nenhu­ma referência às suas habilidades naturais e preferências; aplicando-nos igualmente a todos os deveres, resolvemos fazer um trabalho, é necessário que cada um ajude a for­mar neles o hábito daquela atenção que é a substância da oração. Quando desejar fazê-lo corretamente, porque tal desejo é indispensável em qualquer esforço verdadeiro. Enfa­tizando esse objetivo imediato, nosso propósito profundo deveria preten­der somente um aumento do poder de atenção em vista da oração; como, quando escrevemos, desenhamos a forma da letra no papel, não em vista da forma, mas em vista da idéia que queremos expressar. Fazer desta o único e exclusivo fim de nossos estudos é a primeira condição a ser ob­servada, se pretendemos fazer uso correto deles.

A segunda condição é fazer grande esforço de examinar friamente e contemplar atenta e vagarosamente cada tarefa escolar em que temos falhado, vendo quão desagradável e de segunda classe ela é, sem procu­rar desculpa alguma, sem passar por cima de algum erro ou correções de nossos mestres, tentando descer à origem de cada falta. Há grande ten­tação de fazer o oposto, dar uma olhadela de lado no exercício corrigi­do, se for ruim, e escondê-lo imediatamente. A maioria de nós faz isso quase sempre. Temos de afastar essa tentação. Incidentalmente, além dis­so, nada é mais necessário para o sucesso acadêmico, porque, apesar de todos os nossos esforços, trabalhamos sem fazer muito progresso quando recusamos prestar atenção às faltas que fizemos e às correções dos nos­sos mestres.

Acima de tudo, pois, é para que possamos adquirir a virtude da humildade, que é um tesouro muito mais precioso do que todo o progresso acadêmico. Deste ponto de vista talvez seja até mais útil contemplar nossa estupidez do que nosso pecado. Consciência de pecado nos dá o sen­timento de que somos maus e às vezes uma espécie de orgulho encontra lugar nele. Quando nos forçamos a fixar o olhar, não só de nossos olhos mas de nossas almas, sobre um exercício escolar em que erramos por pu­ra estupidez, uma sensação de nossa mediocridade nasce em nós com irre­sistível evidência. Nenhum outro conhecimento deve ser mais desejado. Se pudermos chegar ao conhecimento dessa verdade com todas as nossas almas, estaremos bem estabelecidos sobre o fundamento correto.

Se essas duas condições forem perfeitamente cumpridas não há dú­vida de que os estudos escolares são um caminho para a santidade quase tão bom como qualquer outro.

Para cumprir o segundo, basta desejar fazê-lo. Quando ao primei­ro, não é esta a questão. Para realmente prestar atenção é necessário saber começar.

Na maioria das vezes se confunde atenção com uma espécie de es­forço muscular. Se alguém diz aos seus alunos: “Agora vocês devem pres­tar atenção”,  a gente os vê franzirem a testa, reterem a respiração, enrijecerem os músculos. Se depois de dois minutos forem interrogados em que estiverem prestando atenção, não serão capazes de responder. Estiveram se concentrando sobre nada. Não estavam prestando atenção. Estavam contraindo os músculos. Às vezes desperdiçamos essa espécie de esforço nos estudos. Como isso acaba nos cansando, temos a impressão de que estivemos trabalhando. Isso é uma ilusão. Cansaço nada tem a ver com trabalho. O trabalho em si mesmo é um esforço útil, cansativo ou não. Essa espécie de esforço muscular no trabalho é completamente estéril, mesmo que seja feito com as melhores intenções. Boas intenções em tais casos estão entre as que pavimentam o caminho do inferno. Estudos conduzidos dessa maneira podem às vezes ter sucesso do ponto de vista de ganhar notas e passar nos exames, mas isso é apesar do esforço e graças a dons naturais; além disso, tais estudos nunca serão de utilidade alguma.

A força de vontade que, se for necessário, nos faz cerrar os dentes e suportar sofrimento é a principal arma do aprendiz engajado no trabalho manual. Mas, contrário à crença comum, não tem praticamente nenhum lugar no estudo.  A inteligência só pode ser levada pelo desejo. Para haver desejo, deve haver prazer e alegria no trabalho. A inteligência cresce e produz fruto na alegria. A alegria de aprender é tão indispensável no estudo como a respiração na corrida. Onde ela falta não há verdadeiros estudantes, mas apenas pobres caricaturas de aprendizes que, no fim do aprendizado, nem mesmo  terão um emprego. É a parte representada pela alegria nos estudos que os faz uma preparação para a vida espiritual, porque o desejo dirigido a Deus é o único poder capaz de elevar a alma. Ou melhor, é Deus sozinho que desce e toma conta da alma, mas só o desejo puxa para baixo. Ele só vem aos que lhe pedem para vir, e não pode recusar a vir aos que lhe imploram longa e ardentemente. A atenção é um esforço, um esforço negativo. Por si mesmo, ele não envolve cansaço. Quando ficamos cansados, dificilmente é possível mais alguma atenção, a não ser que já tenhamos grande prática. É melhor parar totalmente de trabalhar, procurar algum descanso e, então voltar um pouco mais tarde à tarefa; temos que prender e soltar alternadamente, exatamente como inspiramos e expiramos.

Vinte minutos de atenção concentrada, infatigável, é definiti­vamente melhor do que três horas de aplicação carrancuda que nos leva a dizer com uma sensação de dever cumprido: “Trabalhei bem…”.

Mas, apesar de todas as aparências, é também muito mais difícil.

Alguma coisa em nossa alma tem uma repugnância muito mais violenta pela verdadeira atenção do que a carne pela fadiga corporal. Esta alguma coi­sa está muito mais intimamente conexa com o mal do que a carne. E por isso que toda vez que concentramos realmente nossa atenção, destruímos o mal em nós mesmos. Se nos concentramos com essa intenção, um quarto de hora de atenção é melhor do que muitas boas obras.

A atenção consiste em suspender o pensamento, deixando-o livre, vazio e pronto para ser penetrado pelo objeto; significa manter em nos­sas mentes, dentro do alcance desse pensamento, mas em nível mais bai­xo e não em contato com ele – o conhecimento diferente que tivermos adquirido de que somos forçados a fazer uso. Nosso pensamento deveria estar em relação com todos os pensamentos particulares e já formulados, como um homem na montanha que, quando olha para frente, vê também abai­xo de si, sem contemplá-las realmente, muitas matas e planícies. Acima de tudo, nosso pensamento deveria estar vazio, aguardando, não procu­rando nada, mas pronto para receber na sua verdade nua o objeto que es­tá para penetrá-lo

Todas as traduções erradas, todos os absurdos em problemas de geometria, todas as grosserias de estilo e todo encadeamento defeituoso de  ­idéias em composições e ensaios, todas essas coisas são devidas ao fato de que o pensamento se apoderou de alguma coisas demasiado apressadamente e, sendo assim bloqueado prematuramente, não está aberto à verdade. A causa é sempre aquele querer ser demasiadamente ativo; quisemos levar a efeito uma pesquisa. Isso pode ser provado toda vez, em toda falta, se seguirmos até sua raiz. Não há melhor exercício de tal investigação de nossas falhas, porque essa verdade só será acreditada depois que a tiver­mos experimentado centenas e milhares de vezes. Esse é o caminho com to­das as verdades essenciais.

Não obtemos os mais preciosos presentes indo à procura deles, mas aguardando-os. O homem não pode descobri-los por seus próprios poderes e se ele decide procurá-los, achará em seu lugar imitações de que será incapaz de discernir a falsidade.

A solução de um problema de geometria não constitui em si mesmo um dom precioso, mas a mesma lei se lhe aplica, porque é a imagem de al­go precioso. Sendo um pequeno fragmento de verdade particular, é pura imagem da Verdade, única, eterna e viva, a própria verdade que uma vez declarou com voz humana: “Eu sou a Verdade”.

Todo exercício escolar, pensado desta maneira, é semelhante a um sacramento. Em todo exercício escolar há um modo especial de aguardar a verdade, tendo esperança nela, todavia não nos consentindo em sair à procura dela. Há um modo de dar atenção aos dados, de um problema de geome­tria sem tentar encontrar a solução, ou às palavras de um texto latino ou grego sem tentar chegar ao significado, um modo de esperar, quando es­tamos escrevendo, a palavra certa vir por si mesma à ponta da caneta, en­quanto nós meramente rejeitamos todas as palavras inadequadas.

Nosso primeiro dever para com os escolares e estudantes é tornar­-lhes conhecido esse método, não somente de um modo geral, mas na forma particular em que se relaciona com cada exercício. Não é somente um dever dos que ensinam, mas também de seus diretores espirituais. Além disso, o segundo deveria enfatizar numa luz brilhantemente clara a correspondên­cia entre a atitude da inteligência em cada um desses exercícios e a posição da alma, que, com sua lâmpada cheia de óleo, espera a chegada do Noivo com confiança e desejo. Possa cada amável adolescente, quando tra­balhar na sua prosa latina, esperar, através dessa prosa, chegar um pou­co mais perto do instante em que será realmente o escravo esperando fiel­mente enquanto o senhor está ausente, vigiando e ouvindo, pronto para abrir-lhe a porta logo que ele bater. O senhor então fará o escravo sen­tar-se e ele mesmo lhe servirá a comida.

Somente essa espera, essa atenção, pode mover o senhor a tratar esse escravo com tão espantosa ternura. Depois que o escravo tiver se cansado nos campos, o senhor diz na sua volta, “prepare-me a comida e me sirva”. E ele considera o servo que faz somente o que lhe foi manda­do fazer um inútil. Para estar certo no reino da ação, temos que fazer tudo o que é exigido de nós, não importa o esforço, o desgaste e o sofri­mento que possa custar, porque quem desobedece não ama; mas depois dis­so somos apenas servos inúteis. Tal serviço é a condição do amor, mas não basta. O que força o senhor a fazer-se escravo do seu escravo e amá-lo não tem nada a ver com tudo isso. Muito menos é o resultado de uma procura que o servo pudesse ter sido bastante arrojado a empreender por sua própria conta. É somente vigilância, espera, atenção.

Então, felizes são os que passam a adolescência e juventude desenvolvendo esse poder de atenção. Mas não há dúvida de que não estão mais perto da bondade do que seus irmãos que estão trabalhando nos cam­pos e nas fábricas. Estão mais perto de maneira diferente. Lavrado­res e operários possuem uma proximidade com Deus de incomparável sabor que se encontra nas profundezas da pobreza, na ausência de consideração social é na tolerância de longos e estafantes sofrimentos. Todavia, se consideramos as ocupações em si mesmas, os estudos estão mais próximos de Deus por causa da atenção que é a alma deles. Os que atravessam anos de estudo sem desenvolver essa atenção dentro de si mesmos perdem um grande tesouro.

Não somente o amor de Deus tem a atenção como sua substância; o amor do próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito dessa mesma subs­tância. Os que são infelizes não têm necessidade de nada nesse mundo, senão de pessoas capazes de lhes dar sua atenção. A capacidade de dar atenção a um sofredor é uma coisa muito rara e difícil; é quase um mi­lagre; é um milagre. Quase todos que pensam que têm essa capacidade não a possuem: calor de coração, impulsividade, piedade não bastam.

Na primeira legenda do Gral, diz-se que o Gral (o cálice miracu­loso que satisfaz toda fome pela virtude da Hóstia consagrada) pertence ao primeiro chegante que pergunta ao guardião dó cálice, um rei com três quartos do corpo paralisados pela mais dolorosa ferida, “O que o Sr. está sofrendo?”

O amor ao próximo em toda a sua plenitude significa simplesmente ser capaz de dizer-lhe: “O que ‘você está sofrendo’?” E o reconhecimen­to de que o sofredor existe, não somente como uma unidade numa coleção, ou um espécime da categoria social rotulada de “infortunada”, mas co­mo um homem, exatamente como nós, que um dia foi carimbado com uma marca especial pela aflição. Por essa razão é suficiente, mas indispensável, saber contemplá-lo de um certo modo.

Esse modo de olhar é antes de tudo atencioso. A alma esvazia a si mesma de todos os próprios conteúdos a fim de receber em si mesma o ser que está contemplando, exatamente como ele é, em toda a sua ver­dade.

Somente quem é capaz de atenção pode fazer isso.

Por paradoxal que possa parecer, acontece que uma prosa latina ou um problema de geometria, mesmo que sejam feitos errados, podem ser de grande utilidade um dia, contanto que lhe devotemos o correto esforço. Aparecida a ocasião, eles podem um dia fazer-nos mais capazes de dar a alguém em aflição exatamente a ajuda requerida para salvá-lo, no momento supremo de sua necessidade.

Para um adolescente, capaz de captar essa verdade e suficiente­mente generoso para desejar esse fruto acima de todos os outros, os es­tudos poderiam ter seu mais pleno efeito espiritual, absolutamente in­dependente de qualquer crença religiosa particular.

O trabalho acadêmico é um daqueles campos que contêm uma pérola tão preciosa que vale a pena vender todas as nossas propriedades, não conservando nada para nós mesmos, para sermos capazes de adquiri-la.”

  1. Reflexão

Somos apoucados na compreensão e realização dos votos, porque não buscamos e assim não temos realmente a decisão vocacional.

Diferença entre opção e decisão

  1. Em nossa linguagem usual cotidiana usamos os termos opção e decisão indistintamente como sinônimos. Mas seria útil se nas nossas reflexões aqui do noviciado distinguíssemos bem o conceito de opção, de um lado, e o conceito de decisão, de outro lado. Ver bem a diferença, pode nos ajudar a ficarmos mais claros na compreensão mais precisa da nossa vida consagrada.
  2. No tempo de São Francisco se denominava a opção pela expressão liberdade de escolha. Para nós liberdade é em primeiro lugar estar livre de; e em segundo lugar poder escolher entre as possibilidades a mim propostas. E quando não há mais do que uma única possibilidade, dizemos que também ali há escolha, não entre mais possibilidades, mas entre a possibilidade de escolher o escolher ou o não escolher.
  3. Esse último caso, porém, é uma falácia. Parece razoável por que se opera aqui em representações formais e lógicas mas não se está vendo em concreto e real. É que há uma diferença total entre escolher e decidir. É que: escolher é um ato de preferência; ao passo que decidir é um ato do querer, ou melhor, bem querer, ou melhor ainda, amar.
  4. A medida da preferência é minha medida. A medida do querer, da bem querença, do amor é o outro enquanto meu bem querer.
  5. O que significa, pois a medida do amor é o outro enquanto meu bem querer?
  6. Na nossa linguagem usual cotidiana usamos os termos opção e decisão indistintamente como sinônimos. Mas seria útil, se nas nossas reflexões aqui do noviciado, distinguíssemos bem o conceito de opção de um lado, e o conceito de decisão de outro lado. Ver bem a diferença, pode nos ajudar a ficarmos mais claros na compreensão mais precisa da nossa vida consagrada.
  7. No tempo de São Francisco se denominava a opção pela expressão liberdade de escolha. Para nós liberdade é em primeiro lugar estar livre de; e em segundo lugar poder escolher entre as possibilidades a mim propostas. E quando não há mais do que uma única possibilidade, dizemos que também ali há escolha, não entre mais possibilidades, mas entre a possibilidade de escolher o escolher ou o não escolher.
  8. Esse último caso, porém, é uma falácia. Parece razoável, por que se opera aqui em representações formais e lógicas mas não se está vendo em concreto e real. É que há uma diferença total entre escolher e decidir. É que: escolher é um ato de preferência; ao passo que decidir é um ato do querer, ou melhor, bem querer, ou melhor ainda, amar.
  9. A medida da preferência é minha medida. A medida do querer, da bem querença, do amor é o outro enquanto meu bem querer.
  10. O que significa, pois a medida do amor é o outro enquanto meu bem querer?
  11. Reflexão

O que é decisão?

Decisão é aquilo, ao qual sem compreender bem apelamos sempre de novo, constantemente na vida consagrada, dando-lhe o nome de coração. Só que, como o nosso entendimento do que seja coração é tirado de mil e mil interpretações e vivências dessas interpretações desafinadas e deslocadas da compreensão real e própria do coração, na Sagrada Escritura, no Evangelho, as nossas tentativas de nos satisfazermos na vocação evangélica se ressentem de insatisfação, dúvida, carência e compensações inadequadas na vida consagrada. Na vida consagrada, o problema da afetividade etc. não se aborda satisfatoriamente sem se colocar nítida e claramente na compreensão do coração que se origina das palavras da Sagrada Escritura. E ali coração coincide com decisão.

Coração, na Bíblia, significa o centro, o núcleo, o âmago do ser humano, no qual o Homem (sentido genérico) se recolhe, sobre o qual se assenta, se torna ele mesmo; é o ponto nevrálgico, o foco de incandescência do Homem todo. Por isso, quando o Homem age, pensa, sente, quer a partir do coração, ele age, pensa, sente, quer com toda a sua essência. É o que o Evangelho diz no grande Mandamento do Amor: Um dos doutores da lei perguntou: Mestre, qual é o grande mandamento da Lei? Disse Jesus: Ama (diliges) o Senhor teu Deus em todo o teu coração (en hóle tê kardía), e em toda a tua alma (en hóle tê psychê) e em toda a tua mente (en hóle tê dianoía). Este é o mandamento máximo e primeiro. O segundo, porém, é igual a este: ama o teu próximo como a ti mesmo (MT 22,34-40).

Amar (diligência) é aqui ser idêntico, ser igual a, ser como, ser um. E não o unir-se no uno do que são dois.

E no lava-pés: Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei, para que também vós ameis uns aos outros (Jo 31-35). (ler inteiros os capítulos 13, 14, 15 e 16).

Isso que foi dito aqui pelo Evangelho é o coração de Deus de Jesus Cristo (Filho). É o próprio, a identidade, aquilo no qual se está enraizado, assentado, do Deus de Jesus Cristo: a sua decisão: a Vontade de Deus; a oração, a herança de Deus; a sua continência, sua virgindade. É a natureza, essência do Deus de Jesus Cristo.

Assim, coração, decisão, vontade, o ser de Deus de Jesus Cristo é o a priori da nossa filiação divina em Jesus Cristo. O chamado, a vocação não é propriamente convite, mas sim o próprio Deus de Jesus Cristo, Nele, se dando a cada um de nós, fazendo-nos iguais a Ele.

Assim sendo, vocação é decisão, é o a priori de já sermos assim iguais a Deus de Jesus Cristo, é amar como Cristo amou.

Uma realidade como essa não é desobriga, não é dever, não é obrigação, não é escolha. É decisão; querer receber, ser. Daí o imperativo categórico: “vem e segue-me”!

Por isso, abandonar todo e qualquer preconceito e predeterminação e ser inteiramente livre para seguir. Mas seguir então é decisão: não tem mais nenhuma condição que meça e dê critério ao seguimento, mas apenas prontidão na cordialidade: de todo o coração. E esse modo de ser da decisão vale também para o matrimônio cristão.

Fazer levantamento dos equívocos, preconceitos que povoam a nossa “vocação”.

  1. Reflexão

Votos, o que são?

É Confissão criativa da profissão da Fé, feita publicamente, declarando a ética e a sustentabilidade do sentido do ser que orienta e ordena todos os afazeres do meu existir.

Nos votos, trata-se de instaurar, fundar o central de orientação, coordenação, ordenação e fomento da nossa existência e seu serviço. Um dos componentes fundamentais desse centro é o aperfeiçoamento e agilização do intelecto e vontade, da habilitação e aquisição da competência para poder exercer devidamente a sua tarefa. O que chamamos de vida espiritual ou interior, vida de oração, vida de virtudes etc. se refere de todo à sistemática de revigoramento desse central da vida consagrada. Portanto, todas essas coisas que se chamam espirituais, piedosas, morais etc., não têm muito a ver com a satisfação e perfeição pessoal subjetivas, mas sim, tem tudo a ver com excelência da nossa profissão e tarefa social do nosso status.

Um dos aspectos do todo desse sistema de aperfeiçoamento profissional, referido aos votos, é habilitar-se no uso das três grandes fontes energéticas do ser humano, a saber, a força elementar que se manifesta na cobiça da posse, na cobiça do poder e na cobiça da carne. Os votos de pobreza, obediência e castidade, são engajamento, estudo, portanto, empenho e desempenho do fomento e aperfeiçoamento dessas forças elementares que uma vez amadurecidas e consumadas na sua qualificação se chamam virtude da pobreza, da obediência e da castidade, que por sua vez não são outra coisa do que etapas da realização plena da decisão cristã acima refletida na 4. decisão.

Examinar e discutir que escola de humanidade e que centro de progresso humano poderia ser a vida consagrada.

  1. Reflexão

Enumerar e comentar as dificuldades específicas em manter-se no pique da decisão e dar dicas e sugestões de uma resolução.


[1] Seguinte texto para sua leitura individual é de Simone Weil. Ela é uma escritora e pensadora de força de penetração e profundidade toda própria de densidade incomum, que em tudo que escreve nos expõe em que consiste a mística hoje.
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