LTC 7,21-24 A Kénosis como sensorial para captar a justiça divina
Verão 1206
Ler o texto e tentar surpreender a força motriz que desencadeia os comportamentos e correções de comportamentos de Francisco; ler o texto e tentar surpreender a existência franciscana. O 19 parágrafo é o mais importante. Dá nitidamente o modo franciscano de viver. O resto são ilustrações.
COMEÇOU A VENCER-SE. Sempre de novo se fala em “começou”. Esta expressão está indicando o “primeiro amor”, isto é, um sim no qual não entra a subjetividade, um sim onde todo o trabalho é “manter” a decisão e para manter é necessário repetir sempre e repetir com precisão; no fundo é um método muito simples: nada pode entrar que não seja o primeiro amor; como lavar fralda todo dia; esperou vira cascão! No fundo simplicidade é isso.
Todo instante é o único e primeiro. Toda noite a gente deveria morrer, para experimentar o que significa “primeiro e único”. Aqui é que está o segredo do “ensaio”. Pobre estruturalmente é assim. “O primeiro e único” é a realidade. Isto potencializa pra valer a possibilidade que temos: aí 0 que temos vira preciosidade.
CAMINHANDO DENTRO DA JUSTIÇA DIVINA. É o mesmo que dizer dimensão religiosa ou Vida Religiosa ou projeto originário de Deus. Esta expressão nos dá a chave e nos diz como é o modo (caminho, existência, mundo, busca, serviço divino) franciscano de viver no mundo. Aqui justiça divina é a palavra instituidora (que dá origem) do texto. Tudo se move ao redor dela para fazê-la aparecer. O franciscano quer repetir a justiça divina no viver.
Como é a Justiça Divina? A justiça divina com o cristianismo, se mundaniza numa pessoa: Jesus Cristo. Assim o caminho de Francisco já está orientado, visualizado; o caminho dele não é “um dos” caminhos, mas “o” caminho: Jesus Cristo pobre e humilde. Então a modalidade de Francisco mundanizar a justiça divina é “cristã”: nisso consiste o valor do discurso de Francisco em 22b. Assim 0 Francisco que pede pedras é 0 Francisco pobre e humilde. A obra (S. Damião) não é o movente, mas o lugar onde se manifesta o movente (pobre e humilde). É o contrário do que acontece quando eu peço um cheque para uma obra de promoção humana: o que move é a obra não a imitação de Jesus Cristo pobre e humilde. Para Francisco pedir esmola é encarnar Jesus Cristo humilde e pobre.
Que diferença passa entre o Jesus Cristo humilde e pobre (da kenosis, servo) e Jesus Cristo que liberta (se solidariza) os pobres e humildes? Se diz: todo 0 sentido dele e do Pai está em servir a humanidade; portanto nós para imitar Jesus Cristo devemos servir a “libertação” do homem, solidarizando-nos com os pobres e oprimidos.
Mas Jesus Cristo tem sentido por ser kenosis e atrair os homens para a kenosis ou por ser kenosis para a humanidade sair de sua condição humana? Será que se pode dizer que um frade menor que trabalha na favela onde crianças estão sendo espancadas, está lá para defendê-las, para ficar na frente delas e pegar pancadas, mas nunca para incitar à revolta?
Francisco quer um mundo que seja emanação da justiça divina: o divino perpassando (e não estando a serviço) o mundano. Justiça divina para Francisco não é uma idéia, mas Jesus Cristo. Jesus Cristo é o projeto de Deus a respeito do ser humano. Jesus Cristo realiza em plenitude a justiça divina. Surge, porém, a mesma dificuldade: quem é este Jesus Cristo? Há muitas maneiras de compreender Jesus Cristo! Qual delas é a mais adequada?
Nosso interesse se confunde com o mundo: somos pastores, enfermeiras, professores… Desejamos que esta humanidade toda seja promovida em sua dignidade. Este é o nosso “inter-esse”. Aí usamos a mensagem de Jesus Cristo e o próprio Jesus Cristo para promover a humanidade: Jesus Cristo como meio em função da promoção humana. Jesus Cristo é C) instrumento conscientizador das massas para reivindicar seus direitos. Que Jesus Cristo é este? É c) Jesus Cristo belo, realizado, com poder. Nós nos interessamos por este tipo de Jesus Cristo e de cristianismo, e assim caminhamos para uma nova cristandade. Mas caminha para a formação de uma nova humanidade? Será que São Francisco vê Cristo assim? Qual é o inter-esse dele?
Talvez haja duas compreensões do humano, e dois tipos de cristianismo: o apolínico” (do deus grego Apolo, o mais belo dos deuses, deus do dia e do sol, adivinho, músico e poeta) e o hermético (do deus grego Hermes) ou kenótico (de kénosis, palavra grega que “resume” o mistério da encarnação, paixão e morte de N.S. Jesus Cristo – Fil 2,6-11).
O modo de ser apolínico acentua tudo o que é positivo: tudo deve ser bem aflorado, bem realizado: corpo, amor, saúde, psique, profissão… O princípio que aciona esse modo de ser é o “senhorio”, isto é, querer ser senhor, crescer na competência, instalar-se na doçura do dominar, possuir, desenvolver todas as possibilidades; quem mais desenvolve suas potencialidades é mais “humano”, tem mais humanismo. A expressão típica deste modo de ser é: “Eu tenho direito a…”. Tudo quanto é finito, limitado é considerado incompleto, truncado, imperfeito, é considerado negativo; o negativo é a negação do humano e deve ser eliminado. Desta postura surgem todos os projetos de “libertação” da condição humana de suas fraquezas, de sua finitude. É o mundo moderno. O capitalismo é a concretização na área socioeconômica deste sistema concitador do humano para ir sempre para uma positividade maior.
Nós religiosos também somos tomados por essa “mens” epocal. A pobreza social, a doença, o mal são o “meio” onde exercemos o amor ao próximo, para eliminar esses males ou pelo menos aliviá-los, fazendo assim se passa do estado de negatividade, considerando infra-humano, ao estado positivo.
No “Fioretto” da Perfeita Alegria, tudo quanto é mencionado na primeira parte é o apolínio. Francisco não está condenando o mundo, nem nega que no mundo não deva haver alegria; sarar um cego tem sua alegria! Mas Francisco está apontando para a “perfeita” alegria. Qual é a imagem de humano, em que consiste a felicidade do humano para a qual nós queremos libertar? E qual para Francisco? Se faltar tudo aquilo que São Francisco diz não ser perfeita alegria, a vida ainda teria sentido? Se viesse a faltar tudo aquilo que a colocação apolínica afirma ser o sentido do humano, ainda teria sentido Jesus Cristo, a vida?
Mas a partir de onde esse positivo tem a verdade da sua positividade? O princípio que da positividade ao positivo não é ele que constitui a causa da opressão, injustiça, marginalização, pobreza: o poder? O capitalismo antes de ser um sistema econômico é uma compreensão do homem, profundamente reducionista e alienada em sua experiência sobre aquilo que o homem é em sua essência.
Francisco e, mais tarde, seus companheiros, se encaminham para o modo de ser da kénosis que surge da experiência de Jesus Cristo; este modo de ser não se contrapõe ao modo de ser apolínio, mas simplesmente diferencia-se dele radicalmente. O modo de ser da kénosis “aproveita” do negativo, sem transferência do negativo para o positivo (a grande tentação que sempre de novo aparece em nossas colocações). Vê no negativo a possibilidade de um outro humanismo, o humanismo que brotou da experiência de Jesus Cristo, pobre e humilde, morto na Cruz, jovialidade da Gratuidade na finitude. A própria Ressurreição aconteceu antes na morte de cruz, feita visível na manhã da Páscoa.
Esse cristianismo diante do negativo se pergunta: é possível ter felicidade paradisíaca no negativo? /e responde: sim, contanto que haja amor! É nas situações limite, no sofrimento, na tragédia, na morte que brota o amor como entrega, isto é, o amor sem limite. Não o amor romântico burguês, mas o amor de entrega! No caso de uma doença incurável de uma criança que está se tornando retardada mental, a mãe que cuida dela não encontra nesse cuidado a plenitude da maternidade? Quem se orienta pelo modo de ser apolínio, lutando para parar e reverter o processo, tem certa chance de humanização; mas se a doença continuar, como fica? O modo de ser da kénosis também trabalha para sarar a criança, mas mais se preocupa em amar os retardados mentais. E se entrega ao cuidado dos mesmos!
Enquanto o princípio do positivo é causa da desagregação social, onde até as instituições de “cuidado” como escolas, hospitais, asilos decaem para a exploração econômica, fuga da responsabilidade, o cristianismo da kénosis faz nascer uma nova humanidade que instaura e mantem o princípio do cuidado onde toda a humanidade é sanada: não há mais crianças abandonadas, velhos desamparados, analfabetos, favelados e marginais…
O negativo envia para outra experiência em que se descobre um cuidado que faz abrir o coração para a gratidão. As pessoas que passaram por grandes sofrimentos ficaram cunhadas num tipo humano de grande valor e força, de grande transparência, ficaram mais humanas, profundamente humanas. São estes os tipos humanos dos quais a história guardou a memória; nenhum homem que tenha tido tudo, isto é, sem negatividades, passou para a história. A experiência franciscana explicita a doçura de fundo (na superfície é sofrimento mesmo!) que há nesta experiência: o amargo transforma-se em doçura e o que era doçura se transforma em amargura.
Pelo negativo Deus nos despreguiça e nos convoca a grande humanismo, pois na negatividade há uma transcendência, há uma intensa evocação (recordação) do “divino” que está ali cuidando. É por isso que a Igreja faz a opção preferencial pelos pobres e luta de corpo e alma pelos direitos humanos: porque vê Deus ali cuidando e busca o encontro com ele lá. E é por isso que a Vida Religiosa se engaja na luta de libertação. A Vida Religiosa porém não pode esquecer que “tribulações e morte” fazem parte do itinerário humano, e quando acolhidos no vigor da dimensão religiosa tornam-se chance de um “romance absoluto com Deus”; para tanto a Vida Religiosa precisa “recuperar” Deus e sua dimensão, num pensar com fé absoluta que por trás de tudo há algo maior escondido que é capaz de sentido.
Num mundo desumanizado a Vida Religiosa precisa contribuir para diminuir o deserto que está acontecendo em toda parte. Dor, miséria, violência não são a pior desumanização, pois aqui ainda há consciência do que é humano ou desumano; o ideal do prazer, do sucesso, do “positivo”… são desumanizações muito mais graves do que a tortura! Desumanizante é, por exemplo, a indiferenciação de valores que as sequências televisivas provocam nas crianças (só nas crianças?) a partir das quais tudo vale: violência, papa, nu, corrupção, amor. A lavagem cerebral funciona somente onde não há reflexão.
Este da kenosis é um caminho interessante e bem humano, porque é caminho em que mais se faz uso de si mesmos. Isso é o simples, o “sine glossa”. Simples: limpidamente na fonte, experiência direta do evangelho. Precisamos recuperar com grande exatidão a dimensão da cruz. O jeito de S. Francisco ver Deus está na cruz: é a característica franciscana. Para o séc. XIX cruz significa expiação, dolorismo, vítima, Sagrado Coração; mas a cruz de S.Damião é algo que não dá para ser comparado com a espiritualidade do sofrimento do séc. XIX.
O capítulo anterior (69) mostrou a passagem de Francisco do Cristo apolínio ao Cristo kenótico. O homem apolínio não está em sua identidade. É homem mascarado! Qual é o tipo humano que o homem quer ser? O apolínio. Mas qual o tipo humano ao qual é chamado e no qual encontra sua identidade mais última? O homem kenótico! O que acontece é que nós usamos o cristianismo kenótico a serviço do apolínio; desse jeito o divino estaria presente no mundo a serviço de um projeto que afinal é mundano (que nasce da subjetividade individual ou coletiva) e não divino, isto é, que tem origem em Deus.
POR TODOS OS MODOS POSSÍVEIS. Francisco serve a Deus de todos os modos possíveis, mas estes se definem a partir da Justiça Divina, isto é, a partir da escuta, da afeição, da audição do divino. Francisco está na audição da existência primordial, do divino: esta audição lhe dá o modo seu próprio singular de viver no mundano a partir do divino. O texto em seguida dá alguns exemplos. Não se trata de repeti-los, mas de buscar o próprio caminho como Francisco descobriu o seu; aí se tornará visível a medida de justiça divina que lhe cabe.
A justiça divina aparece pelo despojamento dos projetos do mundo: Francisco deixa a audição dos projetos mundanos e se dedica à audição do projeto-bondade-justiça divina; a justiça divina é “o impossível”, isto é, é anterior a Francisco; ela só pode ser com o dom, como revelação; por isso Francisco é servo da audiência da justiça divina. No ser servo se dá a possibilidade de comunicação. Na medida em que “de todos os modos” o agir de Francisco se conformar com a justiça divina vai nascer o gosto, a alegria da caminhada.
O ponto de referência (=sentido de vida) de Francisco passa a ser a justiça divina. Haveria outros pontos de referência: a beleza, o poder, o sucesso… Cuidar de “ajustar-se” ao divino é importante e mesmo necessário por causa de nossa ambiguidade; posso dizer: “Vou viver a partir da justiça divina” e esta ser um produto de minha subjetividade. Para Francisco justiça divina é mudança radical de mentalidade a partir da qual tudo passa a existir a partir de um Tu: O Crucificado, pobre e humilde.
IDIOTA E SIMPLES. Idiota vem do grego “idion”: os “parias” que não pertenciam à sociedade da cidade, que não tinham status; aqueles que estavam à margem da opinião pública e da publicidade e ao mesmo tempo tinham sua própria caracterização: o trabalho corpo a corpo; como Pascal e companhia que, fora das estruturas oficiais, ensinavam à margem das universidades, sem o status de professores e se definiam “leigos e idiotas”; como aqueles que pouco se importam da moda e usam as roupas que lhes servem: estes são simples e idiotas.
EM TUDO TINHA-SE SIMPLESMENTE. Ter-se na simplicidade significa ser unicamente, limpidamente, imediatamente aquilo que tocou: ser doado a Jesus Cristo. Fora das dobras da opinião pública e do dar testemunho. Simples como pomba e prudente como serpente. Pomba é um bichinho cara de pau: se você espanta, volta no mesmo lugar. A nossa maneira de ver o simples é muito estética: simples é beleza encantadora. Mas aqui é luta direta, de quem está coagido pela necessidade. Uma das características da simplicidade é o “nu”.
COAGIDO PELA NECESSIDADE. A necessidade tem um papel importante no itinerário religioso. Quem não conhece a “coação da necessidade não para na vida, vai sempre de galho em galho e acaba tendo estilo de borboleta.
Necessidade é situação que está fora de minha competência, do meu domínio (o impossível), a que se está expostos, com urgência de atuação com todas as forças; como aquela mãe franzina que veio a saber da condenação à morte do filho marginal: nada podia para salvá-lo, mas sob a regência da maternidade, com todas as forças enfrentou o tumulto e as autoridades para pedir a graça para o filho. Quem ensinou esta atuação a esta mulher? Amor e necessidade, diz frei Egídio.
Quando se está na necessidade se usa muito mais a si do que o usual; começa-se a fazer uso e valorizar o que antes não se usava e valorizava. É como ser perseguido por um cachorro louco: se esquece da velhice, da dor de cabeça, se deixa de buscar recursos e se usa a si mesmo no que se tem e em tudo que se tem! A necessidade obriga a sair de si e revela aquilo que somos originalmente. O uso de si é uma das grandes urgências do viver.
A necessidade de coação elimina todo tipo de necessidade criada pela sofisticação; com ela tudo fica mais simples e a pessoa é colocada na urgência de sentir o real, ele mesmo. E como quando se está com 0 dinheiro contado: o viver fica mais acordado, explora-se o pouco; fora da necessidade não se consegue tirar muito do pouco, mal e mal pouco do muito! A necessidade deixa a existência mais nítida, longe do lusco-fusco da indiferença. É por isso que se diz que o melhor tempero é a fome! “Tenho saudade dos bombardeios”, dizia uma pessoa viver a segunda guerra mundial, pois no momento da dureza surgia a solidariedade, a ajuda mútua, a alegria do fim da provação (mas também nestes momentos aparecem as maiores traições!). E quando na necessidade aparece algo que “atende” à necessidade, você fica contente e grato; isso não se sente fora da necessidade. Enfim dá um estilo muito gostoso e funcional de viver.
VAI DE PORTA EM PORTA, COM UM PRATO NA MÃO. Por que Francisco voluntariamente e de todo o coração escolhe e busca esta vida de privação dura, e quase selvagem, caracterizada como “coagida pela necessidade”, isto é, sobreviver pedindo esmolas?
Vida que depende de esmolas para sobreviver significa, vida de exposição à realidade chamada condição humana, terrena, com tudo o que ela tem de perigo e ameaça à sobrevivência física, moral e espiritual, confiando apenas na força do Deus de Jesus Cristo. Isto significa nada possuir, nada ser, nada poder, nada saber, nada fazer, a não ser apenas estar à mercê da sabedoria, poder, força, dinâmica e ação do Deus de Jesus Cristo, o crucificado, isto é, aos cuidados desse Deus cuja sabedoria é loucura da cruz, cuja força é a fraqueza da cruz (mas que sabedoria e força é essa?).
Esta radical e total dependência de Deus, no entanto, não deve ser confundida com 0 que usualmente chamamos de abandonar-se nas mãos de Deus. É que usualmente por isso entendemos um largar-se, um entregar-se, no qual comodamente deixamos de fazer e nos deixamos fazer sem nenhum compromisso por iniciativa ou afeição da nossa parte. Nesse sentido imaginamos 0 abandonar-se como a atitude de uma criança nos braços da mãe. Uma tal espiritualidade de abandono (Santa Terezinha?) pode ser muito boa e cristã. Mas também na sua decadência pode significar temeridade, um tentar a Deus, uma alienação da responsabilidade humana adulta de ter que cuidar de si mesmo.
A dependência de Deus em São Francisco não tem as características desse tipo de abandono da linha de espiritualidade chamada “Infância Espiritual”. Abandono em São Francisco não é o abandono da criança indefesa nos braços da mãe. Aliás, não é um abandono. É antes um modo todo próprio de engajamento. É uma exposição à luta e à realidade nua e crua, munido apenas, isto é, simplesmente, unicamente, toda e inteiramente sem mistura, da força de Deus de Jesus Cristo crucificado.
Portanto, aqui há o esforço, a luta, os cuidados, a iniciativa, a responsabilidade, há a defesa e o ataque, enfim o uso total de si próprio no engajamento de uma tarefa, de uma missão, de um trabalho, de uma obra. Só que, em todo esse empenho e nessa labuta, toda atenção, toda cuidado de ausculta, toda habilidade, se concentram em captar, receber o toque da força de Deus, para que não eu, não a minha força, não a minha competência atue e haja, mas sim a própria forca de Deus na sua total pujança e limpidez através de mim.
Para isso, para que a força de Deus e só ela atue através de mim, é necessário que eu me livre de mim mesmo com minhas interferências, apegos inclinações, para me dispor inteiramente ao toque da sua força. Dai o despojamento total de Francisco.
CONVÉM VIVER VOLUNTARIAMENTE. Francisco escolhe a necessidade como estilo de vida (convém: é próprio a, pertence ao estilo…). Isso é o que ele se propõe para a sua vida. O uso de si é uma das grandes urgências da vida; não dá para ser como quem chega de carro para fazer “cooper” ou para frequentar uma academia de ginástica; quem assim faz não está usando a si mesmo na finitude da necessidade. Parece ser característica de Francisco querer ser pobre físico-materialmente a ponto de sofrer a necessidade num grau extremo. Qual a razão de uma tal determinação?
Vida coagida pela necessidade no sentido usual é uma vida que jamais consideramos como positiva e desejável. Trata-se, pois, de uma vida em que não se tem o necessário para viver a tal ponto de depender de esmola, isto é, da boa vontade dos outros. O que significa, por que Francisco quer voluntariamente uma tal vida? O que há de altamente positivo na coação da necessidade? Em primeiro lugar uma coação da necessidade voluntariamente escolhida e querida parece não mais ser uma coação da necessidade. Pois, coação é uma imposição contra a minha vontade.
O que significa, então, voluntariamente?
Vida de coação da necessidade é uma vida onde eu vivo corpo a corpo em contato com os limites da minha possibilidade, onde tudo converge para colocar em risco a minha existência. Assim essa coação é a experiência nua e crua do nada que de todos os lados cerca a minha existência e no qual como que suspenso, pairando, seguro por um fio tênue. É pois uma existência despojada, sem nada de próprio. Paradoxalmente a existência humana, quando é colocada nesse último limite de sua própria existência, vem a si uma maneira radical e essencial, e percebe onde está o núcleo da sua identidade.
Mas em que consiste esta identidade? Em poder e dever pôr em ação e disposição, a pura disposição da liberdade. Lá onde não há mais nenhuma coisa de próprio, lá onde nada resta em que eu possa me apoiar e me motivar, descubro ou melhor surge na sua nitidez e pureza absoluta a única coisa que me foi dado de essencial: a possibilidade livre de dizer cordialmente sim ou não a toda e qualquer situação da nossa existência. Em outras palavras, sob a coação da necessidade, somos sempre de novo convidados a nos colocarmos diante de Deus face a face, sem nenhuma coisa além da nossa boa vontade livre de se doar cordialmente, de pura positividade à vontade de Deus.
Voluntariamente viver uma vida coagida não significa portanto eu, a partir de meu interesse escolher esta ou aquela vida, mas colocar como o supremo ideal e sentido do viver, engajar-se de corpo e alma a dizer sempre de novo um sim total, cordial a Deus, acionado sempre de novo à pura disposição da nossa liberdade. Dentro dessa perspectiva o empenho de Francisco de ir esmolar, ir viver coagido pela necessidade, não é outra coisa do que uma concreta expressão desse ideal.
-Nossas necessidades são sempre “livres escolhas” que não dando certo pode-se voltar atrás; dizemos: “Só trabalho se for este trabalho”: esta atitude aos poucos corrompe as pessoas, as enfraquece e as tira da disposição, por não ser verdadeira necessidade; os pobres não fazem assim. Há situações que parecem ser de muita necessidade externa, mas não são de muita necessidade interna, como por exemplo a opção de viver na favela: esta não é verdadeira necessidade. E há situações de pouca necessidade externa e de muita coação-necessidade interna, como por exemplo, irmã que trabalha no colégio e só pode trabalhar lá por ordem da superiora.
O PAI… AMALDIÇOAVA-O. Como é ser “simples e idiota” nesta situação? Como agir com ânimo salutar diante desta maldição? No jogo do vôlei, por exemplo, como atuar com ânimo salutar num saque “jornada nas estrelas”? Não me preocupando, mas atendendo ao saque com ânimo salutar, isto é, atuando “deste” ou “daquele” jeito. Francisco tem verdadeira saúde humana e esta tem sua maneira própria de agir. Ter esta mente salutar é característica fundamental do itinerário espiritual.
TOMOU A SI COMO PAI CERTO HOMEM POBREZINHO E DESPREZÍVEL. Este recorrer de Francisco ao mendigo não será por acaso uma manifestação da pura positividade, a imagem e semelhança do modo de ser do Deus de Jesus Cristo que responde ao mal com o bem, e sempre faz o bem: bondade difusiva de si? Com isso a maldição do pai fica sem efeito, e Francisco repara, corrige a maldição do pai com a bênção de Deus, pronunciada pelo mendigo.
Esse trabalho de transformar o mal em bem, esse trabalho de bem fazer, isto é, fazer boas obras é o serviço divino, o ofício divino, o obséquio divino. Enquanto o pai o amaldiçoa, Francisco levanta o nível. Nós a uma maldição responderíamos atacando a maldição. Mas o Senhor diz: “A quem amaldiçoa, abençoe”. É combater o mal pelo bem. Se por exemplo, dá uma micose no pé, se tomar remédio, provavelmente vai sarar, mas logo logo vai aparecer outra. Se, porém, fortalecer a circulação no pé, vai vencer a micose e outros males também; isto é combater o mal pelo bem. Combater o mal pelo mal leva o ânimo a ficar animoso; é como jogar gasolina no fogo; abaixa o nível. O modo de Francisco responder à maldição do pai brotou da coação da necessidade: é preciso viver do que se tem, e não do que não se tem; é a coação do finito.
Por que se preocupar com a maldição do pai se ele quebrou com o pai? Porque tudo 0 que é bom, é participação de Deus, então se o pai falha na bênção, se o pai tirou o que é de Deus, Francisco o repõe. Ele acredita tanto no bem que falando do bem, o mal desaparece. Pagar o mal com o bem indica uma positividade incondicional: é sempre um sim cordial.
Acharmos que isso é difícil depende do fato que a nossa experiência usual é a dificuldade do bem. Somos hipocondríacos no espírito e por isso achamos que o difícil é o normal e que achar difícil é saúde espiritual. Francisco não nega as dificuldades, mas nelas coloca dinâmica verdadeira de saúde. O contacto com o Deus de Jesus Cristo é para injetar saúde. Aí autocrítica, terapia, analise… no fundo tudo isso está cultivando a hipocondria do espírito, isto é, está cultivando o subjetivismo: tomamos a Vereda do mais fácil, afundando nos cada vez mais. Para pular fora deste círculo vicioso é necessária a “coação da necessidade”.
O desprezo de si não é bem assim: “Não dê bola à subjetividade”, e querer eliminá-la na hora, porque ao querer eliminá-la você lhe dá bola! A espiritualidade diz: Não combata a subjetividade, não a analise; cultive e espere que cresça o positivo. Mas há quem não consegue fazer este caminho positivo e fica cozinhando sua subjetividade; pensamos que está com “problemas”. Mas não é: é a técnica usada que não é adequada: por não estar coagido pela necessidade, não está usando a si mesmo e a força que está dentro de si.
GOTA DE SUOR. O irmão Ângelo insinua que aquilo está ficando um negócio: é ironia felina. Francisco com sanidade, sem ressentimento responde, dizendo: é negócio mesmo, tendo um Senhor que compra este suor.
LAMPARINAS. Que pedreiro é este que se preocupa com isso?
ENVERGONHADO DE PEDIR ESMOLA. Lembra o cavaleiro medieval: “Que cavaleiro sou eu que nem sei segurar uma espada? Venham em cima de mim e vou vender cara a pele para o meu Senhor!”. E vai e pede esmola. Coragem não é não ter medo, mas sentindo medo, dar-se um pontapé e ir… Francisco sabe se corrigir; ele não fica se perguntando ensimesmado se fez certo ou errado, mas diz: “Por Deus, errei!”; corrige-se e vai. Com esta atitude ele não é moralizante, isto é, não busca a si próprio. Francisco é muito direto e duro consigo: declarando diante de todos a sua culpa, tira de si mesmo toda possibilidade de desculpa.
É o realismo da espiritualidade!