Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia da Religião – VII

20/04/2021

 

1. A propriedade dos conceitos filosóficos

É necessário determinar provisoriamente a significação das palavras que anunciam a preleção. Isto está fundamentado na propriedade dos conceitos filosóficos. Nas ciências positivas particulares os conceitos são determinados pela ordenação a um conjunto de concatenação de coisas e, assim, eles são tanto mais exatamente fixados quanto mais é conhecido aquele conjunto de concatenação. Os conceitos filosóficos, no entanto, são oscilantes, vagos, variados, fluentes, como isto também se mostra na troca dos pontos de vista; antes, pertence ao sentido dos conceitos filosóficos eles mesmos, que eles permanecem sempre inseguros. A possibilidade de acesso aos conceitos filosóficos é totalmente diversa daquela que acede aos conceitos científicos. A filosofia não tem à disposição nenhum conjunto de concatenação de coisas objetivamente formado, ao qual os conceitos pudessem ser ordenados, para assim conservar a sua determinação. Há uma diferença principial entre ciência e filosofia. Isto é, provisoriamente uma tese, que se há de mostrar no correr da reflexão. (Está apenas na necessidade da formulação da fala, que seja uma tese, uma sentença).

Nós, porém, podemos encetar um caminho cômodo para ver a necessidade de um acordo prévio sobre os conceitos do título. Nós falamos de “conceitos” filosóficos e científicos, de “introduções” às ciências e à fenomenologia. Mostra-se assim, apesar da diferença principial entre ciência e filosofia, certo caráter comum. Donde vem isto? Filosofia, assim se poderia pensar, é também um comportamento tão racional e ciente como o comportamento científico. Dali é que se dá a idéia da “sentença como tal”, do “conceito como tal” etc. No entanto, esta concepção não está livre do preconceito de uma filosofia como ciência. A idéia dos conhecimentos e conceitos científicos não pode ser introduzida para dentro da filosofia por extensão do conceito da sentença científica para o da sentença como tal, como se as concatenações racionais em ciência e na filosofia fossem as mesmas. Seja como for, há uma concepção “nivelada” dos “conceitos” e “sentenças” filosóficos e científicos. Eles se encontram na vida fáctica na esfera da exposição da linguagem e comunicação como “significados”, que são “compreendidos”. Eles de modo algum, de imediato, são sinalizados um contra o outro, mutuamente. Nós devemos ir atrás dessa concepção “nivelada”. Pois devemos intuir que o compreender de conceitos filosóficos é um outro do que o compreender dos conceitos científicos.

Toda essa reflexão, não é ela um “não mais acabar” de tratamento de perguntas prévias? A gente aparentemente se acocora na espera introdutória; da indigência da incapacidade para criações positivas se faz uma virtude. A acusação de girar continuamente em perguntas preliminares deve ser feita à filosofia, somente então, se a gente tira a medida para o seu julgamento da idéia das ciências e exige dela a solução de problemas concretos e a construção de uma mundividência. A esta necessidade da filosofia eu a quero exacerbar e mantê-la tão acordada que ela de fato se torne uma virtude. Sobre o próprio na filosofia ela mesma, não tenho nada a lhes dizer. Não vou trazer nada que como material fosse interessante ou que tocasse o coração. Nossa tarefa é muito mais limitada.

Seminário I S. 1997

Leitura da Introdução à Fenomenologia da religião de Martin Heidegger

Martin Heidegger (1889-1976), o conhecido autor do Ser e Tempo (1927) pronunciou a preleção “Introdução à Fenomenologia da religião” como docente privado no semestre de inverno de 1920/21, na universidade de Freiburg, i. Br., às terças-feiras, de 12 a 13 hrs. O começo da preleção data de 29. 10. 1920 e o término, 25. 02. 1921. O manuscrito original se perdeu. Apesar de todos os esforços, não foi possível encontrar o manuscrito. O texto atual foi reconstruído através de 5 reportatas existentes.

A seguir, observações de editores Matthias Jung e Thomas Regehly sobre o conteúdo da preleção:

A preleção “Introdução à fenomenologia da religião”, pronunciada no Semestre de inverno 1920/21, é de uma importância especial para a compreensão dos primeiros pensamentos de Heidegger. Embora já há dezenas de anos, na literatura da pesquisa se referisse sempre de novo a essa preleção, pairava uma obscuridade geral sobre a estrutura básica do texto disponível e sobre o curso do seu pensamento. Através dessa presente edição essa falta deve ser, na medida do possível, sanada. A posição como o “ranking” real da preleção dentro das obras completas de Heidegger e determinada por seu objeto: em nenhum outro lugar é destacado de modo tão decisivo o próprio do ser do conceito prévio filosófico em contraste com a metódica científica, em nenhum outro lugar as questões religiosas são tratadas com tamanho detalhe e precisão exegética. Heidegger associa uma crítica da filosofia da religião contemporânea (Trooeltsch) com considerações fundamentais sobre como se deixa abrir a experiência fáctica da vida na sua historicidade. A consideração extensa do conceito fundamental metódico da “mostração formal” forma o pano de fundo, diante do qual as testemunhas iniciais do cristianismo originário são submetidas a uma análise fenomenológica penetrante. Dentro da moldura da interpretação “histórico-consumativa”, Heidegger interpreta passagens escolhidas da epístola aos gálatas como também das duas epístolas aos tessalonisenses. À mão do fenômeno do anúncio paulino, ele elabora dessa maneira as determinações fundamentais da religiosidade originário-cristã, nas quais se torna reconhecível o caráter de consumação da vida fáctica.

A aproximação real e pessoal de Heidegger a Edmund Husserl, desde 1918, condicionou que essas análises estivessem sob o signo de uma “Fenomenologia da religião”. Cuja elaboração mais próxima, Husserl tinha confiado ao seu discípulo, que aliás já trabalhava numa concepção própria da fenomenologia – partindo do conceito da experiência fáctica da vida. O contínuo confronto com a tradição cristã fornece o plano de fundo sobre o qual Heidegger desenvolveria a sua “hermenêutica da facticidade”. Para o semestre de inverno de 1919/20, ele tinha anunciado uma então não pronunciada preleção sobre a mística da Idade Média (cf. III parte desse volume). As preleções do semestre de inverno 1920/21 e do semestre de verão 1921 marcam o ponto alto e ao mesmo tempo o fim dos seus estudos fenomenológicos religiosos”.

  • 2. Acerca do título da preleção

O título dessa preleção soa: “Introdução à fenomenologia da religião”. A ele pode-se dar um sentido com tríplice nuança, cada vez conforme se lhe acentue uma palavra como a principal. Nós devemos concordar provisoriamente sobre três conceitos: “introdução”, “fenomenologia” – este nos devem significar o mesmo que “filosofia” – e “Religião”. Nessa tarefa, logo deparamos com um fenômeno-núcleo todo próprio, o problema do histórico. Disso tudo resulta então a delimitação das nossas aspirações.

Nós começamos com o esclarecimento das significações da palavra; mas imediatamente mostramos as conjunturas do objeto e quiçá assim que essas conjunturas se tornem questionáveis.

  1. O que significa “introdução”?

Uma “introdução” à ciência usualmente implica um tríplice aspecto:

  1. a) A delimitação da região de coisa;
  2. b) A doutrina acerca da elaboração metódica da região de coisa (a e b podem ser sintetizados como: fixação do conceito, da meta e da tarefa da ciência).
  3. c) A consideração histórica das tentativas já feitas até então de colocar e resolver as tarefas científicas.

É possível introduzir-se desse modo também à filosofia?

Uma introdução às ciências dá a região de coisa e a elaboração metódica da região de coisa (meta e tarefa) e uma supervisão histórica sobre diferentes tentativas de solução. Se ciências e filosofia são diferentes, é questionável se ao filósofo lhe é permitido adotar simplesmente este esquema da introdução, se ele quer que o propriamente filosófico venha ao seu direito. Reconhece-se o filósofo na sua introdução à filosofia. A introdução, segundo o esquema usual, encobre a conjuntura filosófica. Uma introdução à biologia, à química, à história da literatura são bem diferentes, segundo o conteúdo real, mas elas possuem uma grande semelhança formal; todas elas seguem o mesmo esquema. É na idéia da ciência – tomada não lógico-abstrata mas sim concretamente como ciência-execusão (Vollzug), como pesquisa real, comunicação, compreendida não como a de um puro sistema racional – que está motivada compreensivelmente o sentido do esquema de introdução. As ciências certamente “saltam” historicamente da filosofia – e também segundo o seu sentido  “saltar” aqui tem um sentido bem determinado. Quase sempre se entende tudo isso como se de uma ciência geral se desprendessem como lascas, i. é, se tornassem independentes, determinadas disciplinas especializadas. Aqui se pensa: saltar como determinar em método independente certa região de coisa, antes elaborada pela filosofia. Nisso se pressupõe que a filosofia ela mesma é também uma ciência. Esta concepção de as ciências saltarem da filosofia como da “ocupação (Befassung) de conhecimento (erkenntnismässigen) com o mundo”, na qual as ciências já estariam jacentes embrionalmente, é um pre-conceito, que a concepção hodierna da filosofia reprojetou para dentro da história. Somente uma determinada modificação transformadora do momento, presente na filosofia, que porém, jaz ainda não modificado na filosofia, na sua configuração ainda originária, faz com que as ciências sejam ciências, ao saltar da filosofia, e isto através de um determinado modo próprio do saltar. Na filosofia, as ciências não jazem, portanto. Isto nos conduz à pergunta 2: O que significa filosofia?

Aos cientistas, as questões introdutórias jamais interessam tanto como os próprios problemas, concretos científicos. E se mostra na introdução, principalmente onde ela versa sobre o filosófico, certa insegurança fundamentada. Por tais juízos não nos deixamos enganar. Talvez a “introdução” à filosofia possua um sentido tão importante que a introdução deve ser considerada em cada passo, a caminho para dentro da filosofia. Ela não é só técnica. A questão  pela essência da filosofia parece infrutífera e “acadêmica”. Mas também isto é apenas a conseqüência da concepção usual da filosofia como de uma ciência. A um filólogo p. ex. não interessa a “essência” da filologia. Mas ao filósofo preocupa seriamente a essência da filosofia, antes que ele se lance ao trabalho positivo. Para a filosofia é somente então uma falha, isto que ela sempre de novo deve se tornar clara sobre a sua essência, se a idéia da ciência lhe é apresentada como norma. Somente então, quando se estabelecer uma diferença principial entre filosofia e ciência, sim somente então se pode compreender realmente a história da filosofia filosoficamente. Então a gente pode, a saber, considerar os grandes sistemas filosóficos sob a condução desse problema, conforme os seguintes pontos de vista:

  1. Onde jaz o motivo originário da respectiva filosofia?
  2. Quais são os meios conceptuais, segundo o conhecimento da realização desse motivo?
  3. Estes meios saltaram do motivo da respectiva filosofia originariamente, portanto não adotados de outros ideais e justamente de ideais científicos?
  4. Não se mostram – como em todas as filosofias até hoje – determinadas localidades de quebra, onde a filosofia desemboca nas águas das ciências?
  5. O motivo da respectiva filosofia, ele mesmo, é originário ou é um motivo, tirado de outros motivos da vida e de ideais?

Nós vamos fazer considerações filosófico-históricas dentro dessa tendência. Se a gente considera a história da filosofia de outro modo, ela apenas se torna uma fala bonita ou uma ocupação registradora.

Como chegamos à autocompreensão da filosofia? Somente através do próprio filosofar; isto não se deixa alcançar pelas demonstrações e definições científicas, i. é, pela ordenação para dentro de uma conjuntura de coisa,  geral, formada objetivamente. Isto jaz no conceito da “autocompreensão”. O que filosofia ela mesma é, jamais se deixa levar à evidência cientificamente, mas somente se deixa fazer claro no próprio filosofar, ele mesmo. Não se pode definir a filosofia no modo usual, não se pode caracterizá-lo através de ordenação para dentro de uma conjuntura de coisa, como a gente diz: química é uma ciência; e pintura é uma arte. Tentou-se também ordenar a filosofia dentro de um sistema de conceito, em dizendo que filosofia se ocupa com um determinado objeto, numa determinada maneira. Mas também aqui já está em jogo uma concepção científica da filosofia. Os princípios de pensar e de conhecer permanecem nelas continuamente não clarificados. Mas a gente pode dizer, pois, também da pintura, embora ela não seja ciência, nesse modo, p. ex. dizer que ela seja uma  arte! Isto de fato é justificado também com a filosofia, num sentido todo formal, no qual se deve ainda esclarecer em que modo do “formal”.

O problema da autocompreensão da filosofia foi tomado sempre com demasiada facilidade. Se se tomar este problema radicalmente, então descobriremos que a filosofia salta da experiência fáctica da vida. E então ela salta dentro da experiência fáctica da vida para dentro desta, ela mesma de volta. O conceito da experiência fáctica da vida é fundamental. Com a caracterização da filosofia como comportamento ciente (erkennendes), racional, absolutamente nada se disse; a gente decai assim no ideal da ciência. Com isso, exatamente, é encoberta a dificuldade principal.

  • 3. Experiência fáctica da vida como ponto de partida

O que significa “experiência fáctica da vida”? “Experiência” assinala: 1. atividade experiencial, 2. o que é experienciado por ela. Nós usamos, porém, de propósito a palavra experiência (Erfahrung) na sua significação dupla, porque isto expressa o essencial da experiência fáctica da vida, que diz: o próprio quem experiência e o experienciado não são separados como coisas. “Experiência” não significa “tomar conhecimento”, mas sim o confrontar-se com (das Sich-Auseinander-Setzen mit), o afirmar-se das configurações do experienciado. Possui tanto um sentido passivo como ativo. “Fáctico” não significa real-natural, determinado causalmente, real-coisa. O conceito “fáctico” não deve ser interpretado a partir de determinadas pressuposições da teoria de conhecimento; ele é somente compreensível a partir do conceito do “histórico”. Ao mesmo tempo, porém, a “experiência fáctica da vida” é zona de perigo da filosofia autônoma, porque já se fazem valer nesta zona  as ambições das ciências.

Deve-se deixar de lado a concepção de que filosofia e ciência sejam figurações de sentido (Sinngebilde), sentenças soltas e conjunto de sentenças concatenadas. Quando as ciências são tomadas em geral filosoficamente como problema, são então investigadas cientifífico-teoreticamente mirando o isolado conjunto de verdade e sentença. A gente deve captar as ciências concretas propriamente no seu processo de realização; deve-se-lhes colocar propriamente como fundo o processo da ciência como processo histórico. Isto na filosofia  atual não somente não é visto, mas rejeitado de propósito; nela, isto não pode exercer nenhum papel. Nós defendemos a tese: ciência é principialmente diferente de filosofia. Isto deve ser refletido.

Todos os grandes filósofos quiseram elevar a filosofia ao nível de uma ciência, com o que se admitia uma falha de cada filosofia (de ela exatamente não ser ainda ciência). Assim, se está orientado para uma filosofia rigorosa científica. É rigor um conceito supracientífico?  O conceito e o sentido de rigor é originariamente um conceito e um sentido filosófico, não um científico; somente a filosofia é originariamente rigorosa; ela possui um rigor, em comparação com o qual todos os rigores da ciência são um rigor apenas derivado.

O constante empenho da filosofia, em determinar o seu próprio conceito, pertence ao seu próprio motivo. Contra isso, a uma filosofia científica jamais é possível rechaçar a censura de que ela permanece eternamente em considerações preliminares “epistemológicas”. A filosofia deve ser libertada da “secularização” à ciência, e também à doutrina científica da mundividência. É de se determinar positivamente o relacionamento de derivação da ciência da filosofia. Hoje, a gente adota um ponto de vista de compromisso, que filosofia é em particular ciência, sua tendência de conjunto, porém, é de oferecer mundividência. Mas, em tudo isso, os conceitos “ciência” e “mundividência” permanecem vagos e não aclarados. Como se pode chegar à autocompreensão da filosofia? Evidentemente, pela tese, é cortado de antemão o caminho da dedução científica. Também não se chega à autocompreensão da filosofia por indicação do “objeto” da filosofia; talvez a filosofia absolutamente não se ocupe com um objeto. Por intuições místicas de antemão haveríamos de decepar o problema.

O ponto de partida do caminho à filosofia é a experiência fáctica da vida. Mas parece que a filosofia conduz de novo para fora da experiência fáctica da vida. De fato, aquele caminho conduz de certo modo apenas até diante da filosofia, não até ela. A filosofia, ela mesma, é alcançável somente através de uma virada daquele caminho; mas não através de uma simples virada, de tal sorte que com isso, o conhecer apenas fosse orientado sobre outros objetos; mas sim de modo mais radical, através de uma própria transformação. O neo-kantianismo (Natorp) vira simplesmente o processo da “objetivação” (do conhecimento do objeto), e assim chega à “subjetivação” (que deveria descrever o processo filosófico-psicológico). Com isso, o objeto é puxado do objeto para dentro do sujeito, o conhecer qua conhecer permanece, porém, o mesmo fenômeno não esclarecido.

A experiência fáctica da vida é algo totalmente próprio; nela é possibilitado o caminho à filosofia, nela se consuma também a virada que conduz à filosofia. Esta dificuldade deve ser compreendida através da característica prévia do fenômeno da experiência fáctica da vida. A experiência da vida é mais do que apenas experiência que toma conhecimento; ela significa todo o posicionamento ativo e passivo do homem para o mundo: se vemos a experiência fáctica da vida somente seguindo a direção do conteúdo experienciado, então nós assinalamos isto que é experienciado – o vivenciado –, como “mundo”, não como “objeto”. “Mundo” é algo, onde a gente pode viver (num objeto a gente não pode viver). O mundo se pode articular formalmente como mundo circundante (Umwelt), como isso que nos vem ao encontro, ao qual pertencem não somente coisas materiais, mas também objetividades ideais, ciências, arte etc. Neste mundo circundante está também o mundo-ser-com (Mitwelt), i. é, outros homens numa caracterização fáctica bem determinada: como estudante, docente, como parentes, superiores etc. – não como exemplares do gênero científico das ciências naturais homo sapiens e outros. Finalmente está também o eu-mesmo, o mundo-mesmidade (Selbstwelt) na experiência fáctica da vida. Na medida em que é possível que eu possa abrir-me e consumar-me (Aufgehen) em arte e ciência, de tal sorte que eu viva totalmente nelas, arte e ciência devem ser assinaladas como mundos genuínos da vida (genuine Lebenswelten). Mas estes são experienciados no modo do mundo circundante. A gente, porém, não pode delimitar bruscamente um do outro os fenômenos, considerá-los como configurações separadas, perguntar pelo seu relacionamento mútuo, dividi-los em gêneros e espécies etc. Isto já seria uma desfiguração, um resvalar-se em teoria de conhecimento. Uma respectiva estratificação epistemológica e ordenação em ranking desses três mundos já seria violência. Aqui nada se diz sobre o relacionamento dos mundos da vida. O principal é que eles se tornam acessíveis à experiência fáctica da vida. A gente só pode caracterizar a maneira, o modo, o como do experienciar daqueles mundos, i. é, a gente pode perguntar pelo sentido referencial (Bezugsinn) da experiência fáctica da vida. É questionável se o como, a referência (Bezug), determina aquilo que é experienciado, o conteúdo (Gehalt) e como este se caracteriza. Além disso, teremos de realçar a tomada de conhecimento ou o experienciar “conhecente”, já que pois a filosofia deve ser comportamento do conhecimento.

O próprio da experiência fáctica da vida é que o “como eu me coloco às coisas”, a maneira e o modo do experienciar, não é coexperienciado. Antes de toda a decretação, de que a filosofia é conhecimento, deve ser realçado fenomenologicamente junto da experiência fáctica da vida o que, segundo o sentido do conhecer, pertence a este. A experiência fáctica da vida se assenta totalmente no conteúdo (Gehalt), o como se insere concomitante (geht in diesem mit ein) inteiramente nesse conteúdo. Nesse conteúdo se sucede toda a permuta (Wechsel)  da vida. No correr de um dia vivenciado facticamente me ocupo  com coisas bem diferentes, mas no arrasto (Zug) fáctico da vida não me vem de modo algum à consciência o diferente como do meu reagir a aquele diferente, mas ele me vem ao encontro plenamente no próprio conteúdo, ele mesmo, que eu experiencio: a experiência fáctica da vida mostra uma indiferença em referência ao modo do experienciar. A ela de modo algum vem o pensamento de que a ela algo não possa se tornar acessível. Esse experienciar fáctico contesta ao mesmo tempo todos os posicionamentos da vida. As diferenças e a mudança de acento jazem totalmente no próprio conteúdo. Esta indiferença fundamenta assim a autosuficiência da experiência fáctica da vida. Esta autosuficiência se espraia por cima de tudo, ela decide também as coisas as mais altas, nessa autosuficiência. Se portanto observamos esta indiferença toda própria do experienciar fáctico para com toda a vida fáctica, então torna-nos claro um certo sentido que tudo perpassa, a saber, sentido do mundo circundante, do mundo-ser-com e do mundo-mesmidade: Tudo que na experiência fáctica da vida é experienciado, carrega o caráter da importância (Bedeutsamkeit); todo o conteúdo carrega nela este caráter. Com isso, porém, ainda não está absolutamente decidido nada de epistemológico, nem no sentido de um realismo nem no sentido de um idealismo. Nesse modo da importância, experiencio todas as minhas situações fácticas da vida. Isto se torna claro quando eu pergunto como eu experiencio a mim mesmo na experiência fáctica da vida: – nada de teorias!

Quase sempre é praxe analisar-se somente conceitos teoreticamente performados do anímico, mas a coisa ela mesma (= Selbst) não se torna problema. Conceitos como “alma”, “conjunção de atos”, “consciência transcendental”; problemas como o da “união de corpo e alma” – tudo isso para nós não representa nenhuma função (spielt keine Rolle = não tem nenhuma importância). Eu, a mim mesmo na vida fáctica não me experiencio como conjunção de vivências, nem como conglomerado de atos e processos, nem sequer como certo objeto-eu qualquer num sentido delimitado, mas sim nisso, que eu desempenho, sofro, que me vem ao encontro, nos meus estados de depressão e euforia etc. Eu mesmo nem sequer experiencio o meu eu em destaque, mas sim estou em tudo isso sempre preso ao mundo circundante. Esse se experienciar a si mesmo não é “reflexão” teorética, não é “percepção interior” etc., mas sim experiência do mundo ele mesmo, porque o experienciar ele mesmo tem um caráter mundanal, é tonificado como importância , de tal modo que o mundo da coisa ela mesma (Selbstwelt) experienciado facticamente como meu próprio (die eigene erfahrene Selbstwelt) não é mais de modo algum realçado do mundo circundante. Essa experiência da coisa ela mesma (Selbstwelt) é o ponto de partida unicamente possível para uma psicologia filosófica, enquanto se puder iniciar  propriamente tal psicologia. Querer ir de volta ao fáctico, partindo das teorias psicológicas preformadas é um empreendimento falho, porque todas essas teorias não são de modo algum motivadas filosoficamente. A gente poderia objetar: mas eu me experiencio a mim mesmo também facticamente, sem reflexão especial como me sinto; eu sei que agora eu me tenho comportado inabilmente etc. Mas também esse como não é nenhum modo performado do comportar-se para algo, mas sim uma importância (Bedeutsamkeit) circum-mundanal (umweltliche), facticamente aderente ao mundo circundante. O fáctico, do qual se toma conhecimento, não tem o caráter de objeto, mas apenas o caráter de importância, o qual certamente pode excrescer para uma conjunção performada de objetos.

De modo algum se deve esperar que tudo isso seja compreendido imediatamente, mas todas essas coisas se tornam acessíveis somente num processo constante do filosofar, crescendo constantemente novo. Aqui, trata-se apenas de ganhar o toque inicial para a compreensão da filosofia ela mesma.

  • 4 A tomada de conhecimento

Consideremos agora o conhecer fáctico, a tomada de conhecimento! O conhecido nela não tem nenhum caráter de objeto, mas é experienciado como significância (Bedeutsamkeit). Aqui se mostra um referir-se (Beziehen), um ordenar-se em conjunto, onde se configura uma objeto-conjunção, que contém uma determinada lógica, uma lógica da coisa, uma estrutura toda própria aos determinados estados-de-coisa. Facticamente eu ouço numa determinada situação conferências científicas, falo então sobre coisas quotidianas, num mesmo fôlego. A situação é essencialmente a mesma, mudou apenas o conteúdo; aqui não me vem à consciência uma determinada troca de impostação. Também os objetos científicos são constantemente de imediato reconhecidos em caráter da experiência fáctica da vida. Mas a gente pode levar a tendência re-ferente (beziehende) até ao extremo e se dirigir à constituição-estrutural (Strutkturzusammenhang) da objetividade como tal (Gegenständlichkeit überhaupt) <Husserl: Idéia de uma lógica apriorística do objeto (Gegenstand)>.Enquanto o filosofar se realça do experienciar fáctico, ele é caracterizado nisso de ele se ocupar com objetos superiores e supremos, com “as primeiras e últimas coisas”. Além disso, na filosofia tudo é referido ao homem e ao que é importante (wichtig) para ele (tendência para mundividência). Também ao captar o sujeito, o estilo permanece o mesmo, aqui também o sujeito é considerado objeto. Assim, certamente, a filosofia através do seu relacionamento científico ao objeto deveria ser assinalada também como ciência, no sentido do conhecer prefigurado (ausgeformten).

Por nossas considerações, portanto, a dificuldade da autocompreensão da filosofia só aumentou ainda mais. Como se pode motivar um outro modo de captar, que não seja tomada de conhecimento? A experiência fáctica da vida encobre ela mesma uma tendência, quiçá filosófica emergente, através da sua indiferença e autosuficiência. Nessa preocupação autosuficiente a experiência fáctica da vida constantemente decai para a significância (Bedeutsamkeit). Ela tende constantemente à articulação para a ciência e finalmente a uma “cultura científica”. Ali, porém, na experiência fáctica da vida jazem motivos de posturas puramente filosóficas, que só podem ser destacadas através de uma guinada própria do comportar-se filosófico. Não somente segundo o objeto e o método se estabelece a diferença entre filosofia e ciência, mas essa diferença é de natureza principialmente radical. Uma autocompreensão da filosofia é também então oferecida, mesmo quando a gente não aceita o relacionamento de derivação da ciência da filosofia. Até agora, os filósofos se empenhavam em colocar de lado justamente a experiência da vida como óbvia bagatela, embora seja dela justamente que salta o filosofar, e numa virada – aliás toda essencial – salta de volta para dentro dela.

Se essa tese se firmar com razão, então desaparece todo o compromisso e toda a comparação entre filosofia e ciência, com cuja ajuda a filosofia prolongou através de séculos a sua existência. Início bem como fim da filosofia é a experiência fáctica da vida. Se a experiência fáctica da vida é ponto de partida da filosofia e se nós vemos uma diferença principial entre conhecer filosófico e conhecer científico, então a experiência fáctica da vida deve ser não somente ponto de partida do filosofar, mas exatamente isto que impede essencialmente o filosofar.

Eu gostaria de afirmar que todos aqui, com exceção de bem poucos, continuamente entendem mal todos os conceitos e determinações que lhes dou,  e isto deve ser assim, e de imediato não prejudica em nada, mas para o andamento da reflexão realiza isto que, se também de modo mal compreendido, são mostradas determinadas conjunturas de fenômenos, que na reflexão posterior serão mostradas de tal maneira que seu sentido claro se torne compreensível.

Experiência fáctica da  vida é significância-preocupação (Bedeutsamkeitsbekümmerung) a modo de impostação, cadente (abfallende), referencialmente-indiferente, autosuficiente”. Consideremos primeiro o sentido referencial (Bezugssinn). Ali se mostra que o processo desse experienciar carrega um caráter constantemente indiferente, de que as diferenças disso que experiencio ocorrem no conteúdo. Que eu me sinto num concerto atingido (gestimmt) de outro modo do que numa conversa trivial, esta diferença eu experiencio apenas a partir dos conteúdos. A variedade das experiências me vem à consciência apenas no conteúdo experienciado. O modo de estar-junto e “o ser levado junto pelo mundo” do eu é portanto um modo indiferente; tão indiferente que ele tudo nega, i. é, realiza todas as tarefas sem embaraço. Este modo de conceber tende, porém, para a cadência na significância..

Significância parece ser o mesmo que valor, mas valor já é o produto de uma teoretização e, como toda a teoretização,  tem que desaparecer da filosofia. A pura tomada de conhecimento não toma objetos per-formados por conhecimento, mas apenas significância-conjunturas. Estas tendem, porém, para uma independentização que a gente pode apresentar, exatamente, numa “lógica dos objetos”, dos objetos-conjunturas e objetos-relacioanamentos. Um papel decisivo exerce a experiência a modo da tomada de conhecimento (erkenntnisnehmendes), no seu modo não realçado. Na tendência cadente da experiência  fáctica da vida se torna sempre mais um objeto-conjuntura que se estabiliza sempre mais. Assim, se chega a uma Lógica do mundo circundante, enquanto a significância atua (spielt) no objeto-conjuntura. Toda ciência está, indo para mais além, empenhada em formar uma ordem dos objetos sempre mais rigorosa, a saber, uma Lógica de coisa, uma coisa-conjuntura, uma lógica que jaz mesmo nas coisas (uma outra para história da arte, p. ex., do que para biologia etc.). Formam-se ali regiões de objetos (Gegenstandesgebiete) que “vão por sobre, para além da experiência sensorial etc.” (o mundo de idéias de Platão). Mas a impostação para os objetos (Gegenstände) permanece identicamente a mesma como nas ciências particulares. O sentido referencial (Bezugssinn) permanece o mesmo. Entra apenas uma nova dimensão de objetos (Gegenstände), enquanto que eles são capazes de esclarecer mais profundamente uma conjuntura.

A filosofia mais recente coloca a consciência no centro (Kant). O “sujeito” é, principialmente no tratado do problema da coisa, em Fichte, uma nova forma de objetividade (Gegenständlichkeit) em referência a outros “objetos” (Objekten). No entanto,  também aqui, no ponto de partida de Fichte da filosofia de Kant e no seu uso das captações prévias kantianas (Vorgriffe), prejaz uma tendência no fundo a modo de impostação. Filosofia é portanto (a concluir segundo a sua história) sempre uma e a mais rigorosa per-formação possível de objeto-conjunturas, embora o idealismo alemão tivesse visto a dificuldade toda própria do conhecimento do sujeito.

Agora não mais vemos de modo algum como deve existir uma diferença radical entre filosofia e ciência. A tendência cadente da experiência da vida, de constantemente tender para dentro da significação-conjunturas (Bedeutungszusammenhänge) do mundo facticamente experienciado, ao mesmo tempo o seu peso, condiciona uma tendência para a determinação do objeto a modo de impostação e regulação do objeto da vida facticamente vivida. O sentido da experiência fáctica da vida corre contra o sentido da nossa tese! Nós devemos procurar, olhando ao nosso redor, na experiência fáctica da vida, para conseguir um motivo para a sua viragem. Encontrar esse motivo é quiçá possível, mas muito difícil. Por isso, escolhemos um caminho mais cômodo. Pois, temos o conhecimento da Filosofia passada e presente. A existência fáctica da história da filosofia não é quiçá ainda em si um motivo para o filosofar, mas pode-se, no entanto, partir dela como de uma posse cultural (Bildungsbesitz) e nela nos fazer claro o motivo para o filosofar. Para compreender o mais vivamente possível, e em seguindo com rigor o sentido da experiência fáctica da vida, olhemos ao nosso redor no presente e nas suas tendências filosóficas, não para compreender, filosofando-as, mas sim apenas no sentido da tomada de conhecimento, da tomada de conhecimento fáctica. Para abreviar, consideremos as concretas tendências das filosofias da religião em seus típicos representantes.

Segundo capítulo

Tendências das filosofias da religião do presente

  • 5. A filosofia da religião de Troeltsch

O interesse para a filosofia da religião está hoje em alta. Mesmo as damas escrevem filosofia da religião, e filósofos que querem ser tomados a sério a saúdam como as mais importantes publicações da década! Confiram-se p. ex. os dois artigos publicados em “Vorträge der Kant-Gesellschaft”(Conferências da Sociedade-Kant), caderno 24: 1. Radbruch “Para a filosofia da religião do direito”(Zur Religionsphilosophie des Rechtes) e 2. Tillich, “Sobre a idéia de uma teologia da cultura”(Über die Idee einer Theologie der Kultur)[1]. Ambos estão influenciados por Troeltsch. A seguir, queremos caracterizar a posição de Troeltsch na sua filosofia da religião, porque ele é o representante mais importante da atual filosofia da religião. De resto, o que há de filosofia da religião se dá na teologia, dela dependente. Troeltsch possui um grande conhecimento do material concreto da filosofia da religião e também do desenvolvimento histórico da sua problemática. Troeltsch  vem da teologia. A apresentação das suas concepções é dificultada pela freqüente troca de seu principal ponto de vista filosófico; nessa troca, no entanto, na filosofia da religião a sua colocação é admiravelmente mantida desde o início até o fim. Como teólogo da escola de Ritschl, o seu ponto de vista filosófico é determinado por Kant, Schleiermacher e Lotse. Na filosofia da história, depende de Dilthey. Nos anos 1890, Troeltsch voltou-se para a “Filosofia de valor” de Windelband-Rickert. Nos últimos anos finalmente passou para a posição de Bergson e Simmel. A partir de Bergson e Simmel compreendeu a Hegel, e orientou nele por fim a sua filosofia de história. Que metas propõe Troeltsch para a filosofia da religião? A sua meta é a elaboração de uma determinação cientificamente válida da essência da religião.

  1. a) Psicologia

Em primeiro lugar, se exige que se descreva os fenômenos religiosos (“positivismo”): imediatamente, livre de teorias, o fenômeno em si mesmo (cf. a exigência semelhante de Max Weber para a sociologia)[2]. Devem-se considerar os fenômenos religiosos como ingênuos, ainda não aprimorados, não “afiados” (abgeschliffen) (as orações, os cultos, as liturgias, e quiçá no comportamento de grandes personalidades religiosas, pregadores, reformadores), e então devem ser caracterizados nas suas incondicionalidades transcendentais. Troeltsch distingue fenômenos religiosos centrais e periféricos. O fenômeno central é a fé na conquista (Gewinnung) na presença de Deus, através da qual é por princípio (prinzipiell) dado junto o preceito ético (Sittengebot). As formas periféricas são a sociologia e a ética econômica (Wirtschaftsethik) da religião, portanto, sua “impregnância” (Ausprägung) fáctica no mundo historial (geschichtlichen) (como aquela estudada por Max Weber). Para alcançar esse fim, a filosofia da religião deve usar o método da psicologia do indivíduo e dos povos (der individual- und der völkerpsychologischen Methode), e além disso da psicopatologia, da pré-história, da etnologia e do método americano da entrevista e da estatística. (Segundo Troeltsch) a descrição dos fenômenos religiosos de William James (A experiência religiosa na sua diversidade)[3] é a que melhor foi feita até agora. (Aqui, Troeltsch está sob a influência da psicologia descritiva de James e Dilthey). Portanto, Troeltsch assimilou em si todas as tendências fundamentais psicológicas.

  1. b) Teoria de conhecimento

A essa descrição psicológica segue, como a segunda tarefa, a teoria de conhecimento da religião e  do momento de validade contido nos processos psíquicos (des in den psychischen Vorgängen enthaltenen Gültigkeitsmomentes). (Troeltsch, Pshychologie und Erkenntnistheorie. Conferência pronunciada no Congresso Americano para a filosofia da religião 1904)[4]. Trata-se de investigar a validade das normas racionais nas formações de idéias religiosas (die vernunftmässige Gesetzlichkeit der religiösen Ideenbildungen). Nas formações de idéias religiosas são pois sempre atuantes certas medidas de validades apriorísticas, que estão no fundo dos fenômenos religiosos. A teoria de conhecimento geral já estabeleceu a problemática do apriori em geral. (Treoltsch se apoia aqui na teoria de conhecimento de Windelband-Rikkert). Há um apriori sintético do religioso semelhantemente ao apriori lógico, ético ou estético. Este estabelecimento desse apriori religioso significa a fixação da “verdade” religiosa como tal (überhaupt), do elemento racional no religioso. Troeltsch entende (principalmente mais tarde) o racional, não no sentido do teorético-racionalístico; mas racional significa o mesmo que de validade universal (allgemeingültig) ou de necessidade racional (vernunftnotwendig). Anteriormente Troeltsch definia esse apriori como apriori racional, mas mais tarde se afasta dessa concepção e diz, sem nenhuma determinação de conteúdo, que é um apriori irracional e que se trata de colocar os aprioris lógico, ético e estético em conexão com esse apriori religioso e ver como aqueles aprioris recebem a partir deste apriori religioso sua confirmação. O trabalho da teoria de conhecimento da religião é crítico, ele quer separar o facticamente-psicológico do aprioristicamente-válido.

A experiência fáctica da vida (nessa conjuntura) não tem a função de um reino ou de uma região, na qual ocorrem objetos. Ela não tem nada a ver com monismo de experiência ou teoria de monismo; aqui nada é “esclarecido”. Na aceitação e no esclarecimento das acima mencionadas conjunturas de significação, a fenomenologia atual não questiona de modo suficientemente rigoroso o direito de validade dos dados fácticos.  A experiência fáctica da vida é no entanto o dado prévio (das Vorgegebene), a partir do qual não deve ser “esclarecido”. Fenomenologia não é nenhuma presciência da filosofia, mas ela é a própria filosofia.

O trabalho da filosofia da religião do presente se realiza preponderantemente na própria teologia e quiçá principalmente na teologia protestante; a católica capta os problemas sob o aspecto da concepção especificamente católica do cristianismo. A teologia protestante é essencialmente dependente cada vez de correntes filosóficas principais, às quais ela cada vez adere. É uma vantagem dos filósofos da religião poder com um curto movimento de mão dar fim ao problema da teologia. Junto desses trabalhos, é de interesse a psicologia da religião, sobre cuja contribuição devemos mais tarde decidir. Enquanto dentro da filosofia é captado o problema da filosofia da religião, é de se supor que a aproximação, agora continuamente crescente, a Fichte e Hegel há de conduzir sem dúvida a uma renovação da especulação da filosofia da religião[5]. Com a introdução desses princípios, o problema da filosofia da religião é pressionado numa determinada direção, a qual nós mais tarde haveremos de rejeitar criticamente. Mas, em todo caso, esta tendência especulativa tem uma importância especial para o aumento do trabalho da filosofia da religião, aumento esse que sem dúvida há de vir. Que os literatos hoje se tenham apoderado da filosofia da religião, deve ser conhecido aos senhores todos. Mas os senhores não devem se preocupar com isso.

  1. c) Filosofia da história

Tendo como fundamento a separação do psicológico do apriorístico, a gente pode finalmente perseguir a necessidade histórica (geschichtliche) no religioso. A história da religião considera a realização do apriori religioso no percurso fáctico da história do espírito; não os puros fatos, mas as leis, segundo as quais a religião se desenvolve historicamente (historisch). Primeiramente Hegel  colocou essa meta sob o enfoque da sua busca, mas o seu método construtivo deve ser rejeitado. Certamente, tudo isso não vai sem metafísica, mas somente pode ser admitida uma “metafísica indutiva”. A filosofia da história da religião tem então por tarefa compreender o presente e predeterminar o desenvolvimento futuro. Ela tem por tarefa decidir se havemos de chegar a uma religião universal da razãom, que surge a partir das atuais religiões universais (Weltreligionen) (a um catolicismo evangélico segundo Söderblom) – ou se há de dominar sozinha, no futuro, uma das religiões positivas (cristianismo, budismo, islam).

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  1. d) Metafísica

Esta é uma metafísica das idéias de Deus (Gottesideen), à base (Grund) de todas as nossas experiências do mundo. Também a teoria do conhecimento crítica (Kant etc.) pode chegar a tal metafísica. Pois, chega-se a partir da conjuntura (Zusammenhang) teleológica da consciência (transcendental) a um último sentido (Sinn), que exige a existência de Deus.

Troeltsch propriamente tirou a filosofia da religião da teologia. Concentrou a filosofia da religião ao redor do problema de uma ligação de história da religião e de sistemática da religião (cf. Albrecht Ritschl 1822-89). Então em conexão com a “consciência como tal” (Bewusstsein überhaupt), de Rickert, tentou uma elaboração e crítica racional do material da história da religião. O fracasso dessa tentativa levou-o à ruptura com a teologia. A nova filosofia da religião, quer ele firmá-la através de uma “fenomenologia prévia” (vorläufige), i. é, uma prévia teoria de tipos (Typenlehre) das religiões históricas. A esta descrição, ele chama de psicologia da religião. O fenômeno central é a fé na vivenciabilidade (Erlebbarkeit) da presença de Deus, periféricos são mitologia, étos, sociologia da religião.  Psicopatologia e etnologia mostram que o fenômeno originário de todas as religiões é a mística, a vivência da unidade (Einheitserlebnis)  em Deus. Onde quer que religião se realize animicamente (seelisch), são necessárias situações fundamentais (Grundlagen) apriorísticas, que então caracterizam exatamente os processos psíquicos particulares como religiosos. A teoria de conhecimento da religião, analogamente ao a priori teorético, deve elaborar um a priori religioso, que significa uma fixação do conteúdo de verdade, do “momento racional” da religião, através do qual a religião se torna possível como tal (cf. Rickert). Ratio significa mais tarde em Troeltsch uma medida de norma (Normgemässheit)  não somente no lógico, mas também no ético etc. A reunificação do a priori, assim encontrado e destacado com os modos psíquicos de aparecimento da religião, cabe à metafísica religiosa. Em Troeltsch, o a priori religioso está diante de um mundo superior do espírito, cuja experiência é o fenômeno religioso fundamental. Metafísica religiosa em Troeltsch é algo principialmente diferente do que metafísica filosófica, como também o apriori religioso é algo diferente do o apriori teorético. Então pode se dar uma apresentação histórica à base de um princípio de desenvolvimento adquirido teleologicamente. Nisso a metafísica  há de co-atuar, mas não uma metafísica construtivo-dialética, como a de Hegel, mas sim uma metafísica indutiva da religião. Além disso, a filosofia da religião deve transformar o desenvolvimento posterior da religião e, p. ex., resolver e discutir a questão da pura religião da razão ou do sincretismo ou de uma forma destacada das grandes formas da religião (cf. Söderblom) etc. A metafísica da religião tem a tarefa de ordenar a realidade de Deus para dentro da conjuntura do mundo (Weltzusammenhang). Até dentro de uma filosofia epistemológica (einer erkenntnistheoretischen Philosophie), a situação fundamental (Grundlage) teológica e o sentido da facticidade da consciência conduzem a uma fé em Deus.

Nós temos portanto quatro disciplinas da filosofia da religião: 1. psicologia, 2. teoria de conhecimento, 3. filosofia da história – essas três em conjunto formam a ciência da religião – e 4. metafísica, isto é, a própria filosofia da religião. A ciência da religião é uma disciplina filosófica como lógica, ética, estética; a metafísica está fundada sobre ela como sobre a última região. O próprio Troeltsch cultivou, ao lado de investigações particulares (“Doutrina social do cristianismo”[6]), antes de tudo, a filosofia da história. Na sua fundamentação principial, ele mudou. Antes, ele entendia a história teleologicamente como um desenvolvimento para (Hinaufentwicklung). Recentemente, ele reivindica para cada época da história da religião o seu sentido próprio; ela não deve mais ser considerada apenas como um simples ponto de passagem. Do estímulo da vida saem para a época seguinte sempre novos motivos, não mais captáveis racionalmente. As religiões saltam dos momentos racionais e das forças espontâneas da vida, elas possuem seu sentido próprio, que se torna independente e se torna assim o impulso de um desenvolvimento. Não se constata uma conjuntura (Zusammenhang) lógico-dialética; um esquema lógico de desenvolvimento é violência (cf. Simmel e Bergson). Troeltsch se coloca o problema de uma “Dialética histórica” (cf. seu artigo na “Revista histórica”[7]). Com isso, ele se afasta da filosofia da história de Rickert e vem de volta a Dilthey (cf. o seu “A estrutura do mundo histórico nas ciências humanas”[8]). Seus conceitos fundamentais são “totalidade individual” e “continuidade do devir” (Werdekontinuität), não mais “desenvolvimento” (cf. “Conjuntura de atuação” (Wirkungszusammenhang) de Dilthey). A modificação do seu a priori-conceptual, que se segue disso, Troeltsch ainda não a desenvolveu. Se ele, agora, se atém ainda ao conceito do apriori religioso, no sentido de Rickert (cf. Simmel), é duvidoso (cf. a sua crítica do livro de Otto “O Santo”, em Kantstudien 1917[9]).

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Excurso:

A ciência e a autodeterminação historial do homem

(Antropologia sobre uma base estrutural, por Heinrich Rombach – Würzburg)

À “Antropologia” científica e filosófica, precede uma autointerpretação natural do homem, que já é dada com a sua pre-sença. Esta autointerpretação tem fundos e níveis muito diferentes e abrange tanto as reflexões ocasionais de cada um em particular, como também a subliminar impostação de fundo de todos. Esta impostação carrega, como o mais baixo fundamento nunca inteiramente superado, todas as exteriorizações de vida de um determinado círculo de homens. A impostação de fundo perfaz, com as intenções mais ou menos refletidas dos homens sobre homens, um todo, de alguma maneira coerente, que determina a partir de dentro a forma de fundo cada vez historial da cultura. Usualmente, porém, o homem não “sabe” de modo próprio e específico da sua forma de fundo, mas a realiza ao mesmo tempo com naturalidade, a saber, vive-a como o “óbvio”. Caso a impostação de fundo deva ser captada, então – ela, que não aparece ela mesma, mas que se afirma somente como o fundo dos fenômenos historiais –, deve ser lida dos traços principais da cultura. Este “ler” tem seus problemas. Pode-se entender o todo das ciências humanas como esse ler no texto de fundo da pre-sença; as questões metodológicas preliminares das ciências humanas, que nunca podem ser conduzidas até o fim, são como reflexo da complexidade do texto de fundo. Seja como for, o relacionar-se com tudo isso, a explicitação científica e filosófica do homem, a “antropologia” não pode resultar sem uma ponderação de retorno sobre a autointerpretação natural do homem. E isto não somente porque tudo isso fosse um fato que pertence ao seu objeto, mas antes de tudo porque nisso tudo estão contidas as decisões de fundo, que determinam inclusive a objetivação científica. A explicação científica e filosófica é a elaboração de uma autointerpretação já dada, como também vice-versa, a explicação científica e filosófica atua de volta sobre a autointerpretação natural. Seria uma ingenuidade da antropologia considerar-se como que estando fora dessa autointepretação, toda doada à pura observação. A observação crítica exige, pelo contrário, a referência de retorno ao aviar-se historial da pre-sença humana.

Cf.  o exemplo do adjetivo: bom-mau >>>>> digno-humano, segundo-humano etc.

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  • 6. Considerações críticas.

Nós não queremos criticar a colocação de Troeltsch, mas sim compreender a sua posição de fundo com ainda maior acuidade. Trata-se de determinar a essência da religião de modo que seja válida cientificamente. Troeltsch tem 4 conceitos da essência da religião.

  1. A essência psicológica da religião; os gêneros da determinação da sua forma (Formbestimmtheit).
  2. A essência epistemológica (erkenntnistheoretische) da religião; o apriori da razão religiosa.
  3. A essência histórica da religião, concebida como tipologia geral; a realização de (1) e (2) na história.

A essência metafísica da religião: o religioso como princípio de todo o apriori (colocação da religião no todo da conjuntura da razão).

Somente todos os 4 conceitos juntos dão um aspecto total da filosofia da religião. Nós devemos agora compreender em que modo esta filosofia da religião se relaciona com religião, se ela cresce a partir do sentido da religião ou se a religião já não é captada objetivamente e encaixada em disciplinas filosóficas;  a saber, ordenada em conjunturas de coisa (Sachzusammenhänge), que já existiam em si, antes da religião. Há também uma psicologia, teoria de conhecimento, filosofia da história, metafísica da ciência e da arte. Essas disciplinas da filosofia da religião, portanto, não saltam da religião qua religião ela mesma. De antemão, o religioso é considerado como objeto e ordenado. A própria filosofia da religião é ciência da religião. Assim, toda a problemática é jogada de volta sobre a concepção da própria filosofia. O conceito da religião se torna secundário. A gente poderia pensar também numa sociologia ou estética da religião.

Um moto impulsionador da filosofia da religião de Troeltsch jaz na sua concepção da reformação. Troeltsch não vê na reformação nada de novo. Antes, ele acha que ela se esvaiu dentro da estrutura de sentido medieval. O novo somente vem no século XVIII e no idealismo alemão. Assim, Troeltsch acolheu na sua filosofia de religião muitos elementos medievais e católicos. A gente, com razão, o acusa que, de modo semelhante a Dilthey, ele não tinha compreensão por Lutero.  Afinal, a Troeltsch interessa a metafísica da religião, a prova da existência de Deus. A prova da existência de Deus, porém, não é originariamente cristã, mas depende da conjuntura do cristianismo com a filosofia grega. Esta concepção metafísica determina também a filosofia da história de Troeltsch.

Nós não queremos exercer uma crítica de conteúdo. Queremos ver como se relacionam religião e filosofia, como religião se torna objeto para a filosofia. A religião é colocada por Troeltsch nas 4 disciplinas da filosofia da religião, numa conjuntura pronta de coisa  (Sachzusammenhang). Enquanto a consideração filosófica se movimenta em diferentes regiões, assim a religião é encaixada dentro dessas regiões e vista como se expressa nelas. Com isso, surgem os 4 conceitos essenciais da religião. As 4 regiões são separadas não só metodicamente, mas também no seu caráter de coisa (Sachcharakter). A realidade psíquica é, segundo sua estrutura e segundo seu caráter do ser, algo diferente da região apriórica das leis da razão, e esta é algo outro do que a realidade da história, principalmente da história universal, e esta é algo diferente que a realidade metafísica última, na qual se pensa Deus. Como as regiões se concatenam entre si, não vem ao caso. Portanto, a filosofia da religião, aqui, não se determina segundo a religião ela mesma, mas segundo um determinado conceito da filosofia, e quiçá segundo um conceito científico da filosofia. Poderia parecer que na metafísica de Troeltsch se ofereceria algo de novo, que aqui a religião não seria mais considerada como objeto, enquanto aqui se trataria do fenômeno originário, da na existência de Deus. Pois, a existência de Deus então, não seria adquirida segundo o conhecimento (erkenntnismässig). Mas Troeltsch diz que, apesar de tudo, o “objeto” da fé deve ser considerado como objeto real em conexão com outros objetos reais, enquanto a razão é uma unidade. Numa consideração última universal de objeto, o todo da experiência humana deve ser trazido a conceitos, portanto, também Deus deve ser considerado como objeto real. Aqui, se torna também compreensível, como Troeltsch pôde conservar imutável a posição da sua filosofia da religião na troca das suas concepções filosóficas principiais. Para ele, a religião é de antemão objeto e como tal pode ser encaixada em diferentes conjunturas (correspondendo aos diferentes “sistemas” filosóficos. Assim, portanto, justamente a possibilidade da constante mudança em Troeltsch é o mais forte sinal de que ele coloca a religião como objeto.

A conexão entre religião e ciência, segundo Troeltsch, não é nenhuma conexão forçada. Na medida em que religião historicamente se encontra numa conjuntura cultural, ela deve se confrontar com a ciência: defensivamente e negativamente, na apologética, mas também positivamente pode a ciência da religião, através da predeterminação (Vorausbestimmung) do futuro desenvolvimento da religião, efetuar algo para a posterior formação (Weiterbildung) da religião. A ciência não faz certamente a religião, mas representa para seu posterior desenvolvimento um fator fértil. Isto mostra, segundo Troeltsch, a história do cristianismo: através da sua aliança com a filosofia antiga, o cristianismo teria conquistado a sua posição histórica forte. Aliás, atualmente as possibilidades das produções religião-filosóficas estão esgotadas. Trata-se hoje apenas de um ressaltar a possibilidade correta.

O que ganhamos, pois, da consideração de Troeltsch para os nossos fins? Primeiramente uma representação concreta da filosofia da religião. Depois 4 determinações que se podem atribuir à religião, a psicológica, a racional-apriórica, a histórica e a metafísica. Finalmente, que a filosofia se relaciona para com a religião, conhecendo-a como objeto. Nós argumentamos, portanto, contra a nossa tese da diferença radical entre filosofia e ciência. Já que, a saber, a filosofia deve fazer da religião objeto do seu conhecimento, não se pode assim ver, como a filosofia se deve ocupar com a religião, se entre filosofia e ciência (i. é, conhecimento do objeto) deve existir uma diferença fundamental do sentido referencial. Na Fenomenologia da religião, exatamente como p. ex. na fenomenologia do prazer estético, os fenômenos não acabam se tornando objetos da consideração? Primeiramente é, pois, necessário, que se veja a religião na sua factualidade (Tatsächlichkeit), antes de se achegar a ela com uma determinada consideração filosófica.

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Terceiro Capítulo

O fenômeno do histórico

  • 7. O histórico como fenômeno-núcleo

Nós, agora, queremos tentar destacar um fenômeno-núcleo, que atravessa e domina as conjunturas de sentido (Sinnzusammenhänge) das três palavras-título (“Introdução à fenomenologia da religião”). Este fenômeno-núcleo é o “histórico”. Na medida em que nós nos pomos na perspectiva de colocar sob o pensado pela significação do título, o histórico como fenômeno-núcleo, haveremos de examinar em experiência imediata, em que sentido os fenômenos que nos ocupam podem ser caracterizados como históricos. Em que sentido “introdução”, “filosofia”, “religião” são fenômenos históricos? Parece ser óbvio que a introdução a uma ciência seja histórica. Ciência é uma conjuntura de sentenças válidas atemporalmente. O processo do introduzir, pelo contrário, ocorre no tempo, é dependente de cada situação fáctico-histórica da ciência etc. Algo semelhante vale para filosofia e religião. Elas estão submetidas também ao desenvolvimento histórico. Mas justamente para a filosofia, que busca o válido eternamente, o histórico não é indiferente? Além disso, a caracterização como “histórico” não se aplica a cada fenômeno qualquer? Se, porém, agora, afirmamos que a problemática filosófica é motivada principialmente a partir do histórico, então, isto somente é possível, se o conceito do histórico tem significação múltipla. Em todo caso, surge a necessidade de captar o problema do histórico principialmente e não se contentar com as considerações da sã razão humana. Nós caracterizamos filosofia e religião através de subsunção sob o histórico: “Filosofia e religião são fenômenos históricos” (assim como “Feldberg e Kandel são montanhas”, ou “a universidade, a catedral e a estação ferroviária são edifícios”). Como tal caracterização da filosofia é possível, é um problema; ela existe em todo caso na experiência fáctica da vida. Conceitos gerais são tratados como objetos, de tal maneira que se movimenta em círculo na caracterização através de conceitos gerais e não se sai do reino do objeto. A questão, então é saber se existe a possibilidade de descobrir outro sentido do “histórico” como tal, que de modo algum pode ser atribuído nesse modo aos objetos. Talvez o conceito hodierno do histórico seja apenas uma derivação deste originário. Para esse fim, examinemos com ainda maior acuidade, em que sentido deve-se captar a caracterização “histórico”, que nós há pouco realizamos. Histórico aqui diz: tornar-se, surgir, ocorrer no tempo; uma caracterização que convém a uma realidade. Enquanto se está na consideração-conhecimento (Erkenntnisbetrachtung) das conjunturas de objeto, cada caracterização ou uso do sentido do “histórico” é sempre determinado por essa “antecipação (Vorgriff) sobre o objeto”. O objeto é histórico; tem a propriedade de ocorrer no tempo, de se mudar.

Nós não partimos da filosofia da história usual, que ex professo tem a tarefa de tratar do histórico. Nós pensamos o histórico como ele nos encontra na vida, não na ciência da história. “Histórico” não diz somente a ocorrência no tempo, i. é, não somente uma caracterização que convém a uma conjuntura de objeto. Na experiência fáctica da vida e na formação continuada (Fortbildung) retilínea e impostada (einstellungshaften) da filosofia, o histórico, porém, apoiando-se nessa concepção, recebe o caráter de propriedade de um objeto que muda temporalmente. Num sentido muito mais vasto do que a fato histórico existente apenas no cérebro de um lógico, fato esse que resulta somente de um esvaziamento científico-teorético do fenômeno vivo, o histórico é imediata vivacidade.

  1. O pensar “histórico”

O que destaca a nossa cultura atual das outras seria a consciência histórica. De fato, o pensar histórico determina nossa cultura, ele inquieta nossa cultura: em primeiro lugar, na medida em que excita, instiga, estimula; em segundo lugar, na medida em que coíbe. Ele significa: 1. Uma plenificação (Erfüllung): a vida ganha a sua firmeza (Halt) na diversidade do histórico, 2. Uma carga. O histórico é portanto um poder (Macht) contra o qual a vida busca se afirmar. Deveríamos considerar o desenvolvimento da consciência histórica na história do espírito. Eu lhes indico a Dilthey, que aliás, segundo a minha convicção, não captou o cerne do problema. O que Troeltsch diz acerca do histórico está essencialmente influenciado por Dilthey e determina mais de perto apenas em referência ao conteúdo, também o que ele diz sobre a Reforma.

A secularização (Verweltlichung) e a autosuficiência da vida fáctica, a saber, que se quer assegurar a própria vida com meios intramundanos (innenweltlichen), leva a uma tolerância para com concepções estranhas (fremden), através da qual se quer conquistar um novo asseguramento.  Daí, a  fúria hodierna de querer compreender vultos (Gestalten) espirituais, a fúria da tipificação de formas de vida, de épocas de cultura, que raia à crença de que com isso se alcançou o último. A gente descansa ali e se alegra com a diversidade da vida e com seus vultos. Nessa pananarquia do compreender a consciência histórica do presente, alcança a sua mais aguda expressão. Nesse sentido, o histórico plenifica a vida (atual). Mas o que surge com a lógica da história e a metodologia da história não possui nenhum sensor e contato (Fühlung) com esta historicidade viva que se incrustou (eingefressen) na nossa existência.

  1. A direção contrária, coibente, está nisso que, o histórico afasta o olhar do presente, de tal modo que destroi a ingenuidade (Naivität) do criar (Schaffens) e com isso o paralisa. Daí, o ataque do autêntico ativismo contra o histórico.

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  1. b) O conceito do histórico

O histórico é o fenômeno que nos deve abrir o acesso à autocompreensão (Selbstverständnis) da filosofia. A questão fenomenológica de método não é uma questão do sistema metódico, mas uma questão do acesso que conduz através da experiência fáctica da vida. Para a compreensão da nossa consideração, a atenção sobre a conjuntura metódica é importante. É uma conjuntura metódica no sentido do acesso aos problemas eles mesmos, e que o acesso aos problemas exerce um papel decisivo no filosofar, nós vamos vê-lo ainda. Trata-se de ganhar da experiência fáctica da vida motivos para a autocompreensão do filosofar. Somente a partir dessa autocompreensão, surge para nós a tarefa toda de uma fenomenologia da religião. Ela está dominada totalmente pelo problema do histórico. Quando se ouve a palavra-problema “o histórico”, de imediato facticamente a gente se vê, na medida em que se quer filosofar sobre isso, encaminhado sem mais para a filosofia da história e se acredita que com esse encaminhamento para uma disciplina firmemente circunscrita, se tenha absolvido já a metade da tarefa.

Nós, porém, não podemos ganhar da filosofia da história o fenômeno do histórico, pois, nós rejeitamos a toda divisão da filosofia em disciplinas. Com isso, o histórico se tornou de certa maneira sem pátria, ele perdeu o seu lugar sistemático. Por isso, nós devemos obter o histórico da experiência fáctica da vida. A gente nunca diz: “algo é histórico”, algo, um objeto, tem a propriedade de ser histórico. Com isso o histórico se desloca para dentro de uma conjuntura de objeto. Assim, também filosofia e religião obviamente são fenômenos históricos. Com tal caracterização, aliás, nada que se destaque foi dito, pois também arte e ciência são nesse sentido históricas. Justamente na filosofia, essa caracterização parece ser secundária. Pois, exatamente tudo depende disso, a saber, do que filosofia é segundo seu sentido, independente de como ela historicamente está realizada. Somente quando se coloca a validade (Geltung) das sentenças científicas como problema, o histórico exerce certo papel (embora negativo). A gente diz que a validade dessas sentenças é independente do histórico, “supra-temporal”; a consideração do histórico serve somente para isso, exatamente para colocar isto para fora em destaque. Mas isto seria mais um problema secundário para o histórico: o sentido da filosofia e da validade ali já está pressuposto.

Nós afirmamos, porém, a importância do histórico para o sentido do filosofar como tal, antes de todas as questões de validade. Isto, porque o conceito do histórico é multívoco e nós ainda de modo algum captamos o sentido próprio do histórico. Devemos esclarecer o sentido do histórico fenomenologicamente. O que é pensado com isso, quando se diz que certo processo, um empreendimento etc., é “histórico”? É pensado que todo o ocorrer espaço-temporal tem a propriedade de estar numa conjuntura do tempo e do devir. Portanto, a um objeto  é atribuída a propriedade de ser histórico.

Objeto e Gegenstand não são o mesmo. Todos os objetos são Gegenstände, mas não o contrário, todos os Gegenstände objetos. Há o perigo de ter as determinações do objeto por determinações do Gegenstand . E vice-versa, a gente se deixa desviar, tendo muitas determinações do Gegenstand como determinações do objeto e aplicando pontos de vista formais sobre específicas considerações do Gegenstand. A mistura confusa dessas diferenças desde Platão é fatal. Um fenômeno não é nem objeto nem Gegenstand. Aliás, um fenômeno formalmente é também um objeto, i. é, um algo como tal. Mas com isso nada de essencial foi dito sobre o fenômeno; com isso, ele é deslocado para uma esfera a qual ele não pertence. Isto faz a fenomenologia tão eminentemente difícil. Objetos, Gegenstände e fenômenos não podem ser colocados assim um ao lado do outro como sobre um tabuleiro de xadrez, mas também esta sistematização dos Gegenstände é inadequada aos fenômenos eles mesmos, e uma doutrina de categoria ou um sistema filosófico é a partir da fenomenologia, sem sentido.

Para nós, de imediato, é importante apenas a diferença de objeto e Gegenstand. Convém, portanto, a um objeto, ser determinado temporalmente; com isso ele é histórico. Encontrar um conceito mais geral do histórico do que este parece não ser possível como tal. A realidade histórica há de se modificar cada vez, conforme o caráter do objeto, mas principialmente o histórico deve ser o mesmo. Também a aplicação do histórico sobre a realidade humana há de ser uma determinação desse objeto-histórico. O próprio homem na sua realidade está como objeto no tempo, estando ali no devir. Ser histórico é pois uma de suas propriedades. Essa concepção do histórico se processa ainda totalmente na pista da sã razão humana. Mas a filosofia não é nada mais do que uma luta contra a sã razão humana! Não é assim que se resolve o problema do histórico. Aliás, hoje, é difícil conseguir uma outra captação.

Se partirmos da hodierna filosofia da história e deixarmos que ela nos sirva problemas, jamais sairemos daquele objeto-conceito do histórico. Nós queremos por isso partir da vida fáctica. Nisso, a atual filosofia da história vem à validade e, somente como uma captação fáctica do problema histórico. Nós, porém, não nos colocamos sobre seu chão, nós não vamos com ela, mas sim tentamos apenas compreender quais são os motivos próprios para aquela captação da filosofia da história. A gente deveria, por causa de uma compreensão que vai a fundo, mergulhar “sentindo” (hineinfühlen) para dentro da concepção atual do espírito. Aqui, podemos apenas acentuar algumas direções fundamentais.

  1. c) O histórico na experiência fáctica da vida

O histórico atua em duas direções principais na hodierna experiência fáctica da vida. 1. Positivamente a diversidade dos vultos históricos dá à vida uma plenificação e a deixa repousar na diversidade dos vultos históricos. 2. Negativamente o histórico para nós é uma carga, uma coibição.

Em ambos os aspectos, o histórico é inquietante; a vida procura se afirmar e se assegurar contra ele. Mas é questionável, se aquilo contra o qual a vida fáctica se afirma, é ainda realmente o histórico. Importante são aqui as investigações de Dilthey: “Introdução nas ciências do espírito”[10], “O esclarecimento e o mundo histórico” (Deutsche Rundschau)[11], “Análise e concepção do homem no século XV e XVI (Obras completas II)[12].

A expressão da consciência histórica é de imediato multívoca. Há ciência da história, porque o histórico exerce um papel na nossa vida hodierna, e não o contrário. “Pensar histórico” pode significar muitas coisas. Eu não preciso num objeto histórico de modo algum pensar historicamente, por outro lado posso pensar historicamente, sem ter um objeto histórico diante de mim. O problema do histórico tem a sua importância nisso que o histórico, pela libertação de um determinado – atual – ponto de vista de mundividência,abre os olhos para outras formas de vida e épocas de cultura. Ou a gente vê nesse compreender que tudo abrange, nessa escalação de acessibilidade e abertura ela mesma o máximo que a nossa época hodierna, bem dotada de enorme sensibilidade, tem a nos oferecer, ou a gente propõe os diferentes tipos que aparecem na história ao mesmo tempo para a escolha e para a decisão entre eles, decisão essa que deve se fundamentar sobre sua comparação. Mais ainda fortemente, porém, o histórico é sentido como carga. Ele coíbe a nossa ingenuidade (Naivität) do criar. A consciência histórica acompanha continuamente como uma sombra cada tentativa de uma nova criação. Logo se move a consciência do passado e nos tira o entusiasmo para o absoluto. Enquanto, pois, tudo tende a vir a uma cultura espiritual nova, a consciência histórica nesse sentido agravante deve ser extinta e assim propriamente o afirmar-se contra o histórico é uma luta mais ou menos clara contra a história.


[1] Em: Religionsphilosophie der Kultur (Filosofia da Religião da Cultura); Zwei Entwürfe von Gustav Radbruch und Paul Tillich (Dois projetos de Gustav Radruch e Paul Tillich); Philosophische Vorträge der Kant-Gesellschaft (Conferências filosóficas da Sociedade-Kant) n. 24, Berlin, 1919.
[2]  Cf. HEIDEGGER, Martin. Grudprobleme der Phänomenologie. Frühe Freiburger Vorlesung Wintersemester 1919/20. Gesamtausgabe B. 58, ed. por Hans-Helmuth Gander, Frankfurt a. M. 1993, p. 189-196.
[3]  JAMES, William. The Varieties of Religious Experience. A Study in Human Nature. New York, 1902. Em alemão: Die religiöse Erfahrung in ihrer Mannigfaltigkeit. Materialien und Studien zu einer Psychologie und Pathologie des religiösen Lebens. Traduzido por Georg Wobbermin. Leibzig, 1907.
[4] Cf. TROELTSCH, Ernst. Psychologie und Erkenntnistheorie in der Religionswissenschaft. Eine Untersuchung über die Bedeutung der Kantischen Religionslehre für die heutige Religioswissenschaft. Tübingen, 1905, p. 18.
[5] [Inserção tirada da anotação de Helene Weiss; cf. Überweg IV, & 43: Em conexão com Kant, a teologia moderna reconheceu a impossibilidade de provar os dogmas cristãos e por isso construiu a dogmática sobre a certeza pessoal do vivenciar religioso, com a renúncia a uma prova científica. Assim, surge (de modo semelhante como na doutrina sobre a fé em Schleiermacher)  apenas uma auto-observação psicológica do crer cristão, onde se faz valer, no sentido de Lotz, a sublimidade do valor do cristianismo como garantia da verdade e no sentido do pragmatismo, o seu “prático valor de vida” (praktischer Lebenswert)].
[6] TROELTSCH, Ernst. Die Soziallehre der christilichen Kirchen und Gruppen. Tübingen, 1912.
[7] TROELTSCH, Ernst. Über den Begriff einer historischen Dialektik: I./II. Windelband, Rickert und Hegel. III. Der Marxismsus. In: Historische Zeitschrift 119 e 120 (1919) e 120 (1919).
[8] DILTHEY, Wilhelm. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in dem Geisteswissenschaften. Erste Hälfte. In: Abhandlungen der Königl. Preuss. Ak. d. Wiss. Jahrg. 1910. Phil. Hist. Kl.
[9] TROELTSCH, Ernst.  Zur Religionsphilosophie (aus Anlass des Buches von Rl Otto über “Das Heilige”1917). In: Kantstudien 23 (1918).
[10] DILTHEY, Wilhelm. Einleitung in die Geisteswissenschaften. Versuch einer Grundlegung für das Studium der Gesellschaft und der Geschichte. Erster Band. Leipzig, 1883.
[11] [O título correto soa:] Das achtzehnte Jahrhundert und die geschichtliche Welt. In: Deutsche Rundschau 108 (1901).
[12] [O título correto soa:] Auffassung und Analyse des Menschen (Gesammelte Schriften Bd. II). Leipzig und Berlin, 1914.
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