Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

X – Da admoestação e correção dos Irmãos

11/02/2021

 

DA ADMOESTAÇÃO E CORREÇÃO DOS IRMÃOS
DE ADMONITIONE ET CORRECTIONE FRATRUM

Fratres, qui sunt ministri et servi aliorum fratrum, visitent et moneant fratres suos et humiliter et caristativecorrgant eos, non przecipientes eis aliquit, quod sit contra animam suam et regulam mostram.

RNB: Todos os irmãos que forem instituídos como ministros e servos dos demais irmãos distribuam os irmãos pelas províncias e lugares onde se encontram. Visitem-nos assiduamente para exortá-los e confortá-los espiritualmente.

E os ministros e servos lembrem-se do que diz o senhor: Não vim para ser servido mas para servir” (Mt 20,28), “e que lhes foi confiado o cuidado pelas almas dos irmãos. E se um destes se perder por culpa ou mau exemplo seu, terão de prestar contas no dia do juízo perante ao senhor JC. “Guardai pois as vossas almas e as dos vossos irmãos, pois terrível é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10,31).

“E neste gênero de vida ninguém seja intitulado “prior”, mas todos sejam designados indistintamente como “frades menores”. E um lave os pés ao outro! igualmente nenhum irmão exerça uma posição ou cargo de mando, e muito menos entre os próprios irmãos. “Pois, como diz o Senhor no Evangelho: “Os príncipes das nações as subjugam e os grandes imperam sobre elas” (Mt 20,25), assim não deve ser entre os irmãos, mas antes: aquele que quiser ser o maior entre eles seja o ministro” (Mt 20,26-27) e servo deles, e quem for o maior entre eles faça-se o menor” (cf. Lc 22,26).

Os irmãos que são ministros. Acompanhemos de novo os irmãos itinerantes, cumprindo sua missão apostólica. Mesmo itinerantes, continuam sujeitos aos cuidados de seus ministros e servos. Eis o motivo que leva Francisco a falar agora das incumbências do “ministro provincial”. O Ministro deverá percorrer os lugares onde houver irmãos, para consolá-los e confortá-los. Na visita os ministros mostrar-se-ão como frades menores diante dos irmãos, isto é, admoestando “humiliter et caritative”, como “minores et fratres”, estreitando desta forma os laços da obediência que une a todos.

A obediência terá pois por fim unicamente ajudar a cada um a levar a sério sua vida cristã, e ajudar a todos a viver de acordo com a Regra. Eis as dimensões e os limites da obediência.

Visitem. O Ministro provincial é quem dá aos irmãos ofícios e atribuições. Depois os envia pelo país afora até o próximo capítulo. Mas para que os irmãos não fiquem o ano todo entregues à sua própria sorte, o ministro deve visitá-los, exortá-los e animá-los em todas as dificuldades da Vida Religiosa. Eis a origem da assim chamada “visita fraterna” e da “visita canônica” em nossa Ordem.

Portanto o primeiro dever do Ministro é o da visitação, isto é, de procurar os irmãos para incentivá-los sempre de novo à vida minorítica. Nestas visitas o ministro deve antes de tudo lembrar de que “lhe foi confiada a cura de almas dos irmãos”. As admoestações, o ministro deve dá-las com “humildade e caridade” como convém a quem é “servo e criado” dos irmãos.

E admoestem. Admoestar: ad-monere; monere vem de memini: recordar. Admoestar é recordar, é colocar de novo no coração o vigor da primeira experiência, a experiência da primeira resposta à vocação: é reconduzir à fonte da da experiência do vigor do Senhor, isto é, ao vigor do Evangelho que é servir, como que dizendo: de lá é que nossa vida recebe seu sentido.

E corrijam. O ministro tem o dever de acudir os irmãos que, devido à itinerança, caíram em situações embaraçosas, em complicações que lhes impossibilitam seguir a vida minorítica. Para corrigir é necessário antes julgar. Com isso SF dá a impressão de se colocar em contradição com a “liberdade evangélica”. Essa expressão já aparece na expressão ‘correção fraterna’. Parece haver um conflito nos próprios termos: fraterno é estar na fluência do amor de Deus para deixar o outro ser na sua liberdade originária, na abertura da gratuidade; esta postura deve levar o mistério a deixar o outro ser, e leva à atitude de ‘não-julgar; “correção” é colocar medida, limitação, dar normas, fixar um modelo; esta postura fala de normas, de imposição, e leva à atitude de ‘julgar’.

A primeira posição parece mais autêntica, mais legítima; nós simpatizamos com a atitude que aponta para “não-julgar”. Acontece porém que o “não-julgueis’ já se torna norma para julgar a segunda posição! Portanto, cai na mesma, desencadeando uma cadeia de julgamentos, cujo vigor é o ‘jurídico’. Portanto, “julgar” e “não julgar” estão no mesmo nível e um não é superior ou melhor que o outro.

Não haveria uma maneira diferente de entender a questão? Sim, tomando o ‘não julgar’ não como simples norma, mas como atitude de “vigor”. A problemática da correção fraterna não ganha outra feição, sem deixar de ser um julgamento; ao julgar um irmão a correção fraterna toma direção sobre ele, isto é, julga, admoesta, mede: é a correção. Fazendo isso, porém, quem corrige julga a si mesmo porque projeta no outro, como num espelho, o que ele é. E assim ao jugar, ele próprio vai aparecendo, vai ficando mais claro, vai julgando a si mesmo. E ao se julgar assim ele se julga de novo. No julgar o outro vai aparecendo o ‘não julgue’ ou o ‘corrija-se’.

A maneira de ser da correção fraterna, antes de ser um medir o outro de antemão, é um medir a si mesmo: é enfrentar a dificuldade para vir à sua própria identidade. Se, por exemplo, um time se julga melhor do que o outro, o faz a partir de uma norma abstrata; será no jogo que, num movimento de confrontação contínua, mostrará a identidade do time, e portanto seu valor. Medir-se com uma norma é “encontrar-se” com ela, dialogar com ela. Medir-se portanto é encontrar-se.

Por isso, no fundo, o julgar pertence ao fenômeno de encontro. Quando alguém julga o outro não quer dizer que tenha uma norma a partir da qual possa enquadrar o outro nalguma medida; o julgar denota duas pessoas lado a lado, encostadas uma na outra, dando encontrões. É no encontrão que o julgamento aparece como verdadeiro ou não. A norma, como produto do encontro de mais identidades, mostra o movimento que essas identidades fazem, revelando-se a si mesmas: é o dialogo.

Este processo de julgar o outro e com isso estar julgando a si mesmo, leva a um movimento de superação”: ao julgar eu me meço; ao medir-me eu supero minha própria medida e julgo de novo , abrindo a possibilidade de escutar aquilo que está além de mim mesmo. Esse movimento de superação aponta para o conteúdo do “lava-pés“: servir. O balançar do texto está entre o julgar (correção) e não julgar (fraterna), tem como centro esse servir: julgando e não julgando, um ame o outro: é o mistério da Encarnação. O texto não privilegia nenhuma das posições, pois as duas apontam para o Mim.

Não lhes ordenando nada que seja contra a alma e a nossa regra. O ministro deve atender cuidadosamente a que todas as suas ordens correspondam a Deus. Pois a obediência conserva seu caráter sagrado somente quando mantém esta relação. Para SF a vontade de Deus se manifesta também na “alma” do religioso súdito. É por isso que diversas vezes ele fala de “inspiração divina” e da obrigação de proceder conforme o Senhor tiver inspirado.

Como o próprio Altíssimo inspirara a Francisco que devia viver com seus irmãos segundo a forma do Santo Evangelho, a Vida e a Regra dos minoritas, que Francisco declara em seu testamento ter-lhe sido revelada pelo Senhor, é para todos os frades uma explicitação da vontade de Deus. Os ministros não devem, portanto, ordenar a seus súditos coisa alguma que seja “contrária à nossa vida’ ou que infrinja nossa Regra. A obediência tem assim algo de grandioso, sendo talvez mais árdua e difícil para quem manda, do que para quem obedece.

RNB: Constituídos como ministros e servos. O que constitui ‘ministro e servo’ e lhe dá a medida é o próprio vigor do Senhor. Por isso o ministro é como a abertura através da qual fala o vigor do Senhor. O ministro é ministro na medida e enquanto serve no vigor do senhor. RNB: OS MINISTROS E SERVOS LEMBREM-SE. A citação evangélica e as exortações de SF indicam que os irmãos indicam que os irmãos ministros e os irmãos súditos estão profundamente relacionados um com o outro, um é responsável pelo outro, a tal ponto que, se por acaso, algum irmão se perder por causa do seu mau exemplo, ele terá que prestar conta no dia do juízo.

Perguntamos porém: como alguém pode entrar como terceiro e responsável na vida do outro, no relacionamento pessoal de cada um com Deus? Que responsabilidade tem o ministro com o súdito e cada súdito com os outros? Responsabilidade é a seriedade do caminhar que leva à perfeição. Responsável pelo outro quer dizer: eu sou responsável porque o outro é sempre prolongamento do relacionamento meu comigo mesmo; o outro é o meu relacionamento. Ser responsável pelo outro afinal quer dizer: ser responsável por si mesmo, cuidar de si, ter seriedade na busca da identidade, pois somente assim se pode convocar o outro na busca da identidade não consegue arrastar o outro. E por isso deverá ‘prestar contas no dia do juízo’, porque se tornou partícipe e responsável da falta de busca do outro.

RNB: Guardai pois as vossas almas e as almas dos vossos irmãos. Alma indica o âmago da vida; portanto, guardar o vigor essencial, seu próprio e de seus irmãos. Guardar: conservar, proteger, é a raiz de custos, guarda. Em grego custos vem de kenthos, que significa escuro, esconder, isto é, o escondido no escuro, na profundidade, como “vaso” que contém, conserva e guarda. Custos, portanto, é aquele que guarda (guardião), que conserva na profundidade o vigor que o faz viver e faz viver os outros na própria identidade; o vigor do qual parte o sentido da vida e da identidade. São Francisco diz: conservai a vós mesmos e a vossos irmãos no vigor essencial, na profundidade a partir donde surge o sentido da vida minorítica.

RNB: Terrível é cair nas mãos do deus vivo. Deus vivo: aquilo que constitui o Mistério mais profundo da vida. A dimensão de tal profundidade não é brincadeira; por isso é “terrível”, pois a intensidade da profundidade do Deus vivo é tão grande que se torna um “perigo” para nós. Guardar nossas almas, portanto, é viver nesta profundidade. Nessa profundidade cada passo é terrível, é perigoso, porque convoca a crescer na experiência. E cada um fica responsável pela própria concreção.

RNB: E um lave os pés do outro. No tempo da escravidão, lavar os pés era trabalho de escravo. Logo pensamos que esta fala de São Francisco é um convite a se humilhar. Mas aqui a conotação é outra: há coisas importantes, não muito brilhantes, mas que são as mais elementares e as mais úteis na vida: alguém pode pregar quantas vezes quiser a coisa mais sublime ou fazer meditação no máximo da iluminação, mas se não tiver alguém para cozinhar, sua pregação ou sua iluminação não enche a barriga! Se um professor fizer greve por meses se aguenta, mas se os lixeiros fizerem uma semana de greve, ninguém agüenta e uma cidade como São Paulo vira um inferno num instante. Há diversos serviços “humildes’’, de escravo, que são elementarmente importantes para toda forma de vida humana. São Francisco convida os frades menores a assumir mutuamente principalmente essas tarefas elementares que a sociedade chama de “humildes” e as considera como coisas importantíssimas; que assumam o outro todo inteiro, concreto. Referido à vida fraterna, isso significa: eu estava esperando daquela comunidade uma família bonita, mas um é cabeçudo, outro tem formação diferente, outro ainda é mole demais… Assumir isto não é perder tempo, não é coisa baixa, não é decadência; assumir isto é importante. Mas se ficarmos apenas no nível estético, pensamos que este assumir é decadência, é perder tempo, que poderia ser melhor…

RNB: Não exerça posição ou cargo de mando. Em latim: não tenha poder ou dominação. A medida da superioridade é servir, é o “lava-pés”, é o ser menor. O superior exerça seu cargo com este espírito e a instituição, também, seja imbuída desse espírito.

Fratres vero, qui sunt subditi recorntur quod propter Deum abnegaverunt voluntates. Unde firmiter praecipio eis ut obediant suis ministris in omnibus quae promisserunt Domino observare et non sunt contraria animae et regulae nostrae.

Os irmãos, porém, que são súditos, lembrem-se de que, por amor a Deus, renunciaram à própria vontade. Por isso, mando-lhes firmemente que obedeçam aos seus ministros em tudo que prometeram ao Senhor observar, e que não for contra a alma e a nossa Regra.

RNB: E todos os outros meus abençoados irmãos obedeçam conscienciosamente em tudo o que diz respeito à saúde da alma e não for contrário ao nosso gênero de vida. Se porém um dos ministros mandar a um irmão algo que for contrário ao nosso gênero de vida ou á sua alma, o irmão não estará obrigado a obedecer-lhe. Pois não haverá obediência onde se cometer uma falta ou pecado. E nenhum irmão trate mas a um outro nem fale mal dele. Antes sirvam e obedeçam de bom grado uns aos outros na caridade de Espírito. E esta é a verdadeira e santa obediência de N.S. Jesus Cristo. E todos os irmãos que se desviarem dos mandamentos do Senhor e andarem pelo mundo, fora da obediência, como diz o profeta (Sl 118,21), saibam que fora da obediência ficam amaldiçoados enquanto, deliberadamente, estiverem em tal pecado. Mas se perseverarem nos mandamento do Senhor que prometeram segundo o santo evangelho e o seu próprio gênero de vida, saibam que estarão na verdadeira obediência e serão abençoados pelo Senhor.

Renunciaram à própria vontade. A obediência tem em Deus sua única razão de ser. Para São Francisco a essência do primeiro pecado está no fato de Adão ter-se apossado de sua própria vontade. Esta apropriação, que desligava de Deus, é o cerne de todo outro pecado. Jesus Cristo, porém colocou sua vontade na vontade do Pai, até a extremas consequências. Quem o segue nessa “kenosis”, tornando-se seu discípulo, é salvo por ele.

Nós só amamos aquilo ou quem nos faz o bem, e somos indiferentes ou até odiamos a quem nos faz o mal. A nossa capacidade ou possibilidade de amar é delimitada pela nossa ciência do bem e do mal. Em outras palavras, nós só amamos aquilo ou quem faz a nossa vontade.

Para São Francisco fazer a própria vontade é um mal (Adm 2), não tanto por ser egoísmo no sentido usual, pois o egoísmo é um modo deficiente de vontade própria; para São Francisco, a vontade própria do homem, mesmo a boa, é um mal, pois está presa à “ciência do bem”, isto é, está na pretensão de determinar a partir de si, o que é bem e o que é mal. Consequentemente, isto significa que nós só conseguimos amar a Deus se Ele fizer a nossa vontade, só o chamamos de Pai, só o buscamos como amor, Paz, Bem, Felicidade, só lhe somos gratos, se ele fizer a nossa vontade.

Nossa atitude não é muito diferente nem sequer quando dizemos que o amamos porque fazemos a sua vontade, pois há um modo de obedecer que, no fundo, é resignação que abafa a nossa vontade, o nosso gosto, a nossa ciência do bem e do mal, para submetê-la à vontade de um Patrão. O Deus de Jesus Cristo nos ama a ponto de aceitar tal obediência como manifestação do nosso amor para com ele, mas não é numa tal obediência que vamos entender, experimentar o que significa Amor de Deus ou Deus de Amor revelado em e por Jesus Cristo, o crucificado.

Para entender e experimentar o que significa o Amor de Deus e Deus de Amor manifestado no Crucificado é necessário estudar (discipulado) a Jesus Cristo radicalmente (até as raízes), totalmente (com todo o nosso ser), ab-solutamente (sem buscar explicações através de outras coisas).

A grande dificuldade nossa para uma tal aprendizagem está em não sermos disciplinados, isto é, não termos a dinâmica de discípulo (cf. Isaias 50,4-9). Já lemos as Sagradas Escrituras a partir do ocular da ciência do bem e do mal. Se nos colocarmos na disciplina discipular haveremos de nos chocar formalmente com o sofrimento, como contra a pedra de escândalo, e perguntar: como é essa disposição do Crucificado que no sofrimento diz: “Eis-me aqui, ó Pai, para fazer a tua vontade” (cf. Hebreus 5,7-9)?

Como é pois esse Deus revelado em e por Jesus Cristo Crucificado? É amor de alguém que ama a todos, fazendo a vontade de quem não faz a sua vontade, de quem é indiferente ou contrário à sua vontade. Em outras palavras, é uma vontade que ama os inimigos seus, ama primeiro, de antemão, gratuitamente, como doação pura e humilde, benigna, nobre, benevolente, cheia de misericórdia.

Tudo isso e dito de uma forma tão banal e indiferente que temos dificuldade de entender o seu alcance. Tentemos intuir de que se trata. Digamos que há um grupo de pessoas cheias de vontade própria, isto é, que entendem amor como a bondade que faz a vontade delas e se alguém as contraria, o rejeitam como inimigo; neste grupo, há um “justo” que conheceu e aprendeu de outrem a amar verdadeiramente: ele percebe que uma tal vontade própria não e amar: no grupo há um “opressor” que, a partir da sua própria vontade, exige tudo para si egoisticamente, maltratando o “justo”, exigindo até que se torne criminoso; este, porem, não lhe obedece quanto ao crime, mas em todo o resto lhe obedece cordial e amigavelmente; este justo, depois de ser maltratado ao extremo, devido aos maus-tratos, morre confessando ao “opressor” que não se afastou dele, mas que suportou os maus-tratos, porque esperava que acordasse para o verdadeiro amor. Nesse momento, o “opressor” acorda e consegue intuir uma realidade que antes, a partir de sua própria vontade, nem sequer podia imaginar possível; ele então, a partir dessa iluminação, descobre que vivia no “pecado”, num modo de ser que não era “amar”, e que não conhecia a verdadeira felicidade. Arrepende-se, começa a considerar a atitude anterior como o mal, e tenta livrar os outros, despertando neles o desejo de sair de sua “ignorância” e “alienação”. Se agora, em concreto, faz o trabalho de se doar aos outros e estes os entendem por amor o que vem ao encontro de sua própria vontade e à sua ciência do bem e do mal, diversas coisas de doação que faz a eles se não se encaixarem nas categorias da sua própria vontade, irão considerá-las como contrariedade, sofrimento e tribulação e irão culpa-lo por falta de amor e acusá-lo de lhe querer mal. Mas este, por lhes querer bem mesmo, pois sabe que o conhecimento do verdadeiro amor é o tesouro precioso escondido e a maior felicidade de uma pessoa, quer que eles tenham essa experiência também. Mas, por eles só entenderem por amor o que lhes dita a medida da própria vontade, não há outro caminho do que estar à disposição deles fazendo o que pode da vontade própria deles, enquanto esta não os prejudica; colocar-lhes coisas que para eles são contrariedades, mas que na realidade são possibilidades e chances de conversão; sofrer com eles; sofrer suas acusações e esperar que despertem para o amor que está lhe dando nisso tudo.

Imagine agora uma pessoa cujo amor de doação é infinito, cuja humildade, ternura e bondade na doação é do tamanho de todos os amores do universo, alguém que sabe tudo o que é o melhor para nós, doando-se a nós que só conhecemos por amor o que queremos e o que nos agrada. Essa pessoa, que é o Deus de Jesus Cristo, no que puder vai fazer a nossa vontade; no que não puder, por ele ver e saber que o que queremos e pedimos é prejudicial, não vai nos atender, vai até nos contrariar. E se sofremos por não entender o seu amor que não faz a nossa vontade, conforme nossa conforme nossa ciência do bem e do mal. ele sofre duplamente, por ele ser mais sensível e mais profundo do que nós no saber todas as coisas; sofre porque nós não o entendemos, por não sermos gratos ou até revoltados com Ele; mas está junto de nós nos acompanhando, esperando que despertemos para o seu Amor. Em outras palavras: o Deus de Jesus Cristo está junto de cada pessoa. de modo cada vez singular, com ele, nele, junto dele, no modo mais íntimo, mais próximo do que a pessoa mais intima e amiga possa ter conosco, mais do que a mãe, pai, esposo, esposa, irmão e irmã. Pois ele nos amou primeiro, ele já antes de sermos concebidos no seio de nossa mãe nos amou e cuidou de nós.

Mas então porque cruz, sofrimentos e dor na nossa vida? Não é assim que fazemos esta pergunta porque nós só entendemos como amor o que a nossa própria vontade dita e sabe? Em vez de, com tanta gratidão por Ele estar junto de nós, nos abrimos no sofrimento, para a compreensão daquele amor que ama a nós que o contrariarmos, somos indiferentes ou até revoltados. Jesus Cristo na Cruz mostrou um modo de ser que, no maior sofrimento e dor, se abre para o Pai na gratidão de ele ser Amor, não condicionando o Amor de Deus à sua vontade. Nesse modo de ser então o Pai pode se revelar como ele é: Amor humilde, misericordioso.

Em que sentido a Cruz (Jesus Cristo, o Crucificado) é revelação do Amor de Deus e Deus de amor? Não é absurdo dizer que o sofrimento é manifestação do Amor de Deus? Não é o contrário: quem ama livra o outro do sofrimento? O sofrimento vem do Amor de Deus? Nós cristãos respondemos: não! Não vem de Deus, mas da maldade do coração do homem, isto é, da vontade própria do homem. Quanto mais ele exacerbar a própria vontade, mesmo fazendo o bem, como se fosse senhor e dono dessa tremenda força que é a vontade ou o coração, crescerá na terra a dor e o sofrimento. Mas, Deus permite o sofrimento? Sim. Não somente permite, mas antes enviou seu Filho para que, morrendo na Cruz, revelasse quão profunda e imensa história de Amor de Deus (amor que Deus tem para conosco) se esconde em cada sofrimento.

Como deve ser, então, a Vontade Boa do homem, que se opõe à exacerbada vontade própria que mesmo querendo o bem (ciência do bem) gera o sofrimento? Deve ser uma vontade ou um coração que tem, ou até é um modo de ser bem diferente da vontade própria, mesmo da vontade que quer o bem. Como é esse modo de ser diferente? É o modo de ser do Deus de Jesus Cristo: Misericórdia. Como é em concreto a Misericórdia? “Eis o homem”: Jesus Cristo, o Crucificado. A pura e límpida exposição do Amor de bem-querença, sem nenhuma mistura de vontade própria, amor puro e justo, que inocente acolhe o sofrimento causado pela vontade própria dos outros, para convidá-los a se abrirem ao Amor que não é a própria vontade, Isto é, a perfeita obediência (cf. Adm 3).

Obedeçam a seus ministros. Aos deveres dos superiores correspondem as obrigações dos súditos. O âmbito da obediência dos irmãos súditos corresponde ao âmbito de “ordenar” atribuído aos irmãos ministros. O texto da RB neste ponto é mais explicito e determinado do que a RNB.

O conceito de obediência, testemunhado pelos escritos de São Francisco, teve uma profunda evolução: quando mais o escrito é recente, mais próximo à morte de São Francisco, mais o conceito de obediência é rigoroso: o nosso Pai passara por experiências amargas que abalaram seu idealismo. Confira: RNB 1221: RB 1223; Adm 1223/6: Carta a toda a Ordem abril/junho 1226; Testamento 1226.

RNB: Obedeçam diligentemente em tudo o que diz respeito a saúde de sua alma. Obedeçam em tudo o que se refere à salvação. Salvação vem de “Salus”, saúde, íntegro, cheio e vigoroso. Portanto: obedeçam em tudo o que diz respeito ao vigor de sua alma (alma é o sentido profundo, o que move o viver). E o vigor do nome do Senhor que institui tanto o Ministro, quanto o súdito, como articulações do Mistério; ambos estão a serviço do mesmo mistério, do Nome do Senhor. A obediência, nesta perspectiva, se abre para a “ob-audiência” como sensorial de interpretação da vida; abre-se para a necessidade de ‘ouvir’ o sentido daquilo que é mandado; relacionar-se com o superior a partir de ‘posso’ ou “não posso’ fazer isso ou aquilo é totalmente insuficiente; o relacionamento deve ser com o que está ‘além’; é a escuta deste ‘alem’ que torna possível a escuta do que vem do ministro e do que significa ser irmão súdito. Da mesma maneira o ministro deverá ouvir o ‘além’ para saber o que é ser ministro.

RNB: Não está obrigado a obedecer. Em latim: não tem que obedecer. Como entender ‘tem que’? “Ter” tem a mesma raiz de tenaz e indica o modo de ser com oi qual alguém se mantém firme em sua própria identidade. É ser tenaz na própria identidade. Dizer ‘ter que fazer’ indica manter a capacidade de faze algo a partir da tenacidade de sua identidade, não como imposição vinda de foram, mas como vigor interno. Manter a capacidade mostra a consistência, a identidade na obediência.

O texto, ao dizer que o irmão súdito não deve obedecer àquilo que é contrário ao nosso gênero de vida ou é pecado, não está facilitando a obediência do irmão súdito; pelo contrário, a complica, porque o que é pecado ou contrário ao nosso gênero de vida não está e nem pode ser fixado de antemão catalogado; em cada situação o súdito terá que verificar, olhando para o “nome do Senhor’. Pode bem ser que certas ordens que o súdito no momento julgue pecado e contrárias ao nosso gênero de vida, depois, na experiência, na concreção, verifique que não o eram. O contrário também pode acontecer.

O texto está indicando muito mais que uma norma de conduta: está indicando uma estrutura da identidade: obedecer ou não-obedecer diz respeito à identidade; tem a ver com o que realiza minha identidade e o que não faz ligação com ela. A obediência anda de mãos dadas com a identidade do religioso, de tal maneira que se a identidade for forte, a obediência à ordem não provoca desgaste: mas se a identidade for fraca, o frade se defende não obedecendo.

Identidade jamais é sinônimo de falta de caráter e falta de resistência; ao mesmo tempo identidade não é sinônimo de dureza ou fossilização. Identidade é madureza, vida, flexibilidade, tenacidade, conteúdo, fidelidade e coerência interna, pelo que não pode ser de outra maneira a não ser assim.

Et ubicumque sunt fratres, qui scirent et cognoscerent, se non posse regulam spiritualiter observare, ad suos ministros debeant et possint recurrere. Ministri vero caritative et benigne eos recipiant et tantam familiaritatem habeant circa ipsos, ut dicere possint eis et facere sicut domini servis suis: nam ita debet esse, quod ministri sint servi omniuum fratru.

E onde quer que estejam irmãos que sabem e reconhecem não poderem observar a regra espiritualmente, devem e podem recorrer a seus ministros. Os ministros, porém, caridosa e benignamente os recebam e tratem com tanta familiaridade, que os irmãos possam falar e haver-se com eles como senhores para com seus servos; pois assim deve ser, que os ministros sejam servos de todos os irmãos.

RNB: “Os irmãos que vivem em determinados lugares e não podem observar o nosso gênero de vida recorram quanto antes ao seu ministro e lhe exponham a situação. O ministro procure atendê-los do modo como o desejaria para si, caso se encontrasse em situação parecida (cf. Mt 7,12).

Devem e podem recorrer. O Ministro não poderá estar em toda a parte; se um irmão em sua peregrinação se achar em situação que impossibilite viver segundo a Regra, então, não obstante a obediência” recebida, deverá recorrer a seu ministro quanto antes. O ministro deve recebe-lo benigna e caridosamente, com “familiaridade”. Caridade, bondade e solicitude formarão um ambiente de segurança e aconchego. São Francisco usa o termo “familiaridade” porque, como o amor do pai deve proporcionar aos filhos um bom ambiente familiar, assim também o ministro, pois ele é o “pai desta família”.

Ao saber um dia da situação angustiosa do frei Leão, São Francisco enviou-lhe de próprio punho uma cartinha que indicava este recurso em frases toscas, mas com toda clareza. Quando a prontidão de ajudar por parte dos Ministros e o espirito de confiança por pane dos súditos se harmonizam como vemos nessa carta, só então o recurso se torna um meio eficiente para conservar a pureza de nossa vida.

O que motiva ao relacionamento entre ministro e irmãos e determina a maneira ‘evangélica’ de servir é “Amarás ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente e ao próximo teu como a ti mesmo”. Este mandamento parece muito claro, pois pensamos já sabermos o que é “Deus”, “próximo”, “eu”, “amor”. No entanto, vamos tentar analisar melhor.

a Deus de (ex = a partir de) todo coração, isto é, em todo coração
AMAR alma e mente alma mente = totalidade
Ao próximo como a eu mesmo

‘Eu mesmo’ é expresso pelas palavras ‘em todo meu coração, em toda a minha alma, em toda a minha mente’. Os termos coração, alma, mente (=espírito) não indicam coisas, mas a totalidade. Por isso, significam amar a Deus na totalidade de mim mesmo, de corpo e alma (=tudo) como um “abraça-lo” com a totalidade de “eu mesmo”. Amar a Deus de todo o coração, e amar ao próximo de todo coração quer dizer: amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo. Esse “como a ti mesmo” é o relacionamento correto para com Deus e o próximo.

Quem é Deus? Quem é o próximo? O relacionamento que eu tenho com Deus e com o próximo revela o que eu sou, manifesta a minha pessoa: o modo de amar a Deus e ao próximo indica quem sou eu na minha identidade. A atitude de amar revela os sentimentos que eu tenho, minha mesquinhez, mediocridade, egoísmo ou meu otimismo, generosidade. Isto é, o meu relacionamento revela o horizonte do meu ser dentro do qual enquadro e catalogo tudo e todos. “Amar ao próximo” coloca em jogo até que ponto somos capazes de amar a nós mesmos. E por conseguinte leva a se amar cada vez mais porque só assim poderá amar mais o próximo. Isso vale também em relação a Deus, pois o relacionamento com Deus, o amor, tem a mesma dinâmica.

Deus, próximo, si mesmo são conceitos que não dá para fixar de antemão. Eu-mesmo não é algo feito, mas contínuo crescimento, contínua realização. Deus e próximo também não são fixos; cada qual aparece na medida em que vai acontecendo o processo de crescimento. Eu-Deus-próximo vão se esclarecendo fora da pura representação, da ideia, da percepção vivencial; eles são “experiência”, fruto de crescimento. Portanto, amar a Deus de todo coração… e ao próximo como a si mesmo depende da experiência do crescimento em direção a si mesmo.

Experiência: ex-peri-ência. Ex significa aberto. Peri vem de feri, fahr (ge-fahr): andar. Ência significa essência. De peri vem perigo: tentativa, arriscar para ver, teste, ameaça. Experiência é fazer uma tentativa, testar para se medir, andar arriscando-se. Isso inclui sempre um perigo, um risco. De peri vem também perito: capacitado, garantido, que dá confiança. Experiência é o andar com confiança na tentativa do risco. No fundo experiência é um testar a si mesmo. É um andar que é aventura, pois o caminho não está pronto e nem traçado. A experiência pressupõe necessariamente o andar, porque é no andar que o caminho vai aparecendo: neste sentido andar é uma a-ventura. Experiência então é: estar aberto ao perigo na ausculta. Ao abrir-se o ser humano se arrisca, faz teste. É uma maneira de ser na aventura. Portanto amar a Deus e ao próximo como a si mesmo é experiência, é a tentativa de andar consigo mesmo abrindo-se ao amor: é um arriscar-se, pois, ao abrir-se, cada um aparece como se é.

Em geral temos a ideia de que a comunidade é lugar de aplicação da experiência já “madura” do amor ao próximo. E se a comunidade não conseguir realizar esta ideia de amor como algo já feito, julgamos que a comunidade não serve, não funciona. No entanto a comunidade não é o lugar de aplicação do principio do amor: ela é a própria experiência do amor “em via”, que possibilita maior compreensão do que seja Eu – Deus – Próximo.

Moneo vero et exhortor in domino Jesu christo, ut caveant fratres ab omni supervia, vana gloria, invidia, avaritia (cf. Lc 12,15), cura et sollicitudine huius saecli (cf. Mt 13,22), detractione et murmuratione, et non curent nescientes litteras litteras discere;

Entretanto, admoesto e exorto em JC, NS, que os irmãos se preservem de toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo, detração e murmuração; e os que não têm estudos não os procurem adquirir.

RNB: Suplico por isso na caridade “que é o próprio Deus” (1Jo 4,8), a todos os meus irmãos que pregam, oram ou trabalham, sejam clérigos ou leigos, que tratem de se humilhar em tudo, “nem se desvaneçam, nem sejam presunçosos, nem se envaideçam interiormente de belas palavras ou obras, enfim de nada do que Deus às vezes diz, faz e opera neles e por eles, conforme diz o Senhor: “Mas não vos alegreis de que os espíritos se vos submetam” (Lc 10,20).

E estejamos firmemente convencidos de que não temos coisa própria nossa senão os nossos vícios e pecados. Antes, nos devemos regozijar “quando cairmos em diversas provações” (Tg 1,2) e sofremos neste mundo, na alma e no corpo, toda sorte de angústias e tribulações, por causa da vida eterna. “Por isso vamos nós, irmãos todos, acautelar-nos de toda vanglória e soberba. Guardemo-nos da sabedoria deste mundo e da prudência da carne. Pois o espirito da carne tem grande interesse em fazer muito em palavras e pouco em obras, nem procura a santidade e piedade interior do espírito, mas antes visa e deseja uma piedade e santidade que apareça por fora diante dos homens. E é de tais que diz o Senhor: Em verdade vos digo, que esses já receberam sua recompensa” (Mt 6,2)

E guardem-se todos os irmãos de caluniar a alguém ou de “ocupar-se com discussões vãs” (2Tm 2,14), mas antes tratem de guardar silêncio, tanto quanto lhes conceder a graça de Deus. Não devem também discutir entre si ou com outros, mas procurar responder humildemente, dizendo: “somos uns servos inúteis” (Lc 17,10). Não se irritem, pois “todo aquele que se irar contra seu irmão será réu de juízo, e o que lhe disser ‘perverso’ será réu perante o conselho e quem o apelidar de ‘louco’ será réu do fogo do inferno” (Mt 5,22). E amem-se uns aos outros conforme diz o Sr.: “Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). E a caridade que se devem mutuamente “mostrem-na por obras” (Tg 2,18), segundo diz o apóstolo: Não amemos de palavras e nem de língua, porém de obra e de verdade” (1Jo 3,18).

E odiemos o nosso corpo com os seus vícios e pecados, porque quer viver carnalmente e privar-nos assim do amor de N.S .Jesus Cristo e da vida eterna e consigo arrastar a todos para inferno. Pois por nossa própria culpa somos asquerosos, míseros e contrários ao bem, mas dispostos para o mal, porque, como diz o Senhor no Evangelho: “É do coração do homem que provém maus pensamentos, adultérios, fornicação, homicídios, furtos cobiças, maldades, fraudes, devassidão, maus olhares, falsos testemunhos, blasfêmias, orgulho, insensatez. Todas estas maldades procedem do interior e mancham o homem” (Mc 7,21-23). Por isso, irmãos, como diz o Senhor, deixemos “os mortos sepultar os seus mortos” (Mt 8,22). E muito nos acautelemos da malícia e sutilidade de Satanás, que não quer que o homem eleve o seu espírito e coração para o Senhor seu Deus. “Ele anda por aí e gostaria, sob as aparências duma recompensa ou vantagem, de atrair para o seu lado o coração do homem e sufocar-lhe na memória a palavra e os preceitos do Senhor; ele quer obcecar o coração do homem por meio das solicitudes e cuidados mundanos e nele habitar, segundo diz o Senhor; “Quando o espírito impuro sai do homem, anda por lugares áridos, em busca de repouso; e não o encontrando, diz consigo: Voltarei à minha casa donde saí”. E vindo encontra-a vazia, varrida e arrumada Então toma consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam ali. Assim a última condição desse homem será pior do que a primeira” (Mt 12,43-45).

Entretanto admoesto e exorto. O que foi dito nos trechos anteriores contraria todo o sentir “natural”. É necessário então ouvirmos agora uma advertência profundamente cristã e nunca bastante meditada. São Francisco exorta os irmãos “em N.S. Jesus Cristo”, quer dizer, exorta em seu Nome, no espírito de Cristo, como quem não se empenha pela sua própria pessoa, mas na força, no vigor de Jesus Cristo. A partir disso “admoesta e exorta” a que cada qual acolha sua palavra com a máxima docilidade.

Soberba, vanglória, inveja e avareza. O ministro ao ser procurado não deverá ser orgulhoso diante do irmão necessitado; este tampouco deverá ser altivo, manifestando claramente sua necessidade. Soberba, vanglória, inveja e avareza mostram quanto ainda se está preso ao próprio eu, e quão pouco espaço ocupa neles o Espírito do Senhor. A maneira de dizer “não” a si mesmo e ‘sim’ a Deus, que constitui o sentido da Vida Religiosa, Francisco a descreve com incrível acuidade na Adm 8.

Cuidado e solicitude deste mundo (século). Na Carta aos Fiéis, Francisco denuncia este obstáculo da vida religiosa cristã e franciscana, dirigida e inspirada pelo Espírito do Senhor.

E os que não têm estudos não se preocupem em adquirir. No tempo de São Francisco os estudos eram quase o único meio para alcançar prestígio e a opulência. Muitos corriam aos estudos, mesmo os de teologia. “a fim de parecerem mais sábios do que os outros”. F rejeita a ânsia de saber, pois quem se deixa levar pela vã curiosidade ver-se-á de mãos vazias no dia retribuição: é o “spiritus carnis” no dizer de São Francisco. No cristão este espírito deve dar lugar “spiritus Domini”. A compreensão da Vida religiosa não depende de estudos acadêmicos: a Vida Religiosa é ciência, um saber que se justifica a partir de si mesmo. O fato de não ter instrução acadêmica não exclui da ciência do espírito, pois o essencial consiste em estar ou não trabalhando este tipo de ciência. Uma pessoa rude muitas vezes não compreende certas coisas espirituais, não porque não estudou academicamente, mas porque é pouco cuidadosa em trabalhar com sua cabeça a ciência do espírito, ficando assim bitolada, fanática, fechada: é assim não porque não estudou. mas porque não trabalhou. Uma pessoa estudada pode ter muita esperteza e profundida, não porque estudou academicamente, mas porque trabalhou sua própria vida; pode acontecer de uma pessoa muito estudada tornar-se brutalmente bitolada e ignorante nos fenômenos humanos. Assim tanto um analfabeto como frei Egídio, como um estudado, como São Boaventura, tem uma sabedoria enorme, não porque estudaram ou não estudaram, mas porque trabalharam e adquiriram a ciência do espírito. De fato a vida franciscana tinha isso de interessante:

Uns eram analfabetos, outros grandes catedráticos das universidades; uns eram técnicos, outros poetas, artesãos, camponeses: cada um sabia sua profissão, no entanto todos eles estavam no mesmo nível na busca da ciência da “profundidade humana-religiosa”. Esta era a sua profissão.

Precisamos entender nitidamente que há uma área, uma realidade básica e fundamental dentro de nós, cuja compreensão é uma ciência, ciência que deve ser estudada direito. Essa área é o que chamamos de espiritualidade. A espiritualidade, a arte, a filosofia, a fé moram na mesma região de profundidade humana. Nós religiosos precisamos ter a ambição de ter esta profundidade; nosso estudo específico reside ai. Se for bom neste estudo, ainda que ignorante nas outra áreas e talvez tenha que trabalhar como lixeiro para sobreviver, você é grande entendedor da ciência chamada ciência do espírito. Se não fizer este trabalho fundamental, o religioso fica frustrado, por mais realizado que fique como professor, pastor, pois tudo isso funciona somente por um certo tempo. O religioso, mesmo o professor fica insatisfeito se não entende que o saber que procura na Vida Religiosa é um saber de realização espiritual. Na Vida Religiosa não há lugar para o “complexo de não ter estudado”, nem para falar em “valorizar os que não estudaram”, pois nestas colocações está latente a afirmação da superioridade de quem estuda e da inferioridade de quem não tem estudos acadêmicos. O religioso que pensa que o acadêmico torna superior e o não estudo faz inferior, não tem boa cabeça religiosa.

Uma questão muito importante para o futuro de qualquer congregação, é o fomento do estudo da ciência do espirito; qualquer congregação que não faça isso, com o tempo passa a ter fôlego muito curto, para bem trabalhar o viver religioso tem que se ter bem claro o que é espírito. O engenheiro sabe o que tem que estudar, o médico e o economista também; nós religiosos, entre as tantas coisas que estudamos, precisamos ter claro o específico de nosso estudo; e estudá-lo não somente num curso, mas por toda a vida, como busca de conhecimento do específico da nossa profissão. Na Europa e no Japão se tem muita dificuldade de conseguir religiosos que tenham coragem de ser formadores para vocacionados de alto nível acadêmico; os frades dizem de [não] precisar de preparo acadêmico, pois estão com medo das questões e objeções que eles poderiam levantar nas colocações que fazem. Mas há quanto tempo estes religiosos estão na Vida Religiosa? E se estão nela há 25 anos, como podem dizer que não estão preparados para introduzir as pessoas naquilo que estudaram por 25 anos?! É um questionamento aparentemente simplista; mas duro e bem real. No estudo da ciência do espírito, seria bem prático, concreto e imediato, se estudássemos os textos franciscanos primitivos e o Evangelho tanto quanto um filósofo, por exemplo, estuda filosofia; e isso só do ponto de vista da quantidade de tempo! Fazendo isso teríamos uma compreensão muito mais clara do Evangelho e do franciscanismo. Se diz porém que uma irmã enfermeira, um frade na pastoral não têm tempo para isso. Sem dúvida o fator cronológico tem uma influência muito grande, mas será que é mesmo problema de tempo? O problema verdadeiro é que nós não sentimos a necessidade vital de estudar de alguma maneira “cientificamente”, faça o que fizer e esteja onde estiver. Nós pensamos burguesamente em “fazer curso”, ao passo que se fosse uma necessidade vital, os religiosos começariam a se movimentar, se concentrar em alguns pontos fundamentais de busca onde, todo dia, sempre de novo e cada vez pudessem crescer aos poucos na evidencia do espirito. Um religioso, por exemplo, não conhece os deveres do religioso, mas o médico conhece bem os seus deveres; não conhece certas leis de seu estado, mas o médico conhece: não sabe o nome de coisas fundamentais que para o sacerdote, o teólogo é importante saber; dá qualquer nome, mas o médico não dá, ele sabe!

O estudo acadêmico. quando acadêmico mesmo, é um volume medonho de saber do qual tem que se dar conta. Quem estuda numa faculdade tem que meter a cara mesmo, considerando o estudo como tarefa. Quem o considera um luxo, coisa de burguês, é melhor que não estude, pois assim estraga o estudante; procure fazer outra coisa que ache não ser burguesa. Quem vai para a faculdade, estude, sem ficar pensando que tem vida fácil, enquanto há muito estudante que trabalha para estudar e que por isso Lambem tem que trabalhar para pagar seus estudos. Pois desse jeito não faz a experiência do estudo académico sério, duro; estuda como filho de papai rico e não entra no pulso daquilo que a ciência exige. Porque a ciência ela mesma como ideal é uma vontade, uma exigência muito grande de pegar a realidade como tal. Por isso, nos franciscanos, que temos o estudo pago, devemos estudar pra ter como um estudante pobre que não tem bolsa de estudo: estudar mais que os outros e chegar a tirar boas notas , não para a nota boa, mas para ficar realmente competente naquele estudo.

O estudo acadêmico dá muita disciplina, contanto que você o leve a sério. Também dá muita capacidade de trabalhar, muita precisão na fala e na expressão. O estudante, porém, não deve pensar que o estudo acadêmico leve à verdade como tal, e sim a uma modalidade do saber que vale dentro do limite de aplicação daquela área científica. Deve lembrar que existe um conhecimento de outro nível, muito mais profundo que a ciência.

RNB: Tratem de guardar o silêncio. A condição fundamental para que se possa dar o “espírito do senhor” é o silêncio, a capacidade de silenciar. Silêncio é modo de ser. Para haver silêncio nesse sentido é necessário estarmos livres do desejo de dominar, da vontade de ter razão, da precipitação em ter vez, da convicção da superioridade, do saber de antemão, de gavetas de informações, do medo de perder a posição, do medo de não ser reconhecido, do sentimento de inferioridade, em suma devemos estar livres no coração e no intelecto, da ocupação, do enchimento do próprio eu.

Mas, para que se dê o silencio, não basta estar livre de tudo isso. E necessário concentrar serena e pacientemente todo o nosso ser no recolhimento de ausculta para o que der e vier. como o servo que inclina o seu ouvido, todo o ouvido e se dispõe: “Fala. Senhor, que o teu sevo escuta’.

Há poluições acústicas, usualmente dominantes que impedem o recolhimento:

– a calúnia: caluniamos quando atribuímos ao outro a falta que ele não cometeu. No entanto, há também uma espécie de calúnia quando atribuímos ao outro uma posição que ele não defende, quando colocamos o outro numa posição em que ele não se acha. Se por exemplo atribuo ao outro uma agressão, quando ele só constatou o fato. Essa atitude pode acontecer também em relação a acontecimentos, atribuindo-lhes um sentido que eles não têm: é uma espécie de calúnia contra Deus: uma blasfêmia.

– a ocupação com discussões vãs: ocupar-se é encher o nosso ser de tal sorte que não sobra mais espaço de jogo, não há mais lugar livre para podermos ouvir. Um tambor ocupado não ressoa mais.

Discussão vã e quando cada qual está cheio de sua posição, de tal modo que não há mais a troca recíproca de comunicação. Pois para haver a troca, cada qual deve poder movimentar a sua posição, ceder, dar lugar a, por em questionamento a si mesmo. Paradoxalmente, quando há choque irredutível de duas posições, as duas se acham no mesmo nível de compreensão, embora em lugares opostos e extremos. S. Francisco diz: uma tal paralisação é vã, pois não caminha. Para se caminhar é necessário abandonar a posição e a fixação da discussão para se dispor à atitude de servo inútil, do servo que não faz reivindicação de seu direito e se abre jovial e acolhedor ao serviço da Verdade, não como se gostaria que ela fosse, mas como a Vida dita no seu ad-vir.

– a irritação: a irritação não é propriamente a explosão inocente de uma indignação vigorosa. irritação não tem a inocência do vigor de uma indignação cordial. É antes uma espécie de exacerbação neurótica de sensibilidade ferida. Como tal é sintoma de fraqueza e falta de vigor. Há na irritação, a agressão e o espirito de vingança de quem defende o seu pequeno eu ameaçado ou impaciente porque o outro, a realidade, a Vida não é como gostaria que fosse.

Para que aumente o vigor do “espirito do Senhor e seu santo modo de operar” é necessário pois um trabalho lento, tenaz e constante em nós mesmos. É necessário a concentração da pouca força que temos para trabalhar em cheio em nós mesmos. Por isso São Francisco nos convida a sermos humildes e contritos (no vigor do húmus c carregando o peso do trabalho, quase esmagados ate o fundo de nós mesmos) e a nos purificar, sem perder a energia preciosa tentando corrigir e julgar os outros.

RNB: A caridade… mostrem-na por obras. Mostrar por obras não significa fazer publicidade”, mas ter um “modo de ser que se torna obra”, isto é, trabalhar de tal maneira na identidade , que não haja distinção entre a fala e o modo de ser ou fazer. Se, por exemplo, alguém disser que está acostumado a escalar montanhas, mas depois de andar um pouco pede para descansar por não aguentar mais, não se mostrou alpinista “por obras”, blefou: mas o “alpinista” que não garganteou até ajudou o outro a subir, demonstrou ser alpinista “pelo fazer”. Mostrar por obras e irradiação da dinâmica da identidade da pessoa.

Se, por exemplo, um frade faz uma coisa certa e o superior, por ser pessoa precipitada que não examina as coisas, lhe da uma bronca, não precisa dizer que o superior tem razão, mas também, no dizer de São Francisco, não precisa “dar culpa” ao superior. Dar culpa significa pensar: “Que vida miserável; não fico mais numa porcaria de Ordem que tem superior desse jeito;: vou e buscar outra”. Este dizer é dar a culpa. Para São Francisco este dar a culpa não é real, não é “obra”, pois este religioso está saindo da Ordem não porque o superior é assim, mas porque não enfrenta essa dificuldade. Ele dá culpa, responsabiliza a outrem pelo que faz, quando cada um tem responsabilidade de si e e esta responsabilidade deve ser segurada, educada deve ser cultivada e crescer. Quem estiver bem colocado na vida, como aprendiz de uma busca intensa segura o seu eu nessa situação e vai aproveitar disso para, por exemplo, exercitar-se para se limar e tomar-se cada vez mais profundo na virtude, no vigor da paciência. Tendo paciência ele começa a ser alguém que serve para a vida. Pode usar isso para se limar na virtude da sabedoria, da inteligência da vida e se perguntar como se deve trabalhar a si mesmo com um superior assim. E assim em vez de cair para o ressentimento, aproveita para o crescimento de si mesmo que é crescimento para a verdade de Jesus. Este é um método real de lidar com a vida e quem fica craque nele, em 5, 6 anos pode consertar muitos defeitos próprios e adquirir energia ‘religiosa’ muito grande.

Sed attendant, quod super omnia desiderare debent habere spiritum domini et sanctam eius operationem, orare semper as eum puro corde et habere humilitatem, patientiam in persecutione et infirmitate et diligere eos qui nos persequuntur et reprehendunt et arguun, quia dicit Dominus: diligite inimicos vestros et orate pro persequentibus et calumniantibus vos (cf. Mt 5,44). Beati qui persecutionem patiuntur propter iustitiam, quoniam ipsorum est regnum caelorum (Mt 5,10). Qui autem perseveraberit usque in finem hic salvus erit (Mt 10,22).

Mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de operar, rezar sempre a deus com coração puro, ser humilde e paciente nas perseguições e enfermidades; amar aqueles que nos perseguem, censuram e atacam; porque diz o senhor: “Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem e caluniam; bem-aventurados os que-padecem perseguição por amor da justiça, porque deles é o treino dos céus. Quem assim perseverar até o fim, este será salvo” (Mt 5,44; 5,10; 10,22).

RNB: “Porém o espirito do Senhor exige que a nossa carne seja mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível; Se ele procura a humildade e a paciência e a pura, simples e verdadeira paz do espirito; e acima de tudo deseja sempre o temor de Deus, a sabedoria de Deus e o divino amor do Pai, do Filho do Espirito Santo. “Atribuamos ao Senhor Deus altíssimo todos os bens; reconheçamos que todos os bens lhe pertencem; demos-lhe graças por tudo, pois dele procedem todos os bens. “E Ele, o altíssimo e soberano, o único e verdadeiro Deus, os possua como sua propriedade. E a Ele se dêem, e Ele receba toda honra e reverência, todo louvor e exaltação, toda ação de graças e toda glória. Ele a quem pertence todo bem, e que “só Ele é bom” (Lc 18,19). “De nossa parte, quando vemos e ouvimos alguém amaldiçoar, abençoemos; fazer o mal, façamos o bem: blasfemar, louvemos o Senhor, que é bendito por toda eternidade. Amém (cf. Rm 12,21).

Atendamos todos, irmãos, ao que diz o Senhor: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem a todos os que vos odeiam” (Mt 5,44). Pois também Nosso Senhor Jesus Cristo, cujas pegadas devemos seguir (cf. 1Pd 2,21), chamou de “amigo” o seu traidor e se entregou de livre vontade aos que o crucificavam. São pois nossos amigos todos aqueles que injustamente nos infligem tribulações e angústias, opróbrios e injustiças, dores e tormentos, martírio e morte. “A esses devemos amar muito, porquanto pelo mal que nos fazem teremos a vida eterna.

Por nossa vez, desde que abandonamos o mundo, outra coisa não temos a fazer senão empenhar-nos em seguir a vontade de Deus e agradar a Ele. Tomemos muito cuidado em não sermos a terra do caminho ou pedregosa ou abafada pelos espinheiros, à qual se refere o Senhor no Evangelho: “A semente é a palavra de Deus. A que caiu sobre o caminho e foi pisada são os que escutam a palavra mas não a compreendem. E logo vem o diabo, arranca o que fora semeado nos seus corações e tira a palavra dos corações deles para que não creiam nem se Salvem. “Porém a que caiu sobre chão pedregoso são aqueles que imediatamente aceitam com alegria a palavra quando a escutam; mas sobrevindo tribulações e perseguições por causa da palavra, logo se escandalizam; não há raízes dentro deles e ficam inconstantes porque creem durante algum tempo e quando vem a tentação voltam atrás. “Porém a que caiu debaixo dos espinheiros são aqueles que escutam a palavra, contudo os cuidados e dificuldades deste século, o falaz fulgor das riquezas e demais concupiscências penetram e sufocam a palavra, que não pode produzir fruto. Mias a que foi semeada em terra boa são os que escutam a palavra de coração muito bem disposto, a entendem, a conservam e produzem fruto com perseverança” (Mt 13,19-23).

Por isso, irmãos todos, vigiemo-nos muito a nós mesmos, a fim de não perdermos ou desviarmos do Senhor nossa mente e nosso coração sob a aparência duma recompensa ou obra ou ajuda. Mas na santa caridade que é Deus (cf. 1Jo 4,16), rogo a todos os irmãos, tanto os ministros como os outros, removam todos os obstáculos e rejeitem todos os cuidados e solicitudes, para, com o melhor de suas forças, servir, amar, adorar e honrar, de coração reto e mente pura, o Senhor nosso Deus, pois é isto o que ele deseja sem medida. “E preparemo-lhe sempre dentro de nós uma morada permanente, a Ele que é o Senhor e Deus todo-poderoso. Pai, Filho e Espirito Santo, que diz: Vigiai, pois, em todo tempo e orai, para que possais evitar toda desgraça futura e comparecer perante o Filho do homem” (LC 21,36). “E quando vos puserdes em pé para orar” (Mc 11,25), dizei: “Pai nosso, que estais nos céus”. E adoremo-lo de coração puro, porquanto “é preciso orar em todo tempo e não desfalecer (Lc 18,1). “pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,23,24). E a ele queremos recorrer como “ao pastor e guarda de nossas almas” (1Pe 2,25), que diz: Eu sou o bom pastor e apascento minhas ovelhas (Jo 10,11) e dou a própria vida por minhas ovelhas” (Jo 10,15), “ Todos vós sois irmãos; nem vos façais chamar de pai sobre a terra, porque um só é vosso pai, aquele que este nos céus. Nem vos façais chamar de ‘mestre’, porque um só é vosso mestre, que está nos céus, Cristo” (Mt 2,8-10). Se permanecerdes em mim e minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e ser-vos-á dado” (Jo 15,7). “Onde dois ou três estão congregados em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). “Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação do mundo” (Mt 28,20). “As palavras que eu vos tenho falado são espírito e vida” (Jo 6,63). “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).

Mas cuidem. Este terno é dos mais importantes da Regra. Já foram estabelecidas as relações entre os irmãos, mais especificamente entre superiores e súditos. São Francisco visa agora falar do procedimento cristão no mundo, em particular das relações entre os frades e as pessoas seculares encontrarem e às quais sua vida de “minores fratres” deve servir de testemunho da força revolucionária do Evangelho. Evangelho que visa substituir o “spiritus carnis” pelo “spiritus Domini”.

Dentro da fraternidade, o Reino de Deus só é realizado na medida que no individuo é superado e “expropriado” o “spiritus carnis”, o espirito da egolatria e da autosuficiência, dando lugar ao “Spiritus Domini”, isto é, na medida em que cada um se tornar um “frater spiritualis” no sentido da Regra. Tal “metanoia” (conversão) evangélica só é praticável na pobreza.

O homem assim disposto abre sua alma para deixar entrar o “spiritus Domini’ “et sanctam eius operationem”. A história mostra a necessidade desta distinção. O culto da pobreza material, sem o fundamento do desprendimento “espiritual”, abre facilmente o caminho de um lado a um perigoso liberalismo e individualismo e de outro ao orgulho e ao espirito cheio de si mesmo (autenticidade). Não raro, leva à separação da Ordem, à heresia e apostasia da Igreja.

Antes de tudo, devem ter o espírito do Senhor. São Francisco, na Adm 1 diz: “Ninguém jamais viu a Deus”, mas houve pessoas que o viram em espírito e “é o espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem recebe…”. Espirito é uma maneira de experimentar. É necessário trabalhar muito tempo a si mesmo para experimentar a Deus: nós, como franciscanos e como cristãos, pertencemos a um grupo de pessoas que aos milhares experimentaram a Deus e o testemunharam; pertencemos a um grupo que quer hoje experimentar essa realidade maior, acreditar nela e viver a partir dela.

Para entender melhor esta afirmação de São Francisco e para entender melhor nossa vida e como trabalhar a nos mesmos, é interessante ter uma visão um pouco diferente daquela a que estamos acostumados com a ciência moderna, que vê como única explicação da realidade, o universo sendo astros, estrelas, átomos… Não somente o cristianismo, mas toda e qualquer religião tem uma maneira de ver o universo diferente da ciência. A religião encara a vida dentro de um grande todo, acreditando numa força maior. Religioso vive nesse mundo não como qualquer outro, mas como alguém que conta com aquela força e acredita nela; não somente acredita e sabe, mas também tem experiência desta força maior. Nós chamamos a esta força de Deus de Jesus Cristo. A Vida Religiosa se caracteriza pelo fato de estar disposta, decidida e engajada na busca daquela maneira de sentir, ver e atuar que foi de JC.

Imagine uma força, um vigor originário, uma energia enorme, que nós chamamos de Deus. Esse Deus é uma bondade infinita, uma bondade que continuamente doa energia vital. Esse redemoinho de vida saindo de Deus, é Deus fluindo e criando o universo. Então todo o universo, desde as pedras inanimadas, os vegetais, os animais, os homens, até o espirito mais sublime, tudo esta pulsando dessa força de Deus: tudo é essa força de Deus tomando corpo. Esse é o modelo da Criação que os medievais tinham: Deus continuamente sustentando sua criação. Então todas as coisas no fundo estão vivas, não no sentido biológico, mas “vivas de Deus”, pulsando na bondade de Deus. No homem isso aparece no corpo, na alma e no espirito.

Consequentemente, tudo que existe ao nosso redor é nosso irmão, porque todos pulsamos na mesma força de Deus; jamais alguém está só, pois pertence a todo esse universo. O corpo, a inteligência, o sentimento e vontade, tudo está pulsando nessa força universal e quando tudo isso, tanto no corpo, como na alma e no espírito, começa a se desenvolver no seu proprium fica “bom”. O ponto mais alto desse processo é quando uma pessoa fica santa. Santa é uma pessoa disponível para essa força, aberta a ela, perpassada por essa força que preenche o universo e que no fundo é Deus. Pela “santidade” esta força aumenta cada vez mais; e onde o “santo” está atua, nele, ao redor dele, por ele, falando com os outros, pregando… esta força insondável, inesgotável de Deus, aparece cada vez mais.

Assim, através de quem trabalha a si mesmo, na medida que alguém trabalha-se a si mesmo, faz aparecer Deus neste mundo. Essa é a missão da pessoa que se decidiu ser religiosa, pois decidiu-se a se limar, trabalhar-se para fazer aparecer essa força que aparece, por exemplo, na sua fala; não precisa falar muita coisa religiosa, mas pelo fato de deixar-se fluir em Deus e encher-se dele, tudo que ela fala, tudo sente, diz e opera é a presença de Deus. Desse jeito o homem cria sensibilidade e disposição para ver nas plantas, nas coisas, para ver no governo, na politica momentos que se solidarizam ou “resistem” a essa força. Disso surge a luta para a ecologia, para a questão social…, pois o homem experimenta dentro de si que está presente em todas as coisas, principalmente nele próprio; experimenta também que só nele há “resistência” ou até “rejeição” desta força, que faz com que ele não cuide disso ou até use em direção contraria. Por outro lado, quem a acolhe se torna em toda a parte seu arauto, seu mensageiro e seu pastor; nisso consiste nossa vida pastoral, nossa vida interior; por isso estamos aqui.

Para que este “espírito do Senhor” vingue em nós, é necessário ter engajamento para adquirir um silêncio, um ouvido bem afinado que torne sua força originária livre de apegos e disponível para que ela entre em você. Pois essa força está continuamente batendo à nossa porta, mas, por estarmos virados para nossos “apegos”, não conseguimos senti-la nem percebê-la nem experimentá-la. É portanto necessário trabalhar e ter o próprio eu sob o controle para que esta energia divina, humanizada como bem querer, bom afeto, boa compreensão, fique cada vez melhor. Na medida em que se faz isso, no fundo se está liberando essa energia, que é presença de Deus. E quanto mais se faz isso, mais Deus começa a aparecer, o universo fica mais feliz, você se realiza a si mesmo e realiza as pessoas que estão ao seu redor, só pelo contato que têm com você, quando você fala ou quando escuta ou atua; assim vai trabalhando por amor de Deus e para que este se torne presente.

Na medida em que assim trabalharmos, podem até surgir fenômenos estranhos em que se sente Deus falando, atuando. Isto não é fantasia; pelo fato de alguém ter limpado a si mesmo do egoísmo, de apegos, toda a sua energia está límpida como um “radar”. Isso não tem nada a ver com ficar melhor que os outros; tem a ver com servir, ser útil a essa realidade em que acreditamos. É só por isso que se deve lutar contra os próprios defeitos. E ao lutar contra eles, já se está fazendo pastoral, pois se ensina não simplesmente para ensinar, não se se engaja só para promover os pobres; se engaja e se ensina para fazer aparecer essa força divina que permeia o universo e a partir dela as pessoas sejam melhores, sejam “santas”; santos não de santidade “piegas”, mas dessa presença de Deus.

E todos os exercícios de vida religiosa – oração, meditação, caridade, vida comunitária, estudo, luta para manter a vida moral, para não pecar, para não fazer injustiça – tudo tem o sentido de realmente entender mais profundamente o que é viver, o que é ser homem, a partir desta compreensão da vida, do universo e de Deus.

E seu santo modo de operar. A dinâmica de ser, o querer, que todo homem tem por nascença, podemos chamá-lo de vontade. É um dinamismo; este dinamismo tem que ser cultivado, pois se for deixado solto, cresce de qualquer jeito. No centro dessa vontade, há o “eu”: eu quero para mim. Sempre temos muita vontade, querendo para si, do jeito que se gosta, do jeito que agrada. Essa vontade, esse eu é muito importante, porque somos nós mesmos. Ele não pode, porém, ser deixado solto, espontâneo, não pode ser deixado como é. É uma energia da qual nós somos responsáveis, que deve ser cultivada, melhorada, purificada. A vontade é uma grande coisa, mas deixada a si mesma, desanda. Nós humanos recebemos a grande tarefa de pegar essa energia e cultivá-la. Muitos a chamam também de amor. Quando alguém se torna cristão ou religioso, decide cultivar essa energia de um jeito próprio. Neste cultivo a primeira coisa necessária é a disciplina. Disciplina significa a urgência de não deixar essa energia solta de qualquer jeito; significa a necessidade de colocar nela uma dinâmica de aprendizagem. A pessoa então precisa lutar, trabalhar consigo mesma, muitas vezes contra si mesma, não porque a vontade própria seja ruim, mas porque, se deixada solta, não fica boa. Ela se desfaz, desanda e cria infelicidade para si mesma e para os outros e não alcança aquilo que a pessoa está buscando, pois ao ficar religioso o frade disse a si mesmo: quero viver a vida buscando a verdade que Cristo trouxe. Começa então a surgir a necessidade de ser “virtuoso”, de ser pessoa que tem uma vontade com boa dinâmica. Tem que começar a combater os defeitos, os vícios. Cultivar virtudes e combater vícios não está ligado primeiramente a pecado ou não pecado; está ligado com a técnica de uma boa caminhada. Por isso, o religioso tem que corrigir os seus defeitos, melhorar, como um profissional melhora a própria produção. Para tanto, precisa disciplinar-se, vencer-se a si mesmo, precisa lutar para a própria vontade não ser sem mais sem menos; precisa orientar a vontade para algo bom. Isto é, tem que fortalecer a decisão de não ser qualquer coisa na vida, mas de aproveitar tudo na vida para crescer, para ser cristão, ser religioso, para buscar a verdade de JC.

Para essa tarefa de trabalhar a si mesmo, SF usou a expressão, às vezes mal compreendida, de não fazer a vontade própria”. Fazer a vontade própria para SF é um vício. Isso não quer dizer que o eu, a vontade seja ruim. Está só dizendo que não pode ser deixada como está. Tem que ser trabalhada. Poderia ser deixada solta, mas assim uma pessoa gananciosa prejudicaria a si mesma e aos outros; uma pessoa vaidosa ficaria ‘em vão’, não bem orientada, não bem colocada na vida.

Quando São Francisco diz: não fazer a vontade própria e fazer a vontade de Deus, não está “proibindo”, “castigando” a si mesmo; está transcendendo a si para engatar numa vontade, num eu maior. Nós, religiosos, escutamos a voz de Jesus que nos anunciou um Deus formidável, uma maneira de ser humano formidável; tão formidável que às vezes se tem medo de segui-lo porque vai muito longe. Percebemos porém que vale a pena. Então nós decidimos subir a montanha do seu seguimento.

Estas são coisas que todo mundo conhece e sabe; são elementos da vida espiritual: todo mundo sabe, mas não se tem clareza, são continuamente esquecidas e se acaba não trabalhando a si mesmo. Não faz exercícios, e quando se fazem, não são feitos com clarividência. Assim se pode ter muito boa vontade e sempre de novo tentar, mas não se cresce, se fica marcando passo. Para os religiosos e muito importante examinar, trabalhar a si mesmo, pegar a si mesmo com as duas mãos.

O religioso se decidiu para uma vida difícil, mas se decidiu porque vale a pena: se não trabalhar a si, no duro, regularmente, vai ficar para trás, frustrado. Como às vezes há descuido desde o começo no trabalhar a si mesmo, não se sabe como fazer, e, visto que deu para “sobreviver”, pensa-se que dá para viver sem trabalhar a si mesmo. Todos nós temos a tendência de pensar que as coisas podem alcançadas sem sem trabalhar muito, tendência fortalecida pela mentalidade de consumo típica de nossa época, pelo que se entra numa mentalidade preguiçosa sem perceber. E quando se toma consciência que tem que se trabalhar, se trabalha três dias, depois cansa e desanima, e com o tempo se fica frustrado, irritado, espraiando essa irritação para a instituição e para os outros. Não se percebe que se tem que voltar e assegurar o trabalho de si mesmo. Se ficar bom nisso, todas as coisas começam a mudar.

Nesse sentido, cada um deve despertar dentro de si a vontade de ter bastante virtude; não virtude como enfeite para ficar vaidoso espiritualmente, mas virtude para se ter pernas boas para caminhar e servir, virtude que seja útil. Não se diz: aquela pessoa tem boa vontade, mas não serve, só atrapalha.

Uma pessoa bondosa pode não servir: um religioso que sempre diz sim quando alguém lhe pede algo, e faz tudo de tal maneira que não cumpre mais o seu próprio dever, não serve. As pessoas de fora adoram religioso assim, mas em casa todos ficam descontentes. Esse religioso precisa ter o seu eu, sua vontade sob controle. Tem que examinar se sua bondade é realmente bondade. Pode simplesmente ser “bonzinho” e achar que isso e muito bom e gostoso. Mas isso não basta. Se estivesse num outro estilo de vida, uma pessoa assim talvez pudesse viver desse jeito; mas se é religioso e está caminhando na busca da Verdade para cada vez mais servir mesmo, ser útil, tem que examinar se não precisa trabalhar a si mesmo melhor; pode ser que, embora seja aparentemente muito boa, por esta bondade não estar sendo trabalhada, vire um defeito. No fundo é egoísta; um religioso assim, no exercício de certas tarefas vai ser uma catástrofe. No fundo, uma bondade assim não está servindo nem a si e nem aos outros, não é boa. Parece virtude, mas ainda não o é. E, na medida em que trabalha sua bondade natural, pode ser que tenha que aprender a dizer não em certas circunstancias. Bondade é também tomar posição. Essa pessoa tem que se preocupar sempre para que a bondade dela seja útil.

Um místico, que gosta de ficar horas em oração, tem que se perguntar se isso que ele tem por natureza serve mesmo. Pode ser coisa muito boa: no entanto, pode ser que essa quietude, esse recolhimento seja um gosto: pode ai dentro estar escondido um eu que no fundo é muito acomodado e quando é exigido num trabalho onde há barulho, recusa. Essa pessoa precisa trabalhar o recolhimento, o silêncio de forma que também no barulho seja capaz de conservar a interioridade.

Uma pessoa é tão paciente que é reconhecida e elogiada por todo mundo. É tão elogiada que até ela pensa que é paciente. Mas tem que examinar se nessa paciência não ha uma passividade que a faz apodrecer, transformando-a em pessoa preguiçosa. Essa paciência não seria mais virtude. É um tipo de paciência, aparentemente camuflada de virtude.

Uma pessoa é corajosa, muito ativa. Quem té, fala que é pessoa dinâmica. Mas se quiser ser útil, precisa examinar se essa não dinâmica não é impaciência. Parece muito vigorosa, dinâmica, mas no fundo não tem capacidade de aguentar certas situações, onde não se pode agir, mas tem que esperar. No fundo é uma espécie de egoísmo, de ímpeto, de força ainda não trabalhada.

Vontade é uma energia; em vez da palavra vontade SF usa a palavra corpo, que significa tudo que nós somos; isso que nós somos tem que ser massageado, sovado, trabalhado, usando o catecismo que você dá, co-irmão difícil a si mesmo, usando exercícios físicos, orações, em fim tudo. Sempre, toda pessoa tem coisa que tem que ser trabalhada. A pessoa mesma tem que descobrir. E todas as coisas boas e ruins que tem, cada vez tem que ser examinadas; elas não podem ser largadas, como quem cozinha, não basta por comida no fogo; ele tem que vigiar; se passar do ponto, a comida queima, galinha crua também ninguém consegue engolir. Assim acontece conosco.

Nós somos cheios de defeitos, mas também cheios de qualidades não desenvolvidas. Tem que se fazer com que a vontade, essa energia, seja útil. Como conseguir? Cuidando par que com o tempo nossa energia seja um bom querer, uma boa compreensão e uma boa afeição, isto é, que tenhamos uma vontade inteligente, um coração bem trabalhado.

O bom querer: quero, gosto-desejo fazer isso; essa energia tem que ser uma boa disposição. Você tem que amassar o querer até não mais se agarrar, condicionar a pessoas ou a coisas. Se não fizer isso, não será uma pessoa ruim, mas a sua energia não estará servindo cem por cento. O querer deve ter um bom acolhimento, um bom receber. Há pessoas que não têm capacidade de receber: têm um querer sempre ativo, que sempre impõe e jamais acolhe. Uma vontade assim muito ativa, tem que ser amassada para não perder o ativo e ao mesmo tempo ter capacidade de acolher. Deve ter boa iniciativa, para buscar, inventar, descobrir diante da dificuldade, sem se refugiar no não saber como fazer. Bom cedimento é quase a mesma coisa de acolhimento; há pessoa que não consegue ceder, é cabeçudo; é uma vontade, um querer não muito bem trabalhado. Há pessoas também que parecem dispostas, mas no fundo não tem boa resistência: são muito dependentes em qualquer coisa que se diz e faz: essa pessoa têm que criar um querer mais resistente, de opinião; a pessoa pode até ser boa, só que sem isso não serve para ser um religioso. Tudo isso tem que ser trabalhado, não vem por si. Muitos pensam que é questão de “temperamento”; é preciso largar essa ideia e dizer: eu tenho que amassar, trabalhar, produzir meu bom querer.

A boa compreensão. Temos que largar a ideia de que uma pessoa nasce mais inteligente que outra. Isso vale para a inteligência escolar. Para a inteligência da vida não. Uma pessoa pode ser muito inteligente na matemática, mas não ter boa compreensão. A inteligência “escolar” não serve muito para a vida; ha outro tipo de inteligência que todas as pessoas tem que adquirir, porque ninguém nasce com ela. Precisamos então amassar, massagear a nossa vontade, a nossa energia que se chama compreensão, e conquistar um bom senso: quem tem bom senso não é unilateral (oito ou oitenta), mas sente surgir por dentro uma “consciência”, uma “calma”, um “sopesar”, uma atitude mais global pelo que, por exemplo, não se impõe de acabar alguma coisa “a qualquer custa”, até morrer: diz antes: é importante, mas não vamos nos matar hoje, porque temos amanhã para viver. Esse tipo de inteligência tem que ser cultivado. A inteligência tem que ter bom discernimento das coisas; se, por exemplo, o professor disser: “O seu trabalho não tem muita lógica porque antes falou uma coisa e depois falou outra bem diferente e para ligar as duas usou a palavra “porque” e você disser: professor, eu trabalhei tanto! trabalhei a noite inteira!”, você não tem discernimento, pois não está diferenciando seu empenho, da eficiência do seu empenho. A compreensão é sempre boa penetração: as pessoas superficiais se desculpam dizendo que “o profundo” é dom de Deus. Nunca é somente dom de Deus; é sempre dom de conquista; é trabalho. A pessoa superficial sempre de novo diz: “Ah! Já ia entendi” e pronto. A boa penetração leva ao contrário: Parece que entendi, mas deve ter mais coisa; vamos ver melhor”. A compreensão deve ter uma boa clareza: há pessoa que entende só preto ou branco: se tiver alguma coisa para a qual precisa um pouco de intuição, perde a paciência. Essa pessoa é preguiçosa, não está trabalhando a energia da vontade, para torná-la boa. É como muita mãe de família que, na educação dos filhos, diz: “Deixa de tantas complicações”, e quando o filho começa a se drogar, grita e xinga: esta mãe não tem boa clareza porque não perguntou, não indagou. E não tem esta capacidade não porque é simples, mas porque não trabalhou. A boa compreensão precisa também de um bom silêncio, isto é, ficar quieta para escutar o que está entendendo, quando aparece alguma significação. Experimente examinar se nossa mente é capaz de ficar em silêncio na hora em que não entende alguma coisa e ficar na espera por muito tempo. Ao vir a dificuldade, algo que não se encaixa no que se esperava, se entra em crise, sua compreensão não é capaz de dizer: não estou entendendo, mas vou ficar quieto, bem quieto para ver se consigo escutar algo novo. Na Vida Religiosa, fazemos meditação, guardamos silencio para criar uma inteligência assim. O silêncio da escuta prepara o bom salto da decisão, guardamos silêncio para criar uma inteligência assim. O silêncio de escuta prepara o bom salto da decisão, decisão que solta a energia da vontade trabalhada e tornada boa.

A boa afeição. Simpatia, antipatia, carência são energia. De vez em quando a pessoa tem vontade de elogiar, de abraçar outra pessoa; esse calor deve ser cultivado e se tornar bom calor porque senão pode simplesmente virar instinto espontâneo que faz o que sente no momento; há dias em que a pessoa está muito fria, indiferente; ela não pode deixar as coisas assim; não é pecado, mas e é convidada a se esquentar par que sua afeição seja calorosa. A afeição tem que ter bom frescor, quem se apega muito a outra pessoa, não tem frescor; se não se tratar de um religioso pode talvez deixar assim, mas se quiser caminhar na Vida Religiosa, não pode, porque essa pegajosidade mais tarde grudam outras coisas. Há pessoas muito ternas, mas a ternura deixada solta vira sentimentalismo; a ternura tem que ser boa ternura, ternura trabalhada. Infeliz da pessoa de muita ternura, se não trabalhar o bom rigor: o dia que for formador cria formandos sentimentais, cheios de lengalenga. A boa afeição deve ainda ter boa alegria: alegria é uma energia de afeição; deve ser cultivada e não deixada solta simplesmente. Há pessoas alegres que se sentem abafadas, reprimidas pela formação religiosa. Quem pensa que a alegria tem que estar solta, não serve para lutar; é como o soldado que, exigido de uma seriedade mortal de espera para não ser descoberto pelo inimigo, diz: “Não aguenta mais essa seriedade, preciso cantar”. A afeição exige também a boa sobriedade: uma pessoa não pode ser tão seria que quando deve afrouxar um pouco não consegue e diz: “A vida é pesada minha gente, não pode brincar não”.

Quanta “coisa” a ser trabalhada! E não se pode dizer que é difícil, porque há um método muito simples e direto, que dispensa matutar tudo isso, porque vem por si. É o método que São Francisco apresenta na Adm 10: Ter a si mesmo sob sua rédea. Isto é, ter atenção consigo mesmo, sem, sem moleza, isto é, sem deixar solta a energia da vontade; na moleza aquela energia não serve para nada, e até prejudica.

A moleza pode levantar a cabeça de muitas maneiras, camuflada, com jeitinho, pelo que é necessário desmascarar a si mesmo e transformar essa energia em homem adulto, que sirva para a vida, isto é, que trabalhe para criar uma vontade boa. Fazer esse trabalho é fazer a vontade de Deus. SF, em vez de perguntar o que é vontade de Deus, manda trabalhar a própria vontade para que ela deixe de ser moleza e seja disponível como boa disposição, bom acolhimento, boa iniciativa, bom cedimento…

Esse trabalho, nós temos que fazer continuamente. E quanto mais se trabalha, como pessoa que faz exercício todo dia, sempre de novo, mais vai ficando bom. Assim, a primeira coisa que temos que conquistar é a consciência de trabalhar a si mesmo. Implantar esta consciência dentro de nós.

Esse trabalho São Francisco chama de vencer-se a si mesmo. Ao trabalhar a si mesmo, aparecem sempre dois “eus”: um que é a favor deste trabalho e outro que é contra. Se, por exemplo, um estudante for para a aula pensando que o professor é chato , que não sabe expor direito e implica com os estudantes, está com energia solta; é moleza, não serve. Mas se estiver vigiando a si mesmo, e diante do professor que de fato é chato, convoca a si mesmo a fazer aquilo que o professor não faz; de repente percebe que, apesar de ser chato na maneira de ensinar , o que aquele professor ensina é bom: e agarra aquilo com disposição. Ao fazer isso, o estudante, além de estudar, está fazendo uma coisa muito importante: esta trabalhando a si mesmo, esta colocando a energia da vontade sob vigilância para fazer crescer um outro eu muito mais disposto, bom, que serve, que é útil. É necessário descobrir em todas as coisas os dois eu, para colocar um sob controle do outro, para que o eu que é filho de Deus cresça. Esse trabalho deve ser feito a cada momento, pois se deixar solto o eu, quando tiver 60 ou 70 anos, aquela energia solta cresceu através de mil camuflagens, até de “vontade de Deus”, de amor ao próximo, ocupou todo o espaço e criou um monstro. E o religioso fica infeliz. Não se trata antes de tudo de pecado, trata-se de uma maneira de caminhar muito pouco inteligente.

Este e o sentido da afirmação de São Francisco: “Cada um tem sob o seu domínio o inimigo, isto é, o próprio eu”, para fazer crescer o outro eu, aquele eu é vazio de si, sem apego, disposto, filho de Deus. Isso é “esvaziar-se”. Então Deus entra e começa a falar e atuar através de seu servo bom e fiel. São Francisco se enchia de Deus assim e ia para os outros; isto é catequese, isso e pastoral.

As dificuldades servem exatamente para fazer esse exercício. Ao ir para a missa, ao rezar o ofício, cada vez tem que se colocar com a postura de quem combate a “moleza”, trabalhando a si mesmo. Pode-se escutar a leitura e pensar que é sempre a mesma, o leitor lendo com voz fanhosa, fazendo sempre o mesmo erro: isso é “moleza”. É bem diferente de ter dificuldade, mas se dispor, pois pode ser que o Senhor fale coisa especial, aquela vez, por aquela leitura. Quem faz assim está trabalhando o seu eu. Aquela meia hora de meditação em que você se coloca como se estivesse diante de Deus, faz com que sua inteligência, sua vontade, seu sentimento fiquem acordados. São F diria que isso é ter o eu sob seu controle, e fazer a própria parte; agora, a parte de Deus, fazer com que ele fale na oração, na meditação, isso é com ele. Em seguida, ao tomar o café, se pensar que aquele pão mal cozido não enche a barriga, sempre o mesmo café…; você poderia pensar com gratidão em quem o ofereceu… e aquilo que não tinha gosto começa a ter gosto. Com isso está tendo o seu eu sob controle, acordando para uma realidade sempre nova. Em seguida vai dar catequese; um catequizando faz uma pergunta superficial; nossa tendência é responder de qualquer jeito; em vez disso, atuar como se aquele aluno fosse o único, respondendo como se estivesse respondendo a Deus.

Nesse exercitar-se, flui a força de Deus; por ele Deus está continuamente enviando-se como fluência, e você está trabalhando, acordando a boa vontade. Como seria interessante um grupo de religiosos que trabalha assim continuamente em si; em quatro ou cinco anos daria um grupo muito interessante. Mas esse trabalho deve ser pego no duro, porque o que chamamos de egoísmo não é lá muito difícil de trabalhar, não; sempre se pensa que é difícil, que não dá pra corrigir, e não se trabalha a si mesmo e por isso não dá em nada. Tem que pensar mais simples e concreto. São Francisco diz que tem que encarar e engajar-se. Esse encarar e engajar é uma atitude muito típica do franciscanismo. Encarar e engajar-se, sem se incomodar muito se errar, se errar não ficar se censurando. Corrigir-se, mas não se censurar. Corrigir e censurar são duas coisas bem diferentes.

Não se incomodar, portanto, com o fracasso. Fracasso, não conseguir logo, não conseguir depois de muito empo, não diz nada a respeito do engajamento. Provavelmente o fracasso acontece porque o exercício precisa ser repetido, experimentado muitas vezes; errar serve para crescer. A mentalidade moderna é de se incomodar demais com fracasso. Nessas coisas tem que ter vontade de aprender, de corrigir, sabendo de antemão que vai fracassar muito e não dar bola para o fracasso. Em vez de desanimar, estudar, examinar o que tem que fazer, como fazer.

Experimente pensar um pouco, praticamente, descobrindo, detectando alguns defeitos fundamentais do seu eu que sempre lhe atrapalham. Experimente pegar esses defeitos; não defeito grande, que atrapalha muito; ha defeito grande que não aparece tanto. Experimente descobrir e marcar um ou dois desses e dizer: por Deus que esse defeito vou vencê-lo. Fazendo assim, funciona e em três ou quatro anos vai conseguir corrigir bastante essa postura.

Rezar sempre a deus com coração puro. Francisco vê na “pureza” do coração um requisito imprescindível para que o homem fique cheio de Deus. “Puros de coração são os que, desprezando as coisas terrestres, procuram as celestiais, e, puros de coração e espirito, não cessam de adorar e contemplar o Deus vivo e verdadeiro”, Adm 16.

Ser humilde e paciente nas perseguições e enfermidades. É o segundo fruto do Espirito do Senhor e de seu santo modo de operar. O homem egoísta não é humilde nem paciente: “O servo de Deus não pode saber de quanta paciência e humildade dispõe, enquanto tudo lhe corre na medida de seus desejos. Quando porem vier o tempo de ser contrariando por aqueles que o deveriam contentar, quanta paciência e humildade então manifestar, tanta terá e nada mais”. Adm 13.

Amar àqueles que nos perseguem, atacam e caluniam. Frei Egídio diz que o elogio só prejudica, ou pelo menos não faz progredir. Muitas vezes o elogio ajuda a animar, mas com o tempo não se deve mais precisar dele. Se uma pessoa é clarividente, se tem seu eu sob seu controle, o elogio não prejudica, até humilha, pois a pessoa sabe que quem o elogia não o conhece. Mas quando a pessoa não se conhece, sobe sangue na cabeça e pensa que aquele elogio é verdade. Tem gente ruim que elogia só para enganar e quem é bobo caí. Ha pessoas que quando elogios, não estão elogiando, mas falando a verdade para incentivar o caminho, e olhar para frente. Essas pessoas são boas, animam.

Mais interessante, no entanto, é colocar dentro de si mesmo a postura de ter a si mesmo sob vigilância, assim que se alguém elogia, a pessoa logo se pergunta: o que eu faço com isso? E se alguém critica, logo se pergunta: o que faço com isso? Com o tempo, se deve gostar das críticas porque por elas se pode progredir. Houve um frade que, quando elogiado, disse: “O que está bom, não precisa dizer porque é chover no molhado; diga só o que está ruim porque aí eu posso trabalhar”. Isso é bom. É aprendiz bom. Você devia criar esse modo de ser dentro de você, porque assim progride e sai ganhando.

Amai os vossos inimigos. O amor aos inimigos é certamente o sinal mais seguro e inconfundível de que o egoísmo cedeu lugar ao Espirito do Senhor. Quando alguém segue Jesus Cristo até esse ponto, nele vingou o amor de Deus. Francisco sempre exigia de seus irmãos este amor, justamente porque o Senhor o exiga sem cessar. Quem está trabalhando a si mesmo e quer crescer para ser útil, faz do inimigo o seu aliado. E neste sentido que Nosso Senhor manda amar o inimigo. O inimigo não prejudica se eu me tiver sob vigilância.

A colocação de São Francisco diante do mal é oposta à colocação usual, por isso deve ser pega com exatidão, senão cria equívocos. Qual o “proprium” do inimigo? Qual é a estrutura humana existencial que de fato causa a morte e está no homem? Se alguém está matando a outro, para São Francisco a vítima não é o problema maior, o problema maior é quem mata. Pelo fato de o mal vir do “interior”, São F. se preocupa com que, quem está sendo injustiçado não deixe nascer em si algo que também mata: o ódio. Se um marginal mata um jovem injustamente, quem é o infeliz pra valer nessa situação? SF se coloca diante do fato a partir da experiência cristã: ele crê num mundo, maior do que “este nosso mundo”; parece petista e alienado, mas não o é: é real. Diante da “vida” chamada “Vontade do Pai” o morto é o marginal, não o jovem. É vontade do pai que o jovem morra “não é pecado morrer, diz SF), mas não é vontade do pai que o marginal mate. Todo mal vem do coração do homem, por isso SF começa a cuidar do coração, do ódio que começa a nascer com o homicídio, capaz de nova morte. Coração de mãe sabe disso: por isso, diante do filho morto injustamente, aos que querem vingança, é capaz de dizer: “Não vamos ter vingança nenhuma! E vocês vão na cadeia tirar os que foram presos injustamente. Tem que pensar na mãe deles, como deve estar sofrendo!” Esta mãe tirou o ódio pela raiz! O posicionamento de São Francisco é este.

Nosso problema é que sempre entendemos em sentido espiritualista a afirmação de que todos os males procedem do interior do coração do homem. O Evangelho, porém, entende bem realisticamente: uma cidade onde há um milhão de pessoas com o coração egoísta e e vingativo vira cidade-monstro. Como reagir? Do mesmo jeito que se formou o milhão: tirar um por um dessa solidariedade no mal e formar um milhão de pessoas “misericordiosas”. E isso só é possível trabalhando o interior de cada um.

RNB: Carne mortificada e desprezada, vil, abjeta e desprezível. Há tensão entre a afirmação que o homem é só vícios e pecados e a insistência para concretizar em obras espirito do Senhor. Para a nossa sensibilidade, este texto é deprimente; mas para lavrador lidar com sujeira, tiririca, tocos na lavoura ou na horta não e deprimente. Mas nos temos experiência da carne desprezada, vil, mortificada? Que fenômeno é este? Quando ouvimos estas palavras, as ouvimos na dimensão moral (a nossa identidade ultrajada, estragada, inautenticidade); aqui porém temos expressões de nível religioso, como Pedro na pesca milagrosa, como o publicano.

Metodologicamente a questão é a seguinte: podemos não ter a experiência mas desconfiar do ponto de origem da fala do outro. A fala “Senhor” de Maria Madalena na manhã da ressurreição é límpida, inocente; em outro contexto, essa mesma palavra poderia estar carregada de senso de opressão. No primeiro caso entendemos “religiosamente”, no segundo sociologicamente ou psicologicamente. O mesmo vale para os textos de São Francisco: escutamos vil, desprezível a partir de nossa antropologia. Religiosamente essas palavras têm outro sentido.

RNB: Atribuamos ao senhor. Parece um texto inflacionado, mas é antes um texto intenso de admiração religiosa. Temos dificuldade de estar lá onde o texto está! São Francisco chorando porque o amor não é amado: que experiência é essa? Será que não é assim também nesses versículos? No exemplo acima da mãe c do filho morto, se a mãe xingasse a Deus, São Francisco diria: Deus não e amado! Pois para ele quem ama mais o filho morto é Deus, não a mãe! Xingar é sensurar, suspeitar, duvidar que Deus não ama. São Francisco perceberia um Deus equivocado, insultado, mas que ama mais ainda, porque ama a mãe que o xinga e a atende. Por isso, diz: “Suplico na caridade que é o próprio Deus”. Nós, a partir de nós mesmos, não amamos a ninguém; e se amamos, é Deus ´que ama em nós e nós nos apossamos de seu amor. Por isso o espirito do Senhor exige que “nossa carne” seja desprezível, vil… tribulações, angustias… nos colocam na encruzilhada de termos que nos colocar em referencia a Deus.

RNB: Que deus opera. Isso é importante como método de trabalho. O “eu faço, eu mereço”, não dá conta dos grandes desafios. Mas se “der curso a Deus”, Deus dá conta! No fazer executivo Deus é a força alterativa que aparece em São Francisco. O homem moderno ocidental, por exemplo, quando fica doente reforça a alimentação para o organismo ter força de reagir, sobrecarregando os órgãos internos, mas o homem oriental (e o animal também jejuam para deixar o organismo reagir a partir de seus recursos internos.

Deixar Deus operar, devolver a ele todo o bem, saber-se pecador e assim estar todo inteiro disposto a ele como o Senhor na gratidão: todo este modo de falar insinua que se trata da experiência religiosa, experiência humana, a mais vasta, a mais profunda, a mais originária: experiência de Deus e nele experiência de todas as coisas: Graça. Para dispor-se ao toque desta graça é necessário odiar o eu que ignora essa dimensão a mais originária do homem e faz tudo como se a suprema realização humana fosse fazer a própria vontade.

O reino e a dominação da vontade própria (do eu, da subjetividade) aparece em 2 níveis: no nível da sensualidade (estético, aisthesis, sentidos), como busca do agradável ou desagradável (hedonismo, masoquismo): e no nível do ethos (ético, morada) como busca da própria perfeição: o bom ou mau eleva ou detrai a grandeza do eu. Não é à toa que SF diz que o único inimigo nosso é o eu! Por isso, tudo o que é inimigo do eu, é amigo nosso. Por isso “alegrai-vos nas tribulações” … elas nos ajudam! Aqui está nossa dificuldade de entrar na dimensão religiosa. A experiência religiosa é experiência do encontro, e experiência da graça. Esse terceiro é nível radicalmente diferente dos outros dois.

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