Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

II – Dos que querem abraçar esta vida e de como devem ser aceitos

01/03/2021

 

DOS QUE QUEREM ABRAÇAR ESTA VIDA E DE COMO DEVEM SER ACEITOS

DE HIS QUI VOLUNT VITAM ISTAM ACCIPERE, ET QUALITER RECIPI DEBEANT

Si qui voluerint hanc vitam accipere et venerint ad fratres nostros, mittant eos ad suos ministros provinciales, quibus solumodo et non aliis recipeiendi fratres licentia concedatur.

Aqueles que quiserem seguir esta vida e vão ter com os nossos irmãos, mandem-nos estes a seus ministros provinciais, aos quais somente e não a outrem, se conceda licença de receberem irmãos.

NB: Se alguém, por inspiração divina, quiser abraçar esta vida e for ter com os nossos irmãos, esses o recebam carinhosamente. Mas apresentem-no quanto antes ao seu ministro.

No 2° capítulo da Regra, nosso Pai São Francisco fala da maneira de admitir na Ordem, do tempo do noviciado, das vestes dos irmãos já professos. Por fim dá uma importante admoestação, indicando como os irmãos devem guardar verdadeira pobreza e humildade nas relações com os demais cristãos.

Aqueles. Quem são estes? São os que são tocados por uma afeição religiosa toda própria, chamada “vocação”, manifestação do Mistério. Acolher esta convocação da vida é tarefa fundamental da existência, pois por esta acolhida a pessoa se responsabiliza do seu viver. É o próprio Deus quem move uma pessoa a abraçar a vida toda evangélica e toda apostólica. Nisso ele exercita sua paternidade. Nós fomos queridos por um Deus que em Jesus Cristo nos amou primeiro. Essa escolha que Deus faz de nós é manifestação uma imensa aceitação que ele tem de nós, com tudo o que somos e temos, para que sejamos arautos, mensageiros alegres dessa boa nova: que a humanidade, aconteça o que acontecer no cantinho, tem atrás de si, no fundo de si, um grande amor, um amor eterno, um amor insondável, amor cuja dinâmica é a força e a esperança da vida.

Que quiserem. Querer é o posicionar-se decidido e decisivo diante dos “en-via” do Mistério que se manifesta como “vocação” à vida religiosa franciscana. Como é o modo de ser do querer? Quais suas características? Querer é uma estrutura da existência humana: a vida toda é sempre um “se queres”. É uma força que toma o homem semelhante a Deus: participação, faísca do próprio criador. Por isso o querer é antes de tudo uma afeição “misteriosa” que acolhe alguém com uma urgência que está além das motivações’ ° subjetivas.

Por outro lado o querer é um decidir-se autônomo, onde toda a responsabilidade está com a pessoa que “quer”. Querer é buscar, isto é, é estar na dinâmica mais essencial do espírito. Por ser uma decisão, o querer cria necessariamente um conflito entre o querer autossuficiente e “autônomo” e o querer aberto a uma competência maior e que busca a raiz de sua autonomia: a “vontade de Deus”.

Todo querer é limitado, finito diante da vida que em suas manifestações está sempre para além do que podemos com nosso querer. Por isso todo querer bom, no ponto, é cordial diante da finitude, a acolhe e se articula dentro dela, tomando-a seu aliado. A grandeza do querer humano “finito” está em ele ser “artesanal”: repetir é a grande força do humano. A criatura nunca faz algo uma vez por todas, para sempre. Esta característica do querer é também a grande possibilidade do humano diante do erro e do pecado: reassumir o passado como de ressurreição, sem deixar que o passado intoxique o presente.

Se queres, deves, impõe-se, é necessário que. A imposição é a força do concretizar-se do querer; brota, portanto, da liberdade. Imposição não é podar a liberdade, a partir de uma vontade alheia, mas o concrescer do querer naquilo que é próprio de sua busca. A alergia à imposição mostra que o querer não está no ponto; é necessário tirar da cabeça o espírito de “madame”! A vida é luta, é sujar-se.

Resumindo numa espécie de lema: o querer é “aqui, agora, comigo, sempre novo, de novo, nova, a mesma coisa”. Seu oposto é: ali, depois, com os outros, ressentida e preguiçosamente, uma vez por todas, qualquer coisa.

Há diversas “tonalidades” de querer, bem diferentes entre si:

QUERER ESTÉTICO
QUERER VOLUNTARIOSO
QUERER ÉTICO
QUERER RELIGIOSO
Não querer
Agencia
Busca
Acolhe
Gostaria
Eu quero
Se queres
Encontro
Deveria hipotético
Tenho direito opção
Deves decisão
É necessário determinação
Dependendo… publicidade
Autossuficiente dogmático
Autônomo ético
Obediente discipular
Indefinido genérico
Infinito desmedido
Finito concreto
In-finito pobre
Anêmico ressentido
Dominador orgulhoso
Cordial disposto
Grato jovial – cordial
Ineficaz ineficiente
Pretensioso impotente
Per-feito artesanal
A modo de servo servo menor
COISA NENHUMA
A FRUSTRAÇÃO
O DEVER
O ÚNICO NECESSÁRIO: O PAI DE JC

Abraçar esta vida. Abraçar este “projeto” de vida. Ao falar da recepção dos candidatos, é significativo que não se fale de “entrar no convento”, mas “abraçar esta vida”: esta expressão era preferida por São Francisco por responder melhor a um tipo de “vida comum mas não comunitária”.

Vão ter com os nossos irmãos. Os irmãos já abraçaram o projeto de vida franciscana e já fizeram uma história a parti do chamado de Deus. Os novos irmãos os procuravam por pertencerem “a “escola” franciscana. O medieval entrava na ordem para procurar a resposta às grandes perguntas da vida, pois encarava a ordem como uma escola onde havia um acúmulo de experiências e posturas adequadas a esta questão ,quase como uma “escola” que possuía o segredo da arte de viver.

Mandem-nos estes a seus ministros provinciais. Além do dom de Deus e da vontade do candidato, é necessária ainda a aceitação por parte da comunidade. O direito de aceitar os novos irmãos, até agora reservado a São Francisco, passa agora para os ministros provinciais. Os “ministri provinciales” são apresentados como uma instância superior. O cargo deles contudo não é juridicamente fixado, nem aqui nem em outra parte da Regra. Supõe-se simplesmente que todos saibam quem são e quais as suas atribuições. Por isso, a Regra nada regula a esse respeito. Fica evidente assim a intenção fundamental da Regra: impregnar de espírito a vida que os frades levavam.

RNB: Por inspiração divina. O que move alguém a abraçar este gênero de vida? A RNB responde explicitamente é a inspiração divina (é a mesma expressão usada na RB para os que vão entre os sarracenos). “Inspiração divina” parece indicar o critério para a recepção dos candidatos. Uma espécie de medida para saber se o candidato tem ou não tem vocação. Se porém essas palavras não forem apenas um enfeite, uma mera expressão ou modo de falar piedoso, mas querem dizer de fato uma realidade, então ficamos atrapalhados. Isso porque, embora admitamos que a inspiração divina é uma ótica garantia para averiguar a vocação, como saber se alguém quer realmente pela inspiração divina? Com que critério verificar o próprio critério da vocação, como certificar-se se é ou não é pela inspiração divina?

Pelo teor do texto, percebe-se que SF não tinha esse tipo de perplexidade. Ele sabe realmente se é ou não é pela inspiração divina. Nós, porém, um tanto escandalizados diante de uma tal pretensão, perguntamos: como é que ele sabe acerca da inspiração divina? Mesmo que tivesse uma revelação em carne e osso, como saber que é realmente uma revelação divina?

Mas que tal se SF, em vez de nos responder, virasse a pergunta contra nós dizendo: E como é que vocês não sabem acerca da inspiração divina? Costumamos responder que não sabemos porque o divino transcende a nossa experiência. Essa resposta é uma verdade ou uma teoria aprendida, mal analisada, que esconde um quê de irresponsabilidade mental? O que sabemos acerca dessa transcendência, realmente? Não é assim que o divino é uma experiência; experiência essencialmente humana, experiência de fundo; uma experiência toda própria que exige um preparo, um tirocínio, uma busca, uma aprendizagem toda especial, exclusiva dela e um longo exercício, uma árdua e contínua prática?

Por que não sabemos acerca dessa dimensão, dessa experiência toda própria, chamada divino? Não é porque na realidade não temos a experiência do divino? E por que não temos essa experiência? Não é porque somos diletantes, amadores, sim, turistas na procura, na busca, no estudo dessa dimensão? Não é porque jamais nos exercitamos pra valer, dura e radicalmente, com uma boa e discreta e bem esclarecida orientação, na prática dessa experiência?

Um mestre na música sabe de imediato, no primeiro contato, se um candidato tem a disposição Ideal ou não; sabe porque é um mestre, isto é, um discípulo dedicado que de corpo e alma, por longos anos doou-se ao trabalho tenaz, diligente e cada vez mais exigente na arte da música e adquiriu com o tempo um fato certeiro e clarividente. Nós aprendemos espiritualidade, aprendemos a rezar e a meditar, nos analisamos, fazemos pastoral, reuniões, trabalhos; aprendemos teorias filosóficas, recebemos muitos conhecimentos sobre muitas coisas, trabalhamos nisso e naquilo, fazemos retiros abertos e fechados, participamos de cursos aqui e ali, nos atualizarmos, nos engajamos, combatemos a alienação, estamos abertos a tudo o que é bom, fazemos ioga, zen, parapsicologia… Mas afinal, em que estamos engajados? Em que estamos ficando mestres, isto é, discípulos dedicados, atentos e radicais, de corpo e alma? Na aprendizagem de quê? Em que estamos ficando certeiros, clarividentes?

Talvez seja esse borboletear “de leve” na superfície das coisas que jamais permite a nossa busca de tornar-se séria e quente, incômoda, dura e difícil; por não pesar como tarefa, como compromisso, como imposição de uma realidade-terra; falamos mito da necessidade da prática, do engajamento, sem jamais nos clarear a mente e o coração, a ponto de nos capacitar a um julgamento certeiro, justo e claro da realidade, um saber cheio de faro acerca de alguém que vem a nós e quer caminhar conosco…

Ministri vero diligenter examinent eos de fide catholica et ecclesiasticis sacramentis. Et si haec omnia credant et velint ea fideliter et usque in finem firmiter observare et uxores non habent vel, si habent, et iam monasterium intraverint usores vel, licentiam eis dederint auctoritate diocesani episcopi, voto continentae iam emisso, et illius sint aetatis uxores, quod non possit de eis oriri suspicio, dicant illis verbum sancti Evangelii (cf. Mt 19,21 par), quod vadant et vendant omnia sua e ea studeant pauperibus erogare. Quod si facere non potuerint, suficit eis bona voluntas.

Os ministros, porém, os examinem diligentemente sobre a fé católica e os sacramentos da Igreja. E se crerem todas essas coisas e as quiserem professar com fidelidade e observar com firmeza, até o fim; e se não forem casados, ou, se o forem, as mulheres já tiverem encontrado em convento ou, feito o voto de continência, lhes tiverem dado licença, com autorização do bispo diocesano, e se elas forem de tal idade que não torne o seu consentimento suspeito; a eles digam os ministros a palavra do santo evangelho (Mt 19,21), que vão e vendam tudo o que possuem e tratem de distribuir entre os pobres; mas, se o não puderem, basta-lhes a boa vontade.

RNB: Todos os irmãos sejam católicos, e vivam e falem como católicos. Se porém um deles, por palavras ou por atos, se afastar da fé e da vida católica e não se quiser emendar seja definitivamente expulso da nossa fraternidade. Consideremos todos os clérigos e todos os religiosos como nossos senhores, no que concerne à salvação da almas e não se opuser à nossa ordem, e respeitemos no Senhor sua ordenação, ofício e ministério.

O ministro o receba carinhosamente, conforte-o e lhe explique diligentemente em que consiste o nosso gênero de vida. Feito isto, e se o candidato resolver abraçar esta vida, venda tudo o que possui – na medida em que puder fazê-lo espiritualmente sem impedimento – e procure distribuí-lo aos pobres.

Se vier alguém que não possa distribuir os seus bens por estar impedido de fazê-Io, mas que tenha no espírito esta vontade, renuncie aos seus bens e isto lhe basta.

Os examinem diligentemente. Entre o primeiro encontro e a recepção ao Noviciado, passava um certo período de tempo, no qual o Ministro Provincial expunha ao candidato o teor da Vida religiosa franciscana, o examinava sobre sua fé católica e buscava reconhecer no candidato as condições indispensáveis. Era como um “postulantado”. Essa medida era então indispensável, para evitar a infiltração de elementos heréticos na comunidade minorítica. O perigo era forte, por causa das grandes semelhanças exteriores. Os cátaros, e com eles os valdenses, rejeitavam a hierarquia eclesiástica e os sacramentos por ela administrados. A fé nos sacramentos da Igreja era, pois, um critério adequado para verificar se alguém tinha senso eclesial católico. SF espera que os ministros façam uso da licentia de receber irmãos, dentro do verdadeiro espirito franciscano: na recepção de novos irmãos, consoante o “teor de nossa vida”, tudo corresponda à forma de vida evangélica, mas também à forma da Igreja. Os candidatos devem estar isentos de heresias, prontos a levar vida genuinamente eclesial até a morte.

Se crerem. Pela fé o candidato se posiciona como aquele que está decidido a viver não a partir de si, do “eu acho” ou do “eu gosto”, mas a partir do Senhor que se revelou na convocação à Vida Religiosa Franciscana. Esta “revelação” não só é transcendente, mas também “anterior” à minha individualidade: ela pertence à herança longamente trabalhada pelo povo de Deus, a Igreja. É necessário que o candidato se abra para esta herança de fé eclesial e esteja no “salto” da fé, além de sua autossuficiência e da busca de sua auto-realização.

E se não forem casados. O texto trás prescrições bem determinadas sobre a admissão de homens casados na Ordem. Estas disposições se moldam no direito canônico da época. A julgar pelo estilo, a presente redação atesta a colaboração de homens peritos no assunto, pois se destaca das outras.

Digam os ministros. Depois de cumprir as condições mencionadas, o candidato deve dar o primeiro passo decisivo para iniciar a vida segundo o Evangelho: “Se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que tens, e distribui entre os pobres… depois vem e segue-me”.

Estas palavras que São Francisco com seus primeiros companheiros encontraram ao abrir o livro do Evangelho, e que se tornaram tão decisivas para o desenvolvimento da Ordem, deve o Ministro repeti-las a cada um que peça admissão na Ordem. Segundo “esta palavra do Santo Evangelho”, quem quiser ser Frade Menor deve separar-se de todos os bens materiais, sem reservar coisa alguma para si. Esta renúncia radical aos bens é a primeira prova, certamente eliminatória, para verificar se alguém toma sua vocação realmente a sério.

Que vão e vendam. O Direito Canônico e as Constituições da Ordem, hoje, estabelecem que a renúncia dos próprios bens seja feita antes da profissão solene, possivelmente em forma válida também civilmente. Antes da profissão simples o noviço deve renunciar ao uso e usufruto e ceder a administração de seus bens a quem preferir, conservando a propriedade de raiz.

Hoje, porém, sentimo-nos em dificuldade diante desta praxe que marcou tão intensamente a primeira geração franciscana. Hoje já não podemos praticar esta experiência, pois nem nós nem a maioria de nossos candidatos possui alguma coisa quando opta para a Vida Religiosa. Mas será verdade que não possuímos nada ao optar para a Vida Religiosa?

Esse gesto evangélico é exercício concreto da determinação de viver “sine próprio”, isto é, fora (sine = bem longe) daquela estruturação humana do “apropriar-se” de bens materiais e espirituais. Na dimensão religiosa o apropriar-se é o grande equívoco a ser sempre de novo desvendado e superado, para viver na gratidão a superabundante expansão de Deus, sumo bem. Ao entrar na Vida Religiosa o candidato com o gesto de “vender tudo o que possuía” fazia um exercício espiritual do viver “sine próprio”, urgência religiosa esta de todos os tempos, urgência que cabe a nós, com ou sem o “gesto bíblico” de vender os bens, pois sempre possuímos a nós mesmos, o nosso “eu”, o maior de todos os bens. Este “ir e vender” o bem maior, o próprio eu, tornar-se-á presente e possível nas inúmeras concreções da vida, como “exercícios espirituais” do viver “sine próprio”. Aliás, esta será a grande tarefa, a grande luta da Vida Religiosa, luta que durará a vida inteira.

O viver religioso sempre se depara no “renunciar”; renunciar é a formulação negativa de uma postura positiva: ninguém renuncia a coisa alguma se não estiver abraçando algo. O renunciar nasce do abraçar a forma do Santo Evangelho.

Se o não puderem, basta-lhes a boa vontade. Não sendo possível efetuar a renúncia imediatamente, nem distribuir livremente seus bens aos pobres, o candidato deve ter pelo menos a disposição de faze-lo. A experiência da renúncia é mais comum do que parece. Todo aquele que se decide por alguma coisa, até a mais banal, renuncia a tudo mais. Na experiência religiosa a renúncia é tematizada porque, por ser uma decisão de vida que abraça o inusitado e exclui o usual, exige uma uma tematização explícita daquilo que “cai fora”.

RNB: Recebam-nos. Nos primeiros anos os candidatos eram recebidos na ordem sem noviciado, diretamente pela promissio. Às vezes os candidatos, movidos por grande idealismo, não percebiam logo o desafio que a vida franciscana representava. Por isso, SF tinha muita solicitude na acolhida dos novos frades, solicitude compartilhada pelos companheiros. Neste versículo da regra SF insiste na bondade com que devem ser acolhidos os candidatos: devem ser recebidos “benignamente”, expondo-lhes cuidadosamente o objetivo e o estilo da vocação franciscana, sem assustá-los com as asperezas que a vida do minorita trazia; pede antes que sejam “confortados” no Senhor.

Conta a LTC que Francisco ficou contente ao ver que Bernardo e Pedro queriam viver com ele e como ele 1Cel diz que Francisco e os primeiros companheiros, por serem sedentos do bem do próximo, desejavam que todo chegassem novas almas, para crescer em número e buscar juntos a salvação. O desejo de novos irmãos porém não pode prejudicar a seriedade do desafio próprio da Vida Religiosa, nem do discernimento vocacional, a partir da “inspiração do Senhor”.

RNB: Benignamente. É o modo de ser especial que São Francisco aponta para a acolhida dos vocacionados. Benignidade não é um modo de ser psicológico ou vivencial no sentido de bondoso ou mansinho; benigno (em oposição a maligno) para o medieval significava literalmente “bem nascido”, bem grado” (do grego gignomai). Benigno aponta para um modo de ser que podemos descrever assim: há pessoas com quem você conversa que tornam você mais transparente, mais límpido, melhor, não é pieguice, não é afetação, mas sim uma religiosidade inteiramente assumida num engajamento total, de tal maneira que vc nem pensa que são engajadas, porque tudo o que fazem já está assinalado como natural. Isso é ser bem nascido, é ser benigno.

Ao convidar os ministros para acolher o candidato benignamente, São Francisco pensa em pessoas que estão engajadas no projeto do seguimento de Jesus Cristo e o vivem quotidianamente. São Francisco diz: “Vamos ser do nosso projeto, vamos nos doar a ele, vamos fazer com que o Seguimento de Jesus Cristo cunhe a nossa personalidade de ponta a ponta, de tal maneira que tudo o que somos, tudo, seja bem nascido, assim que, ao chegar um vocacionado, possamos lhe dizer: ‘Aqui esta’ o nosso projeto de vida. Alegramo-nos que você venha viver conosco…’”, e o acolhamos simplesmente a partir do ideal que estamos vivendo, em função do ideal, com o modo do ideal, sem se preocupar em agradar, em atrair, em esconder certos aspectos realistas de nossa vida.

RNB: Em que consiste o teor de nossa vida. Ao acolher o candidato, o Ministro explique o “teor” da vida franciscana. Teor é como o tom que sustenta o canto, a vida. Portanto não é o conteúdo simplesmente. É a totalidade do vigor da vida que o ministro deverá explicar ao candidato, nas linhas mestras e não tanto nos síngulos atos que estruturam a Vida Religiosa; deverá apresentar as características, a essência da vida franciscana, as coisas mais importantes e fundamentais. Portanto, São Francisco, com este texto, está indicando a metodologia a ser usada na recepção daqueles que querem participar do mesmo “teor” de nossa vida.

RNB: Querendo aceitar esta vida. Querendo aceitar este projeto de vida. Três coisas são mencionadas como condições necessárias num vocacionado: inspiração divina, querer, e aceitar o projeto de vida. Não basta querer, tem que querer aceitar “este” projeto de vida.

A nossa consciência moderna “de aceitar” é passiva; mas para o seguimento de Jesus Cristo aceitar não é passivo, mas ativamente receptivo; é condição por que o vocacionado não é dono do projeto. Não somos nós que inventamos a vocação; é Jesus Cristo que nos diz: “Vem! Não quer caminhar comigo!” O “aceitar” acontece quando uma tarefa vem de instância maior. Então aceitar é uma tarefa, uma missão, um grande privilégio. Por não ser dono, não posso jogar fora, descuidar, tenho uma grande responsabilidade. Esse projeto de vida só pode ser aceito. Por isso, “aceitar” indica como deve ser o modo ser de alguém que quer entrar nesse caminho, nesse projeto chamado seguimento de Jesus Cristo.

RNB: Espiritualmente. Sempre que aparece a palavra “espirito, espiritualidade, espiritualmente” estamos em dificuldade. Não conseguimos pegar o “quê” dela. E quando o pegamos, é inadequado ao sentido originário desta palavra. Tudo o que o ser humano faz, o faz “espiritualmente”, isto é, o faz como quem se determina naquilo que faz e, ao fazê-lo, consiste naquilo que quer ser. Espiritualmente significa: pra valer, responsabilizando-me do meu destino, fazendo surgir o meu destino. Este “pra valer”, este responsabilizar-se porém nunca está já feito de uma vez: ele é sempre processo, concreção de uma busca, caminho, repetição… Isto é o máximo “realismo” possível ao homem (em oposição à compreensão de espírito como algo indefinido, aéreo, não real, boa intenção etc.).

Dentro deste dinâmica é que deve acontecer o “vender tudo o que se tem”, o abraçar este “gênero de vida evangélica” e o permanecer nesse ‘teor’ de vida.

Et caveat fratres et eorum ministri, ne solliciti sint de rebus suis temporalibus, ut libere faciant de rebus suis, quidquid dominus inspiraverit eis. Si tamen consilium requiratur, licentiam habeant mittendi eos ad aliquos deum timentes, quórum consilio bona sua pauparibus erogentur.

E abstenham-se os irmãos e seus ministros de se incomodar com as suas coisas temporais, para que eles, com o Senhor lhes inspirar, disponham delas com liberdade. Se, contudo, pedirem conselho, podem os ministros manda-los a pessoas tementes a Deus por cujo conselho distribuam seus bens aos pobres.

RNB: E se estiver firmemente decidido a adotar nosso gênero de vida, os irmãos se abstenham cuidadosamente de interferir nos seus negócios temporais. Mas os irmãos e os ministros dos irmãos abstenham-se de interferir de qualquer forma nesses negócios nem aceitem de modo algum dinheiro da parte dele, nem por si nem por pessoa intermediária; porém, se os irmãos sofrerem falta de outras coisas necessárias à vida, poderão aceitar, como outros pobres, algum coisa para prover a necessidade imediata, exceto dinheiro.

E cuidem. A expressão et caveant é característica as regras e no testamento; é usada no início das admoestações mais incisivas. A renúncia dos candidatos às suas posses deverá efetuar-se “como o Senhor lhes inspirar”, sem interferência da ganância humana. Neste ponto a RB é mais rigorosa do que a RNB, na qual SF permitia “aceitar as coisas necessárias para viver, como os outros pobres, exceto dinheiro”. Com a RB não era mais necessário, pois agora havia os ‘amigos espirituais’.

Os ministros e demais irmãos estão na decisão de viver uma vida religiosa, sine próprio. Diante do candidato que possui bens temporais, eles que buscam bens ‘espirituais’, devem permanecer no próprio do teor de sua busca religiosa. Os ministros e os irmãos devem cuidar da esperteza do “eu” para que o que foi jogado fora pela porta não entre pela janela.

Como o senhor lhes inspirar. O candidato ao viver religioso franciscano tem ainda uma curta história vocacional; a ambiguidade da busca de si facilmente pode se insinuar (interesses, parentes, prevenir-se…); por isso precisam manter-se em alerta, na busca da inspiração do senhor. Disponha livremente de seus bens, ‘como o senhor lhe inspirar’. SF também neste ponto, nutre a firme convicção de que deus, chamando mediante sua inspiração, esclarece o candidato sobre a maneira de desfazer-se de seus bens, ou, na linguagem de SF sobre a maneira de restituir ao altíssimo o que é propriedade dele. Está assim subjacente a noção de propriedade do cristianismo primitivo, recriada na primeira geração franciscana.

Mandá-los a pessoas tementes a Deus. A liberdade da ação divina deve ser salvaguardada a todo custo e a pobreza minorítica protegida. Se o candidato pedisse conselho, nem o ministro nem os irmãos deveriam interferir; deveriam antes encaminhá-los a pessoas tementes a Deus, sob cuja orientação, inspirada no temor de Deus, distribuam seus bens aos pobres. SF quer pois que a “apropriação” seja evitada e que se cuide para que ela não encontre por onde se insinuar na comunidade dos irmãos. Por isso. os candidatos são encaminhados a pessoas cujos conselhos se baseiam na respeitosa atenção pelos interesses de deus, inquirindo sua vontade.

Postea concedant eis panos probationis, videlicet duas túnicas sine caputio et cingulum, et braccas et caparonem usque ad cingulum, nisi eisdem ministris aliud secundum Deum liquando videatur.

Concedam-lhes, depois, as vestes de provação, a saber, duas túnicas sem capuz, cordão, calças, caparão que vá até o cíngulo; a não ser que alguma vez aos ministros pareça outra coisa melhor, segundo a vontade de Deus.

RNB: e quando o candidato voltar, o ministro lhe conceda, para o prazo de um ano, as vestes de provação, a saber, duas túnicas sem capuz, cíngulo, calças e caparão, que vá até o cíngulo.

Concedam-lhes as vestes de provação. No início da ordem, os candidatos, depois de haverem distribuído seus bens aos pobres, eram admitidos logo à profissão dos votos. Disso resultaram muitos inconvenientes, no corre dos anos. Nem todos os professos perseveravam. Outros conservavam o hábito minorítico, mas subtraíam-se à obediência e viviam conforme sua vontade. Tais abusos desacreditavam a nova Ordem, e provocavam também perigo de uma decomposição interna. A pedido de F o papa Honório instituiu o noviciado.

Depois de falar da admissão à ordem, SF trata brevemente do noviciado, passando logo a falar do vestuário dos noviços. Notável é a brandura demonstrada em relação ao vestuário dos noviços. Os ministros recebem permissão para fazer eventuais modificações, tendo como norma o beneplácito de Deus. Poderia acontecer que a vontade divina em certas circunstâncias quisesse algo diferente das prescrições da regra.

As vestes dos noviços eram diferentes das vestes dos professos, também para que o noviço não se sentisse incorporado à Ordem. Os noviços portanto vivem num instituto sem ser propriamente religiosos. As vestes constavam de dois hábitos sem capuz, calças, cíngulo e caparão, isto é, uma capinha que cobria o tronco até a cintura. A Regra não fixa pormenores, mas já existia certa tradição a respeito da cor cinza e do feitio, de maneira que o papa podia falar de “habito dos Frades Menores”. Era o sinal externo de que alguém se tinha afiliado ao grupo dos irmãos. Por isso, na mesma ocasião o papa proibiu que alguém, revestido do hábito, corresse o mundo fora da obediência.

A Regra não se manifesta a respeito do que se deve fazer durante o noviciado. Cabia aos noviços, sem dúvida, assumir a vida nova na companhia dos irmãos mais experimentados. Vestes de provação: é típico do homem ser cultivado, trabalhado, formado. Provação é experimentar, como por exemplo se “prova” uma fruta. é uma provação recíproca: o noviço “saboreia” a Ordem e esta por sua vez sente o teor do candidato.

O que é veste franciscana? Para o medieval e também para São Francisco, vestição tem uma significação muito grande. Hoje vestir acabou virando “trocar de roupa”. Tem cara que nunca está vestido: de manhã tem uma veste, de tarde outra e de noite outra ainda; para cada momento, em cada situação veste coisa diferente. Isto é porque se perdeu o significado profundo do vestir.

Vestir significa deixar-se impregnar existencialmente, renovar-se desde o fundo de todo o coração, assumir até o fundo uma nova mentalidade. É por isso que, ao iniciar a Vida Religiosa, fazemos a cerimônia da vestição. Ora iniciar, o primeiro salto, é muito importante. E o primeiro salto que temos que fazer bem, porque no primeiro salto originariamente já tem tudo o que vem depois. Na semente, o primeiro broto contém toda a promessa e a realidade. Quem dá o salto pela primeira vez se propõe no fundo de estar dando o salto sempre de novo, porque o início não é aquele primeiro ponto que está no começo. O início é aquele salto que todo dia, sempre de novo, cada vez mais e cada vez mais intenso tem que ser dado. Este salto é sempre uma retomada do passado. Nunca se salta cada vez toda a existência.

Então é necessário ter uma maneira toda especial que é esta: “carregar todo dia sua cruz”. Aquele que num salto, entusiasmado por um ideal, larga tudo para correr, para pular, tem que carregar a sua cruz. Carregar a cruz não é carregar o “peso” da cruz; não é como muitas vezes se imagina, especialmente na Via Sacra, Jesus carregando a cruz. É antes carregar uma bandeira. Quando Jesus diz “quem quiser me seguir carregue todo dia a cruz”, está dizendo: carregue o símbolo, o essencial da vida cristã, como uma bandeira. Carregar uma bandeira significa ter um ânimo, aquele ânimo de vitória. Isso você tem que fazer todo dia: o fazê-lo hoje agora, tem que ser feito daqui a alguns segundos, daqui a alguns minutos, hoje depois do almoço, amanhã de manhã, cada dia, sempre de novo. Em outras palavras, animar-se, incendiar-se cada vez mais com a boa vontade; ao fazer isso, cada vez que é feito, se tem vida.

Para que isso aconteça é preciso renunciar a si mesmo; porque toda a nossa maneira de ser e querer é ficar cômodo, é ter preguiça, ter medo de lançar-se cada vez de novo na boa vontade. E por isso é necessário fazer todo dia o nosso dia de vestição; fazer um propósito, tomar uma decisão, de fazer este trabalho todos os dias, até que durar nossa vida.

O hábito franciscano é mais do que nossa individualidade. Ele significa mais do que cada um consegue viver” Mas pode também estar embonecando a pessoa. Vestir hábito é antes de tudo uma grande tarefa de ser. O hábito pode mudar, mas não se pode largar fora este sentido fundamental: a busca, o abraçar, o querer, pois, assumir as vestes é assumir a vida segundo a forma do santo Evangelho.

Vestir o hábito franciscano como início de uma caminhada existencial é recordar que Deus nos amou primeiro; que nós temos um Deus, um Jesus Cristo que nos amou primeiro, que nos chamou por sua iniciativa ao viver religioso franciscano. No dia da vestição não vamos olhar para os nossos defeitos, nem para os defeitos de nossa ordem; vamos olhar para essa enorme aceitação que Deus tem de nós mesmos, dessa escolha que deus fez de nós; Deus nos escolheu primeiro com tudo o que somos e temos para que nós sejamos arautos, mensageiros alegres dessa boa nova: que a humanidade, aconteça o que acontecer no caminho, tem atrás de si, no fundo de si, um grande amor, um amor eterno, um amor insondável, amor cuja dinâmica é a força e a espera de nossa vida.

Finito vero anno probationis, recipiantur ad obedientiam promitentes vitam istam semper et regulam observare.

Findo o ano de provação, sejam admitidos à obediência, com a promessa de observarem sempre esta vida e esta regra.

RNB: findo o ano e o termo de provação, poderá ser admitido à obediência. E ninguém seja admitido contra a forma e as prescrições da santa Igreja.

Sejam admitidos à obediência. Terminado o ano de noviciado, o noviço era logo admitido à profissão perpétua, que segundo a tradição das Ordens mais antigas era chamada de “solene”. Mas em 1857, um decreto da Congregação dos Religiosos estabeleceu que todas as Ordens de votos solenes, terminado o noviciado, fizessem os votos “simples” por três anos. Hoje o Direito Canônico estabelece três anos como prazo mínimo de votos temporários, prazo que pode ser prolongado por mais três anos pelo professo temporário; findo este prazo ele deve estar disposto à profissão perpétua; a Ordem, por sua vez, pode adiar por mais três anos a admissão à profissão perpétua.

Como a Ordem não possuía ainda conventos propriamente ditos, o franciscano não era admitido a um mosteiro, a um convento; era admitido a uma determinação vital, a uma busca religiosa, a um estado de vida, como “companheiro-sócio” do empreendimento franciscano, como membro de uma “escola” que cultiva o viver religioso com estilo bem preciso. Como os frades percorriam o país em pequenos grupos, importava muito que se ligassem aos ministros mediante rigorosa obediência. Esta era o laço que fazia a unidade de toda a Ordem. Por isso é muito acertado o termo: sejam admitidos à obediência.

Com a promessa. O ano de provação teminava com a profissão, cuja forma não é explicada, embora já houvesse costume de professar “in manu superioris”. Mas se esclarece bem o seu conteúdo: a profissão consiste na promessa de “observar sempre esta vida e esta Regra”. A profissão não se restringe aos três votos, mas abrange uma vida conforme à Regra. Quem prometer isso é recebido à obediência. Pela profissão, pois, não se entra no convento, mas numa relação de obediência. O professo é recebido no “meio” da obediência. São Francisco usa a esse respeito locuções que sugerem a ideia de espaço, tais como: “ire ultra obedientiam” ou “extra obedientiam evagare”, “in obedientia stare”; nunca se diz, por exemplo “contra obedientiam” simplesmente. Como o mosteiro era o ambiente dos antigos monges, assim a obediência é o ambiente dos Frades Menores.

Esta vida e esta regra. A Regra não descreve uma vida religiosa do tipo claustral e monacal, mas uma vida religiosa diferente. A “fraternitas” representa uma comunidade de caráter mais pessoal do que local, fortemente dinâmica; não está enclausurada, mas aberta para o mundo, visando o serviço no Reino de Deus. São Francisco ousa até dizer: quem pela profissão aceitou a vida dos irmãos, é idôneo para o Reino de Deus. O Reino de Deus não é vivido dentro do “monsterium”, mas na união pessoal entre os “fratres”, os irmãos que buscam estar entregues ao espírito do Senhor, e isso, tanto entre eles, como no serviço aos homens. Por esta razão, a Regra os apresenta em pequenos grupos, como pregadores ambulantes ou operários pregadores. Imitando os primeiros apóstolos, ei-los a caminho como peregrinos e forasteiros; sua meta é o Reino de Deus.

Et nullo modo licebit eis de ista religione exire iuxta mandatum domini papae, quia secundum sanctum evangelium nemo mittens manum ad arantrum et aspiciens retro aptus est regno dei (Lc 9,62).

De modo algum lhes será lícito sair desta ordem, conforme a determinação do Senhor Papa, porquanto, segundo o Santo evangelho, “ninguém que lança mão do arado e olha para trás é idôneo para o reino dos céus” (Lc 9,62).

RNB: Depois disso, não lhe será lícito passar para uma outra Ordem nem “andar pelo mundo, fora da obediência”, segundo a ordem do Senhor papa. Pois conforme o santo evangelho, “ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc 9,62).

De modo algum será lícito sair desta ordem. Sem dúvida esta afirmação da regra dá coesão interna à ordem como instituição; isso não tanto por ser jurídica, quanto pelo fato de a instituição ser a concreção que acolhe e torna eficaz o impulso nascivo do “espírito franciscano”, pois é na concreção e na estrutura que aparece a ‘vida franciscana’. Ordem é o aqui e agora da realização do ideal franciscano.

Ninguém que põe mão no arado. É um texto muito realista e situacional. A maneira de ser proposta pela regra não é o ‘espontâneo”. Pertence à estrutura da vida religiosa entrar numa possibilidade e ir até o fim. Sem essa postura no “humano” nada dá certo, pois só se cresce e amadurece na vida se se amarrar, penetrar e esgotar cada vez uma determinada situação. A vida religiosa não permite ‘namorar’ outras ‘possibilidades’, sem experimentar a possibilidade em que se está, até o fim. A vida é sempre ‘concreção’ (por mão no arado), experiência da situação em que se está, e que uma vez começada deve ser levada até o esgotamento de sua possibilidade. O permanecer concentrado na possibilidade ‘franciscana’ é condição de crescimento, e dá aptidão para o viver franciscano.

Olhar para trás. o Reino de Deus tem a estrutura de “salto”, de decisão, isto é, de fé. Sem o salto, ele não acontece. Olhar para trás indica o modo de ser que impede o salto para frente da jogada absoluta. Voltar atrás é abandonar o novo centro de vida iniciado pelo noviciado e pela vestição, para voltar ao velho homem. Olhar para trás é o “namorar” outras possibilidades, esvaziando a determinação vital e dela decaindo: o “espiritual” da busca do viver religioso não acontece, como não acontece a lavra se o lavrador, que segura o arado olha para cá e para lá. Mas como o lavrador pode “retomar” o cuidado com a lavra, assim também o religioso que olhou para trás, pode sempre de novo retomar o trabalho cuidadoso de sua identidade. Liberdade não é liberdade das dificuldades, mas a possibilidade de decidir-se e retomar, dar novo sentido, ou melhor, ser acolhido por um novo sentido. A dificuldade provoca a liberdade: enfrentando, eu recrio a liberdade-identidade.

Mas como fica a situação de um religioso que se seculariza? O cristianismo não é “preto-e-branco”: seu cerne e é como o mistério do crepúsculo, uma linha que une o preto e o branco, e que todavia não é nenhum dos dois. Pode acontecer que um religioso se secularize; com isso, porém, ele não perde a experiência adquirida pois o caminho da identidade exige que Indo que se começa, deva ser levado até o fim. O trabalho da identidade, o ex-religioso poderá e deverá fazê-lo também depois de ter saído da Ordem, embora não mais nos moldes da Vida Religiosa.

Apto para o reino. Apto indica competência, tarimba no assumir a Vida Religiosa Franciscana até o fim para o Reino. É ser “artesão” do espírito na concreção: como o artesão no seu ateliê, partir da situação concreta, crescer nela, criando a habilidade própria exigida pelo “Reino de Deus”. “Artesanal” é limitar-se ao pouco que pode ser feito agora e trabalha-lo bem. Quem não tiver essa competência, quem não fizer esse artesanato do espírito “não é apto” para o Reino.

Et illi qui iam promiserunt obedientiam habeat unam tunicam cum caputio et aliam sine caputio qui voluerint habere. Et qui necessitate coguntur possint portare calciamenta. Et fratres omnes vestimentis vilibus inducuntur et possint ea repeciare de succis et aliis peciis cum benedictione dei.

E os que já prometeram obediência tenham uma túnica com capuz e, se quiserem, outra sem capuz. E os que forem obrigados por necessidade poderão trazer calçados. Todos os irmãos usem vestes pobres, podendo, com a bênção de Deus, remenda-las de burel e outros retalhos de pano.

RNB: Os demais irmãos que já prometeram obediência usem uma só túnica com capuz e, sempre que necessário, outra sem capuz, o cíngulo e as calças. Todos os irmãos usem roupa comum e, com a bênção de Deus, podem remenda-la com panos rudes e outros retalhos de fazenda. Pois o senhor diz no evangelho: “os que vestem roupas preciosas e vivem com luxo e trajam vestes delicadas encontram-se nos palácios dos reis (Mt 11,8; Lc 7,25). E mesmo que sejam chamados de hipócritas, os irmãos nunca deixem de agir direito; nem desejem roupas caras neste século, a fim de poderem receber no reino dos céus as vestes da imortalidade e da glória.

Tenham uma túnica. Determina-se o vestuário dos professos, procurando adapta-lo às prescrições do Evangelho, dadas por Nosso Senhor ao enviar seus discípulos a pregar (Mc 6,9). Este relato evangélico constitui o paradigma modelar para a vida apostólica dos Frades Menores. À semelhança dos discípulos enviados por Cristo, os frades deverão usar só uma veste, sem calçados a não ser em caso de necessidade. As vestes dos minoritas eram rudes e grosseiras, e talvez fossem insuficientes em muitas circunstâncias. Se Deus com sua bênção e aprovação sancionar uma exceção, então o vestuário poderá ser menos austero do que o exigido pelo paradigma evangélico.

SF ao converter-se, fez questão de usar a veste de eremita; mas quando NSJC o chamou para reconstruir a Igreja pela pregação apostólica, abriu-se uma nova dimensão dentro do seu projeto de Seguimento de Jesus Cristo. Aí jogou fora o hábito de eremita, e foi buscar outro. São Francisco cada vez que muda de etapa veste uma roupa diferente, como fazem os cavaleiros.

E se quiserem, outra sem capuz. Quando os irmãos se espalharam por todos os países da Europa e do Mediterrâneo, o preceito evangélico de uma só túnica deve ter-se mostrado rigoroso demais. Por isso, com maternal carinho para com seus filhos, Francisco mitigou o preceito evangélico, permitindo que também os professos, caso o quisessem, usassem duas túnicas.

Poderão trazer calçados. A RB leva em conta as estações e regiões mais frias. Seguindo o conselho de Jesus Cristo a seus discípulos, os frades menores no começo não usavam calçados; quando muito punham sandálias. Mas também neste ponto São Francisco não queria levar as coisas a extremos impossíveis. Todas essas mitigações dos conselhos evangélicos Francisco as deixa à livre decisão de consciência de seus irmãos, que poderão usá-las “com a bênção de Deus”, e na medida em que o Senhor lhes conceder sua graça.

Vestes pobres. Mas a respeito da qualidade das vestes, a prescrição é severa. Tudo o que é usado pelos frades em matéria de roupa e calçado deve ser conforme “à santa pobreza de que fizemos voto pela Regra”. Quando São Francisco declara que nosso vestuário deve ser comum e barato, ou melhor, desprezível, quer certamente dizer que deve corresponder ao que o povo toma por “barato”. A palavra usada no texto é “vil”; vil está ligado com vila, lugarejo. Quem mora em lugarejo tem veste de lugarejo; quem vai para a roça tem veste de roça; ninguém anda de gravata no lugarejo, porque está trabalhando na terra, e então tem vestes vis. À roupa exterior corresponde um engajamento; o mineiro, por exemplo, têm roupa adequada para trabalhar debaixo da terra. E São Francisco entende “roupa vil” como armadura, como distintivo dentro da busca; quem está engajado no seguimento de Jesus Cristo tem no exterior roupa adequada a Jesus Cristo. Quando Nosso Senhor lhe apareceu no sonho, Francisco viu a sala cheia de armaduras, vestimenta de cavaleiro e armas, e perguntou: “De quem são?? A voz lhe disse: “São suas!” Vestir roupa vil aqui significa morar na casa do Rei dos reis e ser cavaleiro da Senhora Pobreza. E São Francisco entende o projeto do seguimento de Jesus Cristo como passagem por diferentes etapas e crescer cada vez mais na boa competência dentro da própria profissão. O verdadeiro profissional não vai atrás de títulos, mas percorre as etapas como degraus de perfeição dentro de sua busca. O vocacionado entra para o noviciado e recebe uma veste, que marca uma etapa: túnica, capuz, cíngulo, caparão, como distintivo de quem ainda está no tempo de provação; a turma olhava e dizia: “Ah! Ainda não entrou inteiro”. Ao escolher estes distintivos Francisco não está interessado no distintivo em si, mas na nitidez de assumir cada passo, como profissão. Quem é postulante deve ter o brio de ser cem por cento postulante; quem é noviço cem por cento noviço; quem é juniorista… e assim em diante. Não se trata de um ser mais que o outro, mas de cada um assumir a etapa como algo digno de ser trabalhado bem; e para seguir adiante deve ser “examinado”, para ver se realmente cresceu na competência da nova etapa.

Vestir, portanto, não tem simplesmente o sentido de dar roupa de frei. Significa investidura. São Francisco diz: “Nós somos lutadores, somos conquistadores, somos caminhantes, somos operários do projeto de seguimento de Jesus Cristo, e não consumidores de um gozo. E quem se coloca assim, tem veste própria para trabalhar este projeto”.

Com a bênção de Deus remendá-las. Se um irmão não se sente bem agasalhado com um só hábito e todavia não quer usar dois, poderá coser ao avesso do hábito retalhos de pano que protejam as partes do corpo mais sensíveis à friagem. A bênção de Deus é o vigor, a jovialidade de ser, o espirito de Deus que cria uma nova maneira de ser livre de tudo quanto é sobrecarga. A admoestação ao despojamento não é moralizante, mas “moral”, no sentido de libertação total, como o lutador que se unge com óleo para desvencilhar-se do adversário. E vigor de quem vive a partir da presença do Mistério. É RNB: Roupas caras: caro é todo aquele cuidado que vem da subjetividade e que tira o engajamento para o essencial. SF aponta para um modo de ser simples, tosco, intimamente ligado com a liberdade evangélica. O fato de permitir o uso de uma túnica e recomendar de remenda-la rudemente denota um modo de comportar-se tão simples, tão desligado de requintes, que faz com que o frade menor não faça questão de ter ou não ter; pelo contrário, faz com que se esforce por não ter nada, para melhor viver livremente, e, desamarrado, voar como cotovia. Por trás dessas orientações da regra se esconde uma intuição fundamental: aceitando essas limitações, o frade se torna mais livre, não sobrecarregado de fardos inúteis; tudo é reduzido ao mínimo essencial. E se fosse necessário, deixaria essas coisas também. E assim, ficando nu, desprendido de tudo, o frade corre o perigo de ser agarrado na luta. O frade menor, completamente simples, sem sobrecarga de coisas inúteis, está cheio de vigor essencial para a travessia da vida. SF vê atrás da pobreza uma tremenda vontade de liberdade no vigor.

RNB: Chamados hipócritas. A medida do comportamento do frade não deve ser o julgamento dos outros, mas a própria identidade, embora isso possa provocar o escárnio dos outros e o apelido de “hipócrita”1, por ter uma atitude exterior diferente da usual.

RNB: Veste da imortalidade e da glória. O antigo minorita não ia atrás de pouca coisa. Perseguia um grande ideal: revestir-se das dinâmicas criativas de Deus. Talvez aqui esteja uma das grandes diferenças entre eles e nós. Nós não temos uma evidência vital acerca do “paraíso”, nem que a a vida é uma jogada absoluta de realização plena ou de frustração radical. Esta evidência dava muita força aos medievais. Talvez por isso nossa vontade seja tão fraca.

Quos moneo et exhortor, ne respiciant neque iudicent homines, quos vident mollibus vestimentis et coloratis indutos, uti cibis et potibus delicatis, sed magis unusquisque iu dicet et despiciat semetipsum.

Eu os admoesto e exorto a que não desprezem nem julguem os homens que virem usar vestes delicadas e coloridas (cf. Mt 11,8), tomar alimentos e bebidas finas, mas, antes, julgue e despreze cada qual a si mesmo.

Admoesto e exorto a que não desprezem. Esta admoestação encerra um dos pensamentos fundamentais da Regra. São Francisco vê um perigo latente na prática da pobreza radical: a tentação do orgulho e do fanatismo. Ele não quer orgulhosos e fanáticos reformadores que se comprazem de sua própria pobreza e se julgam melhores que os cristãos que não aspiram ao mesmo ideal. Quer antes “frades menores”; por isso a pobreza deve sempre andar unida à humildade, à pobreza em espírito.

Se o pobre voluntário presumir de si, a pobreza levaria ao orgulho “espiritual”, alimentaria a arrogância, tornar-se-ia um novo “pecúlio” de vaidade, vangloria: o eu, podado pela pobreza, recuperar-se-ia pela “autenticidade”. Em tal caso não teríamos mais a pobreza em espírito, exigida por Jesus Cristo de seus discípulos no sermão da montanha. A concretização pois da verdadeira pobreza evangélica constitui a principal preocupação de Francisco ao dar essa séria advertência. A sua pobreza deverá conduzir ao conhecimento e julgamento de si mesmos.

Acidentalmente percebemos nesta admoestação que a comida dos frades costumava ser pouco delicada. Ao contrário da Regra de São Bento, no mais, não se toca nesse assunto. Ao que parece, não havia então precisão disso.

Nem julguem. Se poderia objetar que é impossível não julgar! E só lembrar o “pecado” de alguém e já se julgou. No entanto, São Francisco é muito nítido e insiste sempre de novo: “Se você ver um sacerdote indigno, não julgue, mas pense no corpo do Senhor”. Para onde aponta essa atitude?

Julgar é uma maneira de ver ainda muito curta! O tom fundamental da espiritualidade franciscana é “contemplar”, que é o contrário de julgar. Nós romantizamos o contemplar e o imaginamos como ficar de olhos abertos, elevados aos céus. Contemplar é ter um olho atento, penetrante, livre de preconceitos. É um olhar transparente, que ainda não foi tocado pelo pré-julgamento. É uma maneira de saber que não classifica as coisas em bom ou ruim, mas é capaz de esperar a revelação do que está diante de si.

Quando São Francisco convida a não julgar um sacerdote indigno, está alertando para ir além do nível de julgamento, que no fundo é sempre uma ilusão. Julgar “certo ou errado” é olho que não enxerga longe. O olho de contemplação, movendo-se na necessidade de julgar, busca um olhar mais disposto, onde não me oriento pelo que já sei, mas fico na prontidão de acolhida para uma revelação do essencial, que sempre está atrás das ilusões e aparece inesperadamente. Então “não julgueis” não é uma proibição moral, mas um convite para o essencial, para tomar o modo de ser da fé, que é olho novo.

Vestes delicadas e coloridas. O seguimento de Jesus Cristo como “projeto de vida “ leva a não ser durão, mas a sair do “delicado e colorido”. Há vocações em que é essencial ter uma mentalidade de cinto apertado. Não se trata de sacrifício, mas de se adequar ao modo de caminhar próprio do viver religioso. Quem é convocado para a vida franciscana, mas tem uma mentalidade e um modo de ser muito “fofo”, e precisa de muito “ninho” para viver, sofre muito e não faz caminho. Há coisas que não são ruins em si, mas para esse tipo de caminhada não servem.

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