Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

VI – Francisco abraça a vida religiosa

10/02/2021

 

– Movido pelo Encontro com Jesus Cristo Crucificado

LTC 6,16-20 – A perfeita conversão: Francisco se determina e se

Fim de março de 1206 estrutura na dimensão religiosa: “oblato” em São Damião

MUNINDO-SE COM O SINAL DA CRUZ. Pela primeira vez se ouve que Francisco fez 0 sinal da Cruz; parece uma abertura solene, uma declaração de guerra: “Em nome do meu Senhor crucificado vou para a guerra, venha 0 que vier!”. O texto tem a estrutura de uma batalha: Francisco é 0 cavalheiro, o atleta…

Entretanto, vendendo os panos em Foligno e entregando o dinheiro ao sacerdote, Francisco encontrou a maneira “barata” para restaurar a Igreja de São Damião. Em seguida, porém. o fará no corpo-a-corpo, ele mesmo, sem intermédio do dinheiro.

Sinal da Cruz aqui está como princípio. Princípio é início. Início, porém, não apenas como primeiro de uma série de fatos, mas sim como o deslanche de todo um processo. Como tal o modo de ser que se toma como princípio e no princípio vai dar o tom fundamental que determina todo 0 processo em cada um dos momentos que se seguem.

Assumir um modo de ser livre e conscientemente é o que se chama tomar na vida uma posição de antemão: é o propósito. O propósito não se toma sem mais nem menos, apenas na veleidade. É necessário “poder” tomar uma posição. Pressupõe um longo trabalho. exercício de vontade e autodisciplinação.

EXPLICOU-LHE MINUCIOSAMENTE SEU PROPÓSITO. Há propósito e propósito em diferentes modos da existência humana. O texto descreve o processo de início, crescimento e confirmação do propósito religioso cristão, isto é, o propósito no seguimento de Jesus Cristo. Um tal propósito de seguimento cristão chama-se de: “pius votus”, isto é, devotamento pio (atenção para a nossa defasagem na compreensão da palavra “pio, piedade. piedoso”!).

O texto diz: o propósito cristão não se toma pela vontade própria. Por isso não basta querer. Antes de tudo é necessário o toque do chamamento que se manifesta na inspiração, encantamento, fascinação que vem de “fora”, de Deus, atingindo todo o meu ser, desencadeando em mim uma grande afeição. É esse chamamento que sempre de novo move a buscar sempre de novo o projeto de Deus a mim proposto como Vocação e Missão.

No entanto, esse chamamento de início se apresenta dentro de um atingimento sensível e vivencial como o êxtase do encantamento, algo como envolvimento “místico”, algo como o fascínio e gozo do enamoramento. Uma tal afeição e atingimento é na realidade o desencadeamento de enorme energia da nossa vontade humana.

Mas, se se permanecer nesse estágio inicial de encantamento extático-vivencial, o vigor da boa vontade desencadeado pode se esvair, ou até se encaminhar para uma busca avoada, eufórica, ávida de gozo e prazer sensíveis do próprio eu. Pois a nossa vontade livre sofre de uma estranha ambiguidade. Há nela duas tendências: uma para o ensimesmamento da vontade própria e outra para a generosidade de doação pura na imensidão da Boa Vontade de Deus.

Por isso, o toque de vocação que desencadeia a grande afeição no encantamento e no enamoramento do primeiro chamado deve crescer, firmar e amadurecer para a pura e cordial positividade da vontade boa que se concretiza e vem à fala como propósito. Aqui o homem não é mais só acolhido. É antes pleno de iniciativa, criatividade, determinação e autodeterminação. Calcula, projeta, toma precauções, se arrisca mas com cuidado, nada deixa ao acaso, luta, recua, mas avança de novo, se corrige, se motiva, busca cada vez mais compreender. Porém, em todas essas atividades e acionamentos mantém a plena atenção fixa na transcendência do chamamento, isto é, na experiência-primeira do encontro, onde foi tocado no encantamento e na afeição da graça de Deus: na gratidão e na humildade.

Deste modo procura-se manter límpida a positividade da afeição que vem de Deus, mas agora transformada numa decisão do propósito de jamais deixar se afetar por desânimo, dúvida ou ressentimento contra o seu chamamento.

Munir-se com o sinal da Cruz parece nos indicar que nessa etapa da sua conversão, Francisco começou a firmar-se cada vez mais na pura positividade da Vontade boa segundo a Boa Vontade do Deus de Jesus Cristo.

Assim a Cruz aqui não indica o sofrimento “sofrido” da alma sacrificada, vítima por ter seguido o chamamento de Deus, fazendo sacrifício da sua juventude e sua vontade, mas sim o estandarte, a arma, o escudo que o caracteriza e o guarda como o cavaleiro escolhido pelo Grande-Rei, a quem servir é honra, predileção, plena realização e alegria.

INSISTINDO COM PERTINÁCIA. Francisco é nítido na afeição à grande causa (restaura a minha igreja). Mas, um cientista também se doa à grande causa! Na caminhada religiosa. ter uma grande causa basta ou é necessário ter uma grande causa e mais “o Encontro”? Dizendo “grande causa” definiu-se o genérico. No capítulo anterior apareceu o específico desta grande causa: Jesus Cristo Crucificado; é a dimensão religiosa acontecendo. Quem trabalha para a grande causa somente, não tem relacionamento pessoal; este é específico da dimensão religiosa; um cientista nunca chora dizendo que a verdade não é amada!

A determinação de ter uma experiência pessoal com Jesus Cristo é importante, pois o amor, a afeição religiosa é relacionamento de eu para com o tu. A grande causa para Francisco é uma pessoa: Jesus Cristo e o “Seguimento” que nasce do encontro com Ele. Seguimento é engajamento. Se hoje há tanta dificuldade por exemplo em rezar é porque não se vê e não se vive esse relacionamento-encontro. O humano não se satisfaz com o geral, precisa de um relacionamento profundo com um tu.

No meio eclesial e formativo há um certo elã quando se fala em geral de solidarizar-se. do social, da libertação dos oprimidos. Mas quando isso leva para o pequeno, prático, particular, cotidiano, há dificuldade e muitas vezes recusa. Por que? Porque soa pieguice! E às vezes houve de fato desvios piegas.

Mas o pequeno, prático, particular, cotidiano é o ponto de engate da grande causa com profundidade de encontro.

Quem entra na Vida Religiosa só por uma grande causa vai ter o problema de “os meus direitos, minha realização”. Mas quem entra na Vida Religiosa por uma pessoa, Jesus Cristo, não há este problema. Francisco se doa ao encontro com Jesus Cristo. Jesus Cristo é a sua realização pessoal e afetiva. Por isso Francisco chama de esposa a Vida Religiosa. Há exclusividade aqui. E nessa exclusividade nasce a doação universal, para todos, isto é, para cada um.

LHE PERMITISSE MORAR COM ELE. Este pedido de Francisco indica uma nítida passagem da vida “secular” para a vida “religiosa”. Marcar diferença entre as duas não é discriminar; é devolver a cada dimensão a sua própria identidade, e assim dignificar a cada uma no seu próprio. Por isso, para entrar e crescer na Vida Religiosa Franciscana é de importância vital marcar bem a diferença entre o viver “secular” e o viver “religioso” e não ter medo de ser diferente na franca e sadia afirmação de nossa própria identidade.

É portanto de se examinar se, na formação, as nossas etapas de iniciação realmente guardam as características de iniciação-passagem de uma dimensão para a outra. Donde vem a nossa indiferença e falta de cordial e concreto engajamento na Vida Religiosa? Não vem da falta de iniciação e falta de evidenciação desta diferença?

O PAI, COMO CUIDADOSO EXPLORADOR. Francisco e o pai Pedro são dois mundos lutando entre si: o problema não é 0 dinheiro, mas duas maneiras diferentes de entender a vida: a vaidade do século (17d) e a “verdadeira religião”. O que o pai queria era moralmente bom: que Francisco levasse uma Vida “normal”, tivesse sucesso, casasse, fosse cavalheiro… Ao projeto do pai Francisco contrapõe sua escolha religiosa.

NUMA CAVERNA PREPARADA. Francisco não é amador carismático espontâneo. É o artesão consciente e responsável. Entrar na caverna é recuo para pegar o embalo, momento de recolhimento de energias do atleta antes do pulo. Não é adiar, esperando um momento melhor, mas recolher-se para preparar melhor a batalha. Esta fuga na caverna pertence ao desenlace do itinerário, pois todos os passos decisivos do itinerário tem esta estrutura de recuo e repetição.

TOMA CAMINHO. Começa a batalha. Tom solene.

CENSURANDO-SE PELA PREGUIÇA. Porque Francisco chama esse recuo de preguiça? Não será que Francisco tinha de fato medo de se enfrentar com c) pai? Não será que tinha a secreta esperança de não precisar enfrentar esta luta? Francisco percebe que ter medo à toa não vale e que o medo só se vence enfrentando, do contrário é vão temor. Quem é valente tem medo, mas um medo que levanta o animo. Preguiça é pensar que se pode fazer a coisa sem enfrentar, sem sofrer, sem assumir, sem querer. A um certo ponto Francisco percebe em si preguiça e vão temor, isto é, percebe que estava fazendo tudo, mas esse tudo estava fundamentado sobre ele mesmo; percebe que, na nova situação criada pelo Encontro com o Crucificado, esse “tudo” era preguiça e vão temor. E se deslancha. Esse recuo na caverna não é “condenável”, não é “erro”, não é fuga; é o recuo do salto.

A MÃE… DIRIGE-SE AO FILHO COM MEIGAS PALAVRAS. Imaginemos que Pedro di Bernardone tivesse o coração da mãe: ao invés de tirar tudo, comprasse uma porção de coisas para Francisco enfrentar esta vida nova; Francisco não acabaria de nascer! Para Francisco a mãe atrapalhava mais que o pai! Então o que significa “ajudar”? Pedro tirando tudo ajudou Francisco! O que significa isso para quem procura a Vida Religiosa e entra no noviciado? Qual a atitude de um formador diante de alguém que está querendo entrar na dimensão religiosa? Tem que ser evitada a “educação de vovozinha”, isto é, tirar o formando das situações fortes que impõem clareza de colocação por parte dele. A educação de vovozinha pode tirar o formando da seriedade da busca.

NO USO DE MAIOR LIBERDADE, INSTRUÍDO COM O DOCUMENTO DA TENTAÇÃO. Qual é o “documento”, isto é, 0 ensinamento, a aprendizagem que vem das tentações? Em que sentido tentação ensina? Francisco tirou das injúrias ânimo mais seguro. Isso não indica o método da caminhada? Como fazer para que as injúrias deem animo mais magnânimo e mais seguro? Em geral dá o contrário!

CORRE AO PALÁCIO DA COMUNA QUEIXANDO-SE. As contrariedades e provocações de Pedro di Bernardone obrigam Francisco a sair de si e se abrir definitivamente para a Vida Religiosa. Toda contrariedade da vida é lugar para sair de si, do próprio bitolamento e deixar vir à tona o grande Eu, sopro de Deus. Por isso é que os primeiros franciscanos procuravam tribulações e contrariedades.

Eram exercícios de abertura para a dimensão religiosa, sem qualquer sombra de masoquismo; o confirma o fato de uma das características destes frades ser a alegria.

AO SENHOR BISPO EU IREI. Francisco escolhe o bispo só para escapar aos cônsules ou há outro aspecto? Se Francisco fosse perseguido pela Igreja fugiria do bispo e se entregaria aos cônsules? Francisco não age contra ou fora das estruturas de sua época, age dentro delas até o seu total esgotamento; não é um subjetivista, nem um revoltoso. Ele é um “oblato” em São Damião; já está se movendo na área religiosa e, portanto, procura a instância (a jurisdição) que está neste mesmo nível. Para Francisco o bispo não é só instituição; é muito mais: é algo em que o originário está pulsando e com o qual ele está comprometido; ele procura este originário; por isso recusa o poder civil e recorre ao religioso: para cada coisa sua medida.

Entre nós é assim: rompemos com a estrutura por causa da nossa insatisfação, tornamo-nos revolucionários e aí chamamos Jesus Cristo como patrono! Dizer que uma instituição é inautêntica e jogá-la fora, compromete muito pouco; mas dizer que uma instituição é inautêntica e acrescentar que ela é a minha casa, isto compromete muitíssimo. Francisco não é um insatisfeito; encontra

Jesus Cristo e começa a segui-lo e aos poucos começa a transformar as estruturas. Esta atitude mostra um senso do social muito grande. A dimensão religiosa não é do social, mas tem muito a dizer no social.

Não será por causa do esgotamento das estruturas existentes e do amor à minha casa”, que Francisco demora para achar o jeito “franciscano” de viver e percorre o longo itinerário, de ser antes oblato em São Damião, em seguida converso no mosteiro beneditino, depois eremita e finalmente “frade itinerante” em missão apostólica?

LEVANTA-SE O HOMEM DE DEUS. A cena de Francisco e do pai Pedro é impressionante. O pai aperta Francisco e exige tudo. Se é tudo que ele exige Francisco tem que dar tudo, e dá. Pedro é o grande instrumento de Deus para que Francisco esclareça o caminho, chegando a renunciar até à paternidade terrena. (Confira 0 famoso quadro de Giotto, representando a cena do rompimento com o pai; há no meio uma linha invisível, divisória que separa o grupo ao redor do pai, e Francisco com 0 bispo).

SENHOR, QUERO DEVOLVER-LHE NÃO SOMENTE O DINHEIRO QUE LHE PERTENCE, MAS TAMBÉM AS ROUPAS. Sentimos estranhamento diante deste relato; há uma ruptura violenta do relacionamento de Francisco com o pai. O que tem a ver esta ruptura radical com o itinerário religioso? Como fica o amor filial, aqui, nesta situação? Que ligação vai existir depois da ruptura, entre Francisco, 0 pai e os demais parentes? Para nós esse acontecimento soa desumano. Como entender a afirmação do Evangelho “deixar pai, mãe…” em sua dureza, sem fazer média e por outro lado sem se chegar aos excessos a que chegavam certas constituições antigas de Ordens e congregações religiosas?

ATÉ AGORA CHAMEI DE PAI A PEDRO BERNARDONE. O texto descreve o relacionamento com o parentesco por parte de quem entra e quer crescer na Vida Religiosa Franciscana, marcando nitidamente a diferença entre a dimensão secular e a dimensão do seguimento do Cristo.

A descrição da perseguição do pai, a luta de Francisco para seguir inteiramente o seu caminho, o relacionamento com a mãe, parecem não estar contados para nos relatar o drama de um jovem para ser fiel à sua realização pessoal. Parecem antes estar nos mostrando que o seguimento de Jesus Cristo é uma conversão, rompimento com o modo usual e natural de ser. Nesse rompimento, o que há de mais íntimo e natural e sagrado à nossa maneira natural e humana de ser é a consanguinidade, o parentesco. A a entrada na Vida Religiosa como seguimento de Jesus Cristo é entrada para um modo de ser total e inteiramente diferente do natural usual) se trata de um novo renascimento, do nascimento de uma nova criatura.

Todo e qualquer crescimento exige um certo rompimento da dependência com os país. De um lado há um exigência natural de os filhos cuidar dos pais e dos pais cuidarem dos filhos. Por outro lado, a convocação de Jesus Cristo para o seguimento (“Todo aquele que deixar pai ou mãe”; cf Mt 19, 21; Lc 14, 26° Mt 19,29) parece indicar um nítido rompimento com o modo usual-natural de Ver o relacionamento pais-filhos.

Nós religiosos, apesar de termo-nos engajados no seguimento de Jesus Cristo, falamos do dever de cumprir com as nossas obrigações de filhos, pois esse dever é mandamento divino, e falamos também de abusos dentro da Vida Religiosa no tocante ao apego aos consanguíneos sob o pretexto de cumprimento do 49 mandamento.

No entanto, Francisco uma vez sob o toque da convocação de Jesus Cristo Crucificado, não olha nem para a direita nem para a esquerda, segue reto, sem olhar para trás, o seu caminho, e deixa para trás os pais, os irmãos, entra na nova família dos seguidores de Jesus Cristo e chama o Deus de Jesus Cristo como o seu novo Pai. Esse só pensar no seu caminho, não se preocupar com os pais, abandonar todo mundo à sua sorte e ir seguindo o seu caminho que escolheu como sua absoluta realização, não é tudo isso um egoísmo privativo, sem nenhuma dimensão para o dever filial, e a caridade cristã ao próximo?

Todos esses questionamentos no entanto parecem não atingir 0 nível em que está colocado o questionamento desse texto. Pois, quando falamos do chamamento de Jesus Cristo e sua convocação para o seguimento, costumamos dizer que devemos abandonar o nosso próprio eu, despojarmo-nos de tudo, tornamo-nos nus e sem nada e seguir a Jesus Cristo. Só que ao dizermos tudo isso no fundo estamos pensando que essa convocação exige que deixemos de lado nossos egoísmos, faltas e pecados para, com tudo que temos de natural e bom, seguir a Jesus Cristo, numa valorização de todas as coisas boas naturais, uma espécie de otimismo do humanismo cristão.

Será que na descrição do rompimento de Francisco e o pai por causa do seguimento do Crucificado, não está sendo dito que o engajamento no seguimento de Jesus Cristo nos convoca a deixarmos tudo, todos os nossos valores, portanto, não somente o egoísmo e pecados – aliás isto devemos faze-lo mesmo que não sigamos a Jesus Cristo – sim também os valores positivos pois, trata-se aqui de um renascimento, de uma nova criação, um novo céu e uma nova terra?

Como encarar, diante desta questão, situações limites, como a de um religioso ou religiosa filhos únicos de mãe viúva, pobre e sem recursos de sobrevivência, e que portanto necessita deles? De um lado devo fazer tudo para socorrê-la e ampará-la. Vou então me sacrificar e, para não pecar com o mandamento da lei natural, abandonar a Vida Religiosa? Mas, de outro lado, como fica o chamamento de Jesus Cristo que me convocou a segui-lo, deixando tudo, inclusive o parentesco? Se consigo abandonar esse chamamento, então não estive total e absolutamente na seriedade mortal, de Vida ou Morte, no seguimento de Jesus Cristo.

Se poderia objetar: para que tamanha complicação? Sigo a Jesus Cristo, cuidando da mãe, vivendo na Vida Religiosa. Se há esta possibilidade, não há questão. Mas se disser: saio da Ordem e cuido da mãe e assim sigo a Jesus Cristo, então considera a Vida Religiosa como qualquer outro caminho comum, algo como uma profissão usual, e não a compreende como uma convocação, uma missão absoluta de um chamamento como Jesus e São Francisco entenderam a sua vida de obediência ao Pai. Não se trata pois de uma escolha minha, mas da convocação de um absoluto que surge do Encontro!

De repente, se levarmos a sério esse questionamento, estamos colocados num impasse que exige uma resposta bem nítida e definida à pergunta: o que é, quem é o Deus de Jesus Cristo e sua Vontade para mim? e para minha mãe? Não no sentido de: qual a opinião e a vivência que eu e minha mãe temos do Deus, mas sim: Deus e Jesus Cristo, o seu caminho, é uma real realidade e realidade absoluta? Se o for, que valor tem tudo que ele faz, convoca, deseja e exige comigo e com minha mãe e sua felicidade?

Em outras palavras: a pergunta é direta, simples, brutal e inexorável: creio realmente que Deus é a realidade absoluta, única e última felicidade de cada pessoa humana? Creio que ele é realidade tão radical, profunda e absoluta. tão grande e poderosa que segui-lo, deixando tudo, abandonando todas as nossas medidas, é abrir-se, eu e minha mãe, para uma realidade realíssima numa nova valorização de todas as coisas, um novo céu e uma nova terra? Se conseguirmos realmente responder que Deus de Jesus Cristo e seu seguimento é absoluto. então compreenderemos que o rompimento de Francisco com os seus pais foi salvar os pais para dentro do renascimento do novo céu e da nova terra em Jesus Cristo.

Há um nível fundamental, de vida e de morte, onde emoções e sentimentos devem se calar para deixar lugar à tarefa fundamental da vida, que o pai de Francisco também tem. Não é egoísmo, mas busca daquilo que é mais sagrado e radical do homem; nisso todos devem estar engajados, o pai também, pois este também tem seu “romance” com Deus. O itinerário religioso tem exigências muito definidas e claras que se põem mais a fundo do que o nosso “amor filial” usual: é amor filial que respeita radicalmente cada “romance” com Deus, baseado numa realidade individual cujo horizonte vai para além da morte.

Quem não acredita nisso não consegue compreender e justificar uma atitude como a de Francisco. Foi essa evidência clara que inspirou a ruptura com os familiares como aparece nas constituições das ordens e congregações religiosas; quando, porém, desapareceu esta evidência, as normas que ficaram perderam sua força e se “inventaram” motivações que no fundo não convenciam. O celibato também cria um movimento semelhante: então seja o corte com o parentesco seja o celibato soltam energias e não repressões! A psicologia não sabe que existe uma busca do transcendente do tipo discípular como a de São Francisco, e por isso ela não consegue dar soluções de fundo; ao máximo consegue recauchutar um pouco os casos patológicos.

DE AGORA EM DIANTE QUERO DIZER: PAI NOSSO. Usualmente este texto é interpretado como Francisco escolhendo a Deus como Pai-substituto. Mas Deus é o refúgio que está protegendo Francisco ou o Senhor que Francisco quer servir? Se é Deus como refúgio, ele, Francisco, se entende como criança; se é Deus como Senhor, ele está se expondo como cavalheiro. O relacionamento de Francisco com Deus não é de papaizinho, mas de cavaleiro-servo a quem ele quer servir. “Desde hoje tenho um Senhor; eu sou cavaleiro deste Senhor que se entrega aos homens”. Consequentemente Francisco vai se entregando, feito discípulo, fazendo as mesmas coisas que este Senhor faz. É uma compreensão muito simples e concreta de servir; daqui em diante “Pai” é tarefa de fazer acontecer o servo do Senhor. Temos aqui um novo nascimento. A criança nasce, mas despida de tudo. Francisco nasce inteiramente para a dimensão religiosa, retomada em maior radicalidade a estrutura Senhor-cavaleiro.

COMEÇARAM A CHORAR A SORTE DE FRANCISCO. O povo não entendeu nada do que aconteceu realmente; chora de peninha. Francisco deve ter ficado chateado; é só emoção. O choro do povo agora é bem diferente do choro de Francisco após a fala do Crucificado.

 


SOU O ARAUTO DO GRANDE REI

1Cel 7,16-17 – A autocompreensão de Francisco

Primavera 1206 – A Vida Religiosa como Enérgica decisão de entrega

Francisco oblato no mosteiro de Gúbio

Francisco converso entre os leprosos.

A perfeita conversão de Francisco acabou de acontecer. A dimensão religiosa já tomou conta dele e a partir dela Francisco busca viver. Sua busca religiosa tomou corpo, tornou-se nítida e se definiu a partir do encontro pessoal com o Crucificado. A “criança” já nasceu, agora trata-se de cultivar o crescimento.

VESTINDO UMA ROUPA CURTA. Francisco está em situação de finitude. Finitude são todas as vicissitudes concretas da “aventura” humana, em suas múltiplas formas, positivas e negativas, no tempo e espaço, em todos os povos, através da história.

A finitude é estreiteza. O Evangelho diz: caminho estreito. Como é, o que significa estreito? Já viu, por exemplo, o gato se espremendo em algum lugar, para pegar 0 rato? Já viu uma criança querendo pegar o doce que está atrás da grade? Ela se estica toda. Estreito é sempre uma situação difícil, onde não há muitas possibilidades: é estar encolhido num lugar, onde você tem que… Como se é quando se está encolhido assim, como se está dentro de uma possibilidade “estreita”7 É estar encolhido “todo inteiro”. Em outras palavras: se vier um touro bravo atrás da você, você se esquece do ressentimento com a vida. porque ressentimento é supérfluo; você se estreita e estreitando-se. vê a si mesmo. com todos seus enfeites, aqueles ressentimentos (que no fundo. talvez, não são você mesmo, pois a pessoa é sempre mais que suas vicissitudes). Encolhido, estreitado, você tem que fazer uma única coisa, pra valer. Neste momento, você sente uma libertação dentro de você, libertação que não é estar livre do perigo, mas recolher e acolher a energia vital que se solta a partir de seu núcleo originário.

O Evangelho em vez de estreiteza usa a expressão: “rins cingidos”; na Páscoa a Sagrada Escritura diz: “apertai os vossos cintos”; apertar os cintos é apertar os rins: porque? Porque os rins são fonte de vitalidade humana: muitos se preocupam com o coração, mas a saúde está nos rins; pelos rins começa-se a morrer. Os antigos sabiam disso, então apertavam os rins. Quem aperta os cintos olha para frente com decisão, com disposição, com espírito divino, e faz a vontade divina, isto é, inflama dentro de si a faísca divina.

SOU UM ARAUTO DO GRANDE REI! É a nova identidade, a nova autocompreensão que Francisco tem de si mesmo: cavaleiro, pregoeiro, servo da vontade do Grande Rei. Recupera no nível religioso o projeto inicial de nível “natural” de ser cavaleiro. Trata-se agora, em toda e qualquer coisa e situação, descobrir, conformar-se, anunciar e servir a vontade do Grande Rei: no frio, na neve, entre os ladrões, no bosque, no saiote curto.

Francisco está de cinto apertado, sem sobrecarga de supérfluo, pronto para se aviar (viajar), com ânimo intrépido: esse ânimo intrépido para os antigos era a essência do cavaleiro. Soldado em latim se diz “miles”, militar, militância; lutar não significa luta para destruir o outro, para ser superior ao outro; luta significa ter este ânimo intrépido da terra dos homens. Agora, o grande cavaleiro deste ânimo intrépido, ânimo de Deus, que se enterrou até o pescoço na terra e começou, fazendo-a viver, é Jesus Cristo; ele é protótipo desta luta na terra dos homens. Principalmente na cruz ele personifica este modo de ser. Jesus Cristo é protótipo de toda a humanidade e de toda a concreção humana. Francisco diz: “Eu quero ser cavaleiro, o arauto de Jesus Cristo, o Grande Rei”. Na natureza transparece este mesmo tipo de ânimo; quando por exemplo, entre os animais, a mãe defende o filhote, lá está Deus, lá está a intrepidez de Deus.

Esta postura de “ânimo intrépido” é chamada por São Francisco de Senhora Pobreza. Em toda pessoa, na natureza, em tudo encontra-se essa finitude vivificada por ânimo intrépido; esta é essência da pobreza; assim são os pobres, os menores: são estreitos, pequenos, mas concentrados. Esse é o ânimo que reforma a terra, que a leva adiante, a vivifica e renova.

Hoje, falamos muito da realidade terrestre. Esta fala no fundo é um longínquo eco dessas conquistas de nossos antepassados. O viver espiritual refere-se sempre a atitudes humanas: trata-se da colocação do homem no universo, isto é, do ânimo profundo, da disposição do sopro originário, do vestígio de uma disposição divina. Sopro não é “sopro vital” como nós o entendemos, isto é, sopro como vitalidade biológica. Sopro vital aqui significa disposição de uma vontade; é a experiência humana do que se chama “vital”. Quando Deus na criação do homem soprou o Espírito, não soprou vitalidade biológica, mas um ânimo, uma maneira de ver, sentir, assumir enfrentar a realidade. A vitalidade humana não é biológica, mas a capacidade do homem dizer sim ou não, de compreender de uma certa maneira, e de se engajar nela; esse modo de ser é que é a imagem e semelhança de Deus.

E quando dizemos “disposição Divina”, no fundo falamos da vontade de Deus. Vontade Divina significa o sopro Divino. Deus, se quiséssemos imaginá-lo à nossa imagem e semelhança, é uma pessoa disposta, disponível, engajada, como nós podemos ver nas pessoas humanas em diferentes momentos: na mãe, na enfermeira, no religioso… Essa disposição de doar-se, é isto que se chama de “voluntário”. São Francisco, o arauto do Grande Rei, diz: “Faça o que fizer, as dificuldades que enfrento, Senhor permita-me vivê-las no mesmo teu espírito, na mesma tua ganância, na mesma tua disposição”. E quando se está nesta mesma disposição. se faz de fato a vontade de Deus. Francisco, por exemplo, ao dizer: “Senhor. eis-me aqui!”. logo ouve: “Então fortifique-se e vai restaurar a Igreja”. Entendeu “restaurar com pedras” e pegou nas pedras com disposição e ânimo. Com esta disposição fez, elaborou a vontade divina.

A definição franciscana do homem é que ele é barro, é terra. Terra vivificada, poderíamos dizer, possessa (baixou a disposição de Deus na terra), impregnada, conformada, dinamizada (filosoficamente usa-se a palavra essencializada) pela disposição divina. É o protótipo, o arquétipo… Se alguém perguntasse: “Mostre-me, então, um ‘homem””, Pilatos responde, sem querê-lo: “Ecce Homo…”. E mostra o homem Deus que é Jesus Cristo.

Essa realidade humana, assim compreendida, é encarnação. A grande conquista do ocidente é de ter entendido o humano assim; é ter entendido o Divino assim. Essa é a definição de homem que está por trás da espiritualidade franciscana. Chamamos isto de finitude.

COM ALEGRIA REDOBRADA COMEÇOU A CANTAR. Como entender esta alegria? A partir da ruptura com o pai, Francisco abraçou definitivamente a Vida Religiosa. O viver “religioso” não busca um Deus vago e indefinido, mas “o Deus de Jesus Cristo”. A Deus ninguém viu, mas Jesus Cristo o viu e o revelou a nós. Jesus Cristo então é o Mestre que deve ser seguido, sendo seu discípulo.

A experiência que Jesus Cristo fez de Deus-Pai, foi “pobre e humilde”, mas início de um novo céu e uma nova terra, de uma nova criação: é um novo princípio vital. No discípulo Francisco, o modo de ser “pobre e humilde” do Grande Rei ressoa, tornando-se louvor e gratidão pelo fato de Deus, ser assim e por ter mostrado sua presença e o seu rosto de alegria e liberdade.

Ocorre porém que o “pobre e humilde”, por não ter brilho, é difícil de captar; por isso precisamos estudar o nosso mestre São Francisco; entre os sarracenos, por exemplo, ele tem o jeito de quem vai como se fosse para morrer; por ser o arauto do Grande Rei, deve combater com as armas do seu Rei, Rei que excluiu o uso de certas armas. Para significar esta postura São Francisco usaria a expressão “pobre e humilde”. Todos os bons textos-fonte franciscanos, ao apresentarem uma paisagem desértica e seca, deixam transparecer uma tênue tonalidade de verde vital e alegre, pronto para brotar, que não é outra coisa senão este “pobre e humilde”. Este verde devemos, como franciscanos, tentar pegar. Por isso estes textos devem ser decididamente estudados, pois neles há quase que fórmulas secretas da experiência religiosa.

Há porém um equívoco: a expressão “pobre e humilde” é muitas vezes entendida a partir da problemática social. Devemos fazer um esforço para tirar a limpo este equívoco. Se assim fizermos, na América Latina haverá espaço maior para o franciscanismo. Na vida de São Francisco o “pobre e humilde” não é equívoco; não é um modo de ser que surge da questão social, mas um modo de ser apreendido de Jesus Cristo, sem dúvida grávido de consequências para o social.

Precisamos silenciar o nosso saber para deixar emergir a experiência de São Francisco que é imitação da experiência de Jesus Cristo que, por sua vez a apreendeu de Deus e transmitiu no Evangelho. A “Vida Religiosa” é “VIDA”. Vida é modo de ser; é enérgica decisão; o homem só se empolga quando se determina, se decide: isso é “viver”. Não é algo que está fora, exercendo uma força sobre a pessoa, mas uma força que está na pessoa e a determina. Quando se pergunta a uma criança: “O que vai fazer quando grande?”. responde falando daquilo que a fascinou: “Vou ser médico”. A criança percebeu personificada nos médicos uma estrutura de cuidado que fascina e move uma decisão apaixonada.

A decisão gera a profissão que tem uma dimensão institucionalizada. Profissão como afeição globalizante, não como algo setorializado (como, por exemplo ser professor só na escola); afeição globalizante a partir da qual a pessoa se relaciona com tudo quanto existe (= se relaciona universalmente). Para nós eclesiásticos a instituição é sentida ou como “segurança” ou como decadência, algo inautêntico a ser eliminado. A institucionalização, pelo contrário, faz a profissão eximir-se do subjetivismo e do individualismo.

É necessário dar novo valor ao termo “profissão”. A afeição à terra gera o agricultor, a afeição ao motor gera o mecânico (= aquele a quem posso levar o carro quebrado), a afeição à saúde gera o médico: aquele a quem posso levar um doente. Surge toda uma ética. uma mística profissional. Quem está bem consigo mesmo, está bem com aquilo que faz e não diz: graças a Deus as férias estão chegando. E quando está de férias ainda cultiva sua profissão.

A partir desta postura, quais as consequências para a Vida Religiosa?! Ir pelo mundo, por exemplo, não estorvava São Francisco e seus companheiros, ao contrário os assentava e concentrava mais ainda naquilo que os afeiçoava: a Vida Religiosa. Também a problemática afetiva, por ser a Vida Religiosa uma afeição, passa a ter outro sentido. Há profissionais dedicada corpo e alma à profissão, que se não casarem com alguém que tem a mesma afeição, fracassam no casamento. A reclamação que a correria” prejudica a nossa Vida Religiosa diz que no fundo há em nós certo maniqueísmo pelo qual dar aula ou fazer um batizado não é Vida Religiosa ou cultivo dela. A decisão, a afeição não compenetrou toda a vida e todos os aspectos da vida.

A Vida Religiosa não é mais difícil que outras. O que falta é decidir. Sofre-se muito (e se descarrega a insatisfação sobre a instituição!) até a decisão! Depois tudo se torna mais simples e fácil. Postulado, noviciado, juniorato é para decidir, mas não se decide! Em outras profissões também há falta de decisão, mas esta problemática é estatisticamente menos consistente e sobretudo não é camuflada, como se faz entre os religiosos.

Em quem tomou decisão, a insatisfação é toda outra coisa: é fator positivo. Uma decisão vital varreria tanta insatisfação que machuca a nossa vida (subjetivismo que se perde em mesquinharias). Uma vida que fosse de fato religiosa, além de varrer tantas indefinições, varreria também tantos modos dispersivos e levaria ao essencial.

Em geral nós fazemos o seguinte: quando aparece uma necessidade nova, nós religiosos tentamos redefinir a Vida Religiosa a partir desta nova necessidade. Nos perguntamos, por exemplo, se a Vida Religiosa vale ainda, hoje, na atual situação sociocultural? Mas há outra maneira de colocar o problema: como eu devo abordar a nova necessidade a partir da minha profissão religiosa? O médico nunca se pergunta se ainda tem sentido ser médico diante da atual conjuntura social, se pergunta antes: como devo entender o social a partir do meu ser médico? Qual a contribuição própria que posso dar como médico?

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