Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Subsídio 5

08/03/2021

 

O que segue parece que nada tem a ver com as reflexões que estávamos fazendo esses dias, em discutindo e respondendo várias perguntas, muito atinentes e importantes. No entanto, em todas as perguntas e colocações, todos nós sentimos uma dificuldade comum que nos aparece em várias formas e formulações. Em que consiste essa dificuldade comum? Consiste em não poder admitir que, em tendo tal Deus, um tal Deus de bondade e onipotência que tudo pode, devamos ter dificuldades. E então temos a tendência de nos afastarmos de uma espiritualidade como a de São Francisco, que afirma de modo radical o amor de Deus, mas lá onde encontra o amor de Deus na sua limpidez, a mais pura é na contradição, sofrimento, tribulações, morte etc. E então, mal conseguimos suportar tais defasagens da realidade ideal e prometida, de tal modo que, embora aceitemos como vontade de Deus tais contrariedades, não conseguimos ver que é justamente nas tribulações que se dá o puro amor de Deus. A seguinte reflexão feita como subsídio para um texto dos ditos de frei Egídio, n. 10: da Tentação, tenta resolver esse problema, de uma forma muito contundente e certeira, colocando toda a questão na precisão de captar em que consiste o amor do Deus de Jesus Cristo que é a nova realidade, novo céu e nova terra chamada Encarnação.

Egídio 12

Preparação para a reflexão do mês de Outubro:

6 Respondeu-lhe certo frade: “Tu pareces dizer duas coisas opostas”. 7 Respondeu o Santo Frei Egídio: “Não é assim que os demônios acorrem mais para o homem de boa vontade do que para os outros? Eis a dificuldade. 8 E se alguém vendesse sua mercadoria por um preço mil vezes maior que seu valor, que fadiga haveria de sentir? Eis resolvida a contradição. 9 Portanto, digo que, quanto mais alguém for cheio de virtudes, tanto mais é infestado pelos vícios, e tanto mais deveria tê-los em ódio. 10 De todo o vício que vences, adquires virtude; e quanto mais fores atribulado por qualquer vício, tanto maior prêmio recebes, se venceres”.

Comentário:

Aqui, entram em jogo os demônios, que “acorrem mais para o homem de boa vontade do que para os outros” de boa vontade menor. Usualmente, ficamos aqui presos aos demônios, perguntando será que os demônios existem; ou será que demônios não são antes certas realidades perversas no homem ou estruturas humanas etc.

Essas perguntas são de interesse marcante para nós hoje, para nós, cujo inter-esse (naquilo que estamos dentro) a priori é de averiguar se o relato é real no sentido de ser fato. Isto significa que ao lermos esses episódios dos Ditos de frei Egídio, não podemos ver (- por já estarmos nele -) o que o texto está a dizer, a partir e dentro do nosso olhar, cujo ponto do lance do enfoque reduz a possibilidade de o todo da paisagem vir ao nosso encontro, pois esse modo de redução é semelhante ao ocular que só vê preto e branco, de tal modo que todas as outras cores se retraem e não aparecem, a não ser como variações de tonâncias do preto, branco, i. é, do cinzento. A pujança e vitalidade “crômicas” do tom originário desaparecem e se destaca a pergunta: os demônios, são reais ou apenas superstições, fantasias subjetivas.

Mas então, em que consiste o tom da percussão essencial desse trecho? Responde os Ditos: “Não é assim que os demônios acorrem mais para o homem de boa vontade do que para os outros? Eis a dificuldade. 8E se alguém vendesse sua mercadoria por um preço mil vezes maior que seu valor, que fadiga haveria de sentir?” Mas como entender isso?

O grande segredo para entender a Frei Egídio é lembrar, i. é, re-cordar que ele fala a partir e dentro da realização da realidade que na Espiritualidade cristã recebeu o nome da Fé na e da Encarnação, i. é, no mistério do Deus de Jesus Cristo. Fé é abertura cordial e cheia de gratidão para a dinâmica do mistério (Ge-heimnis = a luz, calor e cordialidade do em-casa), e aqui da Encarnação. Estar nessa se chama Seguimento de Jesus Cristo, o Crucificado (= o ser do humano, a essência do humano é sempre já assumido na dinâmica de Jesus Cristo, do Deus humanado).

Essa dinâmica sui generis do vigor da encarnação se denominou na espiritualidade cristã de Vontade de Deus. Quem é, quem participa, é impregnado e faz em tudo a vontade de Deus é como Ele no ser, participar, ser impregnado, e fazer em tudo a vontade de Deus. Ele é em tudo vontade de Deus.  Mas, se você entende a palavra vontade não como faculdade volitiva, comando, ordem de Deus, mas “ganas”, vigência, dinâmica de Deus, o modo próprio da sua vitalidade, ou melhor, direta e de modo bem curto: Ele mesmo no seu ser, na sua vigência, então você vai entender que para essa Vontade boa,

não pode haver contradição, tribulação, sofrimento, não porque não sente, não sofre, não se aflige, mas porque toda contradição, tribulação, sofrimento consiste somente, apenas e exclusivamente nisso de ele querer de todo o coração e de toda a alma e de todo o entendimento exercer, viver, ser a autonomia dessa boa vontade, do ser do Deus de Jesus Cristo.  Para de alguma forma ilustrar isso que dissemos, favor ler, se achar interessante, os textos abaixo, que foram tirados de um livro a ser ainda publicado.

(Favor ler e estudar o resto do capítulo10. Do combate das tentações.

  1. A boa vontade, a semente de mostarda

Jesus compara o reino de Deus à semente de mostarda: “A quem compararemos o reino de Deus?… É como o grão de mostarda que, quando é semente, é a menor de todas as sementes, mas, depois de semeado, cresce, torna-se a maior de todas as hortaliças e estende de tal modo os seus ramos que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra” (Mc 4,30-32).

Talvez possamos dizer que, do ponto de vista do nosso empenho para a realização do reino de Deus, o elemento básico, digamos, “atômico”, a partícula, a mais pequenina e substancial é a boa vontade. A boa vontade é também como o grão de mostarda do Evangelho.

Examinemos o que é e como é a boa vontade, seguindo as dicas do grande mestre da boa vontade, o Beato Egídio de Assis, um dos mais famosos companheiros de São Francisco de Assis. Frei Egídio foi irmão leigo. É considerado uns dos maiores místicos franciscanos. Existe uma pequena biografia dele e a coleção de seus ditos notáveis nas fontes franciscanas (Silveira, 1983).

Segundo Frei Egídio, a boa vontade não deve ser confundida com o bom propósito ou bom desejo. Assim, se você entende a “boa vontade” apenas como bom propósito ou desejo, ela não satisfaz a Deus. Pois, para Frei Egídio, a boa vontade é vontade mesmo! É querer para valer. Nesse sentido, é querer de tal modo que faz, age. Uma vida, vivida com uma tal boa vontade, chama-se, segundo Frei Egídio, vida ativa! Na expressão “boa vontade”, o adjetivo “boa” tem o significado de “per-feita”, bem feita, algo que em atravessando (per, em latim) todas as etapas do processo de crescimento, se perfez, foi feito, tornou-se consumado, bem no ponto, portanto, perfeito. Boa vontade é, pois, a vontade na plenitude da sua essência, a vontade “em pessoa”.

Inteligência, vontade e sentimento: faculdades da alma

Hoje, distinguimos na “psicologia” popularizada três faculdades da alma: inteligência, vontade e sentimento. Da inteligência, temos medo que ela desequilibre a vontade e o sentimento e nos faça “racionalistas”. Da vontade, temos medo que, em tomando conta das outras faculdades, transforme-nos em “voluntaristas”. E como há bandos de “racionalistas” e “voluntaristas” – aliás, gente bem antipática – que continuamente estão recalcando o sentimento, este, hoje, é a vítima. E é tratado benignamente, com especial deferência; é defendido, em certos meios, a todo custo. Assim, reservamos-lhe a honra de ser o representante da melhor coisa que temos, isto é, do amor. Dizemos, então: amor não é nem inteligência, nem vontade, mas sim sentimento. Por isso, quando ouvimos a afirmação de que a boa vontade é vontade mesmo, querer para valer, querer que faz e age etc., tememos se não estamos diante de um inveterado e fanático voluntarista que segura as calças com a vontade de aço ou se suspende do chão pelos cabelos com o seu querer. E exclamamos admirados: “Puxa! Que vontade de ferro!” Mas, no fundo, pensamos desconfiados: “É voluntarismo, é um querer racional demais. Não é para mim. Prefiro menos poder, mais ternura frágil de um coração cheio de sentimento. Gosto mais do amor!”

Talvez na Espiritualidade da boa vontade, como a do Frei Egídio, a boa vontade deva ser entendida certamente como algo intenso, forte e vigoroso, mas de modo todo próprio, digamos, mais “natural”, simples e direto, como, de imediato em concreto, vivenciamos na vida, sem os “pré-conceitos” e “pré-juízos”, provenientes de explicações psicológicas, pedagógicas, filosóficas etc.

Bem-querer e benevolência: a dinâmica da vontade

De imediato em concreto, vivenciamos a vontade, ou melhor, o querer como um modo de ser existencial, impregnado de compreensão e afeição, no qual e com o qual nos realizamos naquilo que temos de mais belo, nobre e próprio de nós mesmos: o bem-querer, a benevolência. Bem-querer ou benevolência indicam um modo de ser todo próprio de amar. É interessante notar que as palavras bem-querer e benevolência indicam o amor, mas em ambas ocorrem os termos “bem” e “querer” ou “volência”, isto é, a dinâmica da vontade. Bem-querer e benevolência dizem boa vontade.

Na vontade como bem-querer ou benevolência, o querer é uma ação. Há ali uma atuação, imediata e espontânea, da nossa liberdade, uma doação do que de melhor e mais íntimo somos. É, pois, um doar-se a si mesmo, livre, ativo, sem coação de fora como deveres e obrigações impostas. Mas essa doação livre e espontânea é toda ela impregnada, vivificada por uma necessidade que vem de dentro, do âmago de nós mesmos, como impulso vivo e bem acordado, que foi atingido por uma afeição. Assim, a nossa liberdade já está sob o toque de uma afeição.

Essa afeição, por vir do âmago, do cerne da minha mais profunda interioridade, é algo inteiramente meu, íntimo, pessoal e livre. Mas, ao mesmo tempo, é algo anterior e superior a mim mesmo, como um a priori do toque, que sempre já me atingiu no fascínio e no enamoramento de um apelo, de um chamado que vem do “além” do meu mais profundo íntimo. Esse toque, esse apelo, no entanto, não se impõe como dever e obrigação que tolhe a minha liberdade. Antes, pelo contrário, desencadeia em mim, desperta o vigor, a força do que há de mais belo, livre e nobre em mim mesmo; acorda a benquerença, a benevolência, a boa vontade. E nunca somos tão autenticamente nós mesmos como quando somos boa vontade de doação, em dizendo: “Eu te quero bem, eu te amo, eis-me aqui”. É a experiência do “noblesse oblige” (a nobreza obriga). Talvez essa “necessidade” livre da benquerença que me compromete, me liga de modo intenso e definitivo, muito mais e qualitativamente diferente do que a necessidade da imposição que vem de fora, é que me dá o verdadeiro e o originário sentido do dever e obrigação humana. É por isso que em português costumamos responder a um favor da benquerença, dizendo: “Obrigado!”

Boa vontade: centelha divina no humano

A boa vontade como ação do bem-querer, da benevolência, é profundamente sentimento, não porque sentimentalmente a vivenciamos, mas porque o toque originário dessa ação é uma afeição profunda que vem do cerne mais íntimo de nós mesmos. Mas é, ao mesmo tempo, vontade para valer, porque nessa ação o querer não é apenas um “gostaria que”, “quereria que”, portanto, um desejo, uma veleidade, mas sim o impulso de lance que se engaja, joga-se inteiramente sem reservas para dentro da doação de si. É, finalmente, plena atenção clarividente de inteligência da compreensão, que nítida e distintivamente se dispõe à busca e à investigação incondicional, na entrega ao inesperado da revelação do bem-amado. É, pois, a límpida disposição da dinâmica do dar-se e acolher: vontade boa, a boa vontade. Esse poder amar, o bem-querer, a benevolência é o que somos como filhos de Deus, é a imagem e semelhança de Deus, é a “centelha” de Deus em nós.

A nossa dificuldade hodierna de perceber direta e imediatamente a “coisa-ela-mesma boa vontade”, a “coisa” mais evidente, simples e real que somos nós mesmos, é a tendência irresistível de entender a boa vontade como veleidade, desejo, como um “gostaria que” e, ao mesmo tempo, como um “ato psíquico”, isto é, como objeto do enfoque do ocular da psicologia.

Como foi dito acima, para Frei Egídio há uma diferença essencial entre boa vontade e o ato psíquico do desejo ou da veleidade. Tentemos ver a diferença através de um dito notável do santo frade.

Um dia alguém se aproximou de Frei Egídio e lhe disse: “O que faço para sentir a suavidade de Deus?” E Egídio: “A ti, Deus, alguma vez, te inspirou boa vontade?” “Ora, muitas vezes…!”, respondeu o homem. Egídio começou a vociferar: “Por que, então, não guardaste aquela boa vontade que te conduziria ao bem maior?!” Por que Frei Egídio ficou zangado? Nervoso? O que há de tão grave e ruim na resposta: “Ora, muitas vezes!”, para fazer o santo homem perder as estribeiras, a ponto de gritar: “Que diabos! Por que não guardaste…?”  Ou há ali algo realmente tão decisivo e grave para desequilibrar um santo de Deus? A explosão à italiana de Frei Egídio é um ímpeto, uma mistura de cuidado, preocupação e indignação. É uma expressão daquela experiência insuportável, de quando a gente não sabe mais o que fazer para ajudar, a não ser dar um grito de alerta para chamar a atenção do outro, que cegamente avança para a perdição. É, ao mesmo tempo, um fluxo de indignação pela leviandade e alienação em que o outro vive. Mas por que ficar indignado pelo fato de o outro estar assim alienado? É que Frei Egídio ama o irmão, interessa-se por ele, quer ajudá-lo, e ao mesmo tempo sabe quem é e como é a Boa Vontade de Deus, do Pai que continuamente, sempre de novo, doa-se incansavelmente, todo e inteiro, inspirando ao homem a boa vontade. Nesse sentido, Deus “se mata” para inspirar a boa vontade. E o homem nem se toca; levianamente ri e diz, como que fazendo pouco caso: “Claro, muitas vezes já me deu a boa vontade”.

Viver no hálito de Deus

Egídio pergunta: “E a ti, Deus, alguma vez, te inspirou boa vontade?” Inspirar significa soprar para dentro. É, pois, respiração “boca a boca” para reanimar, recuperar no outro o sopro da vida. Isso significa que a boa vontade que Deus boca a boca inspira para dentro de mim é o sopro vital dele mesmo. E o meu sopro, reanimado e recuperado no vigor, segue o fluxo e o ritmo dessa respiração de Deus, e assim eu volto à vida! A boa vontade é, portanto, segundo Deus? É isso mesmo, diz Frei Egídio. Isso significa que na boa vontade que surge, nasce em mim como benquerença, como benevolência, está o mesmo modo de ser da Boa Vontade, isto é, do Amor de Deus? Certamente!

De repente, levamos um susto. A boa vontade, o bem-querer, esse ato tão insignificante, tão passageiro e momentâneo, “algo” tão pequenino como semente de mostarda, revela-se como o elemento básico, principal da Vida, que contém em si o mesmo modo de ser do Deus de Amor, criador do universo. É, por assim dizer, uma minúscula, microexplosão atômica do abissal, onipotente, onisciente e onipresente vigor do Deus de Amor. Só que, na Boa-Nova, onipotência, onisciência e onipresença são todas palavras cujo sentido está todo e inteiramente colocado na perspectiva do poder humilde e suave do amor, do poder da absoluta Boa Vontade, da doação incondicional de si do Deus da Misericórdia. E nós, cada um de nós, em cada um dos atos da boa vontade – por mínimo e insignificante que ele seja –, participamos, em todos os afazeres e em todas as vicissitudes do nosso viver cotidiano, da imensidão e profundidade abissal desse poder do Amor de Deus; com Ele colaboramos, nele e através dele atuamos na dinâmica da boa vontade no universo.

Cuidar, com solicitude e vigilância, da manutenção da Boa Vontade em nós e nos outros, com toda a limpidez e precisão, porque a boa vontade é o vigor ordinário de todas as extraordinárias tempestades, explosões e terremotos, mas também de todo o nascer, crescer e consumar-se das estações do universo dos homens é, talvez – ou melhor, certamente –, o trabalho essencial do cotidiano afazer cristão.

Disse o Senhor a Elias: “O que estás fazendo aqui, Elias?” Ele respondeu: “Estou apaixonado pelo Senhor Deus Todo-poderoso…” O Senhor respondeu: “Sai e põe-te de pé no monte diante do Senhor! Eis que Ele vai passar”.

Houve, então, um grande furacão, tão violento que dilacerava os montes e despedaçava os rochedos diante do Senhor, mas o Senhor não estava na tempestade. Depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve fogo, mas o Senhor tampouco estava no fogo. Finalmente, passado o fogo, percebeu-se apenas uma brisa, suave e amena. Então, Elias a sentiu e encobriu o rosto… (1 Rs 19,9-14). E o Senhor estava na brisa, no hálito da suavidade.

  1. A autonomia da boa vontade

Quando refletimos sobre a boa vontade, identificando-a com a semente de mostarda do Evangelho, dissemos que a boa vontade, esse ato tão insignificante, tão pequenino como semente de mostarda é, na realidade, o elemento básico e principal da Vida; que ela contém em si o mesmo modo dinâmico de ser do Deus de Amor, Criador do universo; que com ela participamos da imensidão e profundidade abissal desse poder do Amor de Deus e com ele colaboramos. Tentemos agora ver mais de perto como é o empenho e o desempenho dessa boa vontade, focalizando-os mais como o perfazer-se, isto é, o processo dinâmico do trabalho da responsabilidade de ser, que hoje costumamos chamar de autonomia.

Como é, pois, o modo de ser do espírito, chamado autonomia?

Muitas vezes a palavra autonomia é ouvida como auto-suficiência, no sentido de se bastar a si mesmo, de rejeitar e negar toda e qualquer dependência, uma espécie de orgulho humano desmedido. Examinemos melhor o seu significado, vendo as implicações significativas que se encontram no termo.

“Auto-nomia” se compõe de “auto” e “nomia”. O significado usual da autonomia é independência, liberdade, o modo de ser dos que vivem segundo a sua própria lei. Mas o que significa mais profundamente “o modo de ser dos que vivem segundo a sua própria lei”? É que aqui a própria lei deve ser entendida como a lei própria da essência do ser humano. Examinemos, pois, o significado dos termos que compõem a palavra autonomia, para ver melhor o que é realmente a independência, a liberdade própria do homem.

Responsabilidade de ser sempre sim

“Auto” vem do grego autó, que significa mesmo, em si, por e para si, pessoalmente, a partir de si. Mais propriamente, indica um movimento. Que tipo de movimento? Movimento que podemos descrever como erguer-se a si mesmo, destacar-se, realçar-se, alçar-se, colocar-se a si mesmo a partir de si. Nós diríamos: ficar de e em pé! De que se trata, pois, esse ficar de e em pé mais concretamente como autonomia? Trata-se da experiência bem conhecida nossa daquele impulso inicial de todos os nossos empenhos e desempenhos, de todas as nossas ações. Por mínima que seja a nossa vontade, toda e qualquer ação humana se inicia, e se mantém iniciante sempre de novo em todas as continuações e consumações como impulso livre originário de ser e ter que ser um sim, a partir de si, para e por si. Aqui ninguém pode me substituir nessa responsabilidade de ter que ser sim inicial e iniciante. Trata-se, pois, da miniexplosão da boa vontade, da vontade boa.

Assim, tudo no ser humano se caracteriza como um esforço de erguer-se a si mesmo. É nesse movimento que o Homem se constitui como ele mesmo. Por isso, nada no homem é apenas ocorrência. Nada nele é simplesmente dado. Nenhum momento nele e dele é apenas fato. Ele é, antes de tudo e por excelência, sempre de novo e cada vez uma ação responsável de ser, um dever ser, um ter que ser. Assim, dizer que um homem está deitado e dorme como uma pedra, ou que alguém vegeta é, na realidade, um modo de falar. Porque mesmo para ficar deitado num “dolce far niente”, ele deve alçar-se a si mesmo a partir de si.

Tudo isso ele não vê, se fica na cama ocasionalmente, por alguns momentos. Mas, se permanecer deitado por três dias seguidos, sentirá com certeza o peso da fadiga do ter que se manter no “far niente”. Com outras palavras, para o homem ser, ele deve ser autó. Por isso, as palavras auto-móvel ou auto-mático, para se referir a uma máquina, denotam uma incompreensão total da palavra autó no sentido grego. O empenho humano como tal, isto é, como o movimento de ter que ser, de ter que se pôr, de se colocar a si mesmo a partir de si tem o modo de ser da boa vontade, da liberdade da vontade boa.

Nomia” vem do grego nómos, que traduzimos por lei, prescrição, ordem, mas que significa também uso, costume, hábito, os costumes. Nómos, por sua vez, vem do verbo “némein”, que significa repartir, partilhar, outorgar, conceder, conferir; receber como sua parte em uso, possuir, dominar, reger, administrar, habitar, cultivar a terra. Estranhamente, a partícula “nem”, do némein, significa propriamente dobrar, curvar. Curioso é que todas essas múltiplas significações variantes querem indicar o modo todo próprio do empenho humano. Tentemos descrever esse modo todo próprio do empenho humano, insinuado nas múltiplas significações do termo “nomia”.

Recorrendo à ajuda de uma legenda

Mas como se relacionam entre si todas essas significações variantes, implícitas na nomia? Comecemos, primeiro, perguntando o que tem a ver partilhar com curvar-se, dobrar-se? É que em todo e qualquer empenho humano, o homem se dobra, se curva. E é nesse curvar-se sob o peso do desempenho da sua finitude, é nesse dobrar-se sobre si mesmo, para dentro de si, que ele se partilha a si, se participa de si, se dá, se outorga, se concede e se confere a si mesmo, e se recebe a si mesmo como sua parte em uso. Mas o que querem dizer todas essas insinuações? Talvez um exemplo possa salvar todo esse palavrório da reflexão acima.

Conta uma legenda japonesa que o famoso guerreiro do antigo Japão, Kussunoki Massashige, celebérrimo pela sua inteligência e pelos seus lances geniais de estratégia, já na sua infância vivia no meio dos guerreiros. Uma vez, no castelo do seu pai, observava os guerreiros que, reunidos ao redor de um enorme sino de bronze suspenso por uma armação de grossas madeiras, estavam apostando quem deles conseguiria pôr em movimento o sino, que pesava toneladas. Mas nenhum deles, mesmo os mais hercúleos, conseguia mover o sino, nem sequer por um milímetro, por mais ímpeto e violência que empregasse. O menino assistia a tudo isso com muito interesse. De repente, oferece-se para mover o sino, e lhes pergunta se pode usar todo o tempo de que necessita para tal empreendimento. Meio zombeteiros, meio admirados, mas achando graça, os guerreiros o desafiam a realizar o seu propósito. O menino cola todo o seu corpo ao sino e, sem pressa, sem ânsia, suavemente, mas com toda a possibilidade de seu pequenino corpo, se empenha corpo a corpo, ele todo e inteiro, a empurrar o sino com o seu exíguo e finito corpo [1] até onde pode e solta, empurra e solta, como que sondando o tempo do sino, cordialmente, sempre de novo e sempre novo; como que recebendo e dando parte do sino e parte de si, numa simbiose, num intercâmbio amigo, por horas a fio. E pouco a pouco, de início imperceptivelmente, mas depois visivelmente, o enorme sino começa a balançar…

No movimento desse pequenino corpo colado ao sino se dá, numa simultaneidade viva, um dar e receber todo próprio, bem diferente ao do “dar e receber” dos guerreiros que, com violência e força bruta, arremessavam-se contra o sino. Neste, na realidade, não há um dar e receber. Há, sim, um dar socos, empurrões e pontapés. Se houver, por acaso, um empurrar aparentemente parecido com o do menino, onde o guerreiro cola o seu corpo no sino e empurra, no próprio modo de empurrar do guerreiro, surge certamente uma diferença fundamental. Aqui, o guerreiro não acolhe a inércia do sino no seu peso como uma doação amiga. Por isso, ele opõe a sua força bruta contra a força da inércia do sino para subjugá-la. Como a força da inércia do sino é muito maior do que a do guerreiro, o dar-se do guerreiro se embate contra um paredão do sino. O sino lhe é, pois, uma impossibilidade inimiga.

Não poder como abismo de possibilidades

É bem diferente o empurrar do menino. Na experiência do corpo do menino colado ao sino, a imensidão das toneladas do sino não é uma impossibilidade inimiga ao corpo finito. É que o corpo da possibilidade finita do menino não sabe o que pode (cf. Mt 6,3). Não sabe, não quer, não é o que pode. Em que sentido? No sentido de não ter referência de cálculo, de uma medida determinada como quantidade de uma coisa, a partir do que pode, do que quer e do que é. Em sentindo a massa gigantesca do sino, o menino, ao empurrá-lo, dá-se todo e inteiro ao que não pode. Aliás, ele não pensa se pode ou não pode, por não saber. Só pensa, isto é, só se concentra nessa doação. E nessa entrega cordial, a impossibilidade não é tratada como inimiga, como uma negação calculada e determinada da sua possibilidade finita, mas como um não poder que é um abismo de possibilidades, o qual ele não tem sob o seu poder. Não o tem porque é o abismo que o tem, o envolve, chama e convoca.

Doar-se cordialmente, corpo a corpo, todo e inteiro no empenho humilde de tentar mover o impossível não é mais a atitude de querer poder subjugar o impossível. Não é também a atitude de se entregar à impossibilidade, como quem é dominado e subjugado contra a vontade, digamos, resignado. É, antes, uma atitude na qual o homem se dispõe a deixar-se embalar pela força que o transcende, sendo carregado por ela, fluindo nela. Em se doando como possibilidade finita todo e inteiro à impossibilidade, o menino recebe a sua própria finitude de volta, fluindo na dinâmica abissal do que não pode. A saber, na qual, para dentro e a partir da qual, a possibilidade finita se alça, se ergue, toma pé como a criatividade disposta de ser e deixar ser. O sino não é inimigo. Não é paredão do contra. É o maior, o imenso. O grande. É impossibilidade, não como exclusão da minha possibilidade, mas sim como a possibilidade anterior, infinita, que permite, me dá a possibilidade alegre da finitude agraciada. A “im-possibilidade” não é negação da possibilidade. É, antes lá, onde a possibilidade finita nada como peixe na imensidão do mar.

Esse erguer-se, esse alçar-se na dinâmica do impossível não é um pôr-se de pé, heróico, digamos, de um Prometeu, isto é, da afirmação do eu, nem um desafio revoltado contra o trágico destino impossível. É, sim, um curvar-se, um dobrar-se para dentro da possibilidade finita. Possibilidade finita, isto é, a finitude, sentida agora não mais como privação indevida da infinitude a que tem direito, mas como um vigor todo próprio, intrépido e cordial. A saber, o vigor cheio de graça de ser o nada da sua possibilidade. Não ser, pois, a sua possibilidade, para poder ser como a total disponibilidade de querer e ter que ser sempre de novo alegria e gratidão. Alegria e gratidão de poder se responsabilizar, isto é, de responder ao amor do abismo infinito. A esse vigor dobrado para dentro de si como recolhimento ponderado do corpo finito bem disposto, o homem o sente como parte de si, próprio de si, e ao mesmo tempo como porção da imensidão abissal, doada a si como a sua parte para o seu uso.

E, segundo os gregos, dos quais vem a palavra autonomia, é nesse uso que o homem habita a terra. É desse uso que surgem as leis, cidades, constituições, costumes, reinos. É nesse uso do modo de ser do empenho livre humano que se cultiva a terra, ordenam-se as casas, as habitações, os hábitos. É assim que se constitui a morada na Terra dos Homens. É a autonomia. É por isso e nesse sentido que nómos, némein se refere ao uso, costume, habitat; ao dominar, reger, administrar, habitar, cultivar a terra.

Depois de tudo isso que se disse da autonomia, pensemos o seguinte: que no conto de Kussunoki Massashige, em vez do menino miniguerreiro sábio estivesse você, eu, cristão, seguidor de Jesus Cristo; e em vez do sino, ali estivesse a imensidão inacessível do Deus do Amor infinito, que vem a mim, ao meu encontro, empurrando como o menino empurrava o sino, de todo o coração, dando-se a mim como pode, corpo a corpo, inteiramente colado a mim. E que nesse vir de encontro a mim me recebe todo inteiro como sou e posso, sem restrições, sem senões, de toda boa vontade de que Ele é capaz…

Não é assim que, aos poucos, começamos a entender o que significa a autonomia dos filhos diletos de Deus, na baila divina da sua Boa Vontade?

[1] Grifamos o termo corpo para sugerir que nesse modo de ser de todo, inteiro e ‘responsabilizado’ está o pivô da significação curvar-se, implícita na palavra auto-nomia. Numa existência humana cujo ‘ser’ é gordo-adiposo, esparramado, disperso, jamais chega a autonomia, por mais fofa e bela que seja a vida … ‘humana’ (?!).

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