Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Sentir e Pensar

05/02/2021

 

Introdução

“Sentir e pensar”, tema do seguinte pequeno trabalho, necessita de explicação.

Na história do Ocidente-europeu, no início grego, temos o ‘conhecido’ fragmento do pré-socrático Parmênides que diz: …“pois o mesmo é pensar e ser. O título do seguinte trabalho “sentir e pensar” tem implicância com esse fragmento de Parmênides. Explicar essa implicância no fundo é dizer de que se trata, quando nesse trabalho se fala de sentir e pensar e nesse encontro, ao refletirmos acerca da psicologia, pedagogia e espiritualidade na nossa formação, se refere de alguma forma ao sentir e pensar.

  1. Tentando colocar a questão dos nossos encontros

Hoje, não se diz ser e pensar é o mesmo; e, se se disser, diz-se ser e pensar é igual. E tal asserção seria não somente não compreensível, mas também errônea. É que hoje, o mesmo é sinônimo de igual, e por sê-lo, ser não é igual ao pensar, é algo bem diferente do pensar.  O que pertence ao reino do que ocorre como existente realmente não pode ser igual ao que pertence ao reino do que é apenas mental. Este se refere ao homem, à sua esfera subjetiva; aquele à coisa distinta do homem, à esfera objetiva, fora da sua mente, ocorrendo realmente por e para si, sub- e con-sistente em si. Subsistir e consistir por e para si, em si como sujeito-homem e subsistir e consistir por e para si, em si como objeto-coisa são duas coisas bem diferentes. Mas ambos, tanto o homem como a coisa são sub- e con- e in-sistência. Esse comum de ‘dois-e-mais’ esse fundo geral, básico, fundamento que serve de plataforma geral no esclarecimento do que seja a coisa humana e a coisa não-humana, se chama entidade do ente no seu ser. O que seja humano e o que seja não-humano já é de antemão determinado nos e como modos de ser no seu ser por essa entidade do ente no seu ser. Esse esquema, na pesquisa e no ensino do pensamento ocidental recebe o nome de explicação manualística[1] da filosofia substancialista. Quando nós[2] nos reunimos para trocar idéias acerca de um determinado tema, estamos no modo de ser e de compreender, somos, pensamos e sentimos, na manualística da filosofia substancialista. E tudo isso, mesmo que não tenhamos estudado academicamente a especialização chamada filosofia. Essa pré-compreensão de fundo, filosófica, na qual estamos todos nós, é o que denominamos de nossa compreensão cotidiana, seja ela na vida dos afazeres diários, seja na vida das ciências. Esse é um ponto que devemos sempre de novo recordar nos nossos encontros e tentar vê-lo com nitidez cada vez maior.

No entanto, por outro lado, essa última afirmação parece não ser muito exata. Pois o que denominamos de nosso cotidiano é mil vezes mais vasto e profundo e vivo do que a mencionada pré-compreensão de fundo, filosófica.  E objetamos: o nosso cotidiano pode ser muito banal, superficial, passageiro, sem muito empenho e desempenho de busca, mas ele está em contato, envolto, impregnado por aquilo que nomeamos como vida, ser, sentido do ser, mistério, alma, Espírito, Deus, realidade etc. Além disso, o que se designa como compreensão diz respeito à inteligência, razão; mas nós temos também outras faculdades de captação como vontade e sentimento. Não é assim que o ser, a realidade se nos apresenta muito mais através de nossas atitudes éticas, morais, muito mais através do coração, do sentimento e suas vivências do que da compreensão racional, abstrato e conceitual, filosófica? E além da nossa compreensão racional, mental, do pensar, possuímos vivências e experiências, p. ex., da fé, da religião.

Mas, em assim objetando, se nos examinarmos a nós mesmos na práxis da nossa busca mais sincera e pessoal, ficamos de novo perplexos. Pois, estamos perplexos, porque no fundo estamos nessa perplexidade perguntando: mas todo esse saber, acerca da inteligência, vontade e sentimento, acerca da experiência e vivência da Fé, da Religião, de onde tiramos tudo isso? Tudo isso que dizemos é evidente? Não é assim que consideramos hoje toda essa área pré-científica, o nosso cotidiano como uma compreensão ingênua, de imediatismo caseiro irracional, sem mediação de uma impostação mais sistemática e científica? Nós que somos formados em um saber científico, se não seus criadores ao menos consumidores; estudiosos, sim especialistas, ‘ensinadores’, pesquisadores de uma ciência positiva, psicologia, pedagogia, espiritualidade, filosofia, teologia etc., como e em que sentido nos responsabilizamos pelo nosso saber, como ligamos o nosso saber com a vida, com tudo que nos rodeia, que se nos retrai, que nos inquieta e até mesmo nos angustia? E isso não somente enquanto em particular, sofremos a crise existencial da nossa vida cotidiana, mas enquanto ‘profissionais’ de um saber, do qual somos agenciadores, fomentadores, utilitários?[3]

Os nossos encontros anuais nos querem movimentar ao redor de nós mesmos, enquanto começamos a perceber no saber da nossa formação profissional essa questão de fundo da fundamentação das nossas ciências, nas quais fomos formados e nos levar a nos inquietar com maior acribia e necessidade e precisão acerca da verdade do ser do nosso saber e não saber. Na realidade, os nossos encontros ainda não sabem bem o que estamos procurando, mas aos poucos estamos começando a vislumbrar o inter-esse de fundo das nossas inquietações enquanto intelectuais, agenciadores e consumidores do saber no qual pensamos, sentimos, vivemos e somos. E através do que viemos discutindo e refletindo em nossos encontros, estamos, por assim dizer, descobrindo que no fundo de todos esses nossos saberes, tanto na vida cotidiana como nas ciências e profissões que exercemos, existe um fundamento fixo, algo como pré-jazida de fundo, a qual acima caracterizamos como concepção ou explicação manualística da filosofia substancialista.

O sentido do ser da entidade do ente no seu todo da manualística da filosofia substancialista subsume o próprio de todo o ente, a identidade, ou melhor, a diferença do seu ser sob a opacidade e neutralidade da igualdade do sentido do ser denominado entidade do simplesmente dado ou entidade da ocorrência. O ente é então compreendido de antemão como algo, coisa, um quê. A uniformidade, a homogeneidade que aqui reina nos embasa num horizonte único, neutro e óbvio, aparentemente nos dando um fundamento seguro, fixo e imutável. Mas esse fundamento nos bloqueia o desvelar-se livre dos sentidos do ser, cujo hálito, na sua identidade e diferença, é de outro quilate, é de outra gênese, outro crescimento e consumação, totalmente outra na nascividade e na perfeição da sua liberdade e criatividade.

Para que as ciências, e outros saberes da nossa vida cotidiana também possam nos dar realmente o sabor da sua verdade finita, concreta e viva, não haveria a necessidade de furar o bloqueio de fundo do embasamento da positividade de todas as nossas ciências, quer naturais quer humanas, sobre a laje fundamental da concepção manualística da filosofia substancialista, portanto, sobre a entidade do ente no seu todo, sobre a entidade do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado? E soltar a nossa liberdade de sentir e pensar o ser na sua nascividade fontal?

O nosso tema sentir e pensar quer falar da possibilidade de estar junto dessa nascividade fontal.

Estar junto da nascividade fontal! Alguém como Mestre Eckhart denominava essa possibilidade de conhecimento, i.é, conascimento. Conascer significa nascer com, surgir, crescer e se consumar com o ente no seu ser, em sendo. A hipótese de trabalho é de considerar que o ser do homem como um em sendo é ser apenas o hiato da passagem, ou melhor, a viragem da possibilidade de ser para o em sendo do ente no seu ser. Com outras palavras, o próprio do homem, a essência do homem é apenas o nada possível do ente no seu ser. Tal vigor do nada (= possibilidade) é expresso nos termos sentir e pensar. Nesse sentido, parafraseando o fragmento de Parmênides, citado no início, podemos talvez dizer: … “pois o mesmo é sentir-e-pensar e ser[4].

  1. Sentir e pensar: o ser-no-mundo

Em certos círculos da filosofia de hoje, costuma-se chamar o ser do homem com a expressão: o homem é o ser-no-mundo. Sentir e pensar se refere a e incide dentro dessa expressão ser-no-mundo na preposição no. Sentir e pensar, enquanto ser do homem, é ser-no ponto de salto da constituição, ou melhor, gênese do mundo. Como já foi dito várias vezes nos nossos encontros anteriores o ser-no-mundo não pode ser entendido como ocorrência de um algo dentro do conjunto dos algos, formando um todo somativo. Não se trata também de um ente dentro do seu médium como p. ex. um sapo dentro de uma lagoa. Trata-se, antes, do ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser; como a toada da percussão do toque do ser como repercussão ‘syntônica’ constitutiva do mundo. Trata-se, pois, da preposição no na expressão: o “ser no ente” e o “ente no ser”[5].

Para que o ser do homem enquanto ser-no-mundo possa ser captado no seu ser no, de modo talvez mais viável, tentemos dar dois exemplos que é uma espécie de parábola, e então discuti-lo oralmente, se tivermos tempo.

  1. Parábola da carta codificada:

A parábola é de René Descartes. A parábola fala de como na ‘inspiração’ do que na sua época estava a surgir como ‘revolução copernicana’ (Kepler, Copérnico, Galileu Galilei; Descartes, Pascal) se insinuava o modo de ser da nova ciência universal (mathesis universalis) na sua liberdade e jovialidade de ser[6]: esse modo de ser incipiente se chamou cogito ou cogitatio, que na acepção usual de hoje poderíamos traduzir como pensar, conhecer, interpretar.

René Descartes tenta ilustrar o modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que  por ser um homem de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração, a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranquilamente, deixar aberta essa questão da existência de outro código de decifração. A ela basta que, no se modo de ler, a carta lhe dê sentido coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de decifração. Mas, suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo e tudo o que ele contem, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostra o relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo.

Numa tal situação, caso consigamos decifrar a carta, descobrindo um ou mais códigos de decifração, qual dessas interpretações é válida, melhor, certa ou errada? Essa pergunta não pode ser respondida no caso da carta da parábola, porque aqui existe um número infinito de diferentes códigos de decifração. Mas então cada interpretação tem igual valor? Todas elas são válidas? Mas, se é assim, não estamos permitindo na busca da verdade um relativismo total, no qual tudo é relativo, portanto, nada é absoluto? O decisivo aqui é entender com precisão o significado de relativo para o caso da interpretação. Relativo aqui deve ser entendido simplesmente como relacionado, sem nenhuma conotação repreensiva. Portanto, como ente, cuja estruturação é referência, relação. Relação não tem o mesmo modo de ser da substância-coisa, em si, mas sim o da função de ser referido a outro. Como tal, jamais é em si, isolado de outros, mas sempre junto com, constituindo-se cada vez como momento de um conjunto, que por sua vez é momento de outro conjunto, em diferentes níveis e dimensões. Assim, cada vez, deve-se definir uma interpretação com base em sua posição, e essa definição é, ao mesmo tempo, sua maneira própria de se relacionar com outras interpretações. Definir aqui significa mostrar o código de sua decifração, dar as coordenadas das suas pressuposições e pré-compreensões. Em assim se definindo, isto é, marcando seus limites, cada interpretação diz de si mesma. Estas pressuposições e pré-compreensões são as coordenadas demarcadas pela locação, a partir e dentro da qual estabeleço a possibilidade de rastrear o sentido de um texto. É a partir de tal posição que dou esta ou aquela explicação do texto. A interpretação é válida na medida em que ela percebe e clareia as implicações dessas pressuposições e pré-compreensões, de modo cada vez melhor concatenado e coerente, num todo coeso e fundamentado. Essa definição que a interpretação opera nela mesma em sendo interpretação, já é o início do processo de intercâmbio e referência a outras possíveis interpretações com suas respectivas auto- definições, numa interação, quase sempre não-temática, mas operativa, de muita crítica, provocação, confirmação, de acolhida ou rejeição, mútuo aprofundamento e alargamento, em cuja co-agitação cada interpretação é levada a tomar conhecimento cada vez mais responsável e acurado dos seus limites, de seu nível e de sua dimensão”.

Aqui, poder-se-ia apenas constatar que Descartes está dizendo: “tudo é interpretação”. Na realidade, ele aponta para a questão, surgida nessa nova mathesis universalis. Essa questão exige de nós que nos tornamos mais claros acerca do ponto de salto de cada uma dessas interpretações. E sentir e pensar como é a estruturação, a dinâmica da passagem ‘entre’ o abismo infinito de possibilidade de ser que ali se oferece cada vez e o surgir, crescer e consumar-se finito do mundo criado em e por correspondente interpretação. Se chamarmos cada interpretação de mundo e o código decifrado de o positum de uma ciência positiva, o modo de ser da verdade do saber, aqui, das ciências positivas, não é mais adaequatio rei et intellectus mas sim a estruturação do que os gregos denominavam de a-létheia, que costumamos traduzir como des-ocultamento ou des-velamento. Como já foi insinuado acima, a essência do homem está nesse “–” (hífen ou hiato) que medeia o a e léthe ou létheia. Como, pois, nos responsabilizamos pelo nosso saber, se a essência do homem é ser-no-mundo, e se, o no aqui significa exatamente esse hiato?

  1. A parábola da árvore

O poeta alemão Johannes Peter Hebel (1760-1826) diz: “Nós somos plantas, as quais, – gostemos ou não de o admitir – devemos com as raízes subir da terra, para podermos florir no éter e carregar frutos” (Obras, ed. por Wilhelm Altweg, III, p. 314). “Subir da Terra para o Céu (éter) e florir e carregar frutos” diz o movimento e a dinâmica do crescer, aumentar, vicejar e frutificar do ser e do fazer humano que é a aberta da constituição do mundo, em cuja entidade o próprio homem e o seu próprio se constituem como ente todo destacado entre outros entes, por trazer à luz, à fala, cada vez o ente no seu todo, enquanto realização de uma das possibilidades de ser do abismo inominável e insondável da força do ser. Essa dynamis, essa potência de ser é representada pela árvore, enquanto tronco, galhos principais e a copa. Mas toda a energia desse operar, i. é, (enérgeia; en-érgon; e entelécheia; em-telo-echein) crescer e consumar-se, desse “subir da Terra e florir no éter e frutificar” vem da raiz (ou melhor raízes = todo um mundo de articulações sui generis), onde se dá o movimento do que acima chamamos de viragem, passagem, dinâmica do abrir-se e ao mesmo tempo fechar-se, do desvelar e velar, do desocultar e ocultar, do ser e se nadificar como o abismo do ser, i.é, do Nada. O sentir e pensar é o movimento que é o próprio ser do homem, realizado nessa dimensão da raiz da constituição do mundo.

Acima dissemos que, quando aqui falamos do sentir e pensar, isso se refere ao ser do homem no nível de essencialização do próprio do seu ser. Dissemos, pois: Trata-se, antes, do ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser; como a toada da percussão do toque do ser como repercussão ‘syntônica’ constitutiva do mundo. Trata-se, pois, da preposição no na expressão: o “ser no ente” e o “ente no ser”.

É nesse ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser que o homem é quem, é quê fundante e originante, gênese de todo o processo criativo do ente no seu todo, portanto, do mundo que culmina na realização do próprio homem ele mesmo como a instância da(s) possibilidade(s) in-finda(s), sempre novas de ser e não ser. Mas do homem, não mais considerado como sujeito e agente do ato criativo, mas como a in-stância do ponto de salto do surgir, crescer e consumar-se do ente no seu todo, do mundo. É o homem, considerado como ser-no-mundo acima explicitado. Na filosofia atual, em vez de ser-no-mundo se diz também existência, como pré-sença, como Da-sein. Da-sein não é nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser próprio do homem, que no homem considerado como sujeito e agente do ato (portanto como coisa-substância) não pode aparecer. Pois, nessa consideração, o homem de antemão já é posto, colocado como um ente, cujo modo de ser é do objeto, ao lado de outros objetos não-humanos. Mas podemos perceber em nós mesmos, em sendo, como é esse modo de ser próprio do homem, pois nós mesmos somos Dasein.

Como seria, se nos aproximássemos da compreensão do que seja o Da do Da-sein através da dinâmica da criação? Para isso vamos aqui reproduzir, mutatis mutandis, o que já foi publicado numa outra reflexão acerca da obra de arte sob o título Mito e Arte. Embora aqui na nossa reflexão criar, criação tenham uma abrangência maior do que a criação artístico-estética, vamos tematizar na criação artística o aspecto de ser a aberta de todo uma paisagem do ente no todo, portanto a aberta do eclodir, crescer e consumar-se do mundo.

III. Sentir e pensar: ser como clareira[7] no ponto-núcleo da criação

“Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivação, produção, causação ou fabricação. Criar é efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido a criação (…) seria produção das obras (…). Estas, porém, como viemos refletindo, têm um quê todo próprio que as diferencia de outros tipos de produção fabril. Tentamos caracterizar esse quê diferente, dizendo que uma obra (…) é como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, até então nunca vista. Ou formulando-se de modo um pouco diferente, uma obra (…) é uma fenda, a partir e através da qual eclode todo um mundo de estruturações da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana é o que anteriormente expressamos como ser-no-mundo ou existência, ou Da-sein. Dasein é a interioridade do homem, donde vem à luz, vem à fala a obra que desvela toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um núcleo, dentro do homem, como sujeito e agente da ação de produzir a coisa chamada obra. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ação de produzir o objeto ‘obra’, donde tira a ‘inspiração’?  Há algo ‘anterior’ a esse sujeito-homem que o toca, o move para a ação criadora? Se aqui respondermos que há um outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produção, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou alguém que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez “mais anterior”, a perder-se na repetição interminável de pergunta. Todo esse regresso só é possível, porque entendemos o Da-sein ou o Ser-no-mundo sempre ainda como sujeito-quê, i. é, algo, objeto, coisa chamado homem. Esse impasse no fundo é algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vagões pesados não dá conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. É para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que em nossos encontros tentamos repetir à saciedade a recondução ou a redução do modo de ser e pensar “empírico”, “ôntico” ou “positivista” ao “transcendental”, ao “ontológico”, ao “filosófico”, portanto, o homem ao seu fundo dinâmico, ao Da-sein. Esse fundo é sem fundo no sentido de não haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se dá aqui no Da-sein é apenas o ser do Da. Para, de algum modo, ‘ver’ como é esse ponto nevrálgico do caráter “criativo” da estrutura Da, usemos um conceito tirado da doutrina da Criação do universo na mundividência medieval cristã. E assim, a nossa reflexão começa a ter afinidade com a reflexão sobre Eckhart que busca o ser da alma. O conceito é aseidade e se refere à anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade é exclusivamente só atribuída ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do homem, que na mundividência medieval é denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porém, é apenas o de tentar à mão do conceito da aseidade ilustrar de que se trata, quando dizemos que o ser do homem é Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo.

Aseidade vem da expressão latina a se. Significa: Deus na sua essência, no que lhe é próprio, é a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si. A expressão a se foi criada para evitar o uso da expressão causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior, que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupõe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porém não supõe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. É então nada? É nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que é, seja o que for[8]. Trata-se, pois de não determinar a partir de fora o que é. Então se trata de que? É deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se não é portanto causa sui? Não. Mas então o que é? Não é um quê, mas sim simplesmente ser, i. é, a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si, por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se é deixar ser todas as coisas nelas mesmas, também na soltura de si, a se. Mas deixar-ser já não supõe que algo seja, se não em ato, mas sim, ao menos, em potência? É possível deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vácuo, tão vácuo que nem sequer se pode dizer que é vazio? No entanto, esse nihil é o Da do Dasein, a essência, i. é, o ser do homem na sua interioridade, a mais própria, mais íntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreção do seu ser. É essa ab-soluta concreção, o sentido próprio do que se chama finitude humana[9]. É assim que alma do homem, a psyché, que traduziríamos mais adequadamente como Dasein, é todas as coisas[10]. O in, a interioridade do homem enquanto Da-sein é esse nada que é, na medida em que deixa ser o abismo de imensidão, profundidade e originariedade fontal da potência de ser ser na jovialidade gratuita da doação de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo ‘contraída’, de-finida como simplicidade da finitude[11] no ser, i. é, no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. É nesse sentido que o Da do Da-sein é passagem, não passagem de uma margem à outra[12], mas o “entre-meio” de cada “coisa”, que a deixa ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein é a mercê de, é afim de, é a afinação à gratuidade livre do abrir-se que é no seu fundo a recepção gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondável potência de ser. Potência de ser que somente é no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em-casa em toda parte, no resguardo do aconchego do que é sempre, a cada instante, como presença modesta, sem nome, anônima do ocultamento, se chama em grego antigo léthe (a-létheia). O que é a-létheia aparece de um modo muito bem ponderado na descrição feita por Martin Heidegger da obra de van Gogh, na qual o artista holandês pinta os sapatos da camponesa. Nessa obra o que na palavra a-létheia se refere à létheia ou léthe, i.é, o ocultamento, o retraimento, é denominado de Terra[13]. O que na descrição do quadro de van Gogh se chama Terra é a pátria, a matriz do mito, que em grego se diz com o termo mythos[14], cuja raiz significa toar, soar. Assim sendo, mythos não poderia ser a ressonância do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra que aparece, digamos onticamente, nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como anônima e silenciosa ocorrência de todos os dias? Seria o “realismo” bem “seguro” da serenidade do fundo de todas as coisas? Não seria, pois, a positividade da gratidão e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tênue vibração de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do uni-verso?

Isto significa: a opacidade da nossa existência cotidiana, na qual se dá a fenda da criatividade, não é asfixia, decadência ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivência do carisma criativo. É, pois, tênue superfície da imensidão, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotável da presença do ser, a se desvelar e se ocultar, através da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturação do ser como mundo é enraizada e entregue à insondável confiabilidade do mistério[15] de ser, i. é, do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotável de ser.

  1. Sentir e pensar como concordância ao sentido do ser

A possibilidade inesgotável de ser se de-fine em sendo cada vez o ente no seu todo como mundo, se doando cordial, gratuita e livremente em mil e mil leques de paisagens diversificadas dos entes. O que conduz o abrir-se, de-finir-se, crescer e plenificar-se do ente no todo como mundo se denominou na filosofia atual de sentido do ser. Sentir e pensar não é outra coisa do que o sensorial do sentido do ser, o que acorda e concorda com a sensibilidade do sentido do ser de todos os entes no seu ser. Ao terminar a nossa reflexão, falemos do sentir e pensar como concordância do sentido do ser.

  1. Questão do sentido do ser[16]

“Usualmente fazemos coincidir pergunta e questão como se fossem palavras sinônimas. Isto ocorre porque na pergunta buscamos algo, e buscar provém do verbo latino quaerere[17], que deu origem à palavra questão.

De que se trata, quando dizemos questão? Questão vem do verbo latino quaerere. Significa buscar, procurar em sentindo falta; investigar, pesquisar, perguntar, interrogar, indagar, inquirir, perquirir. Trata-se, pois, de uma ação toda própria que, no fundo, impregna e impulsiona todos os nossos atos, no que eles, de alguma forma, têm de saber, conhecer, compreender. Trata-se de uma força humana que poderíamos caracterizar como paixão. Infelizmente, a nossa maneira de compreender e vivenciar essa paixão tornou-se tão soft e doméstica que talvez estranhemos chamar de paixão o élan que está no fundo do saber, do conhecer e do compreender[18].

Existe uma frase das Confissões de Santo Agostinho que é usada e abusada à saciedade. Ei-la: “Inquieto está o nosso coração, até que descanse em ti”[19].  A paixão de busca da verdade, implícita e operativa no saber, no conhecer e no compreender do ser humano, deveria ser entendida mais ou menos no sentido dessa inquietação entranhada de Santo Agostinho. Portanto, provavelmente, tal inquietação pouco tem a ver com o coração feito de “eflúvios sentimentais”, a “cara-metade” negligenciada e abandonada pela razão através dos séculos da civilização da razão ocidental. Coração esse que, segundo a interpretação hoje em voga e tão a nosso gosto, devemos cultivar com muito carinho, para libertar a humanidade do racionalismo desumanizador[20]. Na frase de Santo Agostinho, trata-se, porém, não de complementar a razão com o coração, a racionalidade masculina com a afetividade feminina – como tudo isso soa “machista”!… –, mas sim da essência, da excelência humana, na existencialidade do seu anelo ardente. Anelo e saudade de estar em casa, no nascente, na fonte inesgotável da vida, na aventura do encontro de alma para alma, face a face com aquele a quem a espiritualidade cristã chama de Deus.

A questão indica esse élan vital de busca, esse impulso profundamente enraizado no âmago, no cerne da humanidade, que denominamos liberdade, e que aparece em concreto na ação essencial de nós mesmos, experimentada como conhecer, querer e sentir em singular vigor único de disposição e doação, intrépido, cordial e sem medidas. Questão é, portanto, uma postura humana fundamental que se chamou na tradição do Ocidente de amor à verdade[21]. É o engajamento insistencial, isto é, in-sistência (ser-no) de toda uma existência de busca, de quaerere, isto é, querer, amar o trabalho, o empenho de investigar, de interrogar, de ir atrás das coisas, para desvendá-las, para desencobri-las naquilo que elas realmente são. O que os entes realmente são se chama ser do ente.  Toda a questão é captar com precisão o que é o ser. Questão é, pois, sempre e cada vez de novo a busca do sentido do ser, sentir e pensar o ser no ente e o ente no ser. O que é, porém, o sentido na expressão sentido do ser?

  1. De que se trata quando dizemos “sentido”?

Sentido pode significar “os sentidos”, i.é, as faculdades, as aptidões da percepção, que denominamos visão, audição, olfato, paladar e tato. Essas faculdades se referem à apreensão sensível, chamada sensação. O adjetivo próprio para indicar a peculiaridade da sensação é sensorial. Os sentidos são faculdades de captação sensorial. O verbo sentir nesse caso significa a ação de captar sensorialmente. Enquanto captação sensorial, o sentir difere do sentir na acepção do captar sensível, cujas modalidades qualificadas se expressam nos adjetivos sensual – a acepção da sensualidade enquanto eflúvio “erótico” – e sensível, na acepção da sensibilidade enquanto finura e delicadeza. Sentido pode ser usado também, querendo dizer, por um lado, significação, acepção, e, por outro, meta, fim. Esses três grupos de acepção do que seja sentido, diferentes entre si, não conseguem dizer bem o que deve ser entendido por sentido, quando dizemos “questão do sentido do ser”. No entanto, nesses três grupos de acepção do sentido há, de alguma forma, um quê de indicação, sobretudo no verbo sentir,  que nos poderia dizer o que se deve entender quando usamos a expressão “questão do sentido do ser”. Tentemos, pois, aproximar-nos dessa acepção toda própria através de algumas descrições circundantes, examinando a significação do verbo sentir, que deu origem à palavra sentido.

Sentido vem do verbo latino sentire. Sentire quer dizer sentir, perceber, captar, entender, compreender, adivinhar. Significa também: apreender com os cinco sentidos; sofrer na captação; ser passível de toque, de influência, portanto, passível de ser atingido, ser sensibilizado no sentimento. Trata-se, pois, de um ato de conhecer; mas com um cunho, um modo todo próprio. Em que consiste esse modo todo próprio? Consiste naquele modo de captar que ocorre quando percebemos, apreendemos as coisas através dos sentidos sensoriais. Só que, aqui, quando falamos de sentidos sensoriais, devemos livrar-nos das representações que já de antemão fazemos, quando falamos de sentido referindo-nos aos cinco órgãos da apreensão sensível. Pois, essas representações já estão de tal maneira fixas dentro de uma interpretação fisiológica, psicológica, e também metafísica dos sentidos e da percepção sensível, bem como da apreensão sensorial, que não nos libertam o próprio fenômeno vivenciado na percepção sensível.

A percepção sensível em todos os cinco sentidos contém em si uma acentuada predominância da passsividade receptiva. Se nos libertarmos da representação que bloqueia a imediata percepção da vivência como tal, e que a congela dentro de uma determinada interpretação tradicional psicológica, e também metafísica, do que é percepção sensível, podemos intuir de imediato que essa passividade é o que constitui, digamos, o vigor essencial da vida propriamente dita dos sentidos como “sensoriais”, da sensibilidade, da sensualidade e das suas apreensões, e ao mesmo tempo das percepções do sentimento e do conhecimento (mesmo intelectual e racional) num certo nível da profundidade da sua constituição[22]. Mas em que sentido? E como? Para intuirmos tudo isso, vamos mexer, “massagear”, desbloquear um pouco a nossa compreensão usual do que seja passividade.

Usualmente a passividade e a atividade são representadas como movimento de uma coisa física. O ativo é algo em movimento físico, e o passivo é algo parado. Essa compreensão do ativo e do passivo segundo o movimento físico é a mais estática e morta[23] que possuímos. Ela é inteiramente inadequada para captar a atividade e a passividade dos entes vivos e, muito menos ainda, dos fenômenos humanos, principalmente o da liberdade.

Nos fenômenos dos entes vivos e nos fenômenos humanos, a passividade e a atividade não são propriamente duas coisas opostas. Elas são, por assim dizer, dois momentos recíprocos de uma e mesma dinâmica. Na dinâmica da vida e da liberdade, o momento passivo é como que o fundamento do momento ativo, e passividade ali é como o silêncio de fundo onde toa e repercute o som (=atividade). É como a abertura de possibilidade do todo (=passividade), dentro da qual surgem as diferentes concreções (=atividades). É que toda e qualquer atividade deve ser possibilitada primeiramente através de uma recepção prévia do todo, do horizonte, do espaço da possibilidade, dentro do qual se tornam possíveis e atuais as diferentes e variegadas atividades.

Na passividade receptiva que, por assim dizer, prepara o ponto de salto do surgimento da possibilidade do todo, no qual se sucedem as concretizações ativas da realização de uma obra, surge uma abertura de disponibilidade atenta a um a priori todo próprio. Este a priori não é uma possibilidade ali pré-jacente como espaço vazio, espaço-vácuo de privação e carência, mas sim um toque vivo, algo como direção prévia de condução, prenhe de esboços (não é melhor dizer esperanças?) de consumação vindoura. Esse ductus[24] prévio do toque na condução para a consumação final que há de vir se chama sentido. E o seguir esse ductus se chama sentir. Sentire, sentir significa, portanto, a dinâmica da recepção do lance inicial, a dinâmica do princípio-envio: o aviar-se, o seguir, o ir atrás de uma direção viva prévia, o ir atrás do vestígio, o in-vestigar. É nesse sentido do encetar o caminho, do enviar-se, do aviar-se, que a palavra alemã para sentido, Sinn, e para sentir, sinnen, cuja forma antiga é sinnan, significa viajar, ir,  tender.  O sentido, portanto, é a pura recepção no ductus, na direção, que se dá como o(s) esboço(s) do todo, sob cuja orientação a nossa busca se a-via na in-vestigação do que há de vir como o desvelamento do que ali sempre sub-siste sem ser isto ou aquilo, como abismo insondável de possibilidades sem fim. A disposição para o ductus do abismo insondável da possibilidade se chama pensar, que na formulação pré-socrática se diz: a espera do inesperado[25].

Ao ser jamais captamos como objeto, como coisa ou ente. Pois o ser somente vem à fala no momento do toque da disposição da espera do inesperado, portanto na aberta do pensar.

O termo pensar vem do verbo latino pendeo, pependi, pensum, pendere e significa: penduro; estou em suspensão, pairo; daí também, hesito, estou indeciso; dependo de; descanso sobre, repouso sobre; na formulação pendo, pependi, pensum, pendere significa peso, avalio, meço a modo de ponderar, i.é, balançar algo na mão para sentir o seu peso. As significações pesar (pendo) e pendurar (pendeo) são derivações do significado de “dependurar para pesar”, i. é, estar pendurado. Daí pensar conota também o fio estendido, esticado como fio referencial ao tecer um pano; conota, pois, o tecer; assim o termo substantivo latino pensum significa o pendurado, a quantidade de lã que se pendura para a tarefa de tecer e fiar por um dia. Daí, num sentido estendido pensum significava a tarefa, o encargo. O modo de ser do estar suspenso, do pairar e como que em suspensão do repouso; o modo de ser do tecer, cuidar de ajuntar para que se dê a serenidade de unidade bem descansada em si é pensar. Esse modo de sopesar, ponderar algo no seu peso, na sua importância, balançando-o na mão, como que a sondar a partir do que é avaliado nele mesmo, a partir dele mesmo, a partir de dentro dele, é pensar; por isso, pensar em português diz também fazer curativo numa ferida, i.é, colocar a mão sobre a ferida e a proteger e cuidar para que sob o calor e desvelo da mão cuidadosa, o que está rompido e separado recupere a sua identidade a partir de si[26]. Pensar em todas essas acepções significa portanto a disposição de serenidade atenta, cheia de diligente cuidado para acolher e deixar ser o sentir cordial e obediente ao ductus da possibilidade de ser. Esse “modo” é o que ali está presente de modo muito discreto e humilde na neutralidade, no ‘vazio’ de conteúdo do verbo eínaii, do verbo ser, cuja voz no seu sentir não é nem ativo, nem passivo, nem reflexivo, mas medial. Assim, sentir-e-pensar é o mesmo que ser e diz a essência, a aberta, que é o homem.

  1. E nós, hoje, o que fazer com o sentido do ser do nosso saber?

Como entender melhor essa presença do ser que é o mesmo sentir-e-pensar que jamais pode ser captado como objeto-ente, mas sim como “sentido” enquanto ductus de uma condução?

Em perguntando, junto do ente, do ente objeto do seu saber, da sua ciência, da sua especialização científico-acadêmica, junto da coisa, disto e daquilo, e em perfazendo com acribia, exatidão e quiçá pedantismo o movimento de generalização que é ao mesmo tempo de particularização, no zelo de classificação das respectivas ciências, nas quais somos gerenciadores e doutos. E se fizermos tudo isso até os limites da possibiilidade de “tudo” saber, a modo de classificação sobre isto e aquilo, “sentiremos” a fixação dessa tendência e inclinação da predeterminação de fundo do nosso ser e do nosso saber na manualística da Filosofia substancialista. O seu ser é a entidade do sentido do ser da ocorrência do simplesmente dado, i.é, do sentido do ser como coisa, como o quê, como substância. Mas ali pulsa e está oculto, debaixo do conceito, o mais comum do ser no processo histórico do esquecimento do sentido do ser, uma verdade, uma a-létheia, em cujo ductus nos pode ser dito ao sentir-e-pensar, à clareira do ser, o que e como é o ente na sua nascividade. Se isto acontecer, talvez seja-nos dado perceber a grande indeterminação, a suspensão que guarda e conserva, como tesouro precioso, mas ao mesmo tempo nos esconde e encobre, a “realidade realíssima” do sentido do ser. Sermos suspensos nessa realidade de fundo é o pensum, a tarefa do pensar nos nossos encontros.

Para aprofundamento desse pensum, uma dica é estudar o tema da alma nos sermões do Mestre Eckhart.


[1] O termo manualística (ciência) significa o modo de ensino e pesquisa à guisa do manual. O que usualmente no ensino chamamos de manual não passa do resumo do resumo do resumo do que realmente é manual. Manual na língua alemã se diz Handwerk (Hand = mão, = manuseio; Werk = obra) e diz respeito à obra ou às obras do empenho e desempenho da existência artesanal. Nas ciências positivas, manuais, nessa acepção universal, são obras enciclopédicas. Elas contem em si todo o acervo do que numa ciência positiva se conquistou, se acumulou do saber, para que os seus dados, os resultados estejam armazenados no depósito do saber e informação, à disposição, à mão dos que querem se adentrar e se formar eruditos, especialistas no respectivo ramo do saber. Essa parte visível, o resultado de uma busca, fixado em sentenças, juízos, doutrinas, teorias, princípios, normas, leis etc. se chama o aspecto exotérico de uma ciência (aspecto ôntico ou positivo). A in-vestigação que tenta penetrar para dentro da possibilidade ou da potência (dýnamis) contida e retraída na entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva, entidade que constitui o fundo, o mais geral do nosso saber usual, se chama investigação ontológica ou transcendental. E diz respeito ao aspecto esotérico de uma ciência, e indica o modo de busca toda própria da ‘ciência’ que se chama filosofia, que por sua vez pode ser ensinada e pesquisada a modo da manualística, como se ela fosse, na sua essência, algo como ciência positiva, ao lado de outras ciências positivas. O termo igual se refere à base de comparações feitas entre dados ônticos; o termo mesmo é usado, quando essa base ôntica é interrogada e des-coberta como tendo em si a contenção e o retraimento do sentido do ser da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva. A investigação da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva estabelece, ou melhor, des-cobre os conceitos fundamentais de uma ciência, conceitos esses que indicam o positum de uma ciência positiva. A investigação do sentido do ser da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva desvela a essência do ente na sua entidade.

[2] Pessoas cuja escolaridade pode variar como escolaridade do ensino fundamental, secundário, universitário (graduação, pós-graduação, pós-doutorado etc.) instruídas e instrutoras, gerenciadoras no saber a partir e dentro das disciplinas nas quais são formadas (ciências positivas, tipo naturais e humanas; mundividências e crenças e ideologias; habilidades artesanais como arte artística e diversos tipos de artes, marciais, culinárias etc.), viradas para as coisas, sem muito exercício de ‘introspecção (insight) transcendental”…

[3] Cf. a moda, já passada, de se falar muito na interdisciplinaridade; na necessidade de fundamentação de cada ciência; de uma formação integral mais completa etc. etc.

[4] Podemos ver isso no tema da alma em Eckhart. O inter-esse e o tema é o mesmo do sentir e pensar. Talvez falar da alma em Eckhart seja a melhor maneira de tocar nesse assunto, pois ali em Eckhart a questão está colocada com maior precisão e densidade. Em todo o caso, o inter-esse é o mesmo.

[5] E isso também em referência a si mesmo enquanto ente-homem, seja no sentido de substância, quer no sentido do sujeito-eu ou mesmo de pura função da mídia.

[6] Esse texto já foi tirado de Descartes, René (ou De Quartis, Renatus Cartesius, Des Cartes, M. du Perron), 31.3.1596 – 11.2.1650, pensador, cientista e filósofo francês, considerado o pai da Filosofia Moderna. A parábola se encontra de modo muito mais rico e sugestivo em Rombach, H., Strukturontolgie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg-Munique, editora Karl Alber, 1971, p. 139. O texto citado foi tirado do livro Harada, Hermógenes, Em comentando I Fioretti, cfr. pp. 38-41.

[7] Clareira é uma tradução bastante defasada da palavra alemã Lichtung. É o que se quer dizer com a palavra a aberta. Aqui na Lichtung a palavra Licht significa luz. Mas também conota leicht, i.é, leve.

[8] O que segue não está mais falando da aseidade como ela é atribuída ao Deus infinito da doutrina cristã. Aqui está se falando somente do Dasein, do ser da essência do homem, na tentativa de ilustrá-lo à mão da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si é como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein é a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepção, na qual o doador e o receptor são simultânea e mutuamente límpido nada, i. é, nada a não ser pura dinâmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinâmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar é recebido e o receber é recebido na mútua doação de ser, a não ser apenas o puro deixar ser. Esse aberto é o lugar do salto originário e originante da gênese do mundo novo. Essa mútua implicação no nada ser a não ser como a límpida dis-posição de doação na recepção da possibilidade do abismo inesgotável de ser é a essência do homem.

[9] Finitude vem do finito. Finito é oposto do infinito. Finito é usualmente compreendido como privação do infinito. O que o infinito é em plenitude, o finito é em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem à criatura. Pois na sua criaturidade os entes são finitos, i. é, são criados por um ente supremo cujo ser é o próprio ser, de tal modo que fora dele não há ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser é absoluto e infinito. No fundo a criaturidade é nada, ao passo que a increabilidade e increaturidade é tudo.  Essa doutrina geralmente nos foi transmitida, já um tanto defasada e reduzida a uma compreensão de pouca precisão, na qual a finitude acaba virando sinônimo de privação. Mas como seria essa doutrina da criação se levássemos a sério a doutrina, na qual ser criatura não significa ser privado do  ser infinito, mas sim participar dele como filho? Não é assim que o filho de dragão dragão é? Filhotinho de dragão, quando encontra na estrada solitária um tigre adulto que feroz avança sobre ele, abre instintivamente a pequena guela e lança-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-dragão. Pois, ser pequeno ou grande, finito ou infinito, não lhe é critério para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-dragão é o mesmo com o pai dragão…

[10] Cf. “…a alma é, num determinado sentido, a totalidade dos seres”, cf. Aristóteles, Da Alma, (De anima), introdução, tradução e notas por Carlos Humberto Gomes, edições 70, Lisboa, 2001; cf. Aristóteles, Peri Psyché, 431b 20.  

[11] O finito, a finitude, nesse sentido não é privação, carência do infinito. É antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilação optimal da sua vigência assumida.

[12] Portanto não é meta-física.

[13] Cf. portanto para o maior aprofundamento do nosso tema, HEIDEGGER, Martin, in: Holzwege: Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de Arte). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1950, p. 7-68.

[14] Mythos, Ömü- toar, soar.

[15]  Mistério em alemão se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa.

[16] O que segue foi tirado de HARADA, Hermógenes, Coisas, velhas e novas. Bragança Paulista: Editora Universitária São Franciosco; IFAN, 2006, p. 27-32.

[17] Quaero, quaesivi, queaestum ou quaesitum, quaerere. O verbo e a palavra querer vêm também de quaerere.

[18] Os gregos chamavam essa paixão de virtude dianoética. Virtude, virtus significa a força do varão. Não diz respeito, portanto, ao “machão”, mas ao vir, –ris, a saber, ao modo de ser da dinâmica varonil, à coragem e sabedoria de ser. Se compreendermos o varonil como próprio do macho e o feminino como o próprio da fêmea, jamais poderemos compreender que o varonil e o feminino coincidem na dinâmica da identidade e diferença do ser humano; sem deixar, porém, que essa coincidência decaia bichada num unissexualismo, pois, tal decadência indica a queda na compreensão ontológica do sentido do ser do humano, em que o homem (a humanidade) é reduzido a planta e bicho coisificados.

[19] “Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te.” Sant’ Agostino, Le confessioni I, 1.1. Nuova Biblioteca Agostiniana. Opere Di Sant’Agostino (Edição latino-italiana), vol. I, Roma: Città Nuova, 1991. p. 4,1. 7-8 (Ed. Bras.: Santo Agostinho. Confissões. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 23). Tradução nossa. Em se tratando de Agostinho, é importante não entender essa inquietação e o repouso final no nível de certas neurastenias espirituais, mas sim como ardentíssima paixão de busca, na qual se investe o melhor da possibilidade humana, o âmago, o cerne, o coração, o ser do homem, portanto, inteligência, vontade, sentimento, a ponto de não se contentar com nada, a não ser com a medida absoluta da dinâmica de transcendência. Aqui, o humano arrisca todas as suas seguranças numa perigosa, mas fascinante aventura de busca absoluta. Nesse sentido, o repouso final, o descanso, não significa a dormitação da requiem aeternam qual o esvaimento da paixão da busca. Pelo contrário, aqui, uma vez assentada, enraizada em Deus, a paixão aumenta cada vez mais, numa provocação cada vez mais íntima, terna, apaixonada, de perder-se na imensidão, profundidade e criatividade do Amor de Deus. Portanto, aqui a palavra coração não tem nada a ver com o contrapeso complementar de uma ‘harmonia’ ‘politicamente correta’ entre cabeça e coração, entre razão e sentimento.

[20] Vítima dessa maneira defasadamente soft  de colocar a questão da verdade e da afetividade, em reação à maneira hard de unilateralmente extrapolar a “cabeça”, é o famoso e abusado aforismo de Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nesse nível de colocação, podemos dizer com Millôr Fernandes: “A razão tem corações que o coração desconhece”.

[21] Tal singular vigor único disposto do amor à verdade é o que chamamos no Ocidente de espírito, espiritual.

[22] Cf. Aristóteles, Ética de Nicômaco, VI 12, 1143b 5: “toútwn oûn échei dei aísthesin, haúte d’estìn noûs. (Isto deve ser captado através da aísthesis e esta é pois, noûs).

[23] Aliás, nem sequer se pode dizer “morta”, pois morto(a) pressupõe que o morto no seu ser já é um ente que tem por essência o viver, mas que agora deixou de viver. Nesse sentido, a pedra não é morta. Planta e animal podem ser mortos, porque vivem cada qual vida segundo a acepção própria conforme o seu ser.

[24] O termo ductus é latino e significa a ação de conduzir. Aqui, ductus não somente quer indicar a ação de conduzir, mas muito mais, o toque, o élan, a flexibilidade e docilidade do movimento que impregna e conduz a ação. É a finura, o frescor, a disponibilidade da ‘impulsão’. O pensamento medieval chamava esse ductus de boa vontade, ou melhor, vontade boa (cf. Os ditos do Beato frei Egidio de Assis). Não seria algo como suave vibrar do aceno de uma mira dos olhos que se abrem? Do in-stante do Augen-blick ou Ereignis ou Ur-äugen? Esses termos são intraduzíveis e por isso traduzimos sem mais com intuir?

[25] Cf. Heráclito, fragmento 18: eàn me élpetai, anélpiston ouk exeurései, anexereúneton eòn kai áporon. (Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso).

[26] Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, p. 14 diz: “As grandes mãos da sombra evangélicas pensam /As feridas que a vida abriu em cada peito”.

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