Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Reflexões sobre Franciscanismo

05/03/2021

 

Sumário

Idéia do franciscanismo

Pobreza: pobreza material – crítica

Pobreza – liberdade

Minoritas

Pobreza: fraternitas

Pobreza: Liberdade

Reflexão sobre o estudo – (anti-anti-conservadorismo)

Pergunta após uma aula a Rombach

Humanismo cristão? (O que é questão)

Um “sermão” – o que é liturgia?

A filosofia e o sadio senso comum (15. 12. 1955) – Prof. Rombach

Pergunta a Rombach

Buracologia (Lochologie) – O buraco

Método, Linguagem, Modo de pensar – Dimensão ontológica[1]

A idéia do franciscanismo

Há muitos livros e escritos sobre a espiritualidade franciscana.

Todos eles, quem sabe com exceção do maravilhoso livro de Chesterton, S. Francisco de Assis, não atingem a coisa ela mesma do franciscanismo, justamente porque o reduzem de algum modo numa forma, concepção já dada à mão. Mesmo quando alguém procura apreender o franciscano em sua novidade, analisando-o, está por demais enredado no sentido tradicional dos conceitos e representações, perde-se em lugares comuns, sem conceber o frescor originário da novidade da postura franciscana de espírito.

Se quisermos experimentar a espiritualidade franciscana, não deveríamos ir aos livros, mas às poesias, lendas, chansons, música, vida e feitos dos frades menores. Isso porque na essência da espiritualidade franciscana há “algo”que não podemos apreender com palavras.  E ali não se trata de algo misterioso, algo “sublime”, mas de algo bem simples e singelo como água, fogo, flores e criança. Trata-se portanto da banalidade: ser simples como uma criança, ver como uma criança, brincar como uma criança. Mas essa banalidade é um assunto penosamente complexo para nós adultos, que somos tão adultos e crescidos em nosso conhecimento, em nossas categorias, representações e discursos, que somos absolutamente incapazes de ver e “compreender” de modo tão maduro e originário como uma criança: não encontramos mais a coisa ela mesma.

Um sintoma disso é, por exemplo, o fato de considerarmos essa reductio à infância como um joguinho de brincadeira, um romantismo até relaxante, mas irreal. Ali nem uma vez percebemos a guinada epocal dessa reductio, justamente porque já operamos numa concepção da realidade determinada, mais ou menos chapada, dogmatizando-a como a objetividade real.

O que é água só compreende aquele que passou por uma sede atroz no deserto e de repente descobre uma fonte cantante. A água já não é mais um determinado fluido próprio para ser bebido: a água é luz, canta, sorri, água é vida, amor, irmã, força, Deus!

Aquele que “experimentou” a água desse modo dirá sem mais: assim é a realidade. Dura, nua realidade. Se um crítico literário ou um professor lhe disser que “a água sorri” é uma metáfora, uma alegoria, isso irá soar para ele  como irrealista, anêmico, mocho (versponnen). O que tem metáfora ou alegoria a ver com água? É, antes, o contrário que se dá: nosso rir só pode ser “experimentado” em sua profundidade e em seu júbilo libertador se uma vez na vida já tomamos a água no deserto!

O que se disse é realmente uma banalidade. Aqui poderíamos empurrar de lado todo esse assunto dizendo que a realidade e o discurso, a vida e a teoria, a poesia e a prosa são bem diversos, pertencem a dimensões distintas.

Com isso, minimizou-se a profundidade estranha da realidade originária, esta foi banalizada: pois nessa banalidade há um assunto metafísico, a saber, a questão pelo sentido do ser da vida e da morte: a mesmidade (Selbigkeit – identidade) do próprio homem.

Se quisermos portanto experimentar, apropriar-nos da espiritualidade franciscana, então se torna absolutamente necessário, antes,  experimentar aquela dimensão de profundidade metafísica a partir donde a inteira linguagem franciscana experimenta seu sentido de realidade. Do contrário, o franciscano se torna em banalidade, degradando-se em lugares comuns: uma visão de mundo romântica, poesia, alegria natural etc.

Só então iremos compreender o que é o cântico do sol, pois o franciscano é o novo, como o evangelho.

Ora, não há qualquer filosofia que transmita essa profundidade. Mas toda filosofia busca a profundidade. O lugar próprio dessa profundidade talvez seja a arte. Arte porém num sentido bem determinado. É justo por isso que os melhores  tratados (Er-örterungen) da espiritualidade franciscana são a poesia, as chansons etc.

Ora, se exigimos ter necessidade da experiência da profundidade como a condição absoluta da experiência da espiritualidade franciscana, exigimos então uma espécie de autoreflexão que está, de algum modo, além de todas as filosofias e modos de pensar acadêmicos usuais. Além, no sentido de origem.

Não é possível haver nenhuma interpretação sistemática da profundidade e sobre a profundidade. Ela é cada vez pontual e necessária, com modo de ser único, e não comunicável. Sistematicamente só pode ser interpretada negativamente. Só se pode mostrar o que ela não é.  Nesse enunciado negativo, porém,  já se encontra um indício que nos aponta o que é necessariamente  a profundidade. O discurso é esse indício. Ele não pode ser nada mais que indício. Pode, porém, vir à linguagem: no sentido: o discurso que se tornou necessidade e modo de ser único (Einzigartigkeit). Então o indício se tornou necessário. Como tal, o discurso não é mais um mero indício, mas a verdadeira expressão da coisa: chamamos a esse discurso de “arte”, ou melhor, a dureza do discurso.

Todo enunciado verdadeiro da espiritualidade franciscana fala a partir do centro dessa dureza. Para aquele que habita o reino do meio (Mitte – centro), ela é portanto autoevidente.

Mas nossa estrutura do pensar, porém, já não é mais o meio. Nós vemos o meio a partir do âmbito das margens. Temos, portanto, que interpretar (esmiuçar) o meio. Trata-se portanto de uma divergência dos lugares.  A posição, ou melhor, o lugar dessas diversas jazências de discussão (Er-örterungslagen), não é uma questão de mera distinção de perspectivas:  aqui o lugar se chama ser: trata-se portanto de diferenças no modo de ser.

O primeiro passo para a experiência da profundidade é portanto o tomar ciência dessa distinção.

A descoberta da horizontalidade de nosso conhecimento é uma descoberta toda própria (ausgezeichnet) do homem moderno. O que é horizonte pode ser melhor explicitado através de exemplos: se quero falar ou saber sobre a espiritualidade franciscana, por exemplo,  vou considerá-la a partir de um determinado ponto de partida. O ponto de partida é cada vez o horizonte para o respectivo objeto de nossa pesquisa.  Se considero, portanto, a espiritualidade franciscana a partir da literatura, história, moral, teologia etc., só encontro a coisa ela mesma na medida em que sou capaz de apreender essa coisa a partir desse respectivo horizonte.

(Mais fundamentação etc. para isso, cf. rigor e idéia da fenômeno.)

Pobreza: Pobreza material – Crítica

Minoritas enquanto a autocompreensão da existência franciscana deveria ser, portanto, a base fundamental da discussão.

Ora, a discussão atual sobre a pobreza parece desconhecer a colocação própria da questão. Se imagina que se trata da autocompreensão da existência franciscana, então a questão toca a essência do franciscanismo. Mas então, só pode ser liberada numa análise da dimensão fundamental. Direção:  Minoritas e ser-livre-para-o-Evangelho. Todavia, não é colocada nessa direção. Ao contrário, é colocada num âmbito restrito, carregando em si algo de superficial, muito embora, do ponto de vista prático, seja de grande importância. Ela questiona: como posso dar testemunho dessa pobreza?! O que devo fazer concretamente? Mas quando alguém realmente compreendeu o que é a Minoritas em liberdade para o Evangelho, percebe logo o deslocamento que há na colocação dessa pergunta. Assim como não podemos fixar o amor ou a vida em suas variações expressivas e em sua riqueza, do mesmo modo não podemos “canonizar” a liberdade para o Evangelho. Isso não significa que não devamos ser concretos nisso, que não possamos “propô-la” (beibringen) aos outros, que não possamos ser “educados” ali. Mas, nesse caso, o “método” para uma tal “educação” tem uma estrutura que não pode ser “constitucionalizada”. Pertence portanto à espiritualidade, ao Documentum spirituale.

Por isso, sou da opinião de que se deveria escrever um tratado teológico muito profundo e fundamental sobre pobreza enquanto Minoritas, enquanto ser-livre-para-o-Evangelho. E todo franciscano deveria se esforçar para criar essa concepção em vista da dinâmica de ser da própria vida. Mais do que isso, aqui, não seria preciso fazer, para não estreitar a monstruosa dinâmica, amplidão, profundidade e largura da pobreza dentro de parágrafos.

Pobreza, compreendida como Minoritas, Minoritas como liberdade para o Evangelho e isso quiçá como dinâmica de ser, abarca quiçá  todos os âmbitos do fenômeno e da possibilidade humana. Ela supera a diferença “rico-pobre”. Vista a partir dessa dimensão originária, a colocação da questão que pergunta como devemos nós dar testemunho da pobreza, contém um equívoco. Interpomos como que sorrateiramente à compreensão da pobreza uma predeterminação não clara e não analisada de pobreza como: ser-pobre em sentido “econômico-sociológico”. É uma realidade o fato que encontrarmos, mais do que em outros lugares, uma postura de ser muito próxima à postura da Minoritas entre a assim chamada gente pobre. Mas também é um fato que hoje, por um lado,  descobrimos, numa formulação moderna, alguns dos traços fundamentais da Minoritas em empresários, técnicos, industriais que operam com milhões, e também encontramos, por outro lado, entre a assim chamada população pobre justamente as características que contradizem a Minoritas.

O ser-pobre, portanto, deve ser pensado de forma mais originária, sem a implicação econômico social. Quando não procedemos desse modo, estreitamos o modo de ver a pobreza como postura fundamental.

Compreendida dessa forma, portanto, pelo menos à primeira vista, a pobreza nada tem a ver com ser-pobre. Identifica-se antes com: ser-livre-para-o-Evangelho. O ser-livre-de pressupõe porém o ser-livre-para. Ser-livre-para-o-Evangelho significa: prontidão para o Evangelho ou, melhor, estar á disposição-para-a-boa-nova.

Mas com isso parece que a análise descambou para um caminho que já não tem nada a ver com pobreza como tal. Isso porque, se a palavra pobreza quiser manter de algum modo seu sentido, será preciso também que tenha algo a ver com ser-pobre. Que função desempenha portanto a pobreza material na liberdade para o Evangelho?

De imediato, a pobreza material parece ter uma influência bastante negativa. Ela me priva de diversas possibilidades, fecham-se diversos acessos para conseguir muitas coisas boas e positivas. Nesse sentido, quem é pobre não pode estudar. Se sou pobre, tenho preocupações, fico dependendo das pequenas necessidades do dia-a-dia. Devo preocupar-me de  como posso viver amanhã. Sob certas circunstâncias posso tornar-me egoísta porque sofri, e agora só penso em mim. E aos poucos vou me aninhando no pequeno mundo dos pobres, perco o dinamismo e o espírito empreendedor. ([2]Isso tudo vai contra a sagrada dinâmica-da-liberdade do Evangelho).

Mas por outro lado, justamente entre os pobres, encontramos maior prodigalidade, despreocupação, liberdade, mais prontidão para ajuda mútua, grande cuidado e atenção para com o humano, gratuidade e capacidade de alegrar-se com pequenas coisas. (Datilografado e  riscado à caneta está: Ora, a questão é: Essa atitude positiva provém da pobreza material? Aqui deveríamos analisar a estrutura de um modo um pouco mais profundo. Desconfio que a solução soa do seguinte modo:)

Originariamente, não se trata de pobreza no sentido econômico-monetário, mas ao contrário, de uma concepção-de-mundo bem determinada, que chamo de “concepção-de-coisa” (Ding-Verfassung). Essa concepção já não se aninha na estrutura moderna, de tal modo que em nossa época as pessoas não conseguem prover sua vida com tal concepção, e assim acabam se tornando pobres.  Até certo ponto, pobreza é a conseqüência de certa concepção com uma determinada escala de valores. Essa concepção contém muitos traços fundamentais que encontramos também na pobreza-Minoritas.

Portanto, se consideramos a coisa em questão a partir da concepção de mundo, a questão deveria soar: a concepção-coisa é essencialmente necessária para o ser-livre-para-o-Evangelho, ou não será ela apenas uma determinada situação histórica? Podemos pois conceber a pobreza material como uma árdua pobreza , como um exercício. Uma espécie de exercício no “poder-sofrer-necessidade”. Uma espécie de training de vivência para experimentar os limites da possibilidade humana e ali provar sua eficácia. Nesse sentido, certos soldados astronautas e soldados vietnamitas fazem toda sorte de rebusque para ficar em forma. Uma espécie de training de sobrevivência, portanto. Ademais, esse training seria necessário para varões a fim podermos estar melhor preparados para o Evangelho. Mas então essa pobreza não tem propriamente nada a ver com pobreza material.

Um pouco parecido com essa concepção mencionada acima é a pobreza como exercício no nihilismo, como se faz no Zen. Ou seja,  um exercício radical no ser-livre-de. Segundo minha opinião, essa concepção é o momento negativo da Minoritas.  Mas então nada mais tem a ver com pobreza material, pelo menos necessariamente.

Pobreza material poderia significar, porém:  solidariedade com os pobres e oprimidos. Mas nesse caso não está em questão dar testemunho de pobreza, mas dar testemunho do amor ao próximo. Não pertence, portanto, ao capítulo “pobreza”, mas ao capítulo “amor ao próximo”.

Mas pobreza material pode significar também:  dar testemunho do Evangelho em pobreza. Mas isso é algo diverso do que dar testemunho da pobreza! Nesse sentido, que por exemplo vivo entre os pobres quase na miséria (in Elendviertel?), importaria “mostrar” que podemos viver cristãmente na miséria: que se pode e como se pode viver. Todavia, só pode dar esse testemunho aquele que já se encontra na postura de ser da Minoritas. Portanto, esse movimento “rumo às favelas” é mais uma consequência da pobreza-Minoritas. E quiçá uma das muitas possibilidades da Minoritas. Não é a única! Isso porque se alguém é “livre-para-o-Evangelho”, deverá dar testemunho do Evangelho também numa outra situação. O modo como dou testemunho no mundo da técnica, no mundo da economia, no mundo da riqueza é diverso do modo como dou testemunho no “mundo dos pobres”.

Pode ser que na questão “como posso dar testemunho da pobreza” se encontre oculto precisamente esse sentido. A formulação, portanto, deveria soar de forma mais precisa do seguinte modo: Como na pobreza posso dar testemunho do Evangelho? Mas aqui surge outra questão: Esse dar testemunho será o único? Pertence à essência da minoritas? Se esta é apenas uma forma dos testemunhos, então não poderá ser a medida de nossa pobreza franciscana, do contrário voltamos a restringir nossa amplitude de visão.

Poderíamos fazer o seguinte: determinar cientemente que justo essa forma de testemunho do Evangelho seria o específico franciscano. Nesse caso, deveríamos realmente ir para a favela como todos enquanto comunidade da ordem. Eliminar todas as propriedades específicas etc. Por assim dizer, especializar-se de modo estrito. Todavia, com isso, estaremos fazendo jus à intenção do franciscanismo? Creio que não. Isso porque nossa forma é Evangelho![3]

Pobreza como postura: “Método” de ensino

Pobreza: Liberdade[4]

Pobreza:

Pobreza é uma postura.

É uma postura da liberdade.

Como tal, pobreza é: abertura, prontidão, entrega e dedicação (Hingabe) para a boa-notícia de Jesus Cristo.

Postura não deve ser compreendida como “comportamento” em sentido psicológico. Isso porque postura (Haltung) não é propriamente uma parte da essência do homem. Não é assim que, primeiro há o homem, como uma coisa à mão, e depois lhe advém uma postura, como um comportar-se assim ou assado, esse ou aquele fazer ou não fazer.  Postura é, ao contrário, a essência do próprio homem. Nesse sentido, eu não “assumo” ou “tenho” essa ou aquela postura. Mas: a partir da dinâmica nuclear de meu si mesmo, sou eu mesmo essa postura. Postura, portanto, em nosso sentido significa: vigindo como essência (Wesend): dinâmica do ser, sentido e conteúdo de vida, impulso e poder (Macht), que dominam, perpassam com seu vigor a minha existência, motivam-na.

Na renovação da vida franciscana da ordem, pergunta-se: Como posso dar testemunho de pobreza em nosso mundo moderno ou em nosso tempo moderno? Testemunho de pobreza só posso dar pelo fato de “viger como essência” (wesend sein), no sentido da postura acima mencionada. Nesse sentido: testemunho, sinal significa: irradiação da dinâmica ontológica do ser-livre para o Evangelho. Dar testemunho, nesse sentido, não significa portanto: “Dar bom exemplo”. Não significa: fazer isso ou aquilo. Deixar de fazer isso e aquilo. Mas: [notwendige Ausfächelung] um abanar insuflante necessário (???), demonstração consequente da dinâmica de ser que significa: ser-livre-para-o-Evangelho.

Se já não considero a pobreza desde o princípio a partir dessa dimensão nuclear, desnorteio a direção do questionamento. Quando amo, então faço ou não faço isso ou aquilo.  A medida do agir e do comportamento emana da dinâmica nuclear do amor. Mas o contrário não se aplica: pelo fato de eu fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo não gero o amor. O amor já está ali de antemão. Agir, comportar-se é a consequência. Exatamente assim se dá na pobreza.

Tenho a impressão de que a atual discussão sobre a pobreza franciscana se concretiza demasiadamente sobre agir e comportar-se, sem antes deixar claro o que é isso: ser-livre-para-o-Evangelho. E mesmo onde se fala de “ser-livre”, tem-se em mente via de regra: ser-livre-de. Mas “ser-livre-de” já pressupõe: Ser-livre-para. Isso porque é só quando já sou-livre para o Evangelho e anelo é que sei de que devo libertar-me.

A primeira tarefa, portanto, é  ter claro o que significa: ser-livre-para-o-Evangelho.

  1. Ser-livre-para-o-Evangelho

A expressão “ser-livre-para-o-Evangelho” é ambígua.  Nós nos representamos o Evangelho como uma meta, para a qual nos colocamos livres. Segundo esse modelo de representação, a pobreza é um meio para um fim. Esse modo de pensar é porém estático e ao mesmo tempo ingênuo em relação à coisa. Não corresponde à realidade da postura  no sentido mencionado acima. Postura não é um algo-coisa, que se relaciona com outro algo-coisa chamado Evangelho, como meio para um fim. Postura é, antes, a essência, a espinha dorsal-sustentadora, estrutura interior da existência (riscado: franciscana). Ora, São Francisco define nossa vida como “vida segundo a forma do St. Evangelho” (Testamento). Significa: Evangelho é a forma de nossa vida. Forma é compreendida aqui em sentido medieval e significa: Essência vigente, estrutura fundamental. Portanto: Evangelho é a essência vigente de nossa vida. Evangelho, portanto, como pobreza, é: vigendo como essência (wesend): isto é,  dinâmica de ser, conteúdo da vida, impulso e poder (Macht) que dominam e perpassam com seu vigor minha vida, motivam-na.

Portanto: enquanto “vigendo como essência”, pobreza e evangelho são o mesmo.  Se são o mesmo, então a pobreza não pode estar para o Evangelho como um meio para um fim. Mas então como “se relacionam” “entre si”? Eles não “se relacionam” entre si porque não são “dois”, mas o mesmo. Mas então: como devemos compreender a pobreza?

Como um momento, como um aspecto do Evangelho.

Nesse sentido, a formulação “pobreza é ser-pobre para-o-evangelho” precisa de uma correção. Digamo-lo portanto de modo mais preciso: Pobreza é o momento-liberdade do Evangelho.

  1. Liberdade do Evangelho

A designação “liberdade” na formulação “momento-liberdade” não deve ser compreendida no sentido usual de liberdade. No nosso sentido, liberdade significa: a caminho, o sustento (Ausstand) da esperança, abertura escatológica do futuro (chegada) de Cristo, a “dinâmica do provisório” (R. Schutz).

Portanto: se o momento escatológico da boa-notícia de Cristo perpassa totalmente  minha existência como sua dinâmica ontológica, como sua força propulsora, sentido, conteúdo e essência, então minha vida foi “formada” segundo a pobreza evangélica.

As expressões mencionadas acima como “sus-tento (Aus-stand) da esperança”, a caminho, escatológico, provisório etc. não devem ser compreendidas negativamente. São interpretadas “negativamente” se forem compreendidas dentro dos seguintes parâmetros: o tempo, a humanidade, o mundo é passageiro. Nós somos peregrinos e estrangeiros sobre esta terra. Nosso último fim é o céu. Ou: estamos a caminho rumo à última vinda de Cristo no juízo do fim dos tempos.  Isso tudo, propriamente, não é falso. Só que essa interpretação não me fornece o dinâmico, o positivo, o originário do Eschaton, justamente porque esse modo de pensar pensa no modelo estático de coisa “meio para um fim”. Essa interpretação é “negativa” porque em relação ao fim “nega” o que se deixa atrás de si. Com outras palavras,  reduzimos a atualidade em favor do futuro, considerando a atualidade como mera passagem para o fim. Não leva a sério, portanto, a atualidade.

A dificuldade principal na compreensão da pobreza consiste precisamente no fato de que não estamos acostumados a pensar dinamicamente. Por exemplo, um movimento raramente é pensado como movimento. Representamo-nos dois pontos e uma linha entre eles. Então dizemos: “Daqui” até “lá”: isso é o movimento. Na realidade, porém,  “aqui” e “lá” só recebem seu sentido e conteúdo a partir do movimento real dinâmico. Mais ou menos assim se dá também com o tempo. Representamo-nos o tempo linear e estaticamente: aqui: a atualidade; lá: o futuro; aqui, o mundo; lá, o céu; aqui, o aquém; lá, o além; aqui, a expectativa; lá, a plenitude. Deixamos para trás “aqui”, para alcançar “lá”. É desse modelo que provém também a representação da pobreza como renúncia. São semelhantes modos de pensar que nos dificultam compreender o não-matrimônio pelo reino do céu. A própria palavra “não-matrimônio” (Ehelosigkeit) denuncia esse modo de pensar. Mesmo a expressão “amar a Deus de coração indiviso” edifica seu sentido na pressuposição do modo de ser estático dualista. Esse modo de pensar, esse modelo é: Aqui o homem, lá Deus. Aqui o mundo, lá Deus. Desse modelo surge evidentemente a questão: como posso ainda amar o ser humano se tenho de amar a Deus de coração indiviso?  Posso e devo amar um ser humano do mesmo modo que amo a Deus? Quando perguntamos assim, e estamos sob esse modo de pensar, então a resposta soa:  renúncia aos seres humanos, renúncia ao mundo. Mas toda a questão é se tal pergunta, se tal pressuposição é cristã. Se formularmos a situação objetiva de forma aguda, poderemos dizer:  o modo de ser por trás da expressão “de coração indiviso” nos impede de compreender o amor cristão em seu núcleo e essência. Isso porque o crístico só pode ser compreendido dinamicamente a partir da identidade característica e vital de Deus e homem. O novo da mensagem do Evangelho consiste precisamente no fato de haver uma “identidade” todo própria entre Deus e homem. Essa identidade significa tornar-se homem. O crístico é precisamente a compreensão da realidade: Deus e homem. Formulado de modo mais preciso: A compreensão do e. E é aqui a palavra mais importante! Se pensas o “de coração indiviso” como ou isso ou aquilo, então a virgindade evangélica já não é mais cristã, pois compreendida desse modo ignora precisamente esse “e”, sim, o apaga.

A meta do “coração indiviso” não é portanto: apenas Deus; tampouco: apenas ser humano; mas: esse “e”. Se não consideramos a virgindade evangélica a partir desse ponto teológico nuclear, permanecemos sempre ainda nas religiões pagãs. Essa identidade viva  “e”, porém, só pode ser pensada dinamicamente (Cf. capítulo sobre a virgindade pelo reino de Deus). Essa dificuldade de compreensão, causada pelo modo de pensar estático e dualista presente na virgindade evangélica, é encontrada também na compreensão da pobreza, quando interpretamos a pobreza como um momento-liberdade do Evangelho, e a liberdade como abertura escatológica. Lá tínhamos o conflito entre o amor a Deus e o amor ao ser humano. Aqui temos a dificuldade entre o “provisório” e o “definitivo”; entre espera e realização; entre presente e futuro, entre a caminho e chegada ao fim. Quando pensamos estaticamente, sempre temos dois divididos: duas vezes sempre um. Entre dois, é preciso escolher sempre um. O outro sempre nos parece pouco. O crístico, porém, é que vivamos a identidade “e” esse “entre”. Essa identidade todo própria só pode ser “pensada” dinamicamente.

III. Liberdade escatológica do Evangelho

Lançando mão de um exemplo, vamos tentar interpretar de um modo um pouco mais dinâmico a pobreza como liberdade escatológica.

Há “fenômenos” em nossa vida com tal “constituição” interna que a partir de dentro se recuperam constantemente de cabo a rabo num crescimento que se renova sempre de novo. Pertence à essência de tais fenômenos o fato de que toda sua conjuntura (Gesamtheit) enquanto totalidade a cada vez se põe em jogo sempre de novo. Por exemplo, no amor. Aqui, permanecer parado significa autodestruição da essência do amor. A partir de dentro ele é um ir em frente, procurar, recuperar-se constantemente, renovar-se. A verdadeira realização jamais traz ao estado final onde o amor chega ao fim, onde ele chega à conclusão, mas quanto mais pleno o amor tanto mais dinâmica e intensivamente estende sua possibilidade interna para a expansão que se libera a si.

Essa dinâmica do amor que se solta (ent-lassende) e que se libera (frei-legende) chama-se: liberdade.

Nesse sentido, a dinâmica de expansão interna da energia nuclear é o abrir-se escatológico, a sustentação da esperança-futuro: liberdade do amor de Cristo. O amor de Cristo, porém, está presente no meio de nós, através e em nós como fraternitas (cf. virgindade evangélica, cf. obediência). Nesse sentido, o escatológico ou o adveniente não é nada de futuro, que no fim dos tempos “ainda” virá  como ponto final, mas antes presença. Essa presença do amor de Cristo no meio de nós, expressa franciscanamente, na fraternitas, é Evangelho.

Ora, Evangelho é uma palavra originária. Enquanto palavra originária contém tudo. Estendida (umspannt) reúne em si toda a possibilidade da existência humana vigente a cada vez de novo. De acordo com o modo como “consideramos” o evangelho a partir de uma determinada possibilidade do homem, recebe um nome diferente, aparece numa concreção singular cada vez própria. O evangelho só pode se tornar presente numa concreção-singular cada vez própria., não porque fosse uma universalidade sem conteúdo e vazia, mas porque é concreção originária, sentido originário da vida,  de tal modo que se torna “carne” a cada vez de novo “nessa” situação, “nessa” determinação. O matrimônio cristão é tal concreção do evangelho. Virgindade, obediência, a cada vez outra.

Pobreza também é tal concreção do Evangelho.

O que é pois o ponto nuclear dessa concreção do Evangelho, que chamamos de pobreza?

O ponto nuclear consiste naquilo que acima chamamos de liberdade. Liberdade como a dinâmica de expansão interna da energia nuclear, que significa o amor de Deus em meio de nós.

Tentemos determinar o que se disse de forma um pouco mais detalhada.

A presença do amor de Cristo em meio de nós mostra diversos momentos.

Momento a): a proteção da confiança, o que traz satisfação, a plenitude, a aceitação acolhedora, abrir-se para um tu enquanto agradecimento num amor receptivo, “momento de enamoramento” doloroso da esperança-desejo, pleno de respeito, amavelmente simples, confiado, ser-compreendido, paz, alegria etc.

Todas essas determinações pertencem ao que compreendemos como “em casa”, “no lar” ou “caseiramente” e possui o caráter do “feminino” no sentido profundo da palavra. Aqui aparece a presença do amor de Cristo, antes, como o que traz contentamento, como plenificação,  como “sustento” (Halt), como “tenência” (Habe). Esse momento pertence essencialmente à concreção do Evangelho, que chamamos de matrimônio-cristão, onde  de certo modo se torna temático. Mas pertence também essencialmente à concreção do evangelho que se chama virgindade evangélica, embora aqui contenha um colorido totalmente determinado provindo da pobreza (Cf. capítulo sobre a virgindade evangélica: nós não compreendemos a virgindade evangélica a partir do não-matrimônio, mas a partir da essência do matrimônio cristão).

Do ponto de vista formal, a pobreza não pertence a essa dimensão acima descrita.

Momento b): é o que acima designamos por liberdade ou a expansão dinâmica interna.

Também no momento a) há algo assim como dinâmica, na medida em que o “em casa” significa plenitude, felicidade, alegria, sustento vital.

Na liberdade se mostra porém um outro modo de dinâmica. Como já indica a palavra expansão, aqui surge o momento: irrupção, abrir-se, se expor, abrir-se bruscamente mais para se manifestar.

Se o momento a) se volta centripetalmente para a intimidade-lar, o momento liberdade se dirige centrifugalmente para a novidade-aberto.

Nesse sentido, liberdade enquanto dinâmica de expansão designa precisamente aquele momento do amor de Cristo, que faz tudo novo, que sempre e a cada vez cria sempre de novo, surpreende no frescor e na brilhante força jovem da ressurreição, da segunda criação.

É algo assim como inquietação e um jamais permitir-se-estar-satisfeito do “primeiro amor”, que se supera a si mesmo sempre de novo, se recupera e recompõe, que jamais se repete mas que se torna sempre e a cada vez único, singular, novo.

Aqui predomina o momento: buscar, a caminho, jamais deter-se, abrir-se, agüentar, expor-se.

Ele tem em si algo de aventureiro, algo assim como um espírito pioneiro, algo rebelde, profético, missionário, e até algo como caótico-destrutivo, aniquilante, anárquico, quando interpretado unilateralmente.

Se o momento a) era mais acolher, cuidar (Hegen), proteger, unir-se, agora o momento b) é mais doar, des-pedir, des-cortinar, rebrilhar. Lá tínhamos mais “sustento”, “plenitude”, “acolhida”, paz, instase. Aqui temos mais salto, aberto-vazio, entrega, empolgação, ex-stase.

A pobreza se radica nesse momento de liberdade do amor esboçado acima.

Para a compreensão dinâmica da pobreza é bastante significativo que levemos a sério a designação “momento”.

Tanto o aspecto a) quanto o aspecto b) são momentos não-independentes da mesma realidade originária, a saber, do amor de Cristo no meio de nós.  Esses momentos nada mais são que variações, pulsações fundamentais ou interpretações, com direcionamento ou entoação cada vez diverso, de uma única e mesma coisa: o amor de cristo no meio de nós, isto é, do Evangelho.

Não são portanto: duas partes justapostas de um todo estático, mas são sempre e a cada vez o próprio evangelho-totalidade como um todo, como pulsações fundamentais da mesma e única forma originária. Como tais, os dois momentos se condicionam mutuamente, um esclarece o outro, uma sustenta e ao mesmo tempo liberta a outra num jogo mútuo da relação dinâmica: um voltado ao outro, um contra o outro, um a partir do outro. Assim, os dois momentos liberam seu sentido essencial como evangelho.

Tão logo já não mais se leve em consideração essa correlação, esses momentos se enrijecem em sua unilateralidade, decaem de sua origem como fenômenos decadentes.

Brevemente tentemos considerar essa possibilidade de decadência a fim de que a compreensão originária da pobreza surja de modo mais nítido.

O momento a) isolado em si, pode perder o ímpeto e a vitalidade; pode atrofiar-se, tornar-se egocêntrico. A proteção da confiança torna-se numa autosegurança enrijecida; o que satisfaz, a plenitude se reduz no agradável burguês de um ninho quentinho; a esperança-desejo se obscurece em melancolia opressiva, que encarcera; abrir-se a um tu, como agradecimento, no amor acolhedor, se converte para dentro como uma busca desenfreada por tudo que é agradável.

Tudo que  perfaz a plenitude satisfaciente e a vida que pulsa no amor de um “estar-em-casa” esgota-se num enfadonho, monótono “caseiro”. O “feminino” vibrante (strahlend) na interioridade viva, no amor, na gratidão, no doar-se, aquilo que se nos apresenta por exemplo na liturgia da festividade de Santa Agnes como “configuração” da virgindade evangélica, aquela íntima e dinâmica graça (Anmut), força e amor-paixão, laureada pela Sagrada Escritura no Cântico dos cânticos e que pode ser aplicada como viva imagem de sentido da virgindade evangélica, aquilo que Dietrich von Hildebrand chama de forma simplesmente de “enamoramento” acaba desaparecendo. Em lugar disso, fica aquela mesquinhez feminil, o fechar-se no pequeno mundo, o egoísmo tapado e altercante, a incontinência destemperada, o telurismo úmido, pegajoso, que tudo engole.

O que falta aqui é a abertura libertadora da liberdade, liberdade que “abre espaço” (einräumt), oferece um espaço de jogo para a vida, que amplia o coração para o frescor vibrante e a força do “primeiro amor”.

Como já foi mencionado, o momento a) perfaz o núcleo essencial da virgindade evangélica.

Disso se deduz: a virgindade evangélica pode se “sustentar”, só pode viver se co-vibrar sempre de novo, sempre nova na pulsação-dinâmica da liberdade-pobreza. De outro lado: Isolado em si, o momento b) torna-se vazio, destrutivo, inhumano, transforma-se em mero impulso de expansão.

Se essa dinâmica-liberdade não se tornar “terrenal” (erdhaftig), “feminina” e “do lar” através da plenitude e amor satisfaciente da virgindade evangélica, perde o chão sob os pés, torna-se “masculina” fanática, abstrata, fria,  impessoal, violenta.

A forma de nossa vida que se chama evangelho, sendo em concreto a presença do amor de Cristo, perde então seu caráter pessoal, falsifica-se a empolgação pelo evangelho torna-se em fanatismo por uma coisa, por uma idéia, uma organização; liberdade para um tu pessoal torna-se num impulso de liberdade desenfreado, destrutivo, que se desenrola rumo ao infinito; a “paixão” íntima do abrir-se ao outro derriba numa busca maníaca violenta pelo poder.

Disso se segue: a pobreza como dinâmica-de liberdade do evangelho só pode existir como pobreza evangélica quando é sustentada pelo amor receptivo e a gratidão  satisfaciente da virgindade evangélica.

Depois dessa longa conversa esquemática, retornemos à pergunta originária: O que é a pobreza evangélica?

Formulemos a questão de modo mais preciso: o que é a pobreza evangélica enquanto autocompreensão da existência franciscana?

A resposta surge de nossas considerações: a pobreza evangélica enquanto autocompreensão da existência franciscana é a dinâmica de liberdade do Evangelho.

E uma vez que o evangelho aninha como seu momento essencial  o “amor-virgindade”  analisado no momento a), completando nossa definição, temos de dizer: a pobreza evangélica enquanto autocompreensão da existência franciscana é a dinâmica-liberdade, “encarnada”  pelo amor virginal do evangelho.

E visto que o amor virginal do evangelho pode ser melhor expresso em uma simbologia “feminina”, São Francisco deu a essa simbiose viva entre amor e liberdade enquanto evangelho o nome de Domina paupertas. Podemos agora, então, estabelecer uma equação: Evangelho = domina paupertas. Domina paupertas = forma da existência franciscana. Existência franciscana, portanto, é: “Viver segundo a forma do santo evangelho: o especificamente franciscano porém é que esse evangelho é vivido na figura da Domina Paupertas. Essa vida, portanto, essa “postura”, é a pobreza franciscana.

Aqui surge uma suspeita.

A determinação essencial da pobreza enquanto dinâmica da liberdade do evangelho parece ignorar um dos traços essenciais da pobreza tradicional franciscana, a saber, o ser-pobre,  o nada-ter do ponto de vista material. Além do mais, de algum modo a palavra pobreza deve ter uma justificativa para se chamar pobreza e não, por exemplo, liberdade.  A partir de sua designação já deve ter algo a ver com o ser-pobre material. Qual o significado da pobreza material, portanto, na concepção franciscana da pobreza?

A determinação essencial da pobreza franciscana soava: a pobreza evangélica enquanto autocompreensão da existência franciscana é dinâmica de liberdade, “encarnada” pelo amor virginal do evangelho.

Ora, tanto o momento liberdade quanto o momento do amor virginal dessa determinação da pobreza tem, por assim dizer, caráter “positivo”, vibrante, “otimista”.

Essa positividade clara e libertadora é uma das marcas essenciais da pobreza franciscana.

Ela pervade toda a postura franciscana, concedendo-lhe aquele frescor juvenil vivaz e aquela intrepidez jovial que percebemos em S. Francisco. Nele não há o elemento trágico. A “profundidade” nebulosa. A seriedade patética. Chama de “irmã” inclusive a morte. Sua penitência e jejum tem algo como alegria jovial (Heiteres), contente-alentante. Em sua penitência, em sua humildade ele não se rebaixa. Nela encontramos em toda parte liberdade-aberta, dedicação grata ao amável tu absoluto.

Essa positividade radiante provém da postura de liberdade e da dinâmica escatológica da Domina Paupertas. Ela é tão essencial para a postura franciscana que temos a permissão de dizer: todos os conceitos “com um sopro” de alguma negatividade como penitência, morte, renúncia, arrependimento, ascese, culpa etc., em Francisco, tiveram de ser “desnegativadas” na perspectiva da dinâmica da liberdade escatológica da Domina paupertas (cf.  sobre isso, o capítulo sobre Minoritas – nihilismo).

Ora, há um momento na espiritualidade franciscana onde se faz presente algo assim como “negação”.

A pobreza como ser-pobre em sentido “material” parece-me estar estreitamente ligada com esse momento “negativo”.

Com isso, surge aqui um terceiro momento na pobreza franciscana, que concede à Domina paupertas uma dimensão da profundidade própria chamada “sofrer”. Procuremos vislumbrar essa dimensão.

No centro dessa dimensão estão duas figuras que desempenharam um papel importante na vida de S. Francisco: Gruta e cruz. A gruta  como imagem sensível da humanação. Cruz como imagem sensível da morte de Cristo. Mas gruta e cruz não são duas coisas, mas uma e a mesma coisa. Indicam o momento da “exinanitio” da humanação de Cristo. Exinanitio chama-se pois despojamento. Essa palavra provém de Fl 2,7: “Ele, subsistindo na configuração de Deus… despojou-se de si mesmo, tomou a configuração de servo, e se fez semelhante aos homens”.

Devemos compreender exinanitio, então, a partir da concepção franciscana da humanação: A finalidade primordial da humanação não é a remissão dos pecados, mas a glorificação de Cristo como Deus que se tornou homem. Essa finalidade já estava ali, mesmo “antes” de Deus ter chamado a criação para ser, portanto mesmo antes da queda do pecado do homem. Glorificação de Cristo significa igualmente glorificação do homem (ou do mundo). Trata-se portanto da identidade dinâmica própria da humanação: Deus e homem. Com esse mistério “e” está em relação íntima a identidade do  corpo mítico de Cristo e, a partir daqui, a “identidade-e” do amor na fraternidade (cf. Duns Scotus; cf. p. 3-4. A explicitação teológica, como foi descrito acima, é imprecisa e simplificada. Aqui trata-se apenas de dar uma “idéia”).

E uma vez que nessa concepção franciscana Deus é concebido como amor, e amor como expansão dinâmica na bondade,  podemos dizer que a finalidade primária da humanação é a presença do amor de um Deus tornado-homem no meio de nós: isso é a glorificação. Isso significa: Deus se tornou tão igual a nós que participa de nosso destino humano de cabo a rabo, por assim dizer, pro que der e vier.

Desde que os homens pecaram e que com isso a morte, o sofrer, o mal se tornaram uma dura realidade sobre essa terra, Deus participa também em tudo isso, com exceção do pecado, que nada mais é que falta-de-amor, negação do amor.

Exinanitio, despojamento é uma expressão que anuncia essa radical participação divina no amor à negatividade da existência humana decaída.

Essa participação vai tão longe que toca os limites do mistério do mal, vai até o abismo do vazio, o abandono e o desespero do “inferno”, donde ouvimos aquele sofredor grito de morte do Deus humanado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Cf. Mc).

Essa participação em nossa vida até a morte, esse caminhar conosco até a região última do nihilismo e do aniquilamento, esse descenso até o abismo de um mortal “não-ter-esperança”, esse amor de Cristo, contra toda esperança, fende a porta para a libertação radiosa da manhã da ressurreição, onde se evoca aquele nome, o nome que designa o coração íntimo da Domina Paupertas: Maria! Rabboni! (Jo 20,11-18).

A partir da perspectiva dessa exinanitio do amor na humanação de Cristo, o ser-pobre material recebe novo significado.

Então, ser-pobre passa a significar: participar no “sofrer” dos homens, a partir da participação do amor de Cristo, que sempre de novo continua solidário com o destino dos homens. Quanto às consequências dessa postura, cf. o capítulo Minoritas: sobre o mal.

Essa “vontade” de participação possui um único limite. Esse limite se chama pecado, ou seja, falta-de-amor.

A partir da perspectiva da exinanitio, portanto, a pobreza significa: participação na vastidão e profundidade do amor de Cristo entre nós, que acompanha os homens em seu sofrer, suas dúvidas, em sua pobreza material e espiritual, necessidades, em sua distância de Deus e dos homens até o último deserto da falta de esperança, ali permanece firme com eles, em si compartilha com eles esse deserto, sua sede, sob o céu noturno vazio e escuro, onde ressoa no silêncio do calar de Deus a voz suave da esperança da Domina Paupertas que se abre em gratidão: Vem, Senhor Jesus! (Ap).

Depois dessa consideração esquemática, um tanto superficial dos três constituintes da pobreza evangélica na autocompreensão da existência franciscana, resumamos todo esse conjunto dizendo: A vida, a “forma”, a postura da existência franciscana é evangelho. Evangelho é a presença do Deus tornado homem no meio de nós.

Essa presença toma forma no Domina Paupertas.

O dominante nessa constelação viva, que se chama Domina Paupertas, é a liberdade escatológica.

Com ela, essencialmente, ressoa o amor receptivo e satisfaciente do evangelho como gratidão e estar-em-casa, e o amor-exinanitio participante como doação radical à humanidade, como fidelidade e solidariedade  com ela até a morte, no “reconhecimento” do mistério do tornar-se homem.

Esses três momentos perfazem a essência da pobreza franciscana como Domina Paupertas.

No fundo, ela nada mais é que presença do amor de Cristo no meio de nós, em sua profundidade, vastidão, em sua largueza e altura (cf. Ef), presença do evangelho, a boa-notícia do Deus humanado.

Em conformidade com o caráter, com o tipo humano, se somos mulher ou homem, se pertencemos a determinada raça, a um determinado povo, se somos velhos ou jovens, podemos viver a Domina Paupertas numa entoação diversa.

Em conformidade com o modo que colocamos a entoação na liberdade escatológica, no amor satisfaciente ou na participação-exinanitio, um irmão ou uma irmã (ou uma comunidade de irmãos ou de irmãs) recebe sua cunhagem própria.

Assim, um franciscano, por exemplo, quando vive o momento-liberdade torna-se pioneiro da humanidade, uma espécie de rebelde para o reino de Deus, irá sentir e viver sua pobreza como “jamais-deter-se parado”, “sempre-avante”, como vanguarda.

Uma franciscana que acentua o momento de participação-exinanitio ingressaria no trabalho social, ou iria para a favela compadecendo-se com os sofredores, os pobres com os desprezados,  como presença do amor de Cristo na negatividade do des-pojamento humano.

Aqueles que procuram o pessoal na vida de oração, na intimidade, através de seu amor, sua simpatia e amizade humana e  vivem a compreensão verdadeira, profunda e pessoal da virgindade evangélica, através de sua vida e de sua postura  irão tornar real a presença do amor satisfaciente  e do “estar-em-casa” de Cristo etc. etc.

Todavia, não devemos esquecer-nos do essencial, a saber, que os três constituintes da Domina Paupertas devem ressoar sempre igualmente como momentos de um e o mesmo evangelho-de-vida, embora numa entoação diversa.

Tarefa:

  1. Descrever diversos tipos que brotam de diversas entoações dos momentos. Compará-los com diversos trabalhos sociais, escolares etc. Ver novas possibilidades que surgem dos diversos tipos etc.
  2. Criticar a concepção que vige até hoje, lançando mão do novo parâmetro Domina Paupertas.
  3. Descrever melhor e com mais detalhes diversas nuances da Domina Paupertas: Por exemplo, Gratidão, Minoritas etc.

Minoritas: Nihilismo, gratidão, Domina Paupertas

Minoritas

Francisco chamou a seus filhos de: menores.

Na história de nossa ordem essa designação foi interpretada em diversas variações. Hoje em dia, compara-se essa minoritas franciscana com o “ser-pequeno”, implícito na designação “os pequenos irmãs ou irmãos” da comunidade fundada no modelo de Foucauld.

Falamos até de uma tarefa franciscana essencial de encaminhar-se aos pequenos e pobres,  aos oprimidos e abandonados, isso porque nós, franciscanos, a partir de nossa origem, estaríamos predestinados a essa tarefa social.

Tudo isso é muito bonito e bom! Todavia, nisso não conseguimos nos livrar de um sentimento desagradável, a saber, procurarmos aferradamente uma etiqueta aceitável para nossa minoritas, buscar salvá-la, justo porque nela já não mais conseguimos encontrar o grande  valor e sentido cheio de vida. Assim, vivemos constantemente naquela postura curiosa do complexo de inferioridade: o que fazem e vivem os outros, também nós já tivemos; é e foi nossa tarefa. No entanto, somos tão desleixados e preguiçosos que repassamos a outras mãos nossa tarefa e trabalho originários etc.

E é inevitável surgir uma reação natural a isso: imitamos os outros, enciumamo-nos rivalizando com os outros e quando produzimos alguma coisa logo surge um sentimento de autoafirmação: também nós temos algo a dizer!

Isso não será um sintoma de que nós, franciscanos, temos dúvidas na justificação de nossa existência como franciscanos.

Mas por que nos comparamos com os outros? Por que nos perdemos nessas rivalidades e desempenhos, cujo resultado só faz que nos enganemos ao refletir sobre nós mesmos?

Se cremos na teoria da absoluta insubstituibilidade do indivíduo (e uma ordem, enquanto uma comunidade fechada e espiritualidade determinada, também é um indivíduo), por que procuramos as soluções fora, junto aos outros?

O pior em nós não é tanto sermos desleixados e preguiçosos! O pior é, ao contrário, que quando somos desleixados e preguiçosos, não o somos franciscanamente, que não somos nós mesmos. Não é assim que nossa ordem esteja tão feia em comparação com os outros. Basta pensarmos nas missões. Não somos tão desleixados e preguiçosos como afirmamos.

Há províncias realmente boas, zelosas, produtivas, abertas ao mundo.

Mas tudo isso não depõe ao nosso favor: enquanto somos produtivos, zelosos, piedosos poderíamos muito bem ser inclusive jesuítas ou beneditinos. Faz-se extremamente necessário um retorno à fonte originária, um radical autorefletir seu próprio sentido (Selbstbesinnung)  e tornar-se si-mesmo (Selbstwerdung).

Mas o que se disse não deve ser mal compreendido: nos últimos tempos surgiu um movimento em nossa ordem que parece conotar algo assim como um tornar-se si-mesmo: afirma-se com frequência que devemos fazer mais para nós, propagar nossa causa, nossa herança, ter mais ressonância etc.

O fato de considerarmos bom um tal movimento, de apoiá-lo é justamente um sintoma que nos afastamos cada vez mais de nossa origem.

Autorefletir seu próprio sentido e tornar-se si-mesmo no sentido aqui mencionado é algo totalmente diverso: está em questão aqui uma interioridade, que atinge nosso ser em sua essência nuclear.

O que tem em mente Francisco com o ser-minor? Por que chama a seus filhos de frates minores?

Ser minor tem a ver com jongleur de Dieu, com a perfeita alegria de Frei Leão nos Fioretti, com o Violino de Francisco feito de dois galhos, com suas brincadeiras de bobo (Narrenpossen), com o cântico do sol, com sua despreocupação aventureira e seu impulso de liberdade, com seu amor. Sim, ser minor é todo e qualquer gesto, passo, toda a vida de Francisco: ser-minor e o próprio Francisco.

Com isso, já se disse tudo o que se devia dizer: porém, totalmente incompreensível para nós.  É necessário haver uma interpretação. Uma interpretação, no entanto, não mostra a coisa ela mesma. Por isso, em nossa interpretação, devemos ter diante de nossos olhos sempre o próprio Francisco.

Ser-minor é o próprio Francisco! Ser-minor, portanto, para Francisco não era uma norma, segundo a qual ele queria configurar sua vida.  A norma é e foi Cristo.  Ser-minor é, antes, o caráter próprio e verdadeiro do próprio Francisco; seu modo de ser, sua substância, carne e sangue, sua vida.

O fato se ter Cristo como norma não é algo novo dentro da Igreja.  As outras ordens, sim, todos os cristãos fazem isso. O novo foi precisamente isso: o fato de o Cristo ser visto, formado, vivido a partir do ser-menor!

E se ora quisermos exercitar  o reflexão do sentido de si mesmo enquanto franciscanos, nossos esforços devem voltar-se antes, de imediato para o ser-menor do que para o Cristo.

É só quando tivermos compreendido o ser-minor que poderemos caminhar para o Cristo ou para o evangelho, a fim de interpretá-lo “franciscanamente”.

Aqui se estabelece então uma correlativa influência mútua na interpretação: o evangelho é a fonte mais originária para a compreensão de Francisco:  e ao mesmo tempo, só poderemos compreender o evangelho como foi vivido por Francisco se interpretarmos o evangelho a partir do ser-minor.

Na raiz da minoritas jaz um conhecimento que não é mais um conhecimento no sentido usual da palavra, mas é o próprio ser e a própria vida: o conhecimento do nada.

Francisco foi um homem radical. Seu conhecimento era tão simples e radical que alcançava sempre até a raiz de todas as coisas: e a raiz de todos os ente é em si e por si o nada.

O nihilismo de Francisco, porém, nada tem a ver com o nihilismo em sentido usual, justo por ser ainda mais radical: sim, poderíamos até dizer que o nihilismo de Francisco é ainda mais realista, mais objetivo, mais transparente e desprovido de ilusões: ele não lamenta, não vê  as coisas mais escuras, nem sequer chega à idéia de ser pessimista, pois isso tudo é ainda um sintoma de que o nada não é levado a sério, de que o nada considerado ainda como um valor, mesmo que seja um valor negativo: Se o nada é nada, então naturalmente as coisas estão “ruins” para nós. É até de se admirar de que o nada possa sempre ainda ser “algo”!

Mas o característico em Francisco é  que nele esse tomar ciência do nada não é um conhecimento no sentido usual. É precisamente e até um tomar ciência no sentido de: ele é nada. Nesse sentido, Francisco é um dos maiores metafísicos do mundo. Nele não há: primeiro eu, depois o objeto e depois conhecimento. Ele é sempre e a cada vez o meio, e só depois “conhece” o objeto. Mas nesse ser-meio, Francisco é sempre radicalmente nada. Ele não tem substância, nenhum peso, nenhum fundamento, nenhuma tradição, nenhum mérito, constantemente, a cada in-stante é vazia e abertamente nada. Esse ser-nada é o mais radical tomar ciência e acolher do ser-criatura: um tomar ciência e acolhimento que nada têm a ver com o nosso querer ou conhecer: as coisas são assim, algo diverso me é simplesmente impossível: nada a não ser o próprio ser-criatura.

Menor, menos, mais baixo que esse nada nada há.
ser mais nada do que esse nada é simplesmente impossível.
isso significa imediatamente: Minoritas!

Esse tomar ciência do nada enquanto minoritas é pois a fonte de alguns traços fundamentais da espiritualidade franciscana: citamos aqui apenas alguns: a transparência, a liberdade, a despreocupação (Leichtsinn), a falta de história (Geschichtlosigkeit), a postura quase descomunalmente perseverante e alegre de não se deixar abater.

A transparência:

Significa em primeiro lugar ser-transparente em e para si. Não se trata portanto de uma transparência em relação aos outros. Essa última é apenas uma consequência.

Transparência refere-se a uma qualidade de ser. É, poderíamos dizer, a minoritas no ver, no conhecer.  Ser-nadificante (Nichtig-sein), portanto, no conhecer.

Significa em primeiro lugar algo negativo: caráter de não julgar; não-saber, não porém no sentido da ignorantia, mas saber do não-saber em sentido socrático. Significa: não-estar-preso em qualquer sistema, idéia ou tradição.

Positivamente, significa: agarrar tudo sempre de maneira nova, ver de modo novo, como se se tivesse nascido agora neste in-stante. Jamais demorar-se em um resultado já conquistado; sempre de novo fluidificar o que se alcançou; estar sempre pronto a renunciar o seu ponto de vista, não pro sermos lábeis, mas porque não se tema absolutamente nada: não é portanto nenhuma tarefa, mas é ser e estar  aberto. Um minor não se defende, não disputa, mas questiona, cria diálogo: a única exigência radical e dogma é querer ver, querer tornar tudo transparente, irreverente! E uma vez que ele não possui nenhum projeto ou ponto de vista pensado de antemão, essa irreverência não representa uma violência na coisa  mas um respeito reverente: tornar transparente é simplesmente  deixar ser a coisa ela mesma: como ela é.  É uma espécie de suspensão de crítica, não porém porque se seja ingênuo, mas porque se vê de modo radical e em demasia!

Essa transparência dá a Francisco aquela sabedoria, tão simples e clara como a irmã água. Ele pode dizer o que quiser e como quer: seus enunciados sempre são cristalinamente claros, sem qualquer viscosidade de inautenticidade. Quando Francisco exortava seus filhos: proferir poucas palavras, pois assim faz também o evangelho, tinha em mente propriamente essa transparência.  O que há de mais transparente que a narrativa do evangelho?

Essa transparência tem algo de duro: mas duro como o aço ou como o cristal. Aço e cristal, porém, não em sua opacidade, mas em sua transparente simplicidade, nobreza e necessidade.

Há algo mais fino do que uma espada?

Essa transparência possui tão pouco a ver com o não-saber da gente assim chamada de simples, quanto o orgulho frio de certas pessoas de formação acadêmica.

É, antes, algo como o olhar profundo e claro de um sábio, algo assim como a desinteressada dedicação e abertura de um cientista, algo assim como o brilho virginal de uma flor de asagao, algo assim como a transparência dura de trama fina da porcelana japonesa.

Essa transparência da minoritas dava a Francisco uma segurança certeira em suas decisões: ele não refletia muito tempo, sempre acertava na coisa em questão porque era sempre e a cada instante ele mesmo.

O que se disse soa naturalmente bastante ingênuo. A própria coisa porém não é ingênua: aqui, nessa transparência da minoritas está em questão propriamente algo que o homem moderno começa a ver de modo  cada vez mais indeterminado: uma dimensão originária além da metafísica do ser. A metafísica ocidental chamou a essa dimensão de horizonte do ser. Mas ela não é suficientemente radical. É só o esgotamento desse horizonte do ser, portanto, a morte, que nos mostra aos poucos a relatividade do logos: a morte é minoritas em seu lado negativo. A morte, porém, é o in-stante onde começa a vida: enquanto transparência.

Nesse reino da transparência, tudo e cada coisa viceja no frescor criativo da unicidade. Um verme é tão belo e majestoso como uma rosa: em sua unicidade. Quando Francisco eleva um verme da terra, protegendo-o, isso tudo nada tem a ver com amizade profunda: aqui trata-se de minoritas como transparência.

O assim chamado e famoso individualismo da espiritualidade franciscana só pode ser compreendido e vivido como unicidade criativa no reino da transparência-minoritas.

Uma que outra vez, esse modo de ver da transparência pode espantar um espírito-burguês “bem situado” e importante. Do ponto de vista de uma segurança sossegada e substancialista, pode parecer como se  fosse  cético ou até anárquico. Afirma-se então: não há nada de fixo, nada de seguro?

Mas uma vez que o ser-minor é nada, não há nada em si fixo e permanente, note-se: em e por si. E uma vez que na luz do in-stante nadificante (nichtiges) tudo é si mesmo, tudo e qualquer coisa está ali presente de modo unicitariamente necessário, novo e com frescor! Esse estar-aí é graça e gratidão.

Certa vez Chesterton expressou essa realidade de maneira acertada ao afirmar de modo trivial:

Se tenho diante de mim um pinheiro verde, olho para ele, então por um momento desvio o olhar do mesmo: o espantoso nisso é pois a possibilidade de que, se volto a olhar para o mesmo, ele pode ter-se tornado vermelho!

Essa transparência no conhecer e no ser fundamenta também a liberdade  franciscana! Ser livre significa ser-minor. Ser-minor significa ser nada. O que há de mais livre do que ser nada?

Se nada mais tenho a perder, e tudo que posso vir a ganhar só pode ser sempre nada, se eu sou propriamente esse nada, se sou assim tão radicalmente sem substância, que só estou ali como nada aberto, então sou totalmente livre!

Não é tão correto, portanto,  quando interpretamos a liberdade franciscana a partir da renúncia ao mundo, às posses etc. como ser-livres para Cristo! Embora esse ser-livre para Cristo e para sua causa seja algo grandioso e elevado, é muito pouco comparado com a liberdade da minoritas.  Isso porque essa liberdade para Cristo ainda não é suficientemente radical.  Há tantas pessoas regradas que renunciam a tudo por Cristo e apesar disso, porque no serviço de Cristo não são livres “a partir do ser” (seinsmässing), ficam apaixonadamente presos a suas virtudes, méritos e  trabalho.

O ser-livre de Francisco é ser aberto a partir do ser: como nada.

A abertura, portanto, tem pouco a ver com renúncia.  Isso porque essa abertura franciscana está fundamentada pelo conhecimento radical da transparência do nada: tomar ciência e acolher o ser-criatura. Embora não sendo falsa, a espiritualidade da renúncia radica-se sobre uma visão de mundo não radical, unilateral. Digamo-lo superficialmente, ela é moralizante e psicológica, mas não a partir do ser, metafísica.

E uma vez que essa liberdade da abertura está radicada na transparência do nada, liberdade significa: deixar os outros serem livres como são! Liberdade é portanto respeito frente ao ente e frente a Deus, como o tem e o aprecia o próprio Deus. E em relação a si mesmo, ser o que é si-mesmo!

Essa liberdade sob o céu aberto do nada é a unicidade jovial da existência, no in-stante da graça e da gratuidade: se é sempre sua própria plenitude e felicidade.

Liberdade é portanto, sempre e sempre novo ser-aberto como si-mesmo: isso significa ser feliz, ser pleno como criatura, como nada: um nada agradecido, isto é, minoritas. Podemos chamar a liberdade franciscana também de serenidade solta (Gelassenheit).

Mas serenidade solta não no sentido da indiferença anêmica, mas serenidade solta no sentido do vôo feliz e solto da calandra (Lerche): Somos livres como pássaros!

Essa liberdade da minoritas tem em si algo como despreocupação (lechtisinn). Tudo que é pesado, tudo que é importante, tudo que é pegajoso, todo vestígio de viscosidade não se quadra com essa postura de ser da liberdade, justo porque ela possui em si algo de substancial: algo em si.

O aventureiro  na espiritualidade franciscana tem em si sempre algo de alegre, prazeroso, despreocupado (Unbekümmertes) e lúdico: é vivido por aquela leveza do ser radical e originariamente livre na transparência do nada.

A partir desse ponto de vista o ser-menor é tudo menos o ser-e-estar-oprimido cheio de pesadume, como se costuma interpretar a humildade: ser menor é ser alegre e prazenteiramente, justo porque se é nada.  Temos a permissão e podemos ser bobos despreocupados, jongleur, porque somos originariamente livres!

É a partir dessa liberdade descuidada (leichtsinnig) que surge também nosso otimismo: um otimismo inextirpavelmente pilhérico que frente a toda dificuldade joga cara ou coroa, com entusiasmo e descuido (Leichtsinn): não mensuramos nosso inimigo porque nada somos: nada temos a perder. E visto que nada somos, não dispondo assim de nenhum solo firme para o passado, isto é, para a “história” não temos objeto algum em que pudéssemos colocar nossa compaixão ou nossa tristeza se experimentamos uma derrota em nossa luta. Investimos, investimos sempre de novo, a cada in-stante, com o entusiasmo e a coragem do primeiro ataque.

Assim, ser-menor é o destemor (Furchtlosigkeit) jovial, alegre, abobado e cavalheiresco e a perseverança firme do nada.

Nesse sentido, Francisco é um homem sem passado e sem futuro: ele é simplesmente in-stante.

É um erro portanto interpretar como um signo da pobreza a exortação de Francisco de nada conservar para o dia seguinte. Para Francisco, não havia essencialmente nenhum ontem, nenhum amanhã. O único real era para ele o in-stante!

Ser-menor, portanto, é uma radical afirmação do ser-criatura. Uma afirmação que confirma absolutamente o singularmente próprio da criatura: o nada.

A essa afirmação chamamos de humildade! Eu iria chamá-la de humildade cósmica. Essa humildade é a essência e o ser próprio do homem. Ela é sua única potência e caráter próprio de ser (Selbigkeit).

Curiosamente, essa breve e esquemática consideração de que a minoritas tem pouco a ver com “ser-pequeno”, “ser-baixo” (niedrig-sein), mas ao contrário, tem a ver com a autodeterminação originária do homem. É a afirmação a mais elevada, a mais verdadeira, a mais clara e mais irreverente do caráter próprio de ser do homem enquanto homem.

A afirmação de que, na modernidade, pelo fato de ter-se tornado autônoma de Deus, a humanidade determina a si mesma e em sua afirmação luciférica (sic!) de seu caráter próprio de ser (Selbigkeit – autonomia?) decaiu no nihilismo, essa afirmação quase se tornou um lema. O exemplo usado frequentemente é pois o existencialismo.

Mas na minha opinião tudo isso é um lema barato, que não vê a profundidade da coisa em questão. Essa tendência para a autoafirmação, independente de como veio a ser,  é também uma graça. É epocal histórica e marca toda uma época. Se esse nihilismo é epocal (se há na forma acima mencionada é naturalmente questionável), já não podemos fazê-lo retroceder, exortando autocomplacentes: temos de retornar para Deus em humildade e penitência. É necessário auscultar o verdadeiro sentido do nihilismo epocal. Nesse nihilismo está oculto um significado epocal monstruoso, que talvez nos reconduza para a origem de modo muito mais profundo que nunca, transformando todas as categorias que temos até o presente: mas o sentido verdadeiro e originário desse nihilismo epocal já foi vivido por Francisco: chama-se minoritas.

Esse originário tomar ciência da nadidade (Nichtigkeit) própria acontece em Francisco junto com uma admiração ilimitada frente ao ser como gratidão e graça. Essa admiração é o primeiro instante do filho diante de si e diante do mundo! Se tudo e cada coisa é negativo (nichtig) até a mais profunda substancialidade, até os últimos elementos, como é possível que tudo e cada coisa “seja”?

Em Francisco, essa questão não é uma questão. É apenas “crer” como admiração do in-stante filial, como gratidão do poeta.

Vamos considerar um pouco mais de perto a estrutura interna desse admirar-se como “crer”.

É comum contrapor o “saber” ao “crer”. O saber é conhecimento que se dá através da visão (Einsicht); a fé, através da “autoridade”.  Na “fé” está oculto porém o momento “confiança”, “esperança” e também “amor”.

Para a distinção essencial da estrutura de saber e de crer, porém, esse modo usual de  consideração é totalmente cego. Operamos ali com um conceito de “saber” indeterminado, definindo o “crer” como uma espécie de saber de classe superior ou inferior.

Crer encontra-se numa dimensão mais originária e “diferente” do que o saber. Por falta de expressões, dizemos comumente: na dimensão da vivência, do irracional, do concreto etc.  Mas com isso se acaba ignorando a verdadeira profundidade do “crer”.

Crer é algo assim como o centro de um encontro no in-stante do enamoramento. Enamoramento, porém não é compreendido aqui como, via de regra, é mencionado nos romances como “amor à primeira vista”. Ademais, também aqui há algo assim como estrutura do crer. Mas o conteúdo desse centro é tão indeterminado e “instável” que não se pode falar bem de um verdadeiro encontro.

Em nosso sentido, enamoramento designa aquela realidade que se “constitui” no encontro das pessoas como sua origem, como seu centro: formulamo-lo com as palavras, já muito desgastadas: relação-eu-tu.

Aqui não está em questão o “saber” de um objeto, que já estava à mão ali, mas um “devir”, ou melhor, um “haurir originário” (Urschöpfen): tornamo-nos “eu e tu” a partir do centro desse encontro, ou melhor, “eu e tu” nada mais é que esse próprio encontro.

Experimentamos por assim dizer um crescimento de ser, e esse novo ser “é” o saber a partir de dentro. “sabemos” porque “somos”. É nesse sentido que a Sagrada Escritura fala de um “conhecer” no amor esponsal.

“Crer” é portanto a evidência originária do ser,  é a profundidade originária, a partir donde outros “saberes” haurem suas “evidências”. Nesse sentido, a base originária de toda ciência é “crer”.

E uma vez que esse “conhecimento” é “ser si-mesmo”, já não há espaço para uma pergunta ou para uma dúvida: não há nada que não “seja” si-mesmo. Nesse sentido, “questão” é um modo de ser mais ingênuo do que “crer”.

A admiração de S. Francisco diante do milagre do ser é, portanto, um conhecimento da criança (Kind), mas não mais da criança ingênua que não questiona, mas a admiração é o ser-si-mesmo originário como “crer”: é a figura da evidência originária como Ser-aí.

Nesse sentido, essa admiração se encontra além de todo questionar e duvidar: a admiração é a vida originária da criança divina.

Aqui é evidente a identidade (Selbigkeit) dessa “estrutura” da admiração e do  crer com a estrutura do ser-nada na Minoritas. Quando falamos de Francisco, temos de ter em vista sempre de novo essa “estrutura originária”. Nele, todas as suas experiências, vivências, atos, fatos etc. sempre são “ser”: chamamos a esse ser de postura. Uma palavra mais apropriada para isso seria: Ser- (Da-sein).

“Ser-nada”, “admiração” nada mais são que o humor concreto do conteúdo desse ser-aí. Essas determinações fundamentais, que com Heidegger podemos chamar de “existenciárias” (existenzialen) dizem sempre o mesmo: a “estrutura originária” da a-substancialidade, enquanto ser-negativo da identidade (Identitätsnichtigsein): Ser-aí. Mas ser-aí é uma abstração. Precisa-se de uma em que se dê sua determinação existencial para que seja “compreendida” em concreto. Todavia, precisamos sempre de novo recordar-nos que, se falamos de uma determinação fundamental, ela se refere sempre à sua estrutura fundamental “Ser-aí” e a partir daí deve ser compreendida.

A admiração e a “crença no ser”, que brotam da origem do ser-negativo (nichtig-sein) são: gratidão. Essa gratidão da Minoritas recebe um colorido bem determinado: a saber, aquela originariedade pessoal que perfaz a essência do ser-criatura. Isso porque o “ser” é nada. E, se apesar disso, tudo “é”, então ser enquanto ser-aí é “receber”: Esse “receber” é gratidão!

Em Francisco, gratidão é o conhecimento da graça próprio do ser-aí enquanto ontológico. Graça enquanto um doar livre e da vontade de Deus.

O que se disse, porém, não atinge com precisão o próprio Francisco, justo porque falamos de modo muito geral.

Em Francisco, esse conhecimento da graça próprio do ser-aí enquanto ontológico, graça enquanto tudo, possui uma dimensão profunda toda própria: isso porque o doar de Deus não é apenas um ato da criação, pelo qual surge e se mantém o mundo, mas antes: cada coisa e todas as coisas, cada mínimo elemento do mundo, todo e qualquer ente nada mais é que amor de Deus: Graça é encontro livre e volente, radical e originário do enamoramento de Deus: Esse “encontro” é o “ser”.

Na medida em que esse agradecimento é uma resposta ao amor-graça, possui aquela determinação originária do ser-criatura que encontramos no mais profundo sentido da palavra “feminino”: a saber,  é o que torna feliz (Beglückende), a ternura interior, o acolhedor-agradecido, o receptivo, o caráter de abrir-se e de entregar-se-ao-amor. Não há nenhuma palavra  que possa designar essa realidade. Há porém nas Sagradas Escrituras um nome, pronunciado no frescor da manhã, na nova criação: essa palavra nos diz o que se deve compreender por “feminino” (fraulich): “Maria!” “Rabboni!” (Jo 20,16).

Ser-aí, portanto, como ser-negativo é gratidão. Agradecimento é pois o ser-criatura como resposta ao encontro da graça. Esse encontro é o “feminino”: em Francisco, se chama Domina Paupertas!

Na espiritualidade franciscana, a pobreza é portanto o feminino originário do ser-criatura como gratidão do ser-aí.

Acima designamos o ser-minor como a autodeterminação originária do homem enquanto ser-aí: ser-negativo. Ali, essa autodeterminação soou como muito negativa, talvez muito vazia. Ali surgiu também o perigo de interpretar essa autodeterminação como uma autoafirmação do homem nihilista, autosuficiente e até um tanto prometéica.

Mas com a pobreza, essa autodeterminação originária recebe uma plenitude de conteúdo como relação originária do amor pessoa.

Minoritas é pois pobreza como amor pessoal.

A partir desse “conhecer”, o mundo recebe um monstruoso significado, alcançando inclusive seus elementos mais ínfimos e insignificantes: cada pedra, cada verme, cada segundo, cada manifestação cultural, cada coisa e todas as coisas  é um in-stante do amor pessoal.

Pobreza é o contra-in-stante agradecido-receptivo, amável, desse encontro inefável: “eutu”.

O deixar-ser no in-stante do nada é pois esperar e tomar esse encontro em amor e por amor, que é Deus mesmo. Se é assim, então pobreza nada tem a ver com renunciar, com separar-se-do-mundo. Então, pobreza é: deixar o mundo “ser” a partir de sua origem, como ele realmente “é”. Então, pobreza e: o respeito pessoal amável como resposta nesse encontro. Então, pobreza é simples e somente:  uma afirmação radical do ser-homem como encontro jovial, amável e virginal enquanto ser-aí.

Agora surgiria então a tarefa de determinar todas as assim chamadas virtudes franciscanas a partir dessa origem.

Aqui devemo-nos concentrar num ponto que abre a vastidão e a profundidade desse  conceito de pobreza: pobreza e o mal no mundo.

Se a pobreza é o respeito amável no in-stante do encontro, se o “ser” do ente nada mais é que esse encontro, se pobreza é todo “deixar-ser”, como se relaciona a pobreza com o mal no mundo?

É natural que essa colocação de questão seja absurda, justo porque sob “mal” compreendemos diversas coisas.  E uma vez que aqui nos interessa apenas uma determinação esquemática da postura franciscana, nos é suficiente aqui destacar apenas dois pontos em relação ao “mal”: em primeiro lugar, o mal como ruindade (Übel) e como “dano” (Schade), como por exemplo, a doença, a fome, a penúria etc. e em segundo lugar o mal no sentido próprio da palavra como “pecado”.

A partir da concepção franciscana da pobreza na atitude que se posta contra o mal do mundo há algo de propriamente ambíguo: Francisco leva a sério a suplantação do sofrer no mundo e, no entanto, por outro lado, nem tanto assim. Parece pertencer à essência da espiritualidade franciscana o fato de, frente ao faminto, Francisco lhe oferecer seu próprio pão, de ir rezar por ele, mas jamais lhe ocorre a idéia de fazer deslanchar um movimento social para extirpar a fome do mundo.

[Seguramente, podemos simplesmente deixar de lado esse assunto esclarecendo, do ponto de vista histórico-social, essa postura de Francisco como algo que naquela situação tal idéia ainda era inconcebível.

Nessa postura de Francisco, porém, vejo antes uma atitude de ser que demonstra uma dimensão totalmente diversa, por assim dizer, mais profunda do que a atitude social-reformatória de nossa época.

Não sai da minha cabeça a imagem de Francisco pedindo ao fogo ardente que queimava sua carne que tivesse dele piedade, chamando-o confiantemente de “irmão fogo”. Aqui há algo mais do que uma mera “poesia”. Porque Francisco não deveria chamar de irmã também à fome?

Mas a fome traz infelicidade, mata milhares de pessoas, crianças inocentes, mães, velhos! Aquele que já viu a imagem de famintos na Índia, na América do Sul irá se indignar frente a tal densificação da dura realidade!

E apesar disso, Francisco irá chamar de irmã a fome horripilante! Não creio que Francisco tivesse sido um poeta alienado do mundo. Creio inclusive que Francisco tenha vivido e tomado ciência da dura realidade de modo muito mais profundo e mais realista do que nós.

Mas em tudo Francisco via a origem. Ele vê o que pode ser e deve ser originalmente  a fome para o esfomeado. Se tudo e cada coisa é encontro do amor, então também a fome para o esfomeado é encontro do amor, por mais duro e desumano que possa soar para nós, homens modernos, com orientação “social”!

Ele é capaz de envidar todos os esforços para poder ajudá-lo, para salvá-lo da fome, é capaz inclusive de enfrentar a morte se isso puder salvar o esfomeado. Mas isso é simplesmente secundário para Francisco. O grave e essencial nele é encontrar o esfomeado em seu ser-homem originário, ajudá-lo para que “se torne” “homem” como nadidade (Nichtiges), ser-aí agradecido. E Francisco sabe de modo muito sóbrio e sem ilusões que precisamente e mesmo em seu ocaso um homem pode “alcançar” sua grandeza como criatura.

Mas uma vez que esse devir si-mesmo não é uma questão de persuasão e visto que o “outro” é também um encontro do amor e assim só pode “existir” no ser-com, terá compaixão, irá lutar com ele, dar tudo de si para que, em sua situação, ele possa “se tornar” num ser-aí-agradecido.

Sua real ajuda é portanto: lançar a si mesmo precisamente na mesma situação do esfomeado, mas depois tornar-se, de modo duro e real, precisamente como ele e nessa situação ele “mesmo” tornar-se um ser-aí agradecido. Se alguém passa fome, Francisco irá passar fome com ele e “louvar” a Deus!

Tudo isso soa um tanto tresloucado, imprático, mas, a partir da concepção originária do ser como pobreza, é o único caminho.

A verdadeira postura da espiritualidade franciscana frente ao mal (Übel) do mundo, portanto, é ajudar com todas as forças a afastar o mal, sem porém considerar essa tarefa como a tarefa originária e a solução do problema, mas em cada ruindade vislumbrar a possibilidade de tornar-se homem como a possibilidade de encontro e “junto tornar-se” ele próprio através de seu “ser-aí”!

Dizemos aqui “junto tornar-se” (Mit-werden) com consciência, pois aqui não se trata de um mero exemplo. Isso porque dar um exemplo pressupõe sempre um alguém que dá um exemplo ao “outro”. Em tudo se esconde uma certa distância que parece sugerir algo assim como um autosuficiência. Em Francisco seu “ser” nada mais é que exemplo ele mesmo. Ele não dá exemplo aos outros, não lhes dá nenhuma norma; antes, ele é simplesmente “o outro” no ser-com.

A partir dessa concepção, que é uma concepção de ser,  compreendemos a postura e o zelo de Francisco:  não tolerar ninguém que fosse “mais pobre” que ele!

Para essa concepção ontológica do mundo absolutamente radical, portanto, se apresenta algo mais profundo e mais duro, que por assim dizer percorre transversalmente a concepção de desenvolvimento e de progresso: algo que, sob certas circunstâncias, pode escandalizar o homem que pensa sob o signo “desenvolvimentista”. Nesse sentido, uma concepção de mundo como a de Teilhard de Chardin não é nada franciscana: em comparação com a concepção de ser de Francisco, é superficial.

Talvez seja por causa dessa concepção a incapacidade de fazer permanecer de pé um movimento puramente “social”. Nosso erro não consiste no fato de ter-nos dedicado muito pouco a tarefas “sociais”, mas que de modo algum compreendemos o que Francisco compreendeu por pobreza e por amor.

A partir do que se disse, portanto, Francisco não poderia viver “sossegado” se soubesse que seu irmão está passando fome. E se não puder ajudá-lo com pão, irá sentir compaixão e louvar a Deus. Essa postura totalmente imprática e um tanto tresloucada alberga em si aquela postura originária pela qual duas pessoas que se amam intimamente, no sofrimento, logo são compreendidas pelo “outro” a partir do ser-aí.

É só em Francisco que esse sofrimento recebe um raio de luz de alegria, que só pode ser compreendido a partir da concepção de ser de Francisco. Isso porque nessa compaixão volta-se diretamente para a derradeira dignidade originária do “co-humano” (Mit-Menschen), ao seu “ser” verdadeiro:  Fome é uma certa possibilidade de encontro de amor; fome é portanto uma possibilidade concreta de “ser”. Essa afirmação radical do “ser-homem”, frequentemente representada na tragédia grega, em Francisco toma a forma de um salto alegre e transparente na confiança e na entrega, para dentro da origem do encontro! O otimismo e a alegria que brota dali é um otimismo que jaz além do sofrer e na mais funda profundidade do sofrer do mundo.

Francisco é um homem que, por sua profundidade, corresponde ao sentido profundo e próprio do sofrimento. Para ele, portanto, a explicitação trágica e pessimista do sentido do sofrer é de certo modo uma interpretação superficial da realidade. Mas essa postura frente ao sofrimento só é possível a partir do radical “nihilismo” da minoritas como gratidão!

Paradoxalmente poderíamos dizer que a espiritualidade franciscana da pobreza é tão nihilista que aniquila inclusive o nada, tornando-se numa afirmação do todo jubilosa e acolhedora. E essa afirmação do todo, porque o “ser” é encontro do amor, se expressa na “segunda pessoa”: “irmã morte”!

Em Francisco, a poesia é portanto a expressão adequada para a dura realidade: é a linguagem da pobreza que pode olhar nos olhos, amavelmente, inclusive a morte.

No mundo há portanto um outra ruindade (Übel): o mal pura e simplesmente, o pecado.

Visto a partir do encontro enquanto pobreza, o pecado é destruição e ausência de amor. Só pode “saber” o que é isso aquele que, como Francisco, foi ele próprio esse encontro de modo tão intensivo: pecado tem algo de sinistro (unheimlich), tão brutalmente destrutivo como vem mostrado no filme A fonte da virgem, de Bergmann.

Na espiritualidade franciscana, pecado não é tanto uma “ofensa” a Deus, mas “destruição satânica” de um amor de Deus entranhado, terno, atencioso: o pecado é algo assim como o desprezo do filho! É tão absurdo, inimaginável que o pecado é literalmente: mysterium iniquitatis. Do “saber” dessa in-gratidão, a postura de Francisco diante do pecado não é de espanto, de indignação, mas de profunda tristeza: o amor não é amado! Mas também aqui, a visão originária da pobreza lhe empresta aquela transparência otimista que não vê de imediato o pecado mas bem em concreto o pecador. E o pecador, o pior dos pecadores, nalgum lugar, escondido num canto profundo de sua alma, é uma criatura tocantemente desamparada, um filho que se fechou em si mesmo, por sofrer fome e frio, pois não teve amor. Também aqui Francisco tem em vista límpida e diretamente o núcleo do ser-criatura, volta-se à raiz do homem como ser-nada.

A partir dessa concepção e postura originárias diante da ruindade e do mal do mundo, surge uma imagem de mundo que pode confundir um “burguês idealista e reformador”: como o divino-filial Padre Braun  de Chesterton, Francisco está abismado e triste diante de uma flor pisoteada, reage duramente contra a tristeza egoísta de seu irmão, mas fala com naturalidade confiante ao lobo sobre seus atos ruis como fala com seu irmão. Francisco está tão próximo à  coisa, é tão translúcido, que sempre corresponde e faz jus à coisa. Na trama complexa das motivações, das fraquezas, maldades e besteiras que perfazem a vida humana,  Francisco acerta com cada coisa em seu lugar próprio, e isso a partir de sua origem:  no lugar do encontro e da decisão pessoal (Cf. Giraudoux, Electre, Geschichte von Igel).

Essa translucidez é o olhar transparente da Domina pobreza!

[NB: Acima, onde falei de gratidão, preciso discutir e trabalhar com mais detalhes a estrutura com a abstração tudo e nada, correlativamente: animus e anima, feminino e masculino: para isso Bergmann: O sétimo selo; Morangos silvestres; especialmente Claudel, Mittagswende).

 

POBREZA: FRATERNITAS

Pobreza:

Nós distinguimos:

  1. a) Pobreza como atitude interior
  2. b) Pobreza como modo exterior de vida

O modo exterior de vida deve ser:

  1. aa) A expressão viva da atitude interior
  2. bb) Meio auxiliar para preservar e aprofundar a atitude interior. Tudo o restante deve ser deixado de lado.
  3. a) Pobreza como atitude interior

– Um conhecimento profundo e unividente de que tudo foi convocado a partir do nada pela liberdade e amor de Deus para o ser e a vida.

– Significa: tudo, nossa existência, nossa vida, nossos dons e talentos, nossa alma e nosso corpo, nossa família, a terra, o mundo, também o mundo humano como a cultura, a sociedade etc. são dão e presente do amor de Deus.

-Tudo é portanto: Expressão e convocação do amor de Deus.

– O conteúdo e o sentido da vida franciscana é: abrir-se radicalmente, tornar-se totalmente livre para essa convocação do amor de Deus.

– Segundo a humanação de Cristo, porém, a expressão e a convocação do amor de Deus se concretizaram em Jesus Cristo: isto é, na boa-notícia de Cristo. Portanto: Evangelho.

– A pobreza franciscana significa portanto: abrir-se radicalmente, tornar-se radicalmente livres para a boa-mensagem de Cristo. E isso: em nós como nossa vida interior; para os outros, como anúncio, ou seja, apostolado.

– Tudo que não concorda com essa atitude interior é contrário à pobreza.

Isso significa, é contra a pobreza:

– desvalorização e desprezo do mundo.

– Negligência no desenvolvimento dos dons e talentos que recebemos de Deus.

– A idéia de que o “convento” por assim dizer é contraposto “ao mundo”.

– um poupar falso ou até a avareza.

– Pretensões de poder.

– Falsificação dos pensamentos libertadores e grandiosos da pobreza como ser-livre-para-o-amor-de-Deus para em função de ninharias e reivindicações de permissão jurídicas e imaturas,

– Toda pobreza-poupança ou “querer-parecer-pobre” hipócrita, que se chocam contra o caráter fraterno: por exemplo, poupar quando um irmão está doente em nome da pobreza!

– Não querer ajudar os outros em nome da pobreza.

– Não querer compreender que em primeira linha o essencial é o amor e a comunidade familiar entre os irmãos, pois é justamente isso o cerne do evangelho (NB: pobreza: ser livre, abrir-se para o evangelho!).

– Uma estrutura conventual que pulsa demais em vista de autoridade e não ordena tudo em vista do amor e da compreensão mútuas: isso porque essa estrutura pode nos desviar facilmente para a cede de poder.  Na comunidade franciscana nenhum irmão é senhor. Isso pressupõe porém que cada um esteja disposto a servir de boa vontade. E isso sem exceção.

– a idéia totalmente falsa e estreita de pobreza como salário pelo qual ganhamos o céu. Pobreza é muito mais: é abrir-se à boa-notícia. Por causa dessa falsa representação há franciscanos (os assim chamados virtuosos!), que vivem exteriormente de modo modesto e “pobre”, mas estão tão pendentes em sua “virtude da pobreza” como o avaro em seu dinheiro. Isso nos torna não-livres para a boa-notícia. Isso portanto não é pobreza; ao contrário, isso é contra a pobreza!

Todo tipo de mesquinhez.

Resultado: Precisamos revisar a partir do fundo nossa idéia de pobreza. Tudo que compreendemos por pobreza é por demais estreito, por demais imaturo, é mais uma poupança do que liberdade para o Reino de Deus.

A verdadeira atitude interior da pobreza exige todavia que um irmão seja suficientemente maduro para compreender e realizar isso. Nossas constituições, porém, parecem ter sido escritas para deter as falhas e os exageros humanos provenientes da falta de maturidade. Mas então, tudo isso nada tem a ver com pobreza, mas com imaturidade. Não pertence ao capítulo pobreza.

  1. b) Pobreza como modo de vida exterior

Cf. p. 1, linha 4 de cima para baixo.

– aqui não devemos nos prender na fixação jurídica de mesquinharias. Uma lei deve nos ajudar a tornar-nos maduros, livres e adultos no espírito da pobreza. O que temos, porém, torna um homem adulto em criança incapaz, de tal modo que em relação a qualquer ninharia corre pedir a “opinião” do superior. Pobreza não é escola para escrupulosos!

Cristo amou os pobres. Pobres, aqui, significa uma atitude de simplicidade, originariedade e abertura: pobre como crianças!

Nosso modo de vida tem de expressar também essa postura: simples, descomplicado, pessoal, não fazendo uma acepção servil de pessoas. Um esmoler pode ser um homem muito mais grandioso do que um bispo. Um franciscano deve tratar um esmoler tão bem quando a um bispo.

Pobreza exterior: pobreza, agora pensada bem em concreto como “necessidade”: deveríamos finalmente exterminar essa postura hipócrita de querer constantemente parecer “pobres”. Pobreza como necessidade não é uma aparência. Se realmente nada (alemão nicht) temos, então somos pobres. Se se alegra com isso e vive satisfeito, então é também pobre no sentido do evangelho. Mas se temos, e estamos constantemente fazendo objeções hipócritas que temos tanto, isso é hipocrisia. Ou ou:  se pensamos que devemos adotar a pobreza franciscana de modo bem severo como necessidade, então ser coerente: vamos aos pobres entre os a-sociais, como os pequenos irmãos de Foucauld. Mas para isso temos de mudar totalmente a estrutura da ordem, coisa que do ponto de vista prático é impossível. E ali, será preciso pensar que tal radicalidade é contra o caráter do ser fraterno. Temos doentes, fracos e idosos. Um tal modo de vida, portanto não deve ser uma lei, mas apenas uma possibilidade dentro da ordem. É muito mais digno e verdadeiro utilizar com inteligência o que temos, mesmo que tenhamos muito,  para o bem dos irmãos e dos outros.

No que tange à pobreza como necessidade, creio, não é importante se temos muito ou nada. Aqui penso mais ou menos assim: os pobres, os que nada têm, são meus irmãos e irmãs. Se as pessoas que amo entranhadamente sofrem, então gostaria de participar de seu destino. Devo, portanto, viver precisamente como eles vivem. Mas isso cabe a cada um, individualmente.

A necessidade exterior pode também significar simplicidade no estilo de vida. Nesse sentido somos mais livres se vivemos de modo simples. Se esse é o caso, então a necessidade fomenta a liberdade. Mas isso depende fortemente de cada indivíduo.  Não se pode, portanto, criar uma lei sobre isso.

Parece-me que isso tudo não é uma questão de legislação, mas de espiritualidade (postura-espiritual de uma comunidade). Em vez de regulamentar tudo até os mínimos detalhes, deveríamos regulamentar que essa espiritualidade seja cultivada e aprofundada. Nessa perspectiva se faz muito pouco: veja-se, por exemplo,  nossa biblioteca! Que horror de bagunça nos livros, que nos infiltram apenas uma falsa espiritualidade.

  1. 80-84 (escrito em português)

Reflexão sobre o estudo – (anti-anti-conservadorismo)

Todo mundo pensa que o estudo universitário é difícil por causa da matéria e  do alto nível acadêmico da universidade. Ninguém porém pensa que a dificuldade principal não está no objeto, mas no sujeito que estuda. Muito pouca gente realmente  sabe estudar, porque no fundo não quer estudar.

O impedimento maior de um estudo realmente eficaz é a busca do agradável.  Se um estudante se mete a estudar com a atitude de querer experimentar no estudo o agradável, o sublime, o extático, então ele já começa de antemão errado. O estudo não é um piquenique. O estudo exige do estudante energia, sacrifício, concentração, paciência, porque é um dos trabalhos mais duros que existem. É portanto um trabalho, não entretenimento. E é bom saber que é um trabalho duro, talvez o trabalho mais duro que exista.

Quem se mete a estudar deve se conscientizar claramente dessa realidade e dizer: eu sei que é um trabalho, e quero esse trabalho. Aliás, todo mundo quer estudar. Mas esse “querer”, na maioria dos casos,  não passa de veleidades vaidosas e esnobismo. Em geral não se quer estudar, mas sim gozar dos frutos e das honras do estudo.  Pois muito pouca gente quer realmente trabalhar.

Ontem esteve aqui uma irmã candidata, falando comigo. Se queixou muito que já não agüenta mais por causa do ambiente. Ela estuda a medicina. O ambiente onde ela mora é um ambiente claustral. Sem muita possibilidade de recreio, pouco contato com pessoas de fora, quase sem possibilidade de assistir teatros,   cinemas, conferências etc. Perguntei-lhe quanto tempo ainda deve estudar. Eram dois anos. Se ela estava satisfeita com os estudos, se gostava deles. Disse que sim. Ela tem tudo “em casa”, pois estuda e vive no hospital. Portanto, sob o ponto de vista do seu estudo, tinha ela tudo. O que lhe faltava era somente a parte “humana”, se é permitido aqui falar de “humano”. Eu não quero criticar e julgar esse caso, mas somente considerá-lo sob o aspecto de “estudo”. Pessoalmente eu não posso acreditar que ela goste do seu estudo e que esteja satisfeita com ele.  Pois se estivesse, provavelmente não teria tempo para pensar em outra coisa do que na medicina. E é um fenômeno comprovado que quando a gente está compenetrado de um trabalho, todo o resto se torna secundário. Eu conheci um brasileiro em Freiburg que estudava a medicina. Ele era de uma família pobre, mas desde pequeno sonhara ser um grande médico. Lutara muito para conseguir estudar. Devido à sua habilidade, recebera um estipêndio de 1 ano para estudar em Freiburg. Ele aproveitou de cheio essa chance. Era difícil levá-lo ao cinema, por exemplo, pois não tinha tempo para essas coisas. Os colegas dele caçoavam dizendo que ele era alheio ao mundo, que era unilateral. Ele me disse porém um dia: É que simplesmente não tenho tempo nem sinto necessidade. No meu ramo de medicina existem tantas cousas ainda a fazer. E não compreendo os meus colegas que têm tanto tempo para ver cinema, brincar com os outros, mas não tem tempo para ler uma revista especializada do seu ramo”. Aliás, esse negócio de dizer que a gente se torna alheio ao mundo, unilateral etc. no fundo é muito relativo e superficial. Os grandes cientistas eram todos de alguma maneira alheios ao mundo. Mas eles foram pessoas que criaram o novo mundo. De boa vontade prefiro ser alheio ao mundo, se conseguir, por exemplo, ser um filósofo tão potente como Spinoza. E até certo ponto, é uma condição necessária de crescimento que a gente se limite, se isole, se torne alheio ao “mundo.

Isso tudo soa muito “moralizante”. Mas é de grande importância para nós religiosos estudantes. Isso porque, hoje, na mania de se “modernizar”, os religiosos estudantes confundem as cousas e vivem de ilusão. No aggiornamento eles buscam o “agradável”, o superficial. Eu pessoalmente penso que nós devemos trabalhar mais intensa e seriamente. E não ir à busca de “possibilidades” como R. parece fazer.

As possibilidades culturais somente podem me enriquecer, se eu já esgotei a minha possibilidade que está ao redor de mim. É uma ilusão pensar que “abrindo os horizontes” a gente se torna mais rico. Pois uma possibilidade é somente uma possibilidade real par mim, se eu tenho interiormente a força de assimilar.  Existem pessoas que já leram tantos livros profundíssimos, mas que deixaram escorrer as melhores coisas como se fossem peneiras.  Sem esse esgotamento e aproveitamento total da sua possibilidade limitada atual, a gente se torna snobs e acadêmico vaidoso, que sabe falar de tudo, que já ouviu e viu tudo, mas não “pode” nada. O problema do estudo não é pois de quantidade, mas sim: como é que a gente toma a sério a sua possibilidade limitada. Uma limitação tomada a sério, e aproveitada de cheio é muito mais rica e potente intelectualmente do que as imensas possibilidades culturais, das quais a gente não aproveita nada, a não ser  a vaidade de dizer: isto ali eu vi!

Eu até tenho a suspeita de que  as pessoas que procuram “abrir os horizontes”, isto é, que vão à “cata” de sempre novas possibilidades, o fazem porque elas são fracas interiormente e não conseguem esgotar a sua pequena possibilidade que lhes é dada pela situação. É pois uma fuga. E o que o mundo moderno precisa não são esses “consumidores” eruditos da cultura, mas sim criadores, operários, trabalhadores, mesmo que o produto criado seja pequenino, dentro da sua limitação.

Um estudante religioso e principalmente estrangeiro que não toma a sério de antemão essa atitude radical de querer trabalhar no duro, sacrificando todo o resto que não é o estudo das matérias, corre o perigo de neurose, doença corporal, psiquicamente condicionada, aborrecimento e vazio interior, distúrbios afetivos, melancolia e busca de distração. Mas tudo isso são formas de “fuga”. E a fuga só aumenta a dificuldade e esbanja a energia.

Nesse ponto fiquei um pouco decepcionado com o P. L. Talvez eu me iluda com o tipo nordestino. Eu sempre pensava que a salvação do Brasil vinha do tipo humano nordestino, como a gente o conhece na literatura brasileira. Aquela concentração sóbria e paciente no trabalho, aquela fibra pessoal que passo a passo vai construindo apesar de deserto e seca, que não abandona o seu fim, que é teimoso, duro, ciente de sua meta.

E L. me disse que o P. L. é o único nordestino que até agora encontrou que era sério! Mas por exemplo o P. L., que diz estar entusiasmado com o seu estudo,  dá tanta importância ao contato humano que pretende voltar mais cedo para o Brasil. Eu compreenderia isso, se ele achasse que aqui na Alemanha estudo não vale nada.  Compreenderia, se os trabalhos digamos paroquiais ou de cura de almas lhe tirassem todo o tempo de estudo, de sorte que ele não encontrasse um ambiente propício para o seu estudo aqui. Mas ele tem todo o tempo à disposição. E o só estudo não o plena. Ele precisa de distração para descansar. Isto é normal. Mas distração deve ser somente para poder estudar melhor.  Se falta, não deve ser tão importante, a ponto de abandonar o estudo. No fundo, o problema é que o estudo não o plenifica. Sei que essa reflexão agora é injusta contra P. L. Mas é real. Pois a única maneira de “sermos” algo nesse ponto é de “trabalhar” e tomar o estudo como ele é.  Estudo é trabalho duro. E além disso o que é o essencial:  Para que é que viemos à Europa? Não foi para trabalhar? Não viemos para sentir-nos “agradáveis” humanamente. Viemos para trabalhar no duro por curto espaço de alguns anos. E se encontro aqui as melhores condições de trabalho, porque lamentar-se, perturbar-se se me faltam as outras cousas?

É necessário a gente pensar e agir como gente crescida. O estudo não é uma brincadeira de criança para o agradável. É trabalho, no duro. E se alguém objeta que isso é desumano, então a única resposta real é: quer estudar ou não quer? Se quiser, é necessário submeter-se à lei do trabalho. Se não tem coragem, então é melhor de antemão não começar.

Se não fisgarmos exatamente esse ponto nevrálgico, jamais nos tornaremos  capazes de realizar o Aggiornamento real.

O gozado é que hoje na renovação do Vaticano II se fala tanto do “espírito moderno”, mas pouca gente se faz consciente de que o espírito moderno no fundo é o trabalho. Nós religiosos somos lamentavelmente superficiais.  O espírito moderno não é aquilo que nós “vemos” e sentimos como “consumidores” burgueses.  O espírito moderno reside nos laboratórios, nos centros industriais, de finanças etc., onde é movimentada a sorte material do mundo. Se um religioso quiser ser de fato moderno, então devia ser capaz de trabalhar como essa gente que está nesses centros. Ali não se fala de “sacrifícios”, mas existe somente uma lei: se não fizer isto ou aquilo, a máquina simplesmente não funciona! O mesmo vale para o estudo. Se não fizer isso ou aquilo,  se não me submeter a esse trabalho, não consigo o resultado. Sob esse ponto de vista, as pessoas da Idade Média, no seu espírito de trabalho, eram muito mais modernos do que nós hoje em dia!

O outro ponto nevrálgico do espírito moderno é o espírito criativo. Aqui também vai surgindo um humanismo moderno, que se abre para uma nova concepção e realização do que chamamos de moderno. Isto é também de grande importância para a nossa vida afetiva. Antigamente, principalmente no século passado, a relação por exemplo de amizade era muito acentuadamente “pessoal”: compreensão mútua, o intercâmbio de afetos etc. etc. Hoje, não se nega em nada a importância e a verdade de tudo isso, mas a compreensão do “pessoal” se tornou mais vigorosa e profunda. O espírito moderno aceita tudo isso, mas acentua muito fortemente o momento criativo. E rejeita radicalmente aquele momento de ensimesmamento que se  encontra na compreensão passada do “pessoal”. O espírito moderno acha uma relação pessoal, por mais íntima que ela seja, estéril e vã se permanecer nas lágrimas, suspiros, saudades e anelos ou recordações. Uma relação pessoal deve muito mais ser um lugar de criação da personalidade, de um novo mundo. Compreensão não é mais um lugar de consolo, mas sim um lugar de mútua crítica, mútua correção, para sermos sempre mais perfeitos, mais fortes, melhores. A mentalidade nova do “pessoal” é pois escatológica. Não escatológica como o entendem os “românticos”  que pensam no “futuro” onde se realizam todos os desejos românticos atuais, saudade do além ou cousa semelhante, mas sim escatológica no sentido de ser “criativa”. Atitude de não estar virado para o passado, atitude de não se “deleitar” no passado e em belas recordações, atitude de não se “aninhar” no aconchego do ensimesmamento, mas sim de olhar para o futuro e dizer: eu quero criar uma nova terra, um novo céu. É esperança, esperança que não é saudade, mas sim ação, vigorosa, cheia de fé, confiança e alegria. Alegria porque a gente se sabe criador.

Isso significa: Para nós que queremos estudar para sermos capazes de realizar o aggiornamento, para nós que queremos ser testemunho do Evangelho, é uma obrigação eliminar da nossa mentalidade o resto de romantismo, por mais bela que essa cousa nos pareça. Eliminar é uma palavra mal escolhida, pois não se trata de eliminar. Trata-se de radicalizar e dar-lhe a perfeição escatológica que é vigor, força, clareza, sem o ensimesmamento romântico do agradável. Então, sim, o trabalho, o criativo se tornará o nosso agradável, um agradável que sobrepassa tudo que nós podemos imaginar.

Pergunta após uma aula a Rombach

A autoidentidade da estrutura acontece como implicação na passagem: na sucessão do “um-frente-ao-outro; um-a-partir-do-outro; um-voltado-para-o-outro” dos diversos momentos, a estrutura se abre como a nitidez do perfil, enquanto: isolamento, singularização (Vereinzelung). Esse abrir-se é a uma vez e ao mesmo tempo fechar: fecho, ocaso, morte.

Não sei se esse resumo reproduz com precisão o que o Sr. expôs de forma viva e concreta nas preleções. Em todo caso, gostaria de perguntar-lhe se o compreendi direito e se o ouvi direito. Por isso, exponho as seguintes questões:

O fechar-se como ocaso é ao mesmo tempo um momento essencial da gênesis: abrir-se como perfil significa singularização e como tal fechar-se para dentro de “si” como isolamento da autoidentidade. Como tal, ocaso não pode “manter-se de pé” (stehen) sem “abrir-se” da gênesis. E visto que esse abrir-se (Aufgehen) só acontece no ir (Gehen), o ocaso (Untergang) só pode “ser” enquanto “indo” (gehend): portanto “vivendo”. Portanto:  morte = vida, vida = morte.

Então, tenho a seguinte impressão:

  1. a) Em suas preleções, ocaso foi exposto precisamente como acima.
  2. b) Mas, uma que outra vez, o significado da morte oscilava numa outra (?) direção: a saber: Na morte como singularização, que “nada mais pode dizer”, surge como momento: de um lado endurecimento (Verhärtung), e de outro aplainamento, esgotamento, esvaziamento. Como um momento, portanto, que já não “é” como perfil, mas como dura-decadência ou vazia-decadência, na medida em que negam o “inspirar”, a “vida”, a dinâmica espacial do elevar-se destacando-se (Abheben): portanto, como morte da estrutura.

Agora as questões:

– Nesse último sentido, a morte pertence também essencialmente à estrutura? Ou a estrutura – enquanto é e permanece estrutura – exclui “essa” morte?

Se a morte, no sentido recém mencionado, pertence essencialmente à estrutura, então ela lhe pertence como perfil: enquanto tal, fenomenalmente a morte não se “mostraria ser” (aussehen) outra coisa que o vazio da morte ou o endurecimento da morte para a imobilidade? Talvez como dureza e  rigor do perfil, por assim dizer, como concentrado do movimento: de tal modo que, “a partir” do movimento da estrutura, por fim, surge uma dimensão que “está” “além” do “ocaso-da-gênesis”?

Nas pinturas de Van Gogh (Mo 26,6) tínhamos a decadência da coisa (casa, aldeia etc.) como “cisão” (Spaltung), onde por assim dizer a estrutura “pode” brilhar para fora.

Então tive certa dificuldade de ver a necessidade dessa “passagem” (salto) para a estrutura.  Não a passagem, pois essa pode ser claramente vista em sua exposição. Mas a necessidade.  Pois justamente a decadência – pareceu-me – lança por assim dizer a casa de volta para a constituição de coisa (Ding). Justo pelo fato de que a casa recaiu na decadência, tornou-se só agora coisa-casa: justamente como um torso. Ou, temos de dizer, que esse retornar à coisa já é um resultado da constituição da estrutura? Mas é necessária essa “mediação” (palavra inadequada) através da estrutura, para que se possa retornar, ou pode também acontecer sem “mediação”, por assim dizer, por si?

[Humanismo cristão? (O que é questão)]

[Escrito a caneta no início da p. 86; Gostaria de escrever em cima dessa pequena contribuição o título: Humanismo cristão. E acrescentar um título sem sinal de interrogação.]

Karl Rahner inicia o discurso “humanismo cristão” com as palavras: Gostaria de intitular minha contribuição para essa jornada simplesmente: Humanismo cristão. E quem sabe acrescentar a esse título um ponto de interrogação.

Eu creio que, nesse início – que à primeira vista parece ser uma formulação sem importância – está posto todo o status quaestionis. Segundo Rahner, portanto, esse discurso pode ser representado assim: Christlicher Humanismus? Isto é o discurso, todo o discurso!

Christlicher Humanismus?… Experimente dizer isso e observar a si mesmo “dizendo isso”. Seria uma dúvida? Uma dúvida pedagógica em função apologética? Seria uma pergunta? Pergunta séria? Ou calculada? Seria uma dúvida que se orienta para uma pergunta determinada? Há diversas possibilidades de interpretação. Você vê que ao dizer simplesmente “christlicher Humanismus?” a sua atitude intelectual implica diversas orientações vagas, difícil de fixar nitidamente.

Segundo Rahner, esse “Christlicher Humanismus?”, portanto, o discurso é uma pergunta (Frage).

Em que sentido “pergunta”? Diria: no sentido original da palavra. Portanto, se excluem: pergunta no sentido de interrogatório, questionário: aqui a pergunta já “sabe” a resposta. A pergunta aqui tem somente a função de “explicitar” o que já sabe; pergunta no sentido de investigação: pois aqui você pergunta numa determinada direção. Você não sabe quiçá a resposta, mas você sabe o que pergunta. Isto é: a pergunta parte de determinada pressuposição, dentro da qual você coloca a pergunta nitidamente. Você não pergunta sobre a própria pergunta.

Frage, no sentido de Rahner, é uma pergunta absoluta. Isto é: nada sobra que não seja pergunta. A própria pergunta, portanto, é perguntada.  Tente “realizar” isto em si mesmo. Tornar “consciente” essa pergunta que pergunta a pergunta é um empreendimento quase impossível, pois sempre de novo surgem momentos, blocos, massas de realidade que estão ali na sua frente ou dentro de você. O importante nesse empreendimento é tematizar aquele momento fugaz da pergunta que coloca em suspensão tudo que tem o índice: é assim e não pode ser de outra maneira. Pergunta nesse sentido é pois aquele momento da nossa compreensão onde tudo é colocado em dúvida. É necessário porém tomar cuidado aqui. Duvidar nesse sentido não é negar. Isso porque negar é uma decisão negativa: não! Esse “não”, na sua estrutura é uma afirmação: portanto é dizer: não é assim.

Na sua fase incoativa, a pergunta é pois dúvida como suspensão total da afirmação hipostatizante.

Existe um fenômeno que é semelhante a essa suspensão: o que chamamos de indiferença. Penso no seguinte: você está cansado, esgotado. Você não tem interesse nenhum, não tem élan vital para nada.  A gente pode caracterizar isso como “distração”. Você anda na rua. Você vê muita coisa, encontra pessoas, tudo vem, por assim dizer, para cima de você, você vê cores, rostos, ouve gritos, risos, pedaços de palavras lançadas ao vento etc. etc.  Mas tudo isso está por assim dizer suspenso num espaço de indiferença. Ali não existe nenhum “ato” do “eu” que “coloca” o “objeto” do seu interesse. Tudo é um fluxo de vivências, sem a participação viva de você. Esse fenômeno contém em si algo de “suspensão”. É bem possível que essa “suspensão” seja o início vital da “dúvida”.

A suspensão total da afirmação hipostatizante da Frage no sentido de Rahner, porém, se diferencia dessa “suspensão” da “indiferença”. Pois essa Frage é ativa, participação total do eu, consciente no sentido de “engagement”, ela é Interesse. É afirmação!

Em que sentido uma afirmação? Como é essa pergunta afirmada? Em alemão: eine ge-stellte Frage? Ela não é uma afirmação pergunta (perguntada???), mas sim pergunta afirmada. A gente poderia dizer: a intensidade máxima da pergunta. Portanto: não deixar nada sem perguntar. Ou tomar radicalmente a sério o momento-pergunta da nossa vida, em tudo.

Essa atitude não é uma “posição” segura, a partir da qual a gente toma essa atitude radical. Pois essa “posição” mesma  cai debaixo da influência da pergunta! Experimente nessa formalidade abstrata realizar esse movimento em você! Descrito sob outro aspecto, a gente poderia dizer o seguinte: Essa atitude é a exigência radical de não deixar nada sem examinar, de não aceitar confiadamente uma pressuposição inanalisada. Perguntar, perguntar a pergunta implica sempre a pressuposição de quem pergunta. Se imaginar essa estrutura linearmente, você se perde no infinito: pergunta; pergunta da pergunta; pergunta da pergunta da pergunta; in infinitum. O problema todo é agora ver que essa interpretação linear não é um modelo adequado à pergunta. Para ver isso, a gente deve de fato ver na sua experiência do “perguntado” “ativo, gerundivo” que a estrutura da pergunta é circular. É uma espécie de autoindução. Em vez de pergunta, coloquemos a palavra eu-mesmo.

Pergunta é eu mesmo. Perguntar a pergunta é também um momento de mim mesmo. Se você pergunta: o que sou eu? Essa pergunta mesma implica já a resposta no sentido de que a resposta depende daquilo que você é! Mas esse “é” não está ali como cousa hipostatizada, pronta, mas sim: o “é” se constitui na pergunta.

Isto que disse está muito mal expresso.  Mas se você faz a “experiência” em si mesmo e “vê”, então verá que aqui surge uma estrutura sui generis. A estrutura de autoindução, autodeterminação.

Aqui se torna visível, como o modelo: cousa em si, ali já constituída, hipostatizada, construção sobre essa coisa, é um modelo que funciona com a cousa material (até determinado ponto, pois creio que na física moderna não funciona mais), mas não com os fenômenos vitais, espirituais, humanos. Essa estrutura de autoindução é a estrutura, o modelo do espírito.

A pergunta, principalmente na estrutura da pergunta da própria pergunta, é um modelo que mais facilmente manifesta essa estrutura.

Aqui nesse ponto surge a objeção: Mas isto é uma criação! Um “idealismo”. Nesse ponto é necessário um cuidado. A gente deveria perguntar donde vem essa objeção. Essa objeção insinua que essa pergunta (Frage) cria as cousas do “nada”, não admite cousas constituídas em si. A gente deveria perguntar sobre a pressuposição dessa objeção. Se fizer isso, vejo que essa objeção tem aquele tom de “escandalizada”, justamente porque ela trabalha dentro do modelo: cousa em si, entidade ali diante de mim. Essa objeção não viu ainda que a sua posição é um modelo determinado do ser do homem,  modelo de uma metafísica da cousa. A estrutura Frage é um outro modelo do ser do homem, que emprega um modelo mais adequado ao fenômeno vida, espírito humano. A estrutura do ser quatenus cousa (entidade) não pergunta sobre a sua estrutura mesma. Ela a põe dogmaticamente. A estrutura Frage pergunta sobre essa posição, ela coloca essa pressuposição dogmática da metafísica do ente em questão. E descobre que essa estrutura cousa é um simples modelo. Esse modelo funciona na sua coerência interna. Ele porém não explica fenômenos humanos, por que os reduz ao modelo “cousa”.

Para a compreensão de Rahner, é necessário “realizar” essa estrutura Frage e permanecer coerentemente dentro dessa estrutura, sem deixar em nenhum ponto um restinho de outro modelo. Se não fizermos isso, encontraremos contradições na afirmação de Rahner. Sem analisar expressamente, somente um exemplo, de como esse modelo coisista entra sempre de novo na nossa mente, quando tentamos permanecer coerentemente na estrutura Frage:

Aquela objeção que você me fez: da cousa em si e os aspectos. Você tomou a lâmpada na minha mesa e me disse: Eu vejo essa lâmpada desse lado, você a vê do seu lado, dois aspectos, mas de uma mesma lâmpada. Você tem razão. Mas isso é um determinado modelo. A sua objeção implica uma porção de coisas.  Por exemplo, a lâmpada como uma entidade perante você. Perante já implica o espaço. Dentro desse espaço, o quarto, Oberzell, Würzburg, a Alemanha, o universo etc. Lâmpada implica luz, eletricidade, fios elétricos, usina elétrica etc. Esse lado implica aspectos, o termo aspecto já implica toda uma explicação do mundo. Para mim já implica um sujeito, um eu, e esse eu interpretado como uma entidade que quatenus entidade não difere na sua “seinheit” do objeto diante de você etc. O ato de ver a lâmpada como um ato psicológico, e esse ato interpretado como uma espécie de entidade “espiritual” etc. E mesmo que você explicite todas essas implicações, você sempre opera e trabalha dentro de um modelo “entidade”. Se você examina bem “esse modelo” entidade, esse Horizonte é talhado segundo o modelo: cousa. Ente ali é uma abstração da “cousa” material. Ora, a Frage põe em dúvida a fé que você tem para com esse modelo. Por em dúvida, porém, como lhe disse, não é negar. Eu admito tudo que você diz. Eu também vejo claramente que a lâmpada está ali. Mas na Frage eu suspendo a fé de que essa fé no “ente” seja a última explicação. Eu simplesmente digo que esse “ente” não é absoluto no sentido de uma pressuposição intangível.

Mas então o que faço se não nego, se aceito mas, apesar disso, coloco em questão? A gente poderia responder paradoxalmente dizendo: aceito tudo e não aceito nada. Isto é: aceito tudo como é, mas, “perguntando” o aceito, tento ver no aceito os fios de implicações que estão nele. Com outras palavras, eu aceito a minha situação concreta como ela é, com realismo, sem ilusão, com braços abertos, mas não fico ali. Ao mesmo tempo que aceito plenamente a minha situação, tento não hipostatizar essa situação, me meto nela para abrir as possibilidades que estão implícitas nela. Nego portanto a hipostatização de minha situação para fazer aparecer as possibilidades e chances que estão escondidas nela. É portanto uma atitude de “suspensão”, não de indiferença, mas sim de um alerta, uma tensão de responsabilidade (Spannung der Verantwortlichkeit). Portanto: responsabilidade. A resposta para a estrutura da questão é pois responsabilidade.

Responsabilidade é pois a palavra-solução de Rahner para a pergunta: christlicher Humanismus? Responsabilidade porém não deve ser tomada na sua origem como uma responsabilidade moral. Esta é uma manifestação concreta da estrutura pergunta. Estrutura essa metafísica, no sentido de humano-ontológico. Frage como estrutura ontológica é simplesmente responsabilidade. E esta é aquela estrutura na qual eu aniquilo tudo que possa ter a aparência de “final”, já feito, “perenamente constituído”, “absoluto”, mas ao mesmo tempo tomo a sério cada uma dessas situações que são constituídas cada vez como a minha história, situação atual, seja pessoal individual, seja histórica-universal. Essa atitude é pois um equilíbrio de tensão entre dogmatismo ideológico e ceticismo nihilista! E isto como tensão de equilíbrio, isto é: segurar num ponto as forças antagônicas: uma força que tenta endurecer a posição e outra força que tenta liquidificar a posição.  Esta tensão é vida.

Dessa estrutura do pensar de Rahner tiro a conclusão: O humanismo cristão é justamente essa estrutura. Enquanto essa estrutura paradoxal de vida, é válido para todos os “humanismos”.

Essa estrutura, porém, se consequentemente vivida, se concretiza cada vez de maneira diferente, pois pertence à essência dessa estrutura que a gente leve a sério a própria situação individual histórica.

Dali surgem conclusões paradoxais que no fundo são totalmente coerentes consigo mesmas: para ser verdadeiramente humanista cristão devo negar que o ‘humanismo” cristã” seja absoluto. E ao mesmo tempo devo afirmar absolutamente a minha situação, aqui e nessa época, aceitar todo o cristianismo como a minha situação absoluta. Isso porque a única maneira de “negar” o caráter absoluto do humanismo cristã atual como a minha situação é entrar nela, radicalmente e por essa responsabilidade tentar superá-lo, fazendo crescer as implicações dessa minha situação.  O mesmo valerá para um comunista.

Dali segue-se que eu não posso objetar nada contra um comunista, a não ser que ele não seja radicalmente comunista. E vice-versa.

E enquanto cada qual é fiel a sua situação, na luz dessa suspensão total, pode bem ser que em concreto se contradigam radicalmente. Ambos porém têm de comum serem responsáveis, sinceros, radicalmente fieis consigo mesmos.

E aqui no fundo existe a pressuposição vital de que sendo sinceros, cada qual fiel consigo mesmo, estamos trabalhando para uma e a mesma causa: Deus. Esse Deus que eu não sei quem é, mas que se manifesta simplesmente na sinceridade radical humana, seja essa sinceridade teísta ou ateísta.

NB: aqui devo tomar cuidado em não enfraquecer a agudez dessa tensão (Spannung) que chamamos de suspensão total na responsabilidade. Em geral se costuma interpretar tudo isso, como se agora tivéssemos um horizonte, um espaço “humano”, onde poderemos “encontrar” mutuamente, num algo comum.

Mas talvez bem seja possível que eu simplifique as cousas, ou melhor, formalize.

Diálogo, sob esse aspecto, se torna algo bem complicado.

Não é diálogo, aceitar um espaço comum. Diálogo será então simplesmente  seriedade da vida cristã, na crítica radical de si mesma.

E para nosso intelecto é uma situação bem incômoda! E exige uma maturidade fenomenal em nosso modo de pensar. Não possuir nenhum ponto seguro onde posso descansar comodamente, mas ao mesmo tempo afirmar a vida, total e radicalmente! E pairar entre todo e nada. Trata-se pois da intensiva afirmação desse “e” do todo e nada. Não será isso, esse e o mistério da encarnação? Deus e homem? Tudo e nada? Absoluto e contingente? Universal e singular?

Como lhe disse, Rahner não tira essa última consequência. Creio eu. Ele se esquiva dizendo: Não sei nada! Talvez isso também seja uma maneira de afirmar o “e”? Quem sabe?

Ali tem você um apanhado de Rahner. Confesso que me expressei muito mal. Mas se você puder entender algo do que escrevi tão confusamente, gostaria de ouvir a sua crítica.

Contra essa atitude, e essa estrutura de Rahner teria sob o ponto de vista filosófico uma objeção. Existe pois uma outra estrutura de suspensão, da qual mencionei no começo: a suspensão de indiferença. Ali falta justamente a “responsabilidade”. O élan, a fé na questão. Essa suspensão é também um fenômeno humano. Como consegue explicar Rahner essa estrutura? Não basta dizer que é algo negativo, pois também é uma chance. Tenho a impressão de que essa “indiferença” vai tanto contra o “cristianismo”, como contra o “comunismo”. Pois nesse élan, esses dois são idênticos.

Para mim, o “inferno” não é o dionisíaco, mas sim essa “morte” de suspensão sem  tônus vital. Esvaziamento, Leere chamo eu.

Questão é pois uma estrutura também, um modelo. Esse modelo mesmo já é uma ideologia, uma situação da história ocidental!

O meu interesse atual não é mais a estrutura Frage, mas esse esvaziamento. Que sentido teria viver essa situação Leere com intensidade, se justamente pertence à essência dessa situação o não ter implicações nem chance, mas de ser simplesmente “morte”?

Escreva-me pois quando tiver tempo.

[Um “sermão” – o que é liturgia?]

[Escrito em vermelho: canetinha: Um exemplo de um esteticismo acadêmico: não diz nada! Em caneta azul, indecifrável: Traum gemeine 25.9.66]

Certo dia, assim conta a lenda,  São Francisco de Assis caiu por um instante na visão tresloucada da alegre ciência divina, tão clara e limpidamente como a água. Então tomou dois pedaços de pau e tocava violino. Da melodia desse violino surgiu o mundo do mistério, no qual tudo, pedra, flores, estrelas, animais e plantas, a confusão multivariegada das raças humanas, dos gêneros e ofícios, sentiram-se como que em casa e brincavam no quarto das crianças como irmãs e irmãos.

Caras irmãs e irmãos! Agora, propriamente eu não deveria falar. Pois o que se realizará aqui é uma celebração religiosa. É algo assim como um mistério divino do jogo humano. E o mistério não é fala. O que de algum modo se pode dizer, pode ser dito de maneira clara; e daquilo que não se pode falar, sobre isso deve-se calar (Wittgestein).

Hoje a liturgia fala demais. Fala demais das coisas que são autoevidentes. Demais das coisas que não são autoevidentes. Festivamente, eclesialmente, oficialmente, do inefável, do mistério de nossa (riscado, à máquina: Selbst; escrito a caneta indecifr. Seele? alma), das profundezas mais íntimas de nosso si-mesmo: fala de amor, fidelidade, de responsabilidade, de Deus e de seu semblante. Mas talvez ela não fale. Talvez não fale de modo algum, justamente porque é mistério. Tenho a permissão de falar agora bem brevemente da pressuposição desse discurso, que não é um discurso.

Na Sagrada Escritura há uma imagem. Uma imagem que a teologia usa como protótipo de Cristo, e como protótipo (Urbild) de nosso ser-aí humano.

Fala a Palavra: No começo de seus caminhos, desde o princípio… o Senhor me possuía. Quando fez os céus, eu estava presente; quando estabeleceu um círculo ao redor das profundezas das águas segundo uma lei firme, quando firmou acima o céu de nuvens e sopesou as fontes das águas, quando determinou aos oceanos seus contornos e limites, dando às águas a lei para não sobrepassarem seus limites, quando colocou as rochas como fundamento da terra; eu estava junto dele e coloquei ordem em tudo. Era minha delícia, dia após dia brincar diante dele sobre a face da terra.

Talvez essa imagem não lhes diga muito. Mas talvez sim. Em nosso ser-adultos há momentos em que nos deparamos com alguma recordação. O mote para isso é quase sempre algo casual: a cor rosada de um cacho de flores; o cheiro poeirento de uma sala de aula, um gosto, um voz, um palavra: de repente, como uma paisagem inesperada, abre-se um mundo totalmente esquecido da infância, em seu frescor, nitidez e realidade únicos. A esse sempre-devir (Immerwerden) originário, ingenuamente e muitas vezes subvalorizado, chamamos de mera recordação da infância.  Mas, no entanto, ela é mais. É uma irrupção, irrupção de um mundo qualitativamente outro. Como oásis fechado no deserto; [algumas palavras indecifráveis] como uma clareira aberta na floresta: é o real de seu caráter próprio (Eigenartigkeit), da origem jovial (meio ilegível: como dia de festa, o sábado na semana), onde uma laranja, uma torta, o vermelho de um (einer Müzes??? Mützes?) é todo o mundo, uma festa, a vida, tudo.

Era minha delícia, dia após dia brincar diante dele, brincar todo o tempo sobre a face da terra: Essa imagem re-corda um tal mundo. Um mundo que chamamos de o mundo do jogo infantil, um mundo com todos os seus planos de fundo familiares, como ali-no-lar, em casa, pais, irmãos, onde todas as pessoas estranhas são tias e tios, onde animais e plantas falam, onde o lobo veste o gorro da vovó, onde os anjos realmente sorriem, onde o diabo ainda está em condições de nos perseguir até causar-nos um pavor mortal. Talvez seja injusto descrever esse mundo do jogo infantil de modo tão ingênuo,  romântico e irreal: pois é uma pré-intuição de uma estrutura de mundo  que perfaz a verdadeira origem de nosso si-mesmo. Esse mundo do jogo é o lar do sério, onde  cada coisa é ela própria e nada mais. Onde tudo e cada coisa, no frescor da novidade, na pureza do único, é repentinamente imediato, simples si mesmo. Onde não há passado e futuro, não há horizonte, onde tudo e cada coisa é instante, tão instante como eternidade enquanto o presente da decisão, como autoproximidade da fé, essa fé, da qual uma antiga sabedoria japonesa diz:  Crer é não-dois. Não-dois é a saga daquilo que é inefável. Passado e futuro: não são um eterno: in-stante? Essa imediaticidade do crer, essa unidade instantânea e autoproximidade do jogo é a capacidade originária escondida, a ternura sensível no ser e no vivenciar. No jogo somos capacitados a sorrir, choramos, morremos, esperamos, na dureza e ternura autoevidente da terra.

Aqui a verdade é muito verdadeira, o horror muito duro, o amor muito terno, a alegria muito fagueira. Nós precisamos de um enquadramento para a profundidade, a dureza e a proximidade dessa realidade, nós construímos portanto barreiras. O discurso da liturgia são pois as barreiras que construímos para conceber a irrupção originária da profundidade, para proteger a ternura da vida.

É como no teatro de marionetes:  através da pequena janela do discurso e da banalidade, vislumbramos a origem de nosso si-mesmo, da vida e da morte, o inefável do numinoso, da face de Deus. Enquanto ameniza a medida dos acontecimentos, pode colocar em jogo acontecimentos grandiosos: como amor, fidelidade, remissão, pecado e Deus.

Enquanto nos tornamos pequenos, mantemos o direito e a capacidade de brincar diante de Deus, brincar todo o tempo, na confiança autoevidente, natural, em casa, alegres, leves e fagueiros, na seriedade agradecida dos filhos de Deus.  Agora queremos prosseguir celebrando nossa liturgia, isto é, brincando. No espírito fagueiro (Heiterkeit) do jogo, agradecidos e alegres, diante da face de Deus, pois ele é bom!

A filosofia e o sadio senso comum (15. 12. 1955) – Prof. Rombach

  1. A filosofia não se faz por si mesma. Temos de trazer-nos para diante dela e– enquanto filosofia – dar-lhe início.

(4) Deixar algo encontrar-se num horizonte mais universal significa:  Representar essa coisa… aproximação é o que propriamente acontece no representar (Vorstellen – colocar diante de).

A filosofia não possui um âmbito mais amplo. Para si mesma ela é um contexto (Zusammenhang – nexo) o mais amplo. Não pode portanto também ser representada.

A filosofia é sem conceito e sem âmbito, irrepresentável e impensável: portanto um absurdo (Unding – não-coisa) que não é e não pode ser. Não há a filosofia. (5) Mas: Não será isso precisamente a afirmação do sadio senso comum? (Posição 1).

(7) Para poder começar – para pelo menos poder ser – à filosofia deve ser possível uma posição que é ao mesmo tempo alheia e não alheia (ausserhalb). Essa posição, que é abertamente um condicionante essencial, é concebida pela filosofia – e quiçá desde Espinosa com uma expressividade crescente – sob a categoria da autoalienação. Enquanto homens, vivemos propriamente no cheio e no todo da verdade. Isso que aparece no fundo é o absoluto e o próprio ser. Deus sive natura. Mas de imediato e usualmente nos aparece apenas ente – e isso apenas numa parte. Isso só é possível porque o espírito delimita a si mesmo e se despoja a si mesmo, tornando-se para si mesmo suas próprias presilhas. Da (8) claridade de uma visão originariamente pura sobre a origem pura de toda visibilidade, sobre o agathon, encontramo-nos transpostos para as sombras e as trevas do senso comum. Vale assim achar o caminho do estrangeiro de volta para  a pátria do pensar. A imagem a mais estável dessas relações nos foi dada por Platão na assim chamada “alegoria da caverna”.

A filosofia começa de fato no natural e cotidiano do sadio senso comum. E isso lhe é possível – e ela encontra o caminho que leva para lá, porque o sadio senso comum já é ele próprio filosofia; mas de tal modo que não pensa nisso. O solo da naturalidade não é tão natural e autoevidente, é determinado e formado por decisões metafísicas fundamentais esquecidas, de certo modo petrificadas, que jazem no escuro, que não mais são conscientes como metafísica.  Em sua questionabilidade, o raso e fixo das pressuposições triviais do sadio senso comum é abissal.

(9) Filosofia significa então: retroascenso no fundamento do saber natural do mundo, levantamento das pressuposições ontológicas, autoclarificação de uma postura de conhecimento ingênua – acionamento de um questionar enrijecido. (Posição 2).

(10) Não é essa ou aquela tese que perfaz a essência do entendimento trivial, mas a trivialidade pela qual se lança mão dessa ou de outras teses. O característico aqui não é o intraduzível no sadio senso comum, mas apenas seu ser traduzido. O esquecimento da tese não é ele próprio novamente uma tese. – Suas bases de compreensão alteram-se com a história, mas o sadio senso comum permanece aquele que ele é.

Mas se for assim, o sadio senso comum desaparece na tradução filosófica;  Em todo caso, não ao modo de ser elevado à filosofia mas de modo que dela se desvia. –

(11) Será isso então um dano? Devemos, além do mais, saber também o que seja o próprio esquecer? – Temos de sabê-lo. E quiçá porque a filosofia, segundo sua própria possibilidade,  concebe a si mesma como a clarificação da posição definida em sua essência pelo esquecimento.  Se o esquecimento permanecer desconhecido, também a filosofia continua em questão… – assim, agora, estamos frente à posição 3, segundo a qual não há filosofia no modo como ela de imediato se compreende, porque a autoclarificação é incognosível para si mesma, isto é, trivial. A frase “trivialidade é metafísica” se torna em “metafísica é trivial”. – mas uma tal frase só pode ser admitida entre parênteses. Continua ambígua enquanto não vemos o sentido distinto de “trivial”. Ele significa uma vez: superficial e autoevidente; por outro: abissal e em última instância desconhecido.  Ousamos também uma tal frase apenas para, com todo afinco, forçar a passagem (12) para um problema que ainda não foi liberado de todos os lados.

O esquecimento precede todo decidir-se e todo manter-se-firme (Ansichthalten) e já sempre se deu e aconteceu quando nos relacionamos com este ou aquele e por fim também para conosco mesmos. – o esquecer não corresponde a uma despreocupação (Leichtsinn), mas em toda sua ineludibilidade, rígido e mudo, aponta para uma necessidade, à qual ele obedece abertamente a seu modo. A indicação muda, em seu modo áfono dá o que pensar à filosofia. O que poderia ser isso que é dado em tarefa ao pensar a não ser a necessidade, da qual o ser-aí natural do homem já não mais fala? Toda necessidade abriga uma lei. A lei estabelece o que deve acontecer. O acontecimento tem sua verdade através dessa necessidade e nessa lei. O esquecimento possui assim sua verdade, que não é a verdade da filosofia… o esquecimento não é apenas esquecível, a trivialidade não é apenas trivial. Possui em si mesmo uma necessidade e profundidade própria.

… assim, por exemplo, a arte revela de um modo que originariamente nada mais pode nos descortinar a não ser a própria arte. Talvez isso que se encontra nas obras de arte podemos focar interpretando de diversos modos. …  Mas isso tudo só frutifica se antes nos for evidente o artesanal da obra de arte…  formar quadros e poetar decidem eles mesmos sobre o que é arte, e cria ainda os limites e o espaço de seu próprio criar. Dá a si mesmo sua verdade, isto é, seu horizonte.

(14) O mesmo vale para o elemento político, religioso, econômico etc. Teologia: aqui, desde Tomás, vale o princípio de que Deus não pode ser reconhecido e filosoficamente explicitado “per suam essentiam”, não pode ser suficientemente determinado do ponto de vista ontológico. Aqui a filosofia esconde seus limites; é aqui também que surge pela primeira vez a necessidade de se pensar  o problema do limite da razão especulativa. Por isso também que de Tomás até Kant não é tão distante – e ali vemos uma razão de que ambos abandonam o factum brutum do sadio senso comum em sua facticidade.

O próprio de outras verdades continua fechado para a filosofia. Daí lhe advém a tarefa de manter firme para si e verificar a diferença veritativa em relação a essas. Se quiser fazer justiça a seu nome, a filosofia da arte, por exemplo, deve deixar a arte à arte, liberando-a assim em sua própria história.

Essa liberação de modo algum é uma postura passiva. O liberar forja, e é muito importante ter claro filosoficamente essa exigência. As exigências da liberação são as condições, sem as quais a arte não consegue ser arte, e isso significa: sem as quais ela não pode dar-se a si mesma, historicamente, à sua essência. Deixar sua verdade à arte, ao Estado, à religião não significa um desinteresse, mas abordá-los em detalhes e bem de perto e um trabalho intenso.

(15) O esquecimento pertence a uma necessidade e está sob uma verdade própria. A necessidade perfaz portanto o poder-ser-verdadeiro da filosofia enquanto filosofia.

(16) Que importância tem então essa necessidade?… essas reflexões se dirigem no sentido de preparar a problemática do problema, ou seja, o lugar direito da questão, o modo e maneira como aqui se deve questionar. … Se ela (a questão”… enquanto uma questão filosófica, deve poder ser pensada , então a filosofia deve compreender-se diferentemente do que como clarificação de uma compreensão, cujo modo de ser é concebido pelo próprio clarificar. A questão é saber se é possível uma filosofia que coloca como base a uni-visão de que a origem do poder-compreender tem uma presencialidade que não pode ser compreendida a partir da compreensão, mas tem de ser compreendida, se é que se quer conceber o próprio compreender.

Na necessidade originária, que é originária por ser a origem do poder compreender, o ser humano é claro para si mesmo de um modo que, nele medida, toda autoclarificação é escura e enigmática. Autoclarificar-se só pode tal ser que antes já se impôs a si mesmo a tarefa e já se encarregou. Ser encarregado de si significa: vir em frente de si mesmo. Vir frente a si mesmo significa: ser mostrado a si. – Essa mostração está postada numa luz própria a partir do fundamento. Essa luz é aparentemente tal que não só mostra aos homens mas mostrando, gera-o (zeigend ihn zeugt).

(17) Estar assim na luz é uma necessidade. Chamamos a essa usualmente e em geral: finitude. Com esse nome vem testemunhado um ser que não é a partir de si mesmo, mas só é em virtude de seu ser-encarregado. – Esse ser-encarregado não designa naturalmente uma propriedade que fosse anexada a um já-ente. Tampouco se refere a um modo de ser, … Antes se poderia dizer: o colocar à disposição (Überantwortung) clarifica a si mesmo – porque ele próprio é (a mostração).

Mas todas essas coisas são antecipação (Vorgriff); quiçá necessária – mas também tal que enreda e obscurece necessariamente a si mesma. – Aqui também pode surgir dali apenas o tanto de modo que a finitude que jaz no colocar à disposição se retrai da abordagem direta da filosofia – e que sendo finalmente ela que, de modo tácito, através do sadio senso comum, dá a compreender um limite à filosofia. Ela perfaz a essência do esquecimento que é o começo e também o fim da clarificação filosófica.

Se a filosofia também não alcança além desse fim, será que pelo menos alcança até ele? Isso significaria que o fim da filosofia ainda poderia transformar-se em tema. De certo não de modo que fala apenas a partir desse fim, assegurando a si mesmo que saberia disso. Mas de tal modo que, ali,  reconhece o fundamento e a possibilidade da clarificação do ser e de sua autoclarificação. – Tal coisa será pelo menos possível?

Isso seguramente dependeria do fato de se é capaz ou não de ultrapassar a autoevidência reinante – em larga escala idealista. – Será que ela pode isso?

Pergunta a Rombach

Quando o Sr. falava do caráter-de-ser-perdido (Verlorenheit)  ou de ocultação do êxtase, o Sr. mencionou um fragmento onde o comunista tenta convencer um gentleman inglês para sua causa.

A resposta do Gentleman: um gentleman inglês só se engaja por uma causa perdida.

A questão:  essa “circunstância” (Bewandnis) ocultação – caráter de ser perdido é necessária? Ou surgiu apenas desse exemplo concreto?

Uma vez que aqui “perdido” só é “perdido” em relação ao “vencedor” do comunista, parece-me ser aplicável apenas a esse exemplo concreto.

Se eu me engajasse  por uma causa perdida no sentido que o Sr. menciona se eu me engajasse  por a causa “vencedora” do comunista, justo “porque” essa causa “vencedora” é “perdida” no sentido da decadência?

Na preleção de ontem o Sr. analisou como “exemplo” do caráter inconfundível da interioridade extática o fenômeno da moça-servente (Magd) da greta (Kreide) caucasiana. Embora não faltasse à moça-servente a dureza da luta e do desespero, a fé continuou sendo o traço fundamental de seu “caminho”.

Ora, no Hamlet a inconfundibilidade (Unbeirbarkeit – infalibilidade?) “aparece” por assim dizer como embebida pela constante ameaça da dúvida. Ora, se eu o ouvi e compreendi direito, essa dúvida no Hamlet é uma ameaça que penetra até a medula de seus atos. Parece-me que essa ameaça foi “excluída” do fenômeno da moça-servente da greta caucasiana.

A questão:  Essa ameaça de confundir-se (enganar-se – Beirrbarkeit) no Hamlet, que parece fazer parte da essência do ato-Hamlet, é um fenômeno de decadência, quando o consideramos a partir  da inconfundibilidade da greta caucasiana? Ou será que há também junto à moça-servente algo assim como confundibilidade? Se sim, como?

Ontem, quando o Sr. falava da inocência da originariedade, o Sr. disse: a arte enquanto naturalidade (uma consequência da originariedade) é a morte da arte enquanto desempenho produtivo (Leistung).

A pergunta:  Nessa formulação não haveria o perigo de, de algum modo, tornar-se abstrato, ou seja, considerando o fenômeno concreto como por demais “exclusivo”.

O fato de que o desempenho produtivo jamais alcança o salto da originariedade; que a arte como naturalidade da inocência  é algo radicalmente diferente do que desempenho produtivo; que o desempenho produtivo jamais poderá tornar-se condição para a naturalidade da originariedade, isso tudo vejo com evidência.

Mas não é assim que na estrutura de elevação da originariedade, no movimento nativístico da autoconstituição, sempre de novo e igualmente, a partir do “eu” do desempenho produtivo, um raio de força do desempenho produtivo perpassa também o movimento concreto da ação, sem que com isso todo o movimento se torne concretamente em mero desempenho produtivo?

Com outras palavras:  A naturalidade da origem “só” salta ali onde o desempenho alcança o seu final, onde o desempenho se esgota.

Mas isso não significa que o desempenho seja excluído, mas que deve sempre de novo ser levado a esgotar-se. E uma vez que o esgotamento do desempenho não é um estado pronto, “já completo”, estático, tem de sempre de novo ser “desempenhado”. E uma vez que esse esgotamento do desempenho é a medida suprema do desempenho, não poderíamos dizer que a naturalidade da origem enquanto arte não incendeia sempre de novo o máximo desempenho esgotante?

Na preleção (Seg. 16. 5.), o Sr. caracterizou o método e a estrutura interna da fenomenologia de nossa aula investigatória como uma autoconstituição que se demonstra a partir de dentro, em si e a partir de si.

Ali, para mostrar mais nitidamente a essência própria dessa fenomenologia, o Sr. a contrastou, por assim dizer, em contraposição à fenomenologia do horizonte.

Desse contraste o Sr. também tirou a consequência de que partindo da fenomenologia do horizonte não é “possível” obter acesso à fenomenologia do Dasein.

Nesse contexto, o Sr. também caracterizou o pensamento horizontal como um fenômeno decadente da fenomenologia do Dasein.

Então eu teria as seguintes perguntas:

Questão A:

1) Esse ato de contrastar e diferenciar radicalmente é mais uma caracterização condicionada à didática a fim de destacar claramente a essência própria da fenomenologia do Dasein, ou trata-se aqui da “coisa ela mesma”?

2) Se da “coisa ela mesma”: Não haveria realmente de fato uma “chance” de chegar á fenomenologia do Dasein a partir do pensar do horizonte? É verdade que essa minha formulação é horrível. Talvez assim:  sob certa situação, a própria fenomenologia do horizonte não poderia, ela própria  tornar-se “condição” (uma condição negativa), de “ser”uma determinada “forma” de fenomenologia do Dasein?

-a: Vejo perfeitamente que  esse não é o caso, quando a fenomenologia do horizonte, por assim dizer “funciona” “sem questão”, se move coerentemente sempre à frente para o infinito, por assim dizer, sem necessidade.

-b: Todavia, não poderia haver uma “chance” de ingressar, de incidir (verfallen) nessa fenomenologia do horizonte de forma tão radical, que cresça a partir de dentro a necessidade de espedaçar essa “situação” própria? De que a fenomenologia do horizonte se torne necessidade e a necessidade experimente uma guinada? Por exemplo, um cientista que vê na ciência o único e pleno sentido de sua vida, e nela se engaje radicalmente?

Questão B:

A ontologia do horizonte é realmente um fenômeno decadente da ontologia do Dasein? Se a ontologia do Dasein se caracteriza por ser ontologia de elevação, então, decadência significa: autoperda, deficiência. Mas nesse caso um fenômeno de decadência da ontologia do Dasein não iria “transparecer ser” diferente? Com outras palavras: não poderíamos dizer que a ontologia do Dasein demonstra sua própria “forma” de elevação e de decadência, e que a ontologia do horizonte demonstra sua própria forma de “elevação” e de “decadência”?

Essa questão tem um plano de fundo: que diz mais ou menos assim:  Não existe fenomenologia como uma doutrina geral, como tem em mente a fenomenologia do horizonte. Isso porque fenomenologia é autoconstituição enquanto “coisa ela mesma”, cada coisa por assim dizer cria método próprio, evidência própria, “estrutura” própria,  possui essência e vida própria.

A partir dessa afirmação, que para mim é evidente,  não se poderia deduzir que a fenomenologia do Dasein é uma “coisa-ela-mesma” fechada, com forma própria de elevação e de decadência, vida interna própria e normatividade própria; e que a fenomenologia do horizonte é uma outra “coisa-ela-mesma” “fechada com” forma própria de elevação e de decadência”, “vida interna” própria e normatividade própria?

Não haveria o perigo de, de algum modo, “tirar a nitidez” dessa respectiva autoconstituição da “coisa-ela-mesma”  quando falamos aqui de “fenômeno de decadência”? E isso , do que se compreende por “decadência”. Seguramente poderíamos falar de fenômeno de decadência, mas então não teríamos uma terceira “coisa-ela-mesma” (ou fenomenologia da ontologia), que não é propriamente a primeira (ontologia do horizonte) nem a segunda (ontologia do Dasein), mas precisamente uma terceira?

A nossa fenomenologia do Dasein é pois essa terceira?

Ora, “partindo” dessa respectiva autoconstituição, as respectivas “coisas-elas-mesmas” (ou fenomenologias ou ontologias) são radicalmente “diferentes” e dentro (geradein?) dessa “diferença”, como uma respectiva autoconstituição fechada, encontra-se o “universal”, o “vinculante” “entre” a fenomenologia do horizonte e a fenomenologia do Dasein, a saber: no fato de serem a cada vez uma autoconstituição diferente.

Se isso fosse válido, então:  o que poderá significar decadência aqui? A saber, fenômeno do horizonte como fenômeno de decadência do Dasein?

Buracologia (Lochologie)

O buraco:

Um buraco é algo em algo
que é,
através do fato de não ser
em algo
como algo de algo;
e no entanto
pelo fato de não
ser algo de algo
é algo em algo.

Um buraco descente jamais é uma parte. É a totalidade pura e simplesmente. A totalidade de um buraco é uma totalidade “rasgada”, porque jamais se consegue destruí-lo. Quando, por exemplo, se costura um “buraco na meia”, reparamos é verdade a meia, mas não destruímos o buraco, justamente porque jamais podemos aniquilá-lo enquanto totalidade. E parcialmente não é possível destruir o buraco, pois enquanto o buraco ainda não está totalmente cerzido, continua sempre sendo um buraco inteiro. Quando costuramos todo o buraco, temos nas mãos uma meia inteira, mas o buraco já não mais está ali, de tal modo que não podemos afirmar: eu o destruí. Enquanto é um buraco inteiro. Tão logo já não mais esteja ali, de modo algum ainda é um buraco. Se destruímos o buraco que já não mais está ali, fazemos outro buraco na meia. Um buraco na meio tem o lado interno e o lado externo.  O lado interno é aquele algo que não é meia. O lado externo é a própria meia ao redor do buraco. Pode-se portanto constatar como realidade que toda a meia ao redor do buraco é também um buraco negativo. Embora negativo, continua sendo sempre um verdadeiro buraco, porque pertence ao buraco como lado externo. Onde é que já se viu um buraco sem lado externo?

Dali se deduz logicamente:  também a meia é um buraco. Ou, mais exatamente: a meia é um buraco. E ao contrário: o buraco é meia. Se o buraco na meia é meia, e se a meia é buraco, então é um assunto meio suspeito querer tapar o buraco na meia. Mas então: pelos diabos! Por que é que as mulheres estão tão obcecadas por tapar o buraco na meia?


[1] [Escrito a caneta: Por favor, mande-me de volta esse tratado. Foi escrito às pressas. Estou querendo ver o que é a nossa espiritualidade.]
[2] Escrito à caneta e bastante ilegível.
[3] Escrito à caneta: pura e simplesmente. E riscado: não uma determinada.
[4] Escrito à caneta: Para uma melhor compreensão, cf. capítulo: virgindade como minoritas. Até p. 47, escrito à caneta, praticamente ilegível.
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