Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Reflexões acerca dos votos

05/03/2021

 

(De 8-11.01.2007 – Rondinha)

Introdução

Essa primeira reflexão um tanto intempestiva pode servir de introdução para o que vamos fazer nesses dias. Mas, antes de fazer isto e/ou aquilo, é necessário nos colocarmos na situação e examiná-la. Colocar-se na situação é examinar onde estou, onde me acho assentado e engajado na história da vida de cada um de nós. Isto significa que o lugar do qual queremos falar, examinar e sondar não é num sentido geral algo como um espaço vago, um tempo de tics e tacs, mas o que há algumas décadas se costumava chamar de situação existencial. Quem quer tirar proveito real de uma reflexão sobre os votos, mas tem pouca capacidade de parar na situação da sua vida e ver e sentir onde é que ele ou ela se acha na sua existência, vai ter dificuldade de levar consigo do nosso encontro alguma coisa real e positiva para a utilidade da sua vida consagrada. Essa é, de antemão, a dificuldade e também a falha da nossa reflexão, que por si mesma tem a dificuldade de interessar a quem não tem nem necessidade, nem gosto de ver e sentir a importância das vicissitudes da sua própria situação existencial. Coçar tem somente utilidade para quem está com coceira e lá onde coça. Coçar para quem não tem necessidade, coçar lá onde não se tem coceira, coçar antes de sentir coceira, tudo isso é inútil, por não ser real. Ou não tem nenhum efeito ou até prejudica.

Mas por que agente está falando na introdução da reflexão acerca dos votos de coçar, lá onde não se tem coceira? Não é exatamente nos votos que temos mil e mil abacaxis, dúvidas, dificuldades, não são nas coisas referentes aos votos que sentimos dificuldades, dores e sofrimentos, lutas e sacrifícios de todos os dias? Temos, sim, principalmente na sociedade de hoje. Não é exatamente na observância dos votos, na formação inicial para a preparação para os votos; depois dos votos na realização pessoal na vida consagrada, onde temos como momento essencial os votos?

Por outro lado, no nosso encontro estamos numa situação muito boa e favorável, se a gente considera que todos estão dispostos a daqui a alguns dias emitir pela primeira vez, ou renovar os votos na vida consagrada como a prática essencial e de grande importância para a nossa formação permanente. Depois, todos que aqui estão nesse encontro para esse estudo como preparação imediata aos votos, preparam remotamente  durante o tempo da formação que precede a esse momento da emissão dos votos, ou para nós que já somos religiosos (as) de votos perpétuos ou solenes  nos estudos anuais, mensais e semanais da nossa formação permanente. Se essa preparação remota é feita de algum modo realmente, esse nosso encontro que é apenas uma preparação imediata não teria muita importância real para a efetividade da nossa realização na vida consagrada. Depois, hoje a nossa formação no sentido geral e mesmo especializada é muito melhor do que no passado longínquo, onde na vida consagrada, mas também na sociedade civil havia muitos tabus não bem analisados, discutidos sob o céu aberto da liberdade de pensamento, para poder colocar questões, expor dúvidas, contrapor opiniões e posições que eram nossos pontos de vista etc., sem ter o medo de sermos taxados disso e daquilo. Um outro ponto na nossa situação, que pode ajudar ou eventualmente dificultar o bom funcionamento das nossas reflexões é que quem recebeu a tarefa de, de algum modo, mobilizar e coordenar a reflexão, ele mesmo não sabe quase nada do que seja essencialmente os votos e a essência da vida consagrada. Esse não saber não é, porém, falta de informação, ingenuidade da fé de um carvoeiro, ou delimitação consciente e assumida de um fundamentalista ativista por uma causa, mas uma espécie de abertura, onde se pretende ser muito fiel à crítica, não à crítica posicionada, mas à tentativa e tentação de ver em que consistem as pré-suposições de sejam quais forem posicionamentos, sejam seus, sejam dos outros. O rigor de crítica é bem diferente da exatidão e do discernimento da imposição de dogma, doutrina, mundividência ou de um saber da certeza. Pode, porém, acontecer que o rigor da crítica não interesse aos que participam de um encontro como o nosso. Pois há muitas pessoas na formação, tanto formadores(as) como formandos (as) que talvez com boa razão pensam o seguinte: num encontro de preparação imediata dos votos, não se deve ir para essa direção de examinar criticamente as pressuposições, mas falar de modo bem positivo do que já aprenderam na formação inicial e animar as pessoas que querem fazer ou renovar os votos. Isso seria no fundo repetir o que já aprenderam na formação inicial. O problema é que não sei o que realmente aprenderam na formação inicial ou permanente as pessoas que participam do encontro. E aqui a dificuldade é que não basta dar o programa, pois no programa tudo está direitinho como manda o figurino espiritual. Mas o que realmente foi transmitido e assimilado, isto é que é decisivo. Diante de todos esses incógnitos, gostaria de propor para o encontro das reflexões acerca dos votos, do ano 2008 o seguinte conteúdo, formulado no seguinte arrazoado:

Programa, o conteúdo

  1. Há dois modos de falar dos votos:
  2. a) votos como pertencentes à profissão e ao encargo dentro da Instituição Igreja Católica chamada religiosos(as) consagrados (as);
  3. b) votos como momento essencial da vocação, i. é, da chamada do Seguimento de Jesus Cristo.
  4. A necessidade de recuperarmos a consciência da importância de saber de que se trata do tema a) e entender melhor e mais profundamente a Ética Profissional do nosso estado eclesial-civil, na formação e no comportamento social-público dentro da sociedade humana. Com outras palavras, examinar e mostrar que o humano da pessoa cuja realização é buscada na profissão denominada Vida Consagrada, se orienta inteiramente para a aquisição da maturação humana, chamada maioridade. O Bê-á-bá da Ética profissional do profissional na Vida Consagrada é a necessidade de passar da menoridade para a idade madura da Humanidade Esclarecida. Aqui fazer essa reflexão pela leitura do texto de Kant, Resposta à pergunta, o que é Esclarecimento? (cf. A apostilha anexa A autonomia do sujeito).
  5. Examinar e mostrar que os nossos votos assim compreendidos humanamente, como virtudes e qualificações humano-seculares são trabalhos do nosso empenho e desempenho como condição da possibilidade dos votos, agora dentro da Vocação da Vida consagrada como encontro e seguimento de Jesus Cristo: na direção da concepção da Mística cristã.
  6. Examinar e mostrar como podemos entender os votos no nível a) e no nível b) e dar dicas provisórias para a formação inicial e permanente.

Método

Método aqui não indica um instrumento de trabalho como um meio que nos faz alcançar o saber de modo o mais fácil, o mais rápido e mais certeiro possível. Ao método assim entendido como meio para o fim, como instrumento, basta que se aprenda bem o seu uso instrumental, aliás uso já tantas vezes experimentado, comprovado e padronizado, portanto, repetindo, basta que se aprenda bem o seu uso instrumental que se chega ao objetivo. Só que esse modo de entender o método é um dos modelos de caminhar, é uma das modalidades do caminho que tem por fascínio e ideal o high way, a rodovia, o auto-bahn. Aqui não se anda, se dispara, se devora distâncias, se elimina espaço e tempo, numa busca frenética do agora simultâneo. Aqui não se deve demorar junto de nenhuma coisa, não se vê nada a não ser a meta que jamais aparece, pois está sempre para além.

Autonomia do sujeito

Quando intitulamos a reflexão de autonomia do sujeito, estão em jogo dois verbetes: autonomia e sujeito. Como se trata de reflexões dentro da área da filosofia, esses termos não podem ser compreendidos simplesmente num sentido geral e usual, mas devem ser processados dentro do modo de ser, visto a partir da filosofia. Essa observação metódica vale para o uso desses termos em outras ciências e também no uso cotidiano em situações especiais. Por isso quem usa os termos que vêm da filosofia ou de outro tipo do saber, dentro de um saber ou de uma ciência positiva particular, na qual a pessoa se exercita e se forma, deve examinar cuidadosamente o seu uso dentro de cada ciência respectiva em questão.

Na filosofia, os dois termos estão intimamente ligados. E dizem respeito à maturidade da humanidade na responsabilização de ser existência humana. Damos aqui apenas o significado nominal dos termos autonomia e sujeito, e então, para a compreensão mais própria do conteúdo desses termos, propomos a leitura de um pequeno texto de Kant que se intitula Resposta à pergunta: Que é “esclarecimento?[1].

Definição nominal

Autonomia: É uma palavra grega, autonomia (autonomia), e significa: independência (política), liberdade, autonomia. Literalmente é composta de auto + nomia e vem de autonomos (auto + nomos). Auto  – os adjetivos autos <masculino>, auté <feminino>, auto ou auton significam ele mesmo, ela mesma, a coisa ela mesma; o que é destacado e vem ao encontro como ele mesmo; daí: em si mesmo, por e para si mesmo; pessoalmente, em pessoa; a partir de si mesmo por seu próprio movimento; todas essas significações nos levam ao significado: imediatamente, diretamente, absolutamente, (ab-soluto = solto e livre de <ab>). O substantivo nomos vem do grego nemo = dividir, partilhar, distribuir, e, como o que me foi partilhado, é meu, é minha porção, pode significar também possuo, assumo como meu. Nomos significa, portanto, o partilhado, o distribuído, o que é determinado e fixado como meu, teu; a porção que cabe a cada um; o que assumo sob a minha responsabilidade como próprio, pertencente a mim; daí também a significação costume, uso, e principalmente lei e constituição. Em todas essas significações o tom fundamental humano da palavra nómos não é de ensimesmamento, mas de responsabilidade como a tarefa a mim partilhada, como o modo de assumir o haver e o habitat da terra dos homens, como ética. Daí, a significação da autonomia atribuída como tarefa e missão da filosofia moderna, representada no movimento denominado Aufklärung (esclarecimento): autonomia é a capacidade de, a partir de si, a partir e dentro do assumir a responsabilidade da sua ab-soluta liberdade, dar comando a si mesmo.

Sujeito: O significado do termo sujeito, no nosso uso corriqueiro, hoje, se achatou de tal maneira que mal conseguimos sentir nele a pulsação do élan vital que, como o termo latino Subiectum e Substantia, na Idade Média carregava ainda eco da palavra grega hypokeimenon; nosso uso do termo tampouco carrega ainda o entusiasmo do zelo e o empenho de busca da autonomia do homem moderno, que vibrava na definição do homem como sujeito-eu, e que na filosofia moderna inicial impregnava as categorias fundamentais do ser humano como: razão, racional, cogito (Descartes), espírito (Hegel), vontade para poder (Nietzsche) etc. No nosso uso corriqueiro, sujeito é sinônimo de o cara e indica o ser humano ao modo da opacidade e indiferença de uma coisa. A palavra sujeito, no nosso uso, ainda guarda um pouco do que ela significava no início da era moderna, quando ocorre no adjetivo subjetivo(a), empregado para destacar o oposto do objetivo-coisa, indicando o modo de ser do humano, diferente do modo de ser da coisa, da planta e do bruto. Mas conosco, no nosso uso cotidiano da palavra sujeito, tanto como o cara, como essa coisa ali, esse joão-ninguém, mas também, já um tanto “personalizado”, o termo subjetivo é entendido por sua vez como ensimesmado, individualista egoísta. Assim, nessa última acepção, o termo sujeito acabou se tornando até o oposto e a negação de toda a autonomia!

Na filosofia, se entende o termo sujeito, no seu uso maior, como indicando o modo de ser fundamental da realização da autonomia. Nesse sentido de ser fundamento, sujeito significa literalmente o que foi lançado debaixo de, como sustentáculo e agente do projeto da nova humanidade[2]. Tudo isso está vinculado com a compreensão de que o ser humano deve ser colocado como aquele ente destacado entre todos os outros entes não humanos, como a medida e o fundamento de todas as coisas, portanto, ser colocado como sustentáculo (sujeito) e agente (móvel e acionador) de tudo que é e não é, e isso não somente como quem interpreta o universo (mundo, homem e o divino) mas como aquele que contribui para a transformação do universo e é responsabilizado pelo sentido do mundo, a partir e dentro do qual eclodem as possibilidades de realização do mundo.

Comentário do texto de Kant acerca do esclarecimento

O nome esclarecimento, segundo o dicionário Aurélio, indica “movimento filosófico do século XVIII que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. Sinônimos do Esclarecimento são Iluminismo, Ilustração, filosofia das luzes[3].

Quando transformado em movimento, seja cultural, político ou social, o pensamento filosófico torna-se mundividência, se não ideologia, e fixa toda uma maneira de compreender a realidade, cujos sinônimos são vida, mundo, ser, estabelecendo-se como doutrinas, i. é, material preestabelecido de ensino e de aprendizagem escolar, explicações, leis e normas, teoria e praxe de visões e comportamentos acerca das três grandes regiões do ente, intituladas: Deus, homem e universo. O pensamento filosófico, já transmutado em mundividências e ideologias, cuja formulação sempre termina em “ismos”[4], quando virado para fora, para a publicidade, constitui o que denominamos de aspecto exotérico[5]. O contrário desse movimento ou a orientação contrária é a esotérica, termo que vem de esóteros e significa interior, dentro, virado para dentro, para os de dentro. Daí a conotação de algo secreto, escondido, conhecido somente aos que estão iniciados no segredo do grupo. Filosofia na sua tendência própria não é exotérica, mas esotérica, por buscar sempre e cada vez de novo os fundamentos das pré-suposições do nosso saber, principalmente da própria filosofia. Nessa acepção, ela é des-construtiva. É busca da origem. Nessa orientação própria e essencial a ela, jamais é fundamentalista, mas sempre fundamental. Por isso, todo e qualquer pensador, de qualquer época, se for pensador, deve ser considerado dentro desse aspecto esotérico ou interior, acima mencionado.

O que se apresenta ao público enquanto aspecto exotérico do esclarecimento como iluminismo, para os que se acham no tradicionalismo (os tradicionalistas), dentro do cristianismo sabe a racionalismo, relativismo, progressismo, cientificismo, sim ateísmo. Para os que se acham no progressismo (os progressistas) sabe a autonomia, anti-autoritarismo, libertação, progresso, esclarecimento, maturidade humana.

A seguir vamos pinçar alguns pontos do texto para o destaque reflexivo, para oferecer um subsídio para a reflexão autônoma de cada um de nós.

A importância da necessidade de esclarecimento

Importância: Importância significa literalmente a ação de carregar para dentro (in-portar). Somente quem se carrega a si mesmo para dentro de uma tarefa está por dentro do seu encargo, da sua missão, da sua vocação. Quem não se importa, jamais pode assumir o trabalho para o qual foi designado ou para o qual ele mesmo se designou. A tomada de consciência desse saber da importância é decisiva para o sucesso do trabalho buscado na formação. Quem toma con-sciência dessa im-portância sente a necessidade do esclarecimento.

Sentir aqui não é sentimento, nem sensorial nem sentimentalista. É muito mais real, mais concreto, a ponto de o homem sentir a necessidade de se levantar e começar a fazer alguma coisa, alguma coisa que seja bem próxima dele, por menor e insignificante que ela seja.

Necessidade, aqui, é algo como imposição, algo como situação na qual não há mais nem escolha nem subterfúgio: é um cerco corpo-a-corpo de si e para si mesmo. A esse tipo de imposição[6], os antigos chamavam de possibilidade. Nós podemos, nós estamos na possibilidade, estamos na potencialidade real, quando fomos inseridos nessa necessidade premente. Por isso, na filosofia de hoje, se diz: a possibilidade é mais real do que a realidade[7].

Quando a necessidade se torna possível, i.é, quando a necessidade, seja de que tipo for, toma corpo e se nos impõe, quando sentimos na carne o poder dessa necessidade, com outras palavras, quando a necessidade se torna possível, potente, então estamos convocados, em todo o nosso ser e em nosso não ser, a fazer alguma coisa conosco mesmos, a fazer uso do que somos e não somos para trabalhar[8], para nos realizarmos. E a primeira coisa ou a causa a ser realizada é esclarecimento. Eu devo saber. Mas atenção: não no sentido de eu primeiro devo saber isso ou aquilo para poder agir. Mas sim: devo buscar como necessidade, me esclarecer, ou melhor, saber. Nesse caso, saber, buscar a compreensão não é nenhum luxo, não é o cultivo sofisticado da informação, do conhecimento, mas a límpida necessidade de saber. Este saber tem tudo a ver com sabor, não no sentido astênico e “sofisticado” em que caímos quando falamos de sabedoria da vida, de sabedoria contra o saber racional etc., mas como quando na acepção da língua alemã se pergunta, por exemplo, se alguém gosta de uma comida, então se diz: Mögen Sie es? O senhor gostou (i.é, o pode)?[9]

Em vez de saber, diríamos, portanto, poder, e poder no sentido de pode, i.é, realiza, no sentido de apreender e compreender de que se trata.

A grande tradição do Ocidente, dentro de cujo vigor se acha o que denominamos de espiritualidade cristã, denominou esse poder de realizar a realidade, essa capacidade de realização da realidade, de razão. A esse poder, a esse vigor da possibilidade, i.é, da necessidade possível, Kant chama de uso da razão ou do entendimento.

Em Kant distinguimos dois momentos do racional: o momento entendimento (Verstand) e o momento razão, ou melhor, o fundo (leia-se pro-fundo) racional (Vernunft). Verstand (do verbo ver-stehen: stehen = ficar, estar de pé), em referência ao seu vigor, se baseia na Vernunft (vem do verbo ver-nehmen: nehmen = tomar, receber). Verstand, i. é, o entendimento é o vigor do saber que se firma e fica em pé como uma compreensão concreta e bem constituída. Mas a dinâmica do poder surgir, crescer e se consumar desse saber está baseada no fundo de si, que é a Vernunft, i. é, a recepção atenta e obediente, i. é, ob-audiente aos acenos do toque do abismo insondável e inesgotável da possibilidade da necessidade de ser. Vernunft, i.é, o racional, é como o ponto de salto, virado de um lado para a possibilidade do abismo insondável e inesgotável do ser como límpida e pura recepção do toque de inspiração e ao mesmo tempo a contensão da eclosão do mundo como uma das realizações da realidade. Se chamarmos de entendimento e de racional, Verstand e Vernunft a esse modo de o homem ser, então o homem está no uso da Vernunft e do Verstand como lugar de esclarecimento de todas as coisas, como ponto de salto do mundo enquanto exotérico e da sua possibilidade como a profundidade do abismo de ser como esotérico. A responsabilização para ser e estar sempre de novo nesse ponto de salto é a autonomia da razão, que em Kant recebe o nome de liberdade. E então: aquela “pessoa”, que é o “único senhor no mundo diz: raciocinai (i.é, fazei uso da razão), tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!”. Esse imperativo é a palavra de ordem do esclarecimento.

Diante de uma tão grande proposta de responsabilidade pelo esclarecimento (i. é, pela inserção no vigor e na vigência do uso da razão para o nascimento, crescimento e consumação na liberdade, que é a capacidade de obedecer), como anda nossa mentalidade a respeito da espiritualidade? Como anda o medo e o acanhamento diante do esclarecimento?

O uso privado e público da razão

O uso privado da razão:

Embora muitas vezes o universal e o público estejam misturados, é preciso estabelecer a distinção entre eles. Público é o que aparece como a estrutura institucional visível publicamente. O uso da razão que eu faço como pertencente à estrutura institucional visível publicamente é o uso privado da razão. A pessoa que pertence à estrutura institucional visível publicamente recebe a sua denominação do cargo que ele ali ocupa, por exemplo, sacerdote, juiz, militar, financista, professor, terapeuta etc. Enquanto incumbidas por encargo público de pertencer e exercer a função que lhe foi designada publicamente, essas pessoas fazem uso privado da razão. O uso da razão que essa pessoa faz, portanto, enquanto sacerdote, juiz, militar, economista, professor etc., não é uso público da razão. É uso privado, porque está privatizado, particularizado ao encargo que ocupa e à lógica que rege a estrutura institucional visível publicamente desse encargo. Aqui, tanto numa instituição privada como numa instituição oficial (no sentido em que a nossa publicidade usa a palavra privado), se faz e se deve fazer o uso privado da razão. Diz, portanto, Kant: “Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou numa função a ele confiada.

É interessante observar que as palavras privado e público se referem ao uso, e ao uso da razão. O uso da razão diz respeito ao que o homem tem como o mais próprio, a saber, à essência do seu ser. É o que vale para cada pessoa, a saber, para todas as pessoas que são e devem ser homem; diz Kant: “o espírito (leia-se: o sopro vital) de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo.

Quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. Cada pessoa é igual a todas as pessoas.

Se eu represento esse “cada pessoa” como “esta e/ou aquela” pessoa, estou tratando a pessoa como se fosse uma, duas, três coisas. Assim, nesse caso não há nenhuma diferença entre pessoa e coisa físico-material. Agora tentemos enfileirar os diferentes entes um ao lado do outro: esta pedra, esta planta, este animal, este homem, esta mulher, esta criança, este ancião, este anjo, este Deus. O que aqui está indicado como ente individual (este<a> e aquele<a>) não leva em consideração as diferenças dos entes: (pedra, planta, animal, homem, mulher, criança, ancião, anjo, Deus). Mas atenção: também não leva em conta a própria diferença que em concreto e de imediato caracteriza a coisa material na sua materialidade. Nivela, neutraliza, in- ou des-diferencia tudo, dizendo que se trata de isto e isto e isto e isto e isto: ●●●●●. Se eu aumento o volume espacial quantitativo ou o diminuo assim: ●ou ●●ou o esvazio °°°°, em direção ao espaço vazio infinito ou o pontualizo …, reduzindo-o infinitesimalmente até reduzi-lo ao espaço vazio ou cheio indeterminado e o chamo de nada, tudo isso em nada mudou o modo de ser representado como indivíduo, i.é, como a última porção quantitativamente indivisível; essa variante toma forma de extensão quantitativa, desde o ponto infinitesimalmente mínimo até o máximo. Esse modo de encarar o ente, seja o que, quem e como for, – ser, vida, Deus, pessoa, amor, ódio, espírito, alma, matéria, ideia, razão, coração, espiritualidade, ateísmo, matemática, geometria, sim até o nada – esse modo de re-apresentar ou tornar presente, i.é, representar o ente, é o horizonte, perspectiva, a partir e dentro da qual hoje vivemos, somos e nos movemos, tanto no âmbito das ciências, quanto nos afazeres cotidianos da vida. Trata-se aqui de um sentido do ser bem determinado, que tomou conta de nós e determina o tom e a cor fundamental do nosso ser, saber, fazer e sentir. Muitas vezes concebemos o modo desse determinado sentido do ser como o corporal, o sensorial, o físico, o material. Na realidade, o corporal, o sensorial, o físico, o material já estão desaparecidos, não são vistos, pois foram neutralizados, reduzidos, des-diferenciados como apenas maior ou menor volume quantitativo da extensão. Se isso que viemos refletindo até agora é de fato assim, então torna-se impossível admitir ou ver que “cada pessoa é igual a todas as pessoas”.

Na paisagem do sentido do ser determinado como extensão quantitativa, há só igualdade formal, e a diferença é apenas numérica, sem nenhum conteúdo. Esse modo de ser formal, apenas lógico, limpidamente homogêneo, sem nenhum conteúdo ou diferença a não ser a numérica, esconde em si um grande enigma, pois, nessa ab-soluta in-diferença, nessa “superfície” lisa de homogeneidade, pode estar retraído um sentido do ser cujas imensidão, profundidade e pulsação vital contidas acenam para o abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser. Mas tudo isso só se torna de algum modo “visível” se estivermos nos evadindo do sentido do ser dominante na nossa epocalidade. Mas, como tudo isso já se refere a uma outra tarefa da reflexão, deixemos assim incompleta a nossa observação, e deixemos para uma outra ocasião a tentativa de tematizar esse assunto.

Acima dissemos: quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. O que vale para cada pessoa – como essência do seu ser – vale para todas as pessoas! Que coisa é essa? Dizemos é o comum. Essa coisa comum é real, é algo que está em cada um dos indivíduos? Se dissermos sim, é real, é algo, e entendermos o real como algo, dentro da perspectiva do sentido do ser da coisa, entendida como a extensão quantitativa, acima descrita, então cada pessoa-coisa coincide com todas as pessoas-coisas enquanto extensão quantitativa coisa, mas diferem entre si apenas numericamente. Disso se segue que indivíduo é 1; comum é mais do que 1, é: 1+1+1+1. Comum é maioria. E o que determina a comunidade, a qualidade de ser comum é número. Esse tipo de comunidade pode ser chamado de generalidade. Comum é o geral[10].

Quando, porém, nos libertamos da dominação do sentido do ser determinado, acima descrito como constitutivo do modo de ser quantitativo-extensional-numérico, começamos a ver uma comunidade toda própria, que coincide com a unidade, formando um todo que não é soma dos algos 1+1+1, mas toda uma paisagem, denominada mundo, a saber, universo, uni-verso, verso, virado, vertido ao uno. Aqui, o que conta não é a qualidade diferencial de um ente para com outro, mas o que denominamos de diferença de cada ente no seu ser; é a prenhez, a pregnância de cada ente no seu ser, a densidade da participação na tonalidade fundamental, que retraída no fundo caracteriza o colorido dominante da paisagem, mas que não ocorre em e por si como uma coisa ao lado, no fundo, atrás dos elementos constitutivos da paisagem; neles, porém, em toda parte, cada vez de jeito próprio, se torna, vem à luz, vem a si como tônus vital entificante, em sendo. Deixar ser o mundo, cada vez no seu próprio ser é a essência do homem, enquanto o homem é o ponto de salto da eclosão do mundo a partir e dentro do sentido do ser que o toca como uma das insondáveis possibilidades de ser. Esse modo de ser da passagem como realização da realidade, do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser é o que a grande tradição do Ocidente chamou de razão. Estar no uso da razão é por isso uma ação universal, tarefa de responsabilidade comum, a cura do espírito (leia-se: do sopro vital) de uma valoração, validez e valentia em receber e assumir o próprio valor e a própria vocação de cada homem de pensar por si mesmo na plena e ab-soluta liberdade. Exercer essa tarefa inalienável é o que no texto se denomina: o uso público da razão.

O uso público da razão:

Kant define o que é o uso público da razão, dizendo: “Entendo (…) sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer[11] homem, enquanto esclarecido[12], faz dela diante do grande público do mundo letrado”. Assim, primeiramente, o termo público, na expressão uso público da razão, significa universal, no sentido de virado, versado, concentrado no único necessário, que é a essência do ser humano, aquilo que vale para cada homem como o que ele tem de mais próprio, a razão. No Ocidente, na sua história o que é indicado aqui por razão em Kant recebeu vários nomes, como logos, noûs, alma (psiché), pensar, espírito. Não se trata, portanto, em primeiro lugar das faculdades do homem chamadas razão, vontade e sentimento. Todas essas faculdades estão contidas no que aqui chamamos de razão.

Ao mesmo tempo, o termo público significa, conforme o contexto, “coisas” diferentes. Mencionemos, pois, a seguir, em alguns pontos o que o termo público pode estar dizendo: 1. No caso em que, pois, público significa universal, não se trata propriamente de publicidade, não está indicando se são todas as pessoas, se muitas ou poucas ou apenas uma única pessoa que faz(em) o uso da razão, mas, sim indica o acontecimento de – seja uma, poucas, muitas ou mesmo todas as pessoas – cada vez pessoalmente (i. é, não terceirizando a responsabilidade de usar bem a razão i. é, assumindo o vigor de compreender, querer e fazer livremente como a sua própria causa) estar no empenho e desempenho da essência universal do ser humano: da razão. Público pode significar ainda: 2. a massa de gente reunida; 3. a maneira de manifestação, de apresentação do ser humano, em se ajuntando para formar coletividade de vários tipos, delimitando essa coletividade em seu interesse, finalidade e estruturação, como um todo: trata-se, pois, de público privado ou privativo, por exemplo, cargos públicos, profissões etc. Quando cada pessoa esclarecida assume a tarefa de servir à humanidade, engajando-se num encargo público privado, ela está fazendo uso privado da razão. Por isso, diz Kant: “Denomino uso privado aquele que o esclarecido pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado”.

Conclusão

Propor uma conclusão na leitura de um texto filosófico não significa que se resolveu um problema e se chegou ao fim de uma questão, de tal sorte que se fechou uma questão, podendo-se assim com segurança e tranquilidade construir a sua própria vida, depois de corrigir uma falha. Concluir uma leitura filosófica de um texto significa, antes de tudo, ir ao fundo de nossos problemas e ali no fundo abrir-se à questão.

A questão que se nos abre no fim da leitura desse pequeno texto de Kant, vem exposta na seguinte conclusão:

Ao falar do uso privado e público da razão, Kant não está tratando do problema de como resolver e harmonizar uma compreensão madura e assumida entre a nossa vida particular e a nossa vida social. Ele fala, sim, da responsabilidade pessoal e inalienável de nascer e crescer na capacidade de assumir nossa liberdade e nos tornarmos nela esclarecidos, i. é, tornar-nos esclarecidos na autonomia do uso da razão. Com outras palavras, aqui não se trata da nossa vida privada, particular, subjetivo-“pessoal”, mas da tarefa uni-versal, que toca a cada um de nós no mais íntimo e no mais próprio da essência humana, a saber, alcançar a maturidade do esclarecimento. De que se trata? Que questão, i. é, que busca é essa que se nos abre ao lermos uma afirmação de Kant como essa, quando ao se tratar do uso público da razão, ele nos diz: “Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!)


[1] KANT, Immanuel, “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento?’”, in: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 100-117. Os comentários desse texto de Kant foram feitos para serem distribuídos ao(à)s participantes de um encontro de formação, realizado no Noviciado das Irmãs Franciscanas de São José, em Rondinha, no Carnaval de 2008, coordenado por frei Dorvalino Fasini OFM (da Província franciscana do Rio Grande do Sul).
[2] Na Idade Média, subiectum dizia o mesmo que objectum e indicava o estar assentado na dinâmica da substantia (eco da compreensão grega do sentido do ser denominado hypokeímenon. Cf. Harada, H. “Comentário ‘especulativo’ acerca da objetivação”, Scintilla, v.2, n.2, Curitiba, 2005).
[3] Aufklärung (alemão), Enlightenment (inglês).
[4] Cristianismo, marxismo, capitalismo, biologismo, cientificismo, misticismo etc.
[5] Exóterikos, de exóteros. Exóteros = fora; exóterikos = externo, virado para fora; para os leigos, para os não iniciados, usual, compreensível a todo mundo; popular.
[6] Vida, história, ser, i.é, o ter-que-ser.
[7] Observemos como as nossas possibilidades não são necessidades, mas veleidades as quais desejamos, mas não queremos de fato como dom de uma conquista. Nós quereríamos….
[8] O povo diz o provérbio: Pode quem pode.
[9] Possibilidade (Möglichkeit) vem do verbo mögen.
[10] Aqui se entrecruzam dois tipos de modo de ser comum, o da generalização formal matemática e o do uni-versal da ontologia substancialista, mas já no esquecimento da sua própria origem.
[11] Leia-se: cada homem.
[12] O termo aqui traduzido por sábio é em alemão Gelehrter; a inconveniência de traduzir Gelehrter por sábio é que, para muitos de nós, a palavra sábio sabe à sabedoria, no sentido quase místico, digamos como o modo de saber que não fica somente no racional, mas recebe a unção toda própria da vitalidade e do sentimento, do coração. Se, porém, entendo o sábio, como aquele que sabe, e entendo o saber como o que foi conquistado com grande empenho de aprendizagem, que em vez de me fazer um poderoso sabe-tudo, e um ‘ensinador’ prepotente e ‘onisciente’, me conduz ao aprender e, em aprendendo mais e mais, me leva a ensinar o aprender como cordial e radical busca de se assumir, de se usar, e se tornar sempre mais clarividente em assumir o privilégio de ser atinente ao logos, à razão universal, então o termo sábio está dizendo o que o termo Gelehrter quer dizer. Esse modo de ser na responsabilidade cordial e radical de estar no uso da razão, digamos na ética da razão, é o esclarecimento. Esse modo de ser se chama mundo letrado, i. é, totalidade dos que livremente se assumem como aqueles que leem: Leserwelt. Com outras palavras, são o mundo, o modo de ser dos que trabalham o ler ou, dito com outras palavras, o mundo da escola, do ensino e da pesquisa desse grande empreendimento humano do aprender.
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