Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

PSICO-TER-A-PIA, Jaraguá-Paulista, 2007 – Parte V

25/03/2021

 

Marcos: Aqui voltamos àquela imagem da árvore, o artista sendo colocado como não sendo a copa da árvore nem tampouco a raiz da árvore. A copa são os florescimentos e os frutos das obras de arte, a raiz é a dinâmica, a gênese, a potência de gerar e poder ser. O artista é a passagem dessa gênese… Esta passagem é do velado para o desvelado, da obscuridade da terra para a claridade do céu. Daí o poema de Hegel, que mencionávamos, que diz que somos essa passagem do velamento para o desvelamento e do desvelamento para o velamento. O “velamento” ou “velado” aqui é chamado de terra. Terra aqui não é o planeta. Hoje só conseguimos pensar a terra como planeta, como astro objetivamente dado, representado por um globo. Os antigos tinham outra experiência da terra. Terra, para eles, é um fundo obscuro, mas desse fundo é que brota toda a luz. Todo nascimento é, então, sair do escuro para a luz. Por isso é que se diz: “deu à luz”. Ser parido é ser dado à luz. Nascer é vir à luz. Morrer é voltar ao ventre escuro da terra. Nessa experiência, alma é onde ressoa e entoa o âmago do mundo, a partir do silêncio da terra. A obra de arte é, portanto, concentração e condensação dessa dupla sintonia.

Débora: Terra é arquétipo de mãe, fertilidade….

Marcos: Terra é a que gera, nutre dá guarida…

Claudio: somos todos filhos da terra, temos todos os ingredientes dela.

HH: Exupéry cunhou a expressão “Terra dos Homens”, título de uma das suas obras.

Débora: o Arquétipo da terra é ser geradora, ela é que dá vida, que nutre o homem. É homem que vive da terra e não a terra que vive do homem. É interessante observar que as civilizações antigas eram predominantemente matriarcais, voltadas para a fertilidade, para a deusa-mãe… Dificilmente representavam a deus como pai.

Marcos: a palavra “matéria” vem de “mater” que significa “mãe”. Matéria é “matriz”. Matriz é aquela que é geratriz. “Nada” da alma é como matéria que está na plena disposição de obedecer e de deixar aparecer a forma.

HH: Medieval chamava essa força do nada de “poder obediencial”.

Marcos: Eckhart quando fala da Virgem Maria, de Elisabete, Marta, de Maria Madalena, de figuras femininas, está falando da alma. Alma é a “matéria” de tudo, não, porém, no sentido de ter corpo, coisa assim. Mas, alma é matéria no sentido de ser a plena disponibilidade de receber, gerar e acolher a vida, a palavra, a luz… Então, a alma é tudo na medida em que é esse “Nada” que recebe tudo. E a grande tarefa, a grande vocação da alma é gerar Deus. Então, Maria é aquela que na sua disposição obediencial, na sua fé, ela gera Deus.

HH: Quando isso não acontece, essa força feminina se torna devoradora, se transforma no oposto.

Marcos: Na palavra DASEIN, “da” significa “aí”, “aqui”, e em geral, não se entende muito bem. Mas, quando Maria diz: “eis-me aqui”, quer dizer: “estou aí”, “presença”, presente, estou aqui “disposta a tudo”. Então esse ser presente, esse ser aí, como plena disposição de recepção de tudo aquilo que nos advém, sobrevém, todo sobressalto, isso é alma, é o Da do Da-sein.

HH: Em Maria, isso é bonito como aparece nas Escrituras. Não aparece com alarde. Aparece como fundo.

Marcos: Retraída como o silencio da terra

HH: Eckhart diz que Deus aprecia tanto a alma que entre todas as criaturas, a alma é a única que Deus escolheu para morar porque a alma é igual a Ele.

Marcos: E quando mais a alma é “abismada” na humildade, tanto mais atrai Deus a si. Assim,  Maria diz: “Ele olhou para a humildade de sua serva”. Eckhart usa uma imagem que na física da época era comum: a terra é elemento feminino e o esposo da terra é o Céu. O Céu é atraído pela Terra. O Céu quer encontrar luz na terra. Os metais nobres se encontram no fundo da terra. Eles são como sementes do Céu que foram deixados na terra. Daí a metáfora da “conjunctio”, do matrimônio do Céu e da Terra. A mesma linguagem aparece em relação a Deus e a alma. A alma quanto mais for na profundidade na sua humildade no seu nada, no seu silêncio, tanto mais Deus é atraído para ela.

Claudio: E os entes do ser-aí. Na verdade, eles causam certa confusão. Elege-se um ente como dasein, numa visão míope da realidade, não é? Mas, estamos falando de alma. O homem tem alma e opta por certos valores: ser celebridade, ser rico… Tem algo a ver? O que são esses entes em Heidegger?

HH: os entes, se fossem na sinfonia, seriam cada nota plena, bem afinada. Mas para que cada nota seja ela mesma na sua total afinação tem um fundo de si mesmo. É dentro desse espaço aberto, onde o ente pode aparecer na sua plenitude, como um fundo que o evoca, esse fundo é o dasein. É a alma. E a alma é aquela disposição, receptividade para que, neste silêncio, possa haver o toque do abismo da possibilidade de ser que aparece cada vez pleno como este ente, aquele ente, formando assim, toda a sinfonia.

Claudio: Em relação ao homem, estas notas seriam o quê?

HH: O homem é essa abertura. O silêncio é o homem.

Cláudio: É o dasein?

HH: Sim é o dasein! No exemplo da sinfonia, o ser humano é esse silêncio de fundo como que deixando ser os entes, esta abertura é o homem. Então, o homem, a alma é todas as coisas.

Cláudio: Então, cada coisa seria um ente?

HH: Sim, entes queridos!

Geraldo: Você está dizendo que o homem é um meio pelo qual os entes se manifestam. É isso que você está falando?

HH: Ser humano é ambicioso, cheio de sensualidade, de orgulho. Quando é assim não está sendo alma. Está em grande confusão consigo mesmo. Depois de tudo isso ele começa a perceber que no fundo, no fundo do ser humano, o próprio humano é esse silêncio, é  estar na grande espera da recepção… solto desprendido, então, ali, o ser humano se torna o próprio do humano, se torna alma. Então ele é o silêncio da possibilidade de ser. É a condição da possibilidade para que os entes possam ser eles mesmos, incluindo o próprio ente do homem.

Claudio: Esse silêncio é uma conquista, não é?

HH: Você está colocando o silêncio dentro do ente chamado homem. É o contrário.

Marcos: Silêncio não é a atitude de calar do homem.

HH: Não entender o silêncio como se fosse um ato do sujeito-homem.

Marcos: No texto do Guimarães, que lemos, dizia: “Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto. Alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma”. Então, silêncio não é algo que está dentro de mim, nem fora de mim. É que não tem dentro nem fora aqui. É o menino que está no silêncio, envolvido por este silêncio. O silêncio é esse fundo de onde toda fala ressoa. Quando a gente escolhe isto ou aquilo, a gente já não é mais esse nada. Por exemplo, se a gente escolhe fazer jejum. Enquanto estou no isto ou no aquilo, não sou esse nada.

Claudio: Entendi que o fundo é o nada, o abismo, a escuridão…

HH: Tenho a impressão que o senhor entendeu com o raciocínio, mas não está sentindo esse fundo.

Cláudio: Como posso falar sem raciocinar?

HH: Desculpe minha desconfiança, mas estou vendo que o senhor não está entendendo.

Marcos: Está representando.

Claudio: Estou tentando falar da alma, que é um grande erro nosso quando elegemos um ente como o ser-em-si, quando na verdade não é.

Débora: Esse erro a gente não o comete o tempo todo? Nas manifestações da alma, de achar que aquilo é alma?

Marcos: Nós usamos representar e raciocinar. Em geral, se toma o pensar como representar e raciocinar. Está só pensando ou só raciocinando, não está sentindo. Como é que a gente percebe que eu e o outro estamos só representando ou só sentindo ou só raciocinando.

Dom Mamede: Quem vê que vê, vê se o outro vê ou não vê.

Marcos: Na psicologia, não tem o fenômeno da racionalização? Em que consiste isso?

Débora: Racionalização é processo pelo qual a pessoa procura racionalizar todo entendimento, fazer todos os aspectos da vida dela passar pelo crivo da razão. Talvez porque tenha medo de viver algum tipo de emoção. Então, tudo tem que ter um sentido.

Débora, Regina (e outras psicólogas): SIM.

Débora: o senhor poderia falar simplesmente: “porque eu gosto”.

Marcos: Racionalizar é prestar contas, é justificar.

Débora: O pensamento é um julgamento

Marcos: Então racionalizar tem a estrutura do julgar também. Julgar é determinar, é dizer: “isto é aquilo”, não é? “sujeito é predicado”. É interessante que raciocinar é um discorrer, uma espécie de cálculo, de combinação de fatores etc. No raciocinar tem uma combinação de representações, mas não tem evidência da “coisa ela mesma”.

Débora: Evidência da “coisa ela mesma”? É muito filosófico!

Marcos: Vamos tomar o exemplo do gibi. Vc está ali no uso do gibi, gostando do gibi. Quando é perguntado, dá uma razão.

Débora: Ele se justificou.

Marcos: Mas este justificar não deixar vir à existência a realidade, ela mesma.

Débora: Isto é o que a gente pode chamar de mecanismo de defesa.

Marcos: Isto é racionalizar, não é?

Débora: É!

Marcos: Então boa parte dos nossos raciocínios são racionalizações. A gente opera com representações vazias. O racionalizar é um pensamento vazio, enquanto o raciocinar é um pensamento que é verdade. Hoje quando nós falamos de razão, entendemos razão como racionalização. Daí vem o grande problema que temos com racional… Em geral, quando falamos “pensar”, entendemos o pensar na direção do racionalizar, isto é, dar razão, justificar… Assim, como o pensar ficou reduzido a uma representação vazia, que é o avesso do pensar, então criamos esse bloqueio com o pensar.

HH: No ver, julgar e agir, o primeiro mais importante é ver.

Marcos: Esse ver imediato é o que se chama de intelecto. Intelecto é a sensibilidade mais afinada.

HH: Vamos discutir mais a expressão “mecanismo de defesa”?

Marcos: Parece que o termo “mecanismo” é tomado da física moderna. É o modelo da máquina: aperta aqui, aciona lá.

Débora: É isso mesmo. É um pressuposto orgânico.

Marcos: E o modelo de organismo é da máquina.

HH: Essas palavras mecanismo de defesa, organismo, reações instintivas etc., essas representações, com o tempo, não podem trazer para certos terapeutas certa compreensão da vida? Como se fugir é, de alguma maneira, negativo?

Débora: Mecanismo é uma coisa, fuga é outra.

HH: Sim. Mas, mesmo assim, não tem no fundo uma tese tácita de que fuga é de alguma maneira negativa?

Leila: Segundo a Gestalt, o paciente tem que ser acompanhado a partir de seu próprio mundo. Ás vezes, vejo uma coisa, mas o paciente vê outra. É preciso levar em conta isso… Se tem alguma resistência, não é para ser quebrada. A resistência, se está lá, tem alguma razão de ser e pode ficar lá por algum tempo…

HH: É. Mas, e depois de algum tempo?

Débora: Eu acho que fuga não é bom para ninguém.

HH: Mas que tal se a fuga for a primeira possibilidade da pessoa!?

Leila: Há coisa que a gente dá conta de enfrentar. Outras que a gente não consegue.

Fábia: Fuga não é estágio perfeito. Pode ocorrer por um tempo, mas depois tem que ser superada, tem que dar passos.

Corniatti: O princípio de fundo que subjaz é: fuga é defeito… Diz: “pode por um tempo, mas tem que tirar…” Transparece claro que a base do conceito é negativa, tem que ser tirado.

Débora: Acho que se tem que entender o seguinte: terapia se dá entre duas pessoas. Então essa pessoa que está na minha frente é determinante.

HH: Tomemos este princípio: Para o psicólogo o paciente é determinante. E para o paciente o que é determinante?

Marcos: No fundo, o que está em questão é um modelo baseado na autenticidade do sujeito, segundo o qual a pessoa tem que ser autêntica. Por isso, não pode fugir. Às vezes, criamos um padrão de autenticidade que atua como camisa de força, à qual queremos submeter as pessoas, sem percebermos e sem levarmos em conta o que se insinua nos processos.

Leila: A Gestalt surgiu questionando este modelo da psicanálise tradicional.

Marcos: O fundador da Gestalt colocou em questão os pressupostos de tudo o que ele aprendeu como psicólogo e, a partir daí, apareceu uma nova via para abordar a psichè, que ele chamou de Gestalt. Mas a questão é que, agora, os “gestaltianos” estudam a psichè a partir da abordagem da Gestalt sem questionar os pressupostos da Gestalt.

Fábia: Então, vc acha que é necessário ficar analisando, avaliando o tempo todo?

Marcos: Estou afirmando que é necessário ter a coragem de se dar conta dos próprios pressupostos. Quando, no estudo, na reflexão, no diálogo vou me dando conta de qual é minha posição, sobre quais pressupostos se assenta minha posição, aos poucos vai aparecendo um fundo que não é nem posição, nem pressuposição.

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