Gilvan Fogel
Para o mestre, o grande mestre, que acena, acena e convida para o sagrado – Hermógenes Harada.
1. No § 7 de Ser e Tempo, lê-se: “O ser e a estrutura de ser acham-se acima de qualquer ente e de toda determinação ôntica possível de um ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente. A transcendência do ser da presença é privilegiada porque nela reside a possibilidade e a necessidade da individuação mais radical”1. Em Sobre o Humanismo Heidegger fala de “ser como o elemento do pensar” e ainda dirá que o pensamento “chega sempre ao fim, quando se afasta de seu elemento”.
Temos, pois: ser como transcendência e ser como elemento – elemento do pensar. À medida que ser se determina como transcendência e também como elemento temos que transcendência, de algum modo, fala igualmente elemento. É isso que, inicialmente, queremos compreender. Num segundo momento, buscar-se-á caracterizar pensamento, ou seja, o que é, como é pensar e pensar desde seu elemento próprio, a saber, ser, transcendência.
2. Elemento, aqui, não quer dizer um indivíduo ou uma pessoa, p. ex., integrante de um determinado grupo – João é integrante (elemento) deste grupo de estudos. Nesta direção, elemento também não é uma parte ou uma unidade constituinte de um algo ou todo qualquer, p. ex., se digo que esta página é um elemento deste caderno. Não é, pois, elemento no sentido de indivíduo, unidade, seja de um conjunto ou de um subconjunto qualquer. Também não quer dizer “primeiras noções” ou “rudimentos”, se digo, no plural, “os elementos da gramática, da metafísica ou do futebol”.
Aqui, elemento é preciso entender, antes, na direção de meio, de medium, como, p. ex., ao dizer que a água é o elemento (meio) do peixe, a floresta é o elemento (meio) do selvagem, a cidade é o elemento (meio) do citadino ou, numa formulação talvez obscura, digo que a terra é o elemento (meio) do homem.
Mas, dizendo meio, medium, o que diz realmente elemento?
Meio, por seu lado, não diz metade, ponto intermediário ou equidistante entre os extremos de dois ou diversos pontos. Portanto, meio não está se referindo ao centro, quando falo, p. ex., o meio (centro) da circunferência ou da sala. Não é o espaço-extensão, como se fora coisa física, continente dos muitos conteúdos que ele poderia encerrar. Antes, meio, enquanto elemento, se refere a uma situação de permeio, quando digo, p. ex., o homem no meio da multidão, no meio da borrasca, no meio da tormenta. Aqui, meio não fala do centro geométrico ou geográfico da multidão, não é o epicentro da tormenta ou do terremoto, mas no meio, aqui, significa todo permeado, perpassado, atravessado ou varado por multidão, por borrasca ou por tormenta. Meio, assim, evoca ambiente, situação, circunstância e, neste sentido, fala de medium.
Falando situação, circunstância ou medium, meio fala de inserimento ou inserção e, então, circularidade, círculo. Círculo, pelo menos desde Heráclito, é a imagem, a plástica para dizer e mostrar algo que não é e não tem imagem alguma, contorno ou plástica alguma, a saber, esta situação ou circunstância da vida, da existência humana de ser sob a forma de inserimento, de inserção, isto é, de repente, súbita ou imediatamente ver-se lançado, jogado, p. ex., na vida, no elemento-vida — no ser. Isto é, portanto, o medium, o elemento do ou no viver, do ou no existir. Mas tentemos ver isso mais de perto ainda e, então, descrever, formular melhor.
3. Elemento, falando meio ou medium, caracterizando-se como inserimento ou inserção, define um modo de ser interessado, isto é, um modo de ser, o do homem, da vida humana, que se mostra ser sempre já desde dentro (inter) de um determinado modo de ser (esse), a saber, ser sempre já desde um elemento ou medium, pois um modo possível de ser, um interesse qualquer no ou do viver, é como o elemento se dá ou se concretiza.
A formulação “sempre já” fala anterioridade, isto é, uma dimensão prévia que, quando a gente se dá conta, ela sempre já se deu ou se instaurou, caracterizando assim a inserção (i.é, a estrutura circular) e, por outro lado, a própria dimensão de transcendência, pois se revela uma dimensão ou um modo de ser que sempre já ultra-passou, sobre-passou ou trans-cendeu ao homem ou a qualquer poder seu de decisão. Esta anterioridade, portanto, aponta para um modo de ser arcaico, originário, que, p. ex., a modernidade o disse sob a forma do “a priori”. Aqui, no entanto, não se trata de nenhuma antecipação subjetiva ou subjetivo-transcendental. E isto porque esta anterioridade, falando de interesse ou de elemento da/na vida, do/no acontecimento-homem, é o que se pode caracterizar como relação arcaico-originária, na qual a estrutura subjetivo-objetivo não é, não pode ser medida ou critério. A relação arcaico-originária, i. é, interesse ou elemento, é o absoluto. E isso quer dizer: toda fala de subjetivo-objetivo já é fala a partir deste elemento ou desta relação arcaico-originária sempre já acontecida, aberta, instaurada.
Por relação arcaico-originária entende-se o ser um para o outro, p. ex., o homem para o mundo ou para as coisas, não à maneira de pólos ou termos, os relata, uma vez que estes aparecem sempre como tardios ou epigonais. Em outras palavras, estes aparecem e se dão porque o interesse, o elemento ou a relação arcaico-originária sempre já se instaurou ou aconteceu como o horizonte absoluto de toda possibilidade (de ser), de toda possibilitação. O elemento, a transcendência, é o verdadeiro, o autêntico “a partir de”, fundo de instauração ou de possibilitação de toda e qualquer coisa, de toda e qualquer realidade. Nesta direção, dirá Heidegger: “O elemento é verdadeiramente o que pode, o poderoso: o poder”3. Voltaremos a isso, mais adiante.
Importante, porém, é que não cabe entender elemento como se fora uma super-substância, um super-sujeito, um super-homem proposto ou anteposto, à maneira de um primeiro numa ordem cronológica, a todo e qualquer suceder, acontecer. Elemento, portanto, não é uma super- ou proto-causa. Não é nada como Deus, no sentido de “causa prima” ou “causa sui”. A idéia de súbito, de i-mediato ou de salto, que perfaz círculo ou inserção, exclui a representação de um tal sujeito ou substância. Elemento é o poder, mas nenhuma causa, nenhum sujeito. Como, então?
4. É próprio do homem – melhor, o próprio do homem é ser aberto para vida, ou seja, para transcendência (interesse, elemento). No entanto, este aberto para, esta abertura, precisa ser bem entendido(a).
Ao se falar isso, habitualmente, entende-se, subentende-se ou imagina-se o homem como já um algo, já como um dado ou um algo já constituído, p. ex., um eu, uma consciência, uma pessoa, um indivíduo, uma alma ou um espírito, enfim, já um sujeito, que, então, se abre, isto é, se volta, se interessa pelas coisas da vida, pelo mundo, pelo ao redor, pela situação ou circunstância. Assim pensando, caracteriza-se este abrir-se ou voltar-se para como intenção ou intencionalidade, volição ou ato de vontade, como espontaneidade ou naturalidade. Qualquer que seja ou como quer que seja uma destas formas, destas caracterizações, ao assim pensar ou imaginar, já penso homem e (+) mundo, homem e (+) coisas, homem e (+) situação ou circunstância, como se estes fossem dois pólos, termos ou sujeitos. O fato é que, assim pensando, mal-entende-se ou desentende-se tudo.
Este aberto para diz algo desconcertante, paradoxal. Nessa formulação (O homem é aberto para), é preciso poder ver o homem como um “ente” que, antes de tudo, não é “ente” nenhum. Ou seja, é preciso poder ver, conceber, o homem não sendo, imediata ou originariamente, coisa ou algo nenhum, já dado ou constituído, a saber, não sendo de imediato nenhuma alma, ou eu, ou consciência, ou espírito, ou pessoa, ou mesmo o contrário de tudo isso, como se fosse corpo”, base física, bio-fisiológica, ou uma certa matéria, ou energia ou sabe-se lá o quê.
Não sendo nada disso, o homem, imediata ou originariamente, mostra-se como se fora um oco, um vazio (de ser, de determinação), isto é, um ser nada ou coisa nenhuma, que, no entanto, se caracteriza como aptidão, pura aptidão ou disposição, na verdade, pré-disposição para. Esta aptidão, a abertura para, mostra-se, pois, como disposição ou pré-disposição a ser tocado ou tomado (afetado) por… algum modo possível de ser de vida, algum verbo no/do viver ou existir, e que se determinará como elemento, transcendência, ou seja, o que sempre já se oferece a vir sobre ou sobrevir ao homem, assim determinando-o e possibilitando-o e, por isso e neste sentido, dirigindo-o, orientando-o, gerando-o, à medida que o pré-dispõe a vir a ser um homem, este ou aquele homem em particular ou determinadamente.
Ver isso, sentir isso, i. é, ver ou sentir este ser tocado e tomado por este acontecimento da/na vida (o dar-se inaugurador de transcendência) é experimentar transcendência, melhor, é ser na experiência da experiência de transcendência, ou seja, na experiência de vida, na evidência (pois experiência é, funda evidência) de ser como e desde o que ultra-passa, trans-passa e sobre-passa ao homem – a mim, particular e especialmente, por exemplo. Neste sentido de ultrapassar e sobrepassar, assim tomando e apropriando, é que é preciso entender a afirmação, segundo a qual elemento ou transcendência sobrevém ao homem, isto é, vem-lhe sobre, tomando-o todo, apropriando-se inteiramente dele. Isto marca igualmente a natureza de afeto da transcendência, de toda transcendência ou elemento possível. Transcendência, pois, define-se como o acontecimento arcaico, que é afecção. O homem vive, existe, é, porque pega vida, pega existência, à medida que é pegado por um modo de ser transcendente. Portanto, os afetos, isto é, os verbos do/no viver ou existir humano, são ou têm todos, cada qual por si mesmo, a forma, a estrutura de transcendência. Cada qual é o modo como cada vez transcendência se dá ou se realiza – i. é, se concretiza ou faz-se aparecer, retraindo-se ou dissimulando-se justo no que aparece, como aparece e porque aparece.
5. Transcendência, o elemento, tem o caráter do abrupto, do súbito ou do i-mediato. Justo por ser súbito ou imediato é transcendente. Súbito ou imediato, por sua vez, fala igualmente de salto e salto, porque salto, fala de círculo ou de circularidade, isto é, de inserção. E inserção significa: quando se vê, quando se dá conta, já se vê, já se dá conta dentro, inserido, isto é, desde ou a partir do elemento, de transcendência. Por isso, toda fala, toda ação ou atividade, todo e qualquer fazer-se ou vir a ser, toda e qualquer história, já o é de, do elemento; de, da transcendência, a qual como que se serve do homem, de um homem, o usa para aparecer ou concretizar-se. O homem, só o homem é usável por elemento, por transcendência. Elemento, transcendência usa o homem para aparecer, para concretizar-se. Não se ouça neste para um finalismo, uma intenção, um propósito. Melhor é dizer-se: o homem é usado e, então, acontece, concretiza-se transcendência. Neste acontecer ou concretizar-se ouçamos também: acontece, concretiza-se e, no mesmo ato retrai-se, dissimula-se nisso ou naquilo, como isso ou como aquilo, deste ou daquele outro modo e que é sempre o isso ou o modo, segundo o qual aparece ou se concretiza.
Tentemos mostrar isso. Busquemos um exemplo, no qual se evidencie toda esta estrutura. Vejamos como se dá a dimensão, a perspectiva ou o interesse escrever, por exemplo.
A primeira observação a se fazer diz respeito ao sentido de escrever enquanto e como dimensão, perspectiva ou interesse. Não quer dizer escrever enquanto o exercício mecânico, próprio de todo e qualquer tipo alfabetizado, todo e qualquer cidadão letrado, que conhece e domina as regras da escrita, i. é, conhece e reproduz com fluência os caracteres ou grafemas, conhece e domina as regras da sintaxe e da gramática, assim como as de ortografia, tudo isso aprendido na escola e que, no dia-a-dia da vida, tal tipo ou cidadão preenche formulários, cupons, formula e encaminha requerimentos e petições com grande desembaraço e competência. Não.
Escrever, enquanto dimensão, perspectiva ou interesse da/na vida, se refere ao modo de ser, segundo o qual se evidencia e se impõe que o escrever, isto é, o dizer, isto é, a palavra poética, é princípio de realidade. Por palavra poética não se entende a palavra extraída do corpo de algum poema ou incluída num poema bem ritmado e rimado. Também nada sentimental ou meloso. Palavra poética, de poiesis, é a palavra que realmente diz, mostra, faz visível alguma coisa. É isso mesmo a sua característica como princípio de realidade, ou seja, uma dinâmica desde a qual e como a qual realidade se realiza, se faz realidade, aparece ou se faz visível, como dissemos. Em suma, escrever, assim, aqui e agora, refere-se a um modo de ser que se faz ou se mostra como poética, como um necessário e possível princípio de realidade. Aquele que assim experimenta o escrever, o dizer, este vive no domínio, no âmbito do sem-nome, mas que é o domínio ou o âmbito do nomeável, isto é, do poder e precisar nomear, dar nome, dizer para ser, para vir a ser. Assim sendo, é preciso ver-ouvir escrever, p. ex., desde Dostoievski, Flaubert, Guimarães Rosa, Cabral de Melo Neto…
Entremos, pois, nisso, quer dizer, nesta estrutura, neste modo de ser ou nesta experiência.
De cara, começa não sendo o comum e ordinário dizer “eu escrevo”. Pois visto desde transcendência, “eu”, o “eu-escritor” não é o sujeito (causa) da ação escrever. Na verdade, mais apropriado seria dizer que o eu-escritor é resultado do escrever, é ação ou obra do escrever e, portanto, não é ou há antes do escrever, não pré- ou sub-existe ao escrever como um sujeito ou causa do escrever. O eu, o eu-escritor só há, só pode haver porque ele é feito pelo escrever, por obra e graça ou graças ao escrever. Neste sentido, pois, “eu escrevo” só é possível já a partir ou já desde o escrever. Portanto, o escrever sempre já se deu, sempre já se abriu, aconteceu ou instaurou como uma possibilidade-necessidade da/na vida, do/no existir e, então, se é levado a dizer: escrever, antes, parece ser ele o sujeito, a substância. Isso, no entanto, é uma mera inversão do esquema sujeito-objeto, sujeito-predicado. O erro, o vício, é este esquema que aparece, então, como um critério ou uma medida inoportuna para dar conta de ou para medir o fenômeno em questão, a saber, o modo de ser de transcendência.
6. Heidegger escreve:
O elemento é aquilo a partir do qual o pensamento pode ser pensamento. O elemento é o propriamente poderoso (“Vermögende”): o poder (“das Vermögen”). Ele se apega ao pensamento e assim o conduz à sua essência … O pensamento é – isso significa: o ser se apegou, num destino histórico, à sua essência. Apegar-se a uma coisa ou pessoa em sua essência, quer dizer: amá-la, querê-la (“mögen”). Pensando este querer mais originariamente, ele quer dizer: dar, presentear a essência. Este querer (“mögen”) é a autêntica essência do poder (“Vermögen”), que não somente pode realizar isso ou aquilo, mas também deixa uma coisa vigorar (viger, “wesen”) em sua pro-veniência (“Her-kunft”), isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é aquilo em cuja força uma coisa pode propriamente ser. Este poder (“Vermögen”) é o autêntico possível (“das Mögliche”), a saber, aquilo cuja essência se funda no querer. A partir deste querer (“mögen”), o ser quer, torna possível (“vermag”) o pensar. Aquele (o ser) possibilita este (o pensar). O ser como o querer-poderoso (“das Vermögend-Mögende”) é o possível (“das Mög-liche”). O ser, como elemento, é a força silenciosa do poder que quer, isto é, do possível4.
Temos aqui uma difícil passagem que, falando de ser, pensar, elemento, essência, fala principalmente da relação ou, melhor, da articulação e implicação entre/de querer e poder. Heidegger serve-se da correspondência na língua alemã entre querer-amar-gostar (“mögen”) e poder (“Vermögen”), assim como também a derivação de possível e possibilidade (“möglich” e “Möglichkeit”). Esta correspondência diz mais que uma mera correspondência ou uma mera relação, no sentido de alguma fortuita aproximação ou alguma ligação lógico-formal. Correspondência, aqui, fala de uma experiência na ou da linguagem, a qual ata como que num mesmo fenômeno querer-amar e poder-possibilitar. Trata-se de uma experiência originária ou de fundação-atamento, cujo teor precisa ser explicitado. O fato é que Heidegger, a partir do sentido originário, fundador, de “mögen” (querer, amar, gostar) determina o modo próprio de ser ou a essência de poder, possibilidade e possível (“Vermögen”, “Möglichkeit” e “das Mögliche”). É preciso entender como, neste sentido, nesta experiência originária, querer é poder.
“Mögen” diz querer e amar (gostar) no mesmo sentido que também nós empregamos, às vezes, os verbos querer e amar (gostar) em sentidos correspondentes de apegar-se, tomar apego, afeiçoar-se. Digo, p. ex., “quero (isto é, amo, gosto) muito esta coisa, esta ou aquela pessoa”. É justo este o exemplo dado por Heidegger, quando diz: “Apegar-se a uma coisa ou pessoa na sua essência, quer dizer: amá-la, querê-la”. E, vimos, Heidegger continua: “Este querer-amar (“mögen”), pensado mais originariamente, quer dizer: dar, presentear essência”. Como isso?
Por essência não cabe entender um algo, alguma coisa por trás, sub- ou pré-existente e que seria, p. ex., a causa desta ou daquela coisa. Não é um núcleo dentro, o caroço, formando o em-si da coisa. Essência é a própria dinâmica de algo fazer-se ou tornar-se algo, a dinâmica ou a força a partir da qual e como a qual algo vem a ser este algo que é e tal qual é – sempre uma escandalosa superfície. Vê-se ou tem-se realmente algo quando conseguimos nos transpor à sua essência, isto é, à sua proveniência, origem ou gênese. Então, partilhamos a coisa na sua gênese, na sua nascividade. Participamos, pois, de seu ser ou modo de ser e, assim, co-nascemos com ela.
A partir de agora, tentemos entender como que, originária ou essencialmente pensado, querer-amar significa poder e, por isso, dar ou presentear essência, isto é, doar, presentear a passagem para o próprio movimento-gênese de algo.
Querer, do latim “quaero”, significa buscar, procurar, andar à cata ou em busca de e, nessa direção, ainda aspirar a e desejar.
Assim sendo, i. é, entendendo querer como busca e procura, tentemos não entender querer como um ato volitivo, no sentido de um ato de uma faculdade, a vontade, a vontade consciente. Querer, assim, seria um ato ou uma decisão consciente, deliberada, de um sujeito ou de uma consciência autônoma que, então, querendo, impõe sua vontade, isto é, seu modo próprio de ser. Impõe, quer dizer, faz valer seu querer, sua vontade, a partir do poder maior, mais forte, mesmo autoritário, mandão e despótico do seu querer. Tudo fica achatado e nivelado ao poder deste querer. Isso é uma maneira de se entender o “querer é poder”. Mas não é, provavelmente, neste sentido que o texto citado fala, sub-fala que “querer é poder” ou que “o poder é o querer”.
Considerando querer (“quaero”) como buscar ou pro-curar, é preciso que se entenda esta busca, esta procura como um entregar-se, um abandonar-se todo ou um doar-se inteiro à própria busca, à própria pro-cura. Esta entrega ou doação à busca estará em estreita e imediata relação com escuta. Tal doação, tal entrega, se dará, se fará a partir de escuta, como imperativo de escuta e nisso residirá o presentear-se de essência. Por outro lado, por escuta, aqui, entende-se justamente e tão-só este ato de entrega, de doação à coisa buscada, procurada ou querida.
Por ora, no entanto, tenhamos somente a boa vontade de se entender este quero, esta vontade, como a entrega ou a doação de corpo e alma, isto é, todo ou inteiro à própria busca, à própria procura. Este é um doar-se e entregar-se ao que ultrapassa, ao que sobrepassa, ao que transcende o próprio querer ou, melhor, ao próprio sujeito que quer, que busca, tornando-se aquele que assim busca permeável, como que à mercê da própria coisa ou objeto buscado, quer dizer, na verdade, movido, promovido pela própria coisa que lhe transcende – portanto, por transcendência. E é dessa maneira, como entrega e doação, fazendo-se escuta ou obediência, que o querer se faz o poder, ou seja, amar ou gostar é, então, dar, presentear essência, deixar essencializar. Assim, pois, é preciso entender a fala de deixar algo vigorar, viger, isto é, ser e impor-se em sua própria proveniência, em sua própria gênese, e que constitui propriamente o fazer-se essência da essência ou essencializar-se.
Portanto, nesta entrega ou abandono à coisa buscada, querida, há um deixar ser a própria coisa, um consentir ou permitir que ela, desde ela mesma, venha a ser o que é. Nisso, como já dito, reside o dar, o presentear a própria essência desde e como o querer, a saber, desde e como o buscar que é entrega e abandono à busca, à coisa mesma. E isso é poder, nisso reside o poder que, tal como o querer, que não é afã e ânsia incontida, encerra muito, tudo de doçura, de candura, e não pode ser visto como o arrogante, petulante e autoritário, para não dizer bazofeiro, “eu quero!” de um sujeito, de uma vontade-faculdade-autônoma, que impinge seu poder, antes, sua coação e sua subjugação de mais forte e de “poder mais”, sempre achatando, nivelando e igualando tudo ao seu poder-querer mais forte, mais capaz de coação e de subjugação. E isso, a saber, doçura e candura, porque, aquele que quer como entrega e doação, precisa se fazer fraco, melhor, frágil, permeável, para assim poder ser tocado, tomado e, então, levado, guiado ou determinado pela própria coisa e, desse modo, fazê-la (deixá-la) vir à sua própria essência, ou seja, ao seu modo próprio de ser ou de fazer-se, pois isto, quer dizer, vir a ser e fazer-se no que é e como é, é o sentido próprio de essência, de essencializar-se. Ser desde sua própria proveniência, desde sua própria gênese.
7. “O poder do querer é aquilo em cuja força uma coisa pode propriamente ser. Esse poder (“Vermögen”) é o autêntico possível, a saber, aquilo cuja essência se funda no querer.”
Entendido o querer desde busca ou procura e estes como doação e entrega ao buscado ou procurado e esta doação ou entrega, por sua vez, como escuta ou obediência (um seguir ou acompanhar) à própria coisa – assim entendido, pois, este “poder do querer” é, na verdade, poder nenhum, ou seja, é um autêntico poder não poder. Isso é, melhor, nisso está todo o poder, tal como o poder da criança (lembrar Nietzsche). Neste poder não poder, nesta forma ou modo de ser criança, está o deixar ser, isto é, deixar, consentir que a própria coisa (o buscado, o procurado, o querido) seja o que é ou que venha a ser o que propriamente é. “Deixar”, “deixar ser”, não é largar apática e desinteressadamente. Este “deixar” não pode ser compreendido desde apatia, indiferença, passividade. Em outros termos, “deixar” não pode ser entendido como coisa passiva como contraste ou reação à atividade impulsiva ou frenética de um fazer voluntarioso, ativo. Aqui, ativo ou passivo, ativo versus passivo, não é medida para se entender este deixar ser. Antes, aqui, medida é só a escuta e a entrega à escuta na escuta – participação vital. Assim, neste sentido, este querer, que é o poder, é o possível, quer dizer, o que possibilita, à medida que deixa ser, a própria essência, a própria proveniência ou gênese da própria coisa, o próprio fazer-se ou vir-a-ser-coisa de coisa. Sim, este querer, este poder, doa, presenteia essência, pois é graças ou por graça (por doação) do poder deste querer que algo é, pode ser o que é. Poder, portanto, não é entendido como estruturação, ou seja, como constituição, modelagem e estes como coação e subjugação de um fraco (o constituído, uma coisa, um objeto, o passivo) por um mais forte (o constituinte, o sujeito autônomo, o ativo).
Não. Poder diz: desde entrega e escuta (o querer!), possibilitar, possibilitação e isto, por seu lado, quer dizer: liberação de possibilidade ou de poder ser. Isso, justamente isso é força, a “força silenciosa”, ou seja, retraída, porém presente, e que, então, se faz a única e a só realidade. A vida da coisa ou a coisa-vida.
8. Continua Heidegger:
“… O pensamento é pensamento do ser. O genitivo exprime duas coisas. O pensamento é do ser enquanto, provocado pelo ser em sua propriedade, pertence ao ser. O pensamento é ainda pensamento do ser enquanto, pertencendo ao ser, ausculta o ser. Enquanto, auscultando, pertence ao ser, o pensamento é de acordo com a pro-veniência de sua essência”.
Pensar, aqui, não pode ser entendido como poder, i. é, uma faculdade, de representação. Não é, igualmente, um poder ou uma faculdade de formular ou de inventar conceitos e, ao mesmo tempo, o poder ou a capacidade de amarrar, de organizar logicamente estes conceitos ou representações. Também não diz respeito ao produto ou ao conteúdo da atividade ou da capacidade (faculdade) de pensar lógico-conceitual e representativamente.
Seguindo a citação, pensar se dá desde, a partir de escuta e como escuta. Mais: ausculta. A escuta, sobretudo a escuta lhe dá pertencimento. Pertencimento à medida que, escutando, o pensar é apropriado por ser e, então, se faz pensamento do ser.
Já caracterizamos esta escuta a partir da busca e da entrega ao buscado, i. é, ao querido. Ser levado, conduzido pelo próprio buscado, esta entrega e seguimento ou obediência – isso constitui a escuta. Assim, escuta é pertencimento ou participação, ou seja, um tomar parte em … o escutado, buscado, querido. Este pertencimento ou participação passa a ser a própria textura, a própria consistência ou constituição do pensar, do pensamento.
Esta escuta, participação ou pertencimento faz com que pensamento seja “de acordo ou segundo a proveniência, isto é, a gênese, de sua essência”. Em outros termos, desde tal pertencimento, pensamento e o buscado ou querido se fazem co-naturais, isto é, consanguíneos. Pensar, assim, como já se disse, não é estruturar, constituir, objetivar, mas tão-só testemunhar, ou seja, tão-só dizer e assim celebrar e aquiescer a própria gênese de seu pertencimento, de sua participação. É isso propriamente o “deixar ser”. Pensar, assim, é, desde e como escuta, falar, dizer, mostrar e então celebrar o elemento, pois em última ou primeiríssima instância, é desde e como participação e dizer do elemento (do ser) que gênese se faz, se dá ou acontece.
Elemento, ser, é o transcendente, constitui-se como transcendência.
9. Transcendência não se refere ao objetivo, ao fora, ao externo, como o que se opõe ao subjetivo, ao dentro, ao interno, que seria a imanência. Mais uma vez: o súbito, a imediatidade ou o salto, enfim, o círculo, que instaura vida, existência, exclui a possibilidade da fala de subjetivo x objetivo, de interno x externo e, nesta direção, de imanente x transcendente. Mas como? Por quê?
O homem, como se fora um algo já constituído, não passa, não salta para o transcendente, como se um dentro (i. é, um sujeito, um eu, uma alma, uma consciência) passasse, saltasse para um fora (o objeto, as coisas, o mundo). Não. O salto, o acontecimento transcendente, i. é, que ultrapassa, sobrepassa e sobrevém o (ao) homem, o qual define o modo de ser transcendência, é o fato de o homem, enquanto “a realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade” (Kierkegaard), de repente, subitamente ser tocado e tomado pelo acontecimento mundo, i. é, vida, existência, que evidentemente o ultrapassa, o transcende. A evidência é dada pela experiência arcaica.
Experiência (afeto, “páthos”) é evidência. Dito de outro modo: em sendo “a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”, transcendência é propriamente o dar-se, o acontecer do fato, de repente, que há, que é, que dá-se ou que faz-se ser, isto é, mundo, sentido-mundo, ou seja, a experiência vida, existência. Tal acontecimento, em sobrevindo ao homem, dele apodera-se ou apropria-se, fazendo, melhor, possibilitando que ele venha a ser o ente, i. é, a possibilidade que é.
Este proto-acontecimento (Ürphänomen), que constitui o homem essencialmente, ou seja, em sua permanente gênese, atravessando-o ou perpassando-o todo, e que, por ser assim súbito, ou seja, salto, pode-se ou deve-se também denominar absoluto, no sentido que é um acontecimento que não se refere a nada, absolutamente nada fora, além ou aquém – enfim, este proto-acontecimento, que constitui o homem essencial ou medularmente, é como que anterior ao próprio homem. E é este acontecimento que se denomina propriamente transcendência. Pleonástica ou redundantemente: absoluta transcendência.
10. Imediatamente, subitamente dá-se, faz-se, é e há. Este modo de ser, a imediatidade ou subitaneidade, marca ou define transcendência. Transcendência é a circunscrição ou o âmbito subitamente aberto, instaurado, e que é o lugar, a hora – é isso o âmbito – do homem, i. é, da vida, da existência. O salto nele mesmo já é transcendência. E é transcendência à medida que é pura gratuidade, puro acontecimento, ou seja, pura doação. É graça e de graça. Dá-se, faz-se, acontece e sempre já se deu, sempre já se fez, sempre já aconteceu desde nada, por nada, para nada. O divino, o sagrado, o extraordinário é não ser, não ter, não precisar ser ou ter nenhum começo, nenhum princípio, nenhuma causa: gratuidade, abissalidade – pura transcendência.
Cheio deste acontecimento, completamente tocado e atravessado por este modo de ser, a saber, transcendência, o poeta exclama e, então, abre e pontua toda a poética de Sonetos a Orfeu: Uma árvore irrompeu. Ó pura irrupção! Ó pura emergência! Ó pura transcendência!
Este “puro”, que estamos usando e abusando, diz: só, tão-só. Só, tão-só gratuidade, doação. Só, tão-só abissalmente e, então, gratuitamente, absolutamente. Salto, inserção – círculo. Dá-se, faz-se, é elemento. Puro elemento.
Este mesmo acontecimento é celebrado, esta mesma experiência é dita e festejada, quando se lê, quando se ouve:
E, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – ó colossalidade! – na direção da altura?
Ó pura emergência! Ó colossalidade! “Pura”, isto é, não outra coisa que só e tão-só irrupção gratuita, gratuita emergência e instauração ou fundação. Só, tão-só, isto é, por nada, graças a nada e para nada. De nenhum lugar, para nenhum lugar. Sem porquê, sem para quê. Pura gratuidade, doação. Milagre. …! O começo, o acontecimento transcendente, enfim, transcendência é exclamação, vocativo, pura exclamação, puro vocativo – chamado, apelo, convocação. ! É. Há.
Encerrando, ouçamos ainda João Guimarães Rosa:
“Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Petrópolis, 25/05/2008.