Introdução
O tema nos pode estranhar. Pois, se colocarmos a Pe. Faustino Mennel (1824-1889) na perspectiva de nossa maneira usual de avaliar a modernidade de uma pessoa, certamente ele não pode ser mencionado como exemplo e exemplar de um homem moderno. Não é assim que suas conferências, quase na sua totalidade, defendem teses tradicionalistas, combatendo o modernismo? Hoje, ele jamais seria aceito por progressistas como pertencente à ala moderna progressista.
Assim, perguntemos: Por que o tema “Pe. Faustino Mennel e a modernidade”?
E surge de imediato uma suspeita: não é assim que estamos querendo valorizar a Pe. Mennel, retocando-o, maquiando-o de moderno, fazendo que ele tenha vez hoje, pois é tão bom ter o fundador da própria Congregação sendo considerado por todos como avançado em seu tempo, precursor do que hoje atua e é atual? É assim que franciscanos gloriamo-nos de São Francisco de Assis, ajeitando-o como grande precursor da ecologia. Essa suspeita não vem por causa das irmãs franciscanas de Bonlanden. Vem, devido a uma tendência que nós, clericais, temos de, sempre de novo, “modernizar” os nossos heróis do passado, fazendo-os sair de, transcender a sua época, como aqueles que não estavam bitolados na finitude, nos limites, na epocalidade do seu tempo, mas que já naquele tempo olhavam longe, para fora, para além da sua época. Esse modo de atualizar os nossos heróis do passado é chamado por Pierre Duhem, no seu livro “Les précurseurs” de modelo-precursor. A respeito dessa tendência, pergunta Kurt Flasch no seu livro “Por que pesquisamos a filosofia medieval?”: Que vantagem existe em verificar que uma tese de hoje já se achava no passado?… E é suspeito, se realmente há ligação precursora do precedente ao posterior.
Acerca dessa tendência de gloriar-se, apelando ao passado, idealizando-o ao nosso favor, vale certamente o que São Francisco de Assis disse a um noviço na Legenda Perusina (cf. Fontes, p. 802): “O Imperador Carlos, Rolando e Olivério, todos os paladinos e cavaleiros valentes que foram valorosos na guerra, perseguindo os infiéis até a morte, não se poupando a suores e fadigas, alcançaram retumbante e famosa vitória; e por fim, também os próprios santos mártires morreram em combate pela fé de Cristo. Muitos há que, só com a narração dos seus feitos, querem daí tirar honra e glória humana”.
O estranhamento e a suspeita acima descritos, porém, não atingem as irmãs franciscanas de Bonlanden, que propuseram como reflexão desses 2 dias o tema: Pe. Mennel e a Modernidade. Pois, nesse título, não ecoa o desejo alienado de gabar-se da glória passada, mas sim exatamente o contrário dessa vã-glória, a saber, o grande desejo de, na epocalidade de hoje, no fim do segundo milênio, realizar corpo a corpo o que o fundador realizou na sua época. Esse desejo de buscar o mesmo em épocas diferentes, o passado do fundador e o presente da atuação hoje, se expressa no termo modernidade. Aqui queremos realmente saber o que é o moderno, saber da melhor maneira possível, e nos confrontarmos com ele. É que existe o moderno tradicional e o moderno contemporâneo. O tradicional é o moderno de Pe. Mennel, o contemporâneo, o nosso moderno. Ambos são modernos, mas há entre a Modernidade de Pe. Mennel e a nossa Modernidade hodierna uma distância e diferença marcantes. Entrementes, essa diferença ainda não está muito clara. Pois o que chamamos de contemporâneo pode não ser outra coisa do que o moderno tradicional, vindo a si de modo consumado, por assim dizer, aparecendo numa forma purificada de toda a carga ainda do antigo. Mas pode ser também, ao mesmo tempo, que o vigor elementar do moderno tenha se esvaído, de modo a não aparecer mais na sua forma vigorosa e marcante como poderia ter existido em Pe. Mennel.
É costume entre nós pensar que o nosso confronto hoje é entre o moderno e o medieval. Na realidade, o nosso confronto e desafio hoje são com o moderno tradicional. É um dos sinais dos tempos, uma das tarefas fundamentais da nossa Modernidade, o confronto com a Modernidade Tradicional, com a sua Modernidade elementar, para haurir dele o que nele está implícito de possibilidade nova e levá-lo à perfeição da sua consumação.
É nesse sentido que queremos iniciar um estudo dos escritos de Pe. Mennel, tentando divisar a Modernidade Tradicional elementar existente nele, no seu modo de ser.
Os pensamentos que seguem foram tirados do livro “A pergunta pela coisa”, de Martin Heidegger. Tudo que nessa exposição estiver confuso e incompreensível vem de quem resumiu os pensamentos do livro; não do próprio livro. Você pode achar os pensamentos aqui colocados muito filosóficos. Vamos, porém, suportar por esses dois dias o filosófico com fé… depois com esperança, e se não der mesmo, com caridade, como o fazem os fiéis com o sermão chato dominical. Com o sermão dominical, talvez, haja outro jeito. Com o Moderno não há outro jeito. Pois na Modernidade, Moderno e Filosófico são o mesmo.
I
O que é ser moderno?
O que caracteriza o moderno é o matemático. O matemático é o que, por sua vez, caracteriza a ciência moderna. Assim, resumindo numa formulação aparentemente muito simplificada, podemos dizer que a Modernidade se caracteriza pelo modo de ser matemático da ciência moderna.
O esquecimento hodierno da questão-ciência
Nós, hoje, dificilmente conseguimos sentir o impacto da transformação operada pelo advento das ciências naturais, como o sentiram um Copérnico (1473-1543), um Kepler (1571-1630), um Galileu (1564-1642), um Descartes (1596-1650) ou um Pascal (1623-1662). É que as ciências se nos tornaram coisas usuais do nosso cotidiano moderno como um saber, um instrumento e meio entre outros saberes, instrumentos e meios, como um ente entre outros entes que constituem a coisa do nosso mundo moderno. A essência da ciência foi por assim dizer domesticada, a ponto de ela se retrair naquilo que constitui o seu próprio ser, o seu vigor originário, de tal modo que somos nós quem temos as ciências, somos nós que somos os sujeitos e os agentes desse meio instrumental da existência, e não mais uma possibilidade existencial e epocal, decisiva para a caracterização historial da nossa era.
É que algo como ciência é somente uma parte exotérica de um evento epocal esotérico profundo, cujo vigor atinge a existência humana no seu núcleo, colocando-a, desde o fundamento na crise de uma nova responsabilização de ser, numa nova tarefa de ser. Toda a tentativa de pensadores modernos como Descartes, Pascal, Leibniz, Kant e Nietzsche etc. era de despertar a humanidade para a essência desse evento de transformação radical, cuja captação e compreensão se torna cada vez mais decisiva também para nós hoje. Daí a necessidade de compreender cada vez melhor o caráter próprio da ciência, principalmente em sua forma como ciências naturais.
Nós conhecemos muitas coisas da história desse evento. Mas não temos ainda muitos pontos de referência para ter uma compreensão mais profunda e adequada do evento denominado ciência moderna. Mas uma coisa é certa: o acontecimento da assim chamada “revolução copernicana” só se deu, tendo como o fundo, a dinâmica de mudanças paulatinas subterrâneas que duraram séculos, no empenho de questionamento e no confronto sobre conceitos e princípios fundamentais do pensar, i. é, sobre a impostação fundamental para com as coisas, i. é, com o ente no seu todo.
A ciência moderna, herança da razão ocidental
Tal confronto, no entanto, só poderia ser realizado e executado, tendo-se um perfeito domínio do conhecimento medieval e antigo da natureza e ao mesmo tempo domínio perfeito de novas experiências e processos e métodos. Atrás, porém, de tal dinâmica de busca estava pulsando a paixão sui generis de um saber todo próprio e dominante que antes de tudo e continuamente e sempre de novo coloca em questão suas próprias pressuposições e busca sempre de novo o fundo do que ali já prejaz. Esse impulso, esse élan de fundo é o que chamamos de razão ocidental, o vigor originário, cujo deslanche vem dos gregos. É, pois, a nossa herança grega. Isto significa que nas ciências naturais modernas pode estar vindo de encontro a nós, de modo ambíguo e ainda apenas incoativo, o vigor fontal do Ocidente, que nos gregos teve o seu oriente inicial.
As pretensas características da ciência, hoje:
É costume caracterizar o próprio da ciência em contraposição ao saber antigo e medieval dizendo:
A ciência parte dos fatos, ao passo que os antigos partiam dos conceitos e princípios especulativos.
Embora até certo ponto possa ser correta essa diferenciação, acontece que também os antigos observavam fatos e com que acuidade e em detalhes! E também a ciência lida e trabalha continuamente com conceitos e princípios gerais e abstratos. Assim, não basta eu simplesmente colocar a diferença, hoje fatos, ontem conceitos e princípios especulativos, se não se busca determinar o decisivo, a saber, o que é que deve ser entendido cada vez com fato, conceito e especulação.
Diz-se também que a diferença e o próprio da ciência está nisso que os antigos faziam conjecturas opinativas sobre a realidade, ao passo que a ciência faz experimentação ou experimento, provando e fundamentando seus conhecimentos experimentalmente; a ciência é essencialmente experimental.
Só que o experimento é uma ação de aquisição de informações sobre uma coisa, e seus comportamentos através de uma ordenação e seqüência de coisas e acontecimentos. Tal ação praticavam também os antigos e os medievais. Pois um tal tipo de experiência está inteira e intimamente ligado e referido ao lidar artesanal e instrumental com as coisas; no que os antigos e os medievais eram exímios mestres! O decisivo aqui não está somente em ser experimental, mas sim no modo e na maneira como o experimento é posto, é colocado, a partir de onde e para onde ou onde e como está fundamentado. Tudo isso depende pois da determinação conceptual dos fatores, do conceito-projeto da coisa.
Diz-se também que a ciência se caracteriza por ser saber que calcula e mede, ao passo que os antigos e os medievais não conheciam medições e cálculos exatos, contentando-se com probabilidades de observações imperfeitas. Portanto, cálculo e medição seriam o próprio da ciência, do moderno?
Acontece porém que os antigos e os medievais trabalhavam com medidas, números e medidas. Mediam e calculavam com maestria. Basta nesse sentido só olhar para as construções maravilhosas de suas catedrais. A questão é porém como e em que sentido as medições e os cálculos são colocados, elaborados e conduzidos, e que conseqüências tem para a determinação dos próprios objetos.
Caracterização da ciência moderna, o matemático
Mas então, como é que se caracteriza a ciência? Como captar o seu modo de ser próprio na sua diferença? O que cunha o modo próprio da ciência moderna, o modo epocal de ser novo?
Resposta: o que cunha o modo próprio da ciência como o apanágio da modernidade é o matemático.
Mas então o que é o matemático?
A tentação é de responder dentro da concepção usual da matemática, dizendo: o matemático é o que se refere à disciplina científica chamada matemática. A matemática é uma ciência estudada e cultivada nas faculdades de ciências naturais. Essa resposta, porém, não diz essencialmente o que é propriamente o matemático, pois o classifica dentro de um modo de ser determinado, diríamos congelado na forma da disciplina matemática. Para intuir o que é o matemático na sua essência, fosse talvez útil recordar o significado do matemático na antiga experiência grega.
Podemos assim dizer de início que o matemático é o que está referido à matemática. A palavra matemática se refere às palavras gregas: mathesis (maqhsiV), manthanein (manqanein), ta mathemata (ta maqmata)?
Ta mathemata são coisas “aprendíveis” e ao mesmo tempo ensináveis. O verbo é manthanein que significa aprender. O substantivo mathesis significa então ensinamento, ensino, mas também a ação de ir ao ensino, i. é, aprender o que se ensina. Aprender e ensinar estão intimamente ligados no verbo manthanein. Mas para que possamos entender o que é ta mathemata, mathesis e manthanein é necessário examinar como os gregos distinguiam as coisas, os entes.
Os gregos distinguiam® (ta jusika): as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ® (ta poioumena): as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ® (ta crhmata): as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: Podem ser ta jusika ou também ta poioumena, conquanto que estejam em uso; ® (ta pragmata): as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos, as usemos, as transformemos ou apenas observemos, pesquisemos, conquanto que estejam referidas à praxis (praxiV). Esta é ação de prattein (prattein) ou prassein (prassein) que significa perfazer agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (poiein) (cf. ta poioumena = ta poioumena). Pois aqui trata-se, não de fazer, fabricar, produzir, mas sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação toda própria do ser humano, na qual na medida em que age e cria obras, vai crescendo, aumentando cada vez mais em seu próprio ser, conhecendo e se conhecendo, i. é aprendendo.
Entre diversos tipos do aprender da práxis existe um aprender todo próprio chamado mathesis (maqhsiV), o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos o, nos apossamos do uso da arma, i. é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.
No a), no aprender o uso e a aplicação, o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. P. ex. posso saber o uso de arma, mas não sei como é construída a arma. O b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. P. ex. para quem não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até se chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto, aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é.
O exercitar-se e usar é portanto somente um momento ou um nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar-se e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, o seu ser.
Mas, o que uma arma, p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qualquer coisa que seja, nós já sabemos antes de a pegar, do contrário, não poderíamos nos relacionar com ela e captá-la como tal. Somente, enquanto nós de antemão, a priori, sabemos o ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto se torna visível, captável naquilo que é. Só que, nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, mas de um modo assim geral, de modo indeterminado. A esse modo assim geral, indeterminado de conhecer, nós chamamos também de saber operativo. Quando, porém levamos, conduzimos esse saber indeterminado, geral e operativo, a um conhecimento mais próprio, mais temático, então tomamos conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente a essência do aprender, que em grego se chama maqhsiV, i. é, o “matemático” num sentido originário e profundo.
Resumindo:
Para que possamos conhecer uma coisa, nós já de alguma forma devemos saber o que é e como é.
O que é e como é, a saber, o é, o ser de uma coisa nós o sabemos já, em eu sendo. Embora eu e coisa sejam bem diferentes, estamos no mesmo ser, em sendo, eu aqui, a coisa lá na minha frente. Tanto eu como a coisa é, em sendo, somos entes. Esse ser, o sentido desse é, eu já sei, já conheço em eu sendo. Antes de entrar em contato com a coisa ao redor de mim, eu já em sendo, conheço, sei o que é ser, tenho uma precompreensão do ser. Mas essa precompreensão do ser somos nós mesmos enquanto em sendo somos. É uma compreensão operativa, em sendo, geral, indeterminada, passível de tornar-se mais clara e distinta.
Tentar se conscientizar bem que esse trazer à claridade a precompreensão do ser que já sempre somos nós mesmos, em sendo é a experiência do “matemático”, i. é, do manqanein.
Esse processo e exercício do aprender, a mathesis, o “matemático”, esse aprender a conhecer o que já sempre conhecemos em sendo, conhecer o que sempre já somos, é o “pensar”. Tentar vivenciar o que é “eu penso” através do seguinte exercício:
Ficar a só na sua cela, ou em algum lugar bem quieto. Sentar-se comodamente, tentar relaxar, tirar toda a tensão, esquecer todas as preocupações, decidir-se a perder tempo com esse exercício. Ficar quieto e em silêncio. Deixar que tudo ao redor de você e dentro de você seja captado como se você fosse um espelho límpido transparente que tudo apenas registra serenamente. Se surgirem pensamentos, sentimentos, vivências, reações físicas, os barulhos de fora, o calor, o frio, o mosquito, apenas os registrar silenciosamente, deixar tudo ser como é, serenamente. Ver e captar a si mesmo e tudo que está dentro de si e fora de si como coisa que ali está sendo espelhada por você, que é ao mesmo tempo o espelhado e o espelho igualmente. Deixar que a quietude de apenas captar e ser captado tome conta de tudo, de todo o seu ser, de tudo que está ao seu redor, tornar-se sereno, translúcido, silencioso, quieto, apenas você mesmo como serenidade, cristal clara captação. Esse estar ali aberto, disposto, sereno, apenas tudo captando é o que Descartes denominou de espírito, boa mente, ou “cogito-sum” e Kant mais tarde de Razão Pura
O matemático como o a priori
Esse tomar conhecimento o que já antes sabíamos é propriamente a essência do aprender, do manqanein, da maqhsiV.
O que é pois o matemático? É aquilo que nós já conhecemos nas coisas, o qual não tiramos primeiro das coisas, mas num certo modo já nós mesmos trazemos junto, conosco. Este aprender, este tomar conhecimento o que nós já sempre sabemos e somos até o fundo abissal que se abre em nós mesmos é a célebre frase do oráculo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo!” É por isso que no portal da academia de Platão estava escrito: “Ninguém que não tenha captado o matemático, jamais tenha entrada aqui” i. é: Ninguém ageométrico jamais entre!
Mas como é que esse conhecer apriorístico, onde nada vem de fora, mas tudo, por assim dizer, se desdobra e se ex-plica de dentro, a partir de dentro aparece como matemático dos cálculos e medições matemáticas da nossa era moderna, nas ciências?
É que nos cálculos e medições matemáticas da própria disciplina chamada matemática, o que conhecemos assim pela medição e cálculo não é aquilo que nós conhecemos nas coisas, tirando-o primeiro das coisas, mas sim num certo modo já trazemos nós mesmos junto de nós conosco e depositamos, lançamos de antemão sobre as coisas. Assim, o modo de saber e conhecer matemático é bem diferente do contemplar medieval.
O matemático como a “concepção da mente”
Esse modo de ser a priori aparece nitidamente numa famosa frase de Galileu: “Eu concebo mentalmente um corpo móvel, excluindo todo impedimento: assim consta disso que num outro lugar foi dito extensamente que o movimento desse corpo sobre o plano será igual e sempre o mesmo, se o plano se estende infinitamente”.
Diz Galileu ‘Eu concebo’, i. é, me lanço por sobre, ajuntando tudo sob o que se torna determinante de antemão, saltando por sobre todas as coisas, tendo já o que é decisivo para todas as coisas que é atingido por esse lance. Assim, nesse lance sobre todos os corpos vale de antemão: ® que todos os corpos são iguais; ® nenhum movimento é especial, destacado; ® cada lugar é igual ao outro; ® cada momento do tempo é igual ao outro; ® cada força se determina, segundo o que causa a mudança do movimento, entendido como movimento de mudança de localização. Assim Þ todas as determinações sobre o corpo são esboçadas num traçado básico de um plano, segundo o qual o processo e o fato da natureza nada mais são do que determinação ou definição espaço-temporal do movimento uniforme dos pontos de massa, numa totalidade, cuja medida é homogeneamente em toda a parte igual.
A partir do que foi dito, resumamos a essência do matemático em alguns itens:
O matemático é um “mente concipere”, i. é, um projeto lançado sobre as coisas. O projeto abre então um espaço de jogo, onde as coisas, i. é, os fatos se mostram.
Dentro desse projeto é posta a medida, pela qual as coisas são tidas como aquilo que é apreciado no seu modo próprio, de antemão.
Apreciar ou ter por em grego é axiow. As determinações e as sentenças que predeterminam de antemão no projeto são axiwmata (axiomas). Axiomas são princípios fundamentais que colocam o fundo de antemão para as coisas.
O projeto matemático é, enquanto axiomático, o lance conceptual prévio, a ordenação prévia para dentro da vigência das coisas, dos corpos. Com o projeto matemático é preparado o esboço fundamental como cada coisa e cada referência de coisa a cada coisa é construída.
Este esboço fundamental dá a medida para delimitar a região, o âmbito, ou a área que daqui por diante abrange todas as coisas que tem a mesma “essência”.
Natureza não é mais aquilo que, como substância, é a capacidade e possibilidade interior dos corpos, lhes determina cada vez a sua qualidade, sua forma de movimento e seu lugar, o seu habitat próprio. Natureza agora é a região traçada dentro do projeto axiomático. É a natureza das ciências naturais. Essa região tem a caracterização de ser um conjunto de movimentos referidos um ao outro dentro da homogeneidade do tempo e do espaço, igual em toda parte e em cada tempo, dentro do qual (conjunto) os corpos são inseridos e estendidos e somente assim podem ser corpos.
Tal região da natureza dita e determina o modo de acesso, o modo de abordagem próprio para corpos e corpúsculos que assim se acham no âmbito de sua abrangência.
O modo de interrogar e determinar o conhecimento da natureza não mais é orientado e dirigido por opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não possuem mais propriedades, forças, capacidades ocultas, mais profundas e interiores. Os corpos da Natureza são apenas isto como eles se mostram dentro do âmbito do seu projeto.
As coisas agora se mostram apenas em referência à localização pontual no espaço e no tempo homogêneos, em referência à medida homogênea de massa e das forças atuantes.
Como as coisas se mostram é pré-traçado através do projeto. O projeto determina por isso também o modo da captação e da sondagem do que se mostra, i. é, determina o modo da experiência. Porque agora a sondagem é determinada de antemão pelo esboço fundamental do projeto, o interrogar pode ser ajeitado de tal maneira que se põem de antemão condições, às quais a natureza deve responder assim ou/e assim. O interrogar é uma interpelação produtiva à natureza. Tendo no fundo esse projeto matemático, a experiência se torna experimento ou experimentação no sentido moderno.
A ciência é experimental por causa do projeto matemático. O impulso experimental para com os fatos é uma conseqüência necessária do apriori matemático, i. é, do saltar por sobre todos os fatos predeterminando o seu modo de ser e o âmbito do seu aparecer.
Segundo o que foi dito, o projeto coloca a homogeneidade e uniformidade de todos os corpos segundo espaço, tempo e relacionamento de movimentos. Por isso possibilita, fomenta e exige ao mesmo tempo como o modo de determinação das coisas a medida igual do início até o fim, i. é, medição numérica quantitativa
O modo do projeto matemático dos corpos segundo Newton nos levou à formação, a constituição de uma determinada “matemática”, no sentido estrito, como a temos na disciplina chamada matemática.
Dizer que o matemático é o próprio da ciência não quer dizer que o matemático no sentido essencial deva ter a forma da matemática no sentido estrito da disciplina matemática. Na realidade, a possibilidade de a matemática do cunho especial, enquanto medição cálculo numéricos pudesse entrar no jogo da epocalidade e dominar, não é a causa, mas sim uma conseqüência do projeto matemático no sentido essencial.
O que dissemos à mão da famosa frase de Galileu e a sua variante em Newton é o que está no fundo dessa caracterização da ciência, i. é, das ciências modernas, como o matemático, o característico essencial da nossa era moderna.
Esse matemático essencial que aparece escondido na forma da matemática como cálculo e medição numérica quantitativa possui um fundo mais pro-fundo. É necessário captar esse fundo para entendermos bem como é o ser do moderno, sua essência e o seu modo próprio de ser.
Para isso, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do matemático e em que sentido o matemático, conforme o élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.
O matemático e o “eu penso” de Descartes
Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela, também acerca do ente na sua totalidade aparece na frase de Descartes “eu penso, logo sou”. E nessa frase está escondida a essência do matemático. Da essência do matemático que ultrapassa o nível das ciências naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto a priori, lançado não apenas sobre os corpos físicos da natureza, mas sim sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida pela qual os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projecto tem por pretensão e exigência de se fundamentar, de se fundar a si mesmo a partir e dentro de si, a tal ponto que tudo que vem à fala aqui já estava presente como já sempre sabido. Essa paixão da autoidentidade é o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manqanein.
Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. Nesse “eu penso”, nessa ação do auto-posicionamento é que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” é que se expressa na fórmula: SOU. Cogito, ergo sum, i. é, cogito:sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição como auto-responsabilização, a densidade de auto-identidade da auto-presença de si a si mesmo: = subiectum, i. é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, i. é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do homem. Somente quando a essência, i. é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do matemático, que é e está no “eu”, não é mais vista é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.
O “Eu penso: sou”, assim compreendido, portanto, não é o pólo subjetivo de outro pólo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “Penso”, o esquema Sujeito – Objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes, o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do Sujeito-Eu na sua auto-identificação. Pois no Cogito, i. é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, se funda o modo de ser em cuja dinâmica os entes vêm ao encontro no lance do projeto, i. é, ao encontro de “Mim” como ob-jecto, i. é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto.
Esse modo de ser não é outra coisa do que a essência do Moderno como autonomia na limpidez, na pureza da autoresponsabilzação como autoevidência,
Conclusão
Tentamos compreender em que consiste o próprio da era moderna, em cuja fluência vivemos e somos, ou talvez apenas, quem sabe, estamos começando a entrar, embora seja hoje seja moda falar com muita facilidade do post-moderno.
O que é matemático, no entanto, nós ainda não o sabemos o bastante para podermos usá-lo sem mais para a formação, a modo de um saber agenciável. Ou quem sabe, se soubéssemos o suficiente, talvez haveríamos de perceber que o próprio, o essencial de uma época jamais pode ser utilizável como meio instrumento de nossos interesses, por ser ele a condição da possibilidade da própria epocalidade. Assim, no nosso caso, numa época onde temos como valor de realização ser sujeito e agente do agenciamento do ente no seu todo, o ser de tal impostação, a sua essência talvez não seja algo que possamos ter, usar e dominar, mas sim um a priori que nos tem, nos determina a partir de um sentido do ser que, em sendo o fundo de nós mesmos, nos está velado no seu mistério…
O que mais se faz necessário hoje a respeito do ser do moderno é aprendermos a ponderá-lo atenta e pacientemente como quem ausculta um sinal dos tempos.
No entanto, uma coisa podemos concluir de tudo isso com bastante clareza e decisão em referência ao nosso relacionamento para com Pe. Mennel: é o seguinte: Se o ser do moderno é autonomia na limpidez, na pureza da autoresponsabilzação como autoevidência, então, tudo quanto falamos da espiritualidade, da religiosidade, sim do ser cristão hoje, não pode mais operar sem mais na ingenuidade antiga, por mais bela e inocente que ela seja. Não podemos mais sem cair na hipocrisia, falar da “sabedoria dos pobres”, da “simplicidade dos que crêem”, da imediatez e concreteza da fé, não podemos mais falar com tanta facilidade da lógica do coração, do espírito da finura, nos colocando como autênticos, simples de coração, contra os doutores e os escribas da intelectualidade e dos estudos acadêmicos, contra a força avassaladora da técnica e da ciência, sem antes termos seriamente assumido a responsabilidade de sermos simples, obedientes, cheios de cordialidade da gratuidade da fé, na encarnação da temporalização do destinar-se historial da nossa epocalidade, hoje, i. é, da vigência do matemático. Pois a exigência única e absoluta dessa vigência é limpidez de impostação e coerência absoluta na acribia de autoevidenciação dentro e a partir da autoidentidade. Não basta mais vivermos e praticarmos a nossa formação cristã e religiosa no ecletismo confuso e cômodo, onde nem sequer estamos acordados para a necessidade de um radical aprofundamento na busca da limpidez de identidade e autoevidência da(s) dimensão(ões) que vivemos. O ser do moderno como a exigência absoluta da autonomia da autoevidenciação é perigoso, não por ser um antropocentrismo, um imanentismo subjetivista, uma híbris de autosuficiência, mas porque nos coloca, a nós cristãos de ontem, hoje e de amanhã num interrogatório acerca do ser de nossa fé, acerca do ser da nossa vida na graça.
Nós vivemos hoje como cristãos o desafio de assumirmos na autonomia da autoresponsabilização a heteronomia da fé e a autonomia do pensamento matemático como dimensões que não comportam síntese fácil, ou melhor, nenhuma síntese, nenhuma pacificação, mas sim a radicalidade de uma seriedade mortal no corpo a corpo de engajamento epocal na tarefa e na missão que vem do mistério da encarnação, cujo signo é signo de contradição.
Esse desafio cristão da nossa modernidade contemporânea, vinda do matemático da ciência moderna, que recebe o nome de autonomia da subjetividade, modo de ser esse que começava a dominar e impregnar os homens da modernidade tradicional, como p. ex., o Pe. Mennel, não teria sido também o grande desafio do Pe. Faustino Mennel? Desafio de encarnar com cordialidade e amor essa novidade secular e epocal, no desafio da aventura da Boa Nova de Jesus Cristo?
II
O Moderno em Pe. Mennel
Texto: Conferência 1857
Tema: O que é levado à reiterada afirmação: A Igreja Católica tolhe o progresso científico? E como tais acusações podem ser refutadas em poucas palavras?
Analisar:
– O Apologético da conferência; donde vem o caráter apologético?
– A afirmação absoluta e apriorística da fé.
– A ‘objetivação’ das ciências na perspectiva da fé.
– A colocação da atitude do ser cristão e religioso como doação à causa.
Rastrear: O matemático nisso tudo.
Examinar: A ambigüidade desse moderno tradicional.
Tarefa: Como poderia ser o moderno consumado que purificou o moderno dessa ambigüidade?
Com outras palavras: Como poderiam ser as filhas modernas desse grande pai moderno tradicional Pe. Faustino Mennel?