(12.02.08)
- Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o fomento da vida espiritual.
Trata-se na leitura espiritual primeiramente de leitura; que tem o caráter de ser espiritual.
- Leitura é uma das atividades, exercidas e exercitadas pelo ser humano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos recebe o nome, mutatis mutandis, de livro.
- Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser do livro e da sua leitura, tem propriedade específica dele, de tal sorte que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura do livro e embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computação, não substitui simplesmente como se fosse coisas iguais a experiência da leitura de um livro com “leitura” de um “texto” do computador.
- Pela leitura, lemos livros escritos sobre uma porção de coisas.
Escrever ou falar sobre uma coisa, e correspondentemente ler ou ouvir sobre, tem um modo de ser todo próprio que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir a partir de uma coisa.
- No primeiro caso, do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem propriamente o modo de ser do encontro, mas sim de colocar a coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a primeira coisa que se nos antepõe à nossa mira é horizonte, é a perspectiva a partir e dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenando-a, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se chama na lógica de juízo, de julgar, de ajuizar.
- No segundo caso do escrever ou falar, do ler ou ouvir a partir de, é como se a própria coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar a nenhum ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mesma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir sobre), mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao surgir, crescer e se consumar da coisa ela mesma, é ser como que caixa de ressonância da coisa ela mesma (cf. O segundo modo de escrever, falar, ler e ouvir a partir de).
Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Mas como na nossa maneira usual de entender fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez de ver fosse talvez melhor dizer, auscultar, ouvir atentamente, esperar o inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de acolhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discurso, pensamento, espírito, razão, mas cuja tradução mais originária seria talvez acolhida, colheita. Por isso os gregos antigos definiam o ser humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente e pertencente ao Logos. (Tò zôon lógon écchon) E essa definição foi então traduzida para a língua latina e ficou animale rationale que em português é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de modo inteiramente inadequada, quando se interpreta a palavra animal como bicho, bruto e racional como racionalista, cerebral. Animal na definição clássica do homem significa coragem criativa de ser, o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita do ser, de acolhida da coisa ela mesma.
- Quando usamos a expressão leitura espiritual, posso entender o adjetivo espiritual de diversos modos.
Posso entender o espiritual como indicando o objeto da leitura. P. ex. posso classificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, p.ex. votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor; à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), p. ex., pedra, animais, plantas; dos objetos da cultura, p. ex., obras de arte, monumentos etc.
- Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então, temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica, leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura literária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual, espiritualista etc.
- Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiritual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exatamente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de receber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferenciado, que Pascal chamou de espírito de finura, na explicação feita no início desta nossa reflexão de leitura a partir da coisa ela mesma.
- É de grande e decisiva importância compreender essas duas modalidades de leitura que p. ex., em Pascal recebeu nome de espírito de geometria e espírito de finura.
- O que se chama em Pascal espírito de geometria e espírito de finura é de grande importância para a nossa compreensão da espiritualidade. Pois enquanto não captamos a diferença entre esses dois modos de espírito e ao mesmo tempo a sua identidade, toda a nossa vida espiritual cristã fica a meio-caminho e jamais vislumbra a grandeza do que significa espírito, espiritual no sentido cristão. Em geral nos nossos exercícios espirituais o que com tamanha facilidade chamamos de espiritual não chega a ser espiritual nesse sentido real e bom. Permanece na equivocação de vivências, onde no binômio do contrário, só capta as diferenças, sem perceber a fundo a identidade da diferença e a diferença da identidade. O fenômeno de fundo que contém em si o grande segredo da identidade na diferença e diferença na identidade se chama encontro. Na nossa hodierna situação não é possível se realizar na vida religiosa consagrada enquanto não compreender bem a fundo e radicalmente de que se trata, quando falamos de encontro. Nas nossas buscas na vida as nossas tentativas ficam todas elas a meio caminho, enquanto não nos dispormos com muito maior generosidade e coragem a aprofundar e aclarar para valer esse ponto.
- Por fim, o que denominamos no n. 6 de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro não deve ser confundido com o olhar sem mais nem menos imediatista conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré-conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber que não possuem esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão pura, de sorte que deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência de fundo da alma.
- Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Isso porque no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do tema das nossas reflexões. Chama-se encontro, pois em tudo que fazemos na reunião não fazemos outra coisa do que nos exercitarmos o ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Em nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos poucos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradição do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o espírito do Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a vida espiritual.