LTC 4,11-12
– A busca do novo sentido de vida – A busca gera a luta: o viver ético.
COMEÇOU A VENCER-SE A SI MESMO (no título). Todo e qualquer crescimento humano verdadeiro se dá de alguma forma vencendo-se a si mesmo. Podemos entender o vencer a si mesmo em diferentes níveis. Vencer-se a si mesmo é transcender-se a si mesmo. É que o crescimento humano tem um modo de ser todo próprio, adequado à liberdade. O modo de crescer de uma planta ou de um animal é evoluir, se desenvolver; a potencialidade prejacente na planta ou no animal, se tirarmos os empecilhos, cresce e se expande por si mesma, espontaneamente. Com a vontade livre, que é a nossa identidade, não acontece o mesmo. Por exemplo o querer: não basta querer uma vez só e deixar para que se desenvolva por si mesmo; é necessário sempre de novo querer o próprio querer, continuamente sustentando, assumindo o querer com um querer maior, vencendo-se a si mesmo. Por isso assumir-se, responsabilizar-se e sempre de novo superar-se, é o caminho necessário de toda educação humana, é o caminho da humanização. Quanto mais o homem é capaz de vencer-se a si mesmo, tanto mais vontade boa ele tem, tanto mais virtuoso e autêntico ele é. Quando as fontes franciscanas falam de “vencer-se a si mesmo” como a graça especial concedida aos amigos mais íntimos de Deus, certamente estão se referindo a esse modo todo próprio da liberdade humana, mas num nível todo próprio do seguimento de Jesus Cristo. Digamos que alguém atravessa todos os degraus do vencer-se a si mesmo, colocando toda a sua liberdade na disponibilidade total de abrir-se para os grandes valores humanistas e humanitários da nossa medida usual, se vier um dia o chamamento de Jesus Cristo para esse homem, para segui-lo, esse homem deverá tomar tudo que ele fez, tudo que ele é, abandonar tudo isso, despir-se de tudo, isto é, vencer-se a si mesmo para abrir-se ao encontro do Senhor e dizer-lhe de todo o coração, toda a mente e todo entendimento: “eis-me aqui!”. Pois esse Deus de Jesus Cristo que lhe vem de encontro, não é mais Deus-valor de nossos humanismos, mas escândalo para os judeus e loucura para os gregos: Deus do escândalo da Cruz.
OUVIU. Ouvir é abertura decisiva para a dimensão religiosa. Francisco de sua vontade nada mais espera, por isso ouve a voz de fora que diz: “Onde aparece tua vontade, largue fora; o caminho é outro”. A dificuldade, o negativo, o que dá contra, afinal tudo o que é leproso, mostra qual é mesmo “minha” vontade! Ai Francisco se impõe exercícios de sacrifício, que não são penitenciar-se, mas estar se conquistando.
DEVERAS. O latim usa “Oportet” que significa “donde é necessário que”: é o dever que não vem de fora, mas dinâmica da coisa, ela mesma. Se o guia numa escalada dissesse: “É necessário que se faça assim”, você entende que não há outro jeito. Na caminhada da existência existe uma necessidade, uma imposição que propriamente é como não ter outra chance. Por exemplo, os nazistas, quando um prisioneiro fugia, faziam os outros pagarem por ele. Numa ocasião colocaram duas filas de judeus: uma ao lado da outra, e eram todos amigos. O comandante disse: “Um de vocês fugiu. E vocês vão pagar por ele. Cinco de vocês tem que morrer. Agora quem vai escolher os que vão morrer não sou eu, são vocês”. E o comandante mandou: “Você escolhe um, você escolhe outro, você escolhe o ter-ceiro”. Os que receberam a tarefa de escolher disseram: “Eu não escolho! Eu morro, mas não escolho.” Então o comandante disse: “Se vocês não escolherem, morrem trinta”. Esta é uma situação de necessidade, no sentido que a pessoa tem que fazer; o escolher já não é por egoísmo, mas para salvar; para estes prisioneiros morrer não é problema; o problema é que se ele não escolher, morrerão trinta e fica pior. Então escolheram. Um prisioneiro escolhe um amigo dele, e este veio de encontro a ele. Tanto um como o outro estão dentro da necessidade, mas os dois fazem uma coisa que nenhuma nazista consegue controlar. Eles ainda fazem, dentro de todo este encurralamento, o último ato de liberdade, que dignifica quem escolhe e quem se oferece para ser escolhido: o escolhido ao chegar ao encontro, diz ao amigo: “Obrigado porque você me escolheu, não se chateie porque você não está me fazendo mal”. Este tipo de obrigação é passo adequado que tem que fazer dentro da finitude, muitas vezes terrível, da Terra dos Homens. Para situação como esta os medievais usavam a palavra “oportet”, convém. Esse “convém” significa não conveniência, mas o “conforme”, o “a partir” dessa dignidade que está dentro de nós. Naturalmente são situações difíceis, onde não se pode mais agir conforme o padrão usual; tem que ajuntar toda a força do querer, da inteligência, para se colocar, para ser fiel a Deus presente, aqui e agora. Francisco aos poucos está sendo colocado numa situação de necessidade. “É oportuno, é adequado que tu faças um grande esforço de, em que tudo o que vieres a gostar, não por desprezo, não por medo, comeces a vencer-te a ti mesmo, pegar a ti mesmo mais profundamente e trabalhar de tal maneira que eu possa te revelar uma nova dimensão que está surgindo desta caminhada. Porque enquanto não pegares a ti mesmo e viveres de tal maneira que possas te abrir para coisa inteiramente nova, o concrescer não é mais possível.”
DESPREZAR E ODIAR. Desprezar é tirar valor, tirar preço. Nesse caso o conceito de “relativizar” é inadequado para expressar o que acontece com Francisco, pois o fenômeno mais radical: é desprezar-se mesmo! Algo que perdeu valor diante de outro valor. Não é o desprezo de si que se torna amor, mas é o amor que crescendo se torna desprezo de si e transforma o amargo em doce. É como um comerciante (= afeiçoado ao dinheiro) que não gosta de cheiro de fumo, mas que vê no fumo a possibilidade de grande lucro: aí o “gosto, não-gosto” do cheiro perde valor, pois é profissional do dinheiro! Se não o fosse, colocaria um empregado; mas o “animus” de comerciante lhe diz: Faça assim: busque lucro no fumo, e você vai ver como aos poucos vai gostar também do cheiro do fumo! Este enfoque do desprezar-se a si mesmo de Francisco é bem diferente do desprezar-se justamente condenado pela psicologia. Sem dúvida cada um deve assumir cordialmente a si mesmo, embora muitas vezes se pague alto preço por uma supervalorização de si e da própria imagem (o complexo de inferioridade é uma racionalização do complexo de superioridade frustrado!). Por causa da afeição que o move, para Francisco o desprezar-se não é sacrifício, não é renúncia ressentida de algo que agrada. É antes como aprendiz de violão que tem que treinar horas e horas por dia; dói a mão, é chato, duro; imaginava fácil e gostoso; mas enfrenta com firmeza e aos poucos pega jeito e gosto; experimenta o ser profissional: o que antes lhe custava (três horas de treino) agora se torna satisfação; aí ele treina 10 horas.
Carnalmente amaste e desejaste. É importante não entender isso como censura do passado, nem como se se tratasse de pecado ou não pecado. Está sendo descrito o processo da radicalização de uma caminhada na realização. E Francisco entendeu isso muito bem, por isso saiu jubiloso. O “itinerário” sempre chama de pecado-carne-mundo tudo o que se opõe ao encontro com a outra dimensão. Se um filho nunca tivesse experimentado o amor de mãe e, depois de sua morte, descobrisse no diário dela um conjunto de coisas que não sabia, ele reviveria sua indiferença de antes como “pecado”. No itinerário, só se sente pecador quem foi amado; por isso só quem teve “encontro” tem senso de pecado; nossa dificuldade de termos este senso do pecado está no fato que nosso viver é no fundo de sensibilidade moral e não religiosa.
JUBILOSO POR ESTAS COISAS E CONFORTADO NO SENHOR. Quando se é colocado numa situação concreta desafiadora sempre se é confortado pelo Senhor; Ele é sempre um mestre-amigo que está junto. O Senhor não tira a dificuldade, mas está junto durante a dificuldade.
FAZENDO FORÇA A FAVOR DE SI MESMO. O leproso é o mais pobre dos pobres; os demais pobres já eram familiares a Francisco, mas diante dos leprosos ele ainda recuava! Imagine Francisco dizendo: “Recebi do Senhor uma tarefa nova, a de vencer-me a mim mesmo; ainda não entendo bem como é concretamente, mas eis-me aqui!”; aparece o leproso e pensa: “Pronto, apareceu! Essa é a tarefa”. Sem dúvida ele teve vontade de virar o cavalo e voltar; mas deve ter falado a si mesmo: “Agora tu não viras; agora é a chance, agora vai para frente”. Essa é a força que ele fez a favor de si mesmo. Francisco é o cavalheiro-servo do Senhor. Seu Senhor ama os leprosos, é misericordioso com eles, então ele também tem que amá-los e ser misericordioso, superando a repugnância e o questionamento que eles lhe fazem; nem que isso coloque em risco sua sobrevivência. Este texto é importante porque fala do estilo do itinerário. Ao se fazer vigor a favor de si mesmo se ausculta no homem interior a força nasciva e se criam condições para que ela se manifeste. Toda educação que Francisco está recebendo do Senhor é para que cresça dócil e acolhedor desta energia escondida, fazendo vigor a favor de si mesmo. No texto tudo parece acontecer “rápido” com Francisco. Este rápido é o “dócil”, isto é, Francisco, quando recebe uma inspiração divina, entra no engajamento logo, logo se dispõe. Pensamos que a colheita se faz na colheita, mas na realidade se faz na lavra do terreno, na semeadura, na capina… Por isso ele a cada momento está se dispondo, isto é, vencendo-se a si mesmo, pois isso lhe competia.
ATÉ CONSEGUIR, PELA GRAÇA DE DEUS, A MAIS PERFEITA VITÓRIA DELE MESMO. O texto está dizendo que esta vitória foi Francisco que a conseguiu, no sentido que esta vitória não foi por acaso; foi uma coisa trabalhada. Muitas vezes nós nos vencemos a nós mesmos, mas por acaso e se fica eufóricos; no dia seguinte, porém, tudo volta como antes; é que precisa se exercitar sei lá quantas vezes, para que sua vitória se torne verdadeiramente sua. AO SE AFASTAR, O QUE LHE PARECIA AMARGO, VER E TOCAR OS LEPROSOS, MUDOU-SE EM DOÇURA. O tradutor pulou um trecho importante. Não é que tudo o que era amargo virou em doçura; o texto não está falando em geral; está falando do fato concreto de ver e tocar os leprosos. É importante frisar isso porque na vida comum “coisa amarga” nunca está no geral, é sempre alguma coisa concreta. E para o trabalho artesanal não adianta você ficar no geral, tem que pegar aquele pouco concreto em que se está.
VIRAVA O ROSTO E TAPAVA O NARIZ, MUITO EMBORA, MOVIDO POR PIEDADE… LHES MANDASSE ESMOLAS POR INTERMÉDIO DE OUTRA PESSOA. Francisco tem um coração nobre, cheio de piedade e é por isso que está ficando cavaleiro. Mas quando tinha que enfrentar leprosos não aguentava, tapava o nariz, sem deixar porém de fazer o que podia. Mas na medida em que foi crescendo começou a dizer a si mesmo: “Você não é cavaleiro? Que negócio é esse?!”. Então enfrenta a si mesmo e começa a Ver e tocar.
MAS PELA GRAÇA DE DEUS DE TAL MANEIRA TORNOU-SE TÃO FAMILIAR E AMIGO DOS LEPROSOS QUE…, GOSTAVA DE FICAR ENTRE ELES E HUMILDEMENTE OS SERVIA. Temos que entender do que realmente Francisco gostava, pois não é que ele “fizesse de conta” que era doce! Uma irmã juniorista trabalhava numa escola mais ou menos rica da grande São Paulo e foi transferida para uma creche pobre da periferia. Ela gosta muito de criança, mas quando chegou lá, encontrou uma escola suja, toda abandonada, com aqueles meninos cheirando mal, com piolhos. No começo sentia nojo, fechava os olhos…; mas se engajou. Depois de dois anos de trabalho dizia: “Ninguém vai me tirar, nem me afastar dessa criançada. E sabe de uma coisa: nem cheiram mais mal”. É que se tornara familiar e estava achando aquele cheiro bom! Familiar significa entrar de tal maneira no trabalho artesanal de pegar o núcleo essencial. E a partir dali certas coisas que em outros meios eram desagradáveis, podem ter inteiramente outra manifestação. MUDADO PARA O BEM, APÓS A VISITA AOS LEPROSOS. A visita aos leprosos é caminho para que a vontade originária boa seja cada vez mais madura e conforme a disposição de Deus, pois uma visita aos leprosos, você pode fazê-la decadentemente. Não é este o caso de Francisco; ele conseguiu crescer para o bem. Se Francisco, ao ir para os leprosos, dissesse: “É um sacrifício enorme, mas eu aguento; é por amor de ti, ó Deus, eu faço isso, mas por que tu fazes isto comigo?”, ele teria apelado para o menos bem, porque, no fundo, esta é a linguagem de quem não estás querendo. Nosso Senhor lhe diria: “Sacrificar assim a você, isso eu não quero. Eu quero que tu venhas atrás de mim, porque achas isso formidável”. Esse é o ponto fundamental para nós engatarmos franciscanamente. Aquele “O Senhor está me provando”, é outra espiritualidade; é coisa boa, mas não é postura franciscana.
UM CERTO COMPANHEIRO. Francisco está só numa luta de vida ou de morte, está sentido o medo da solidão existencial, por isso convida o amigo companheiro. Francisco não o deixa entrar na caverna, porque este trabalho exige intensidade total de participação, e plenitude de disposição; estas ou você as em ou não as tem: é um empenho de todo o ser da pessoa que deve ser defendido qualquer custo. Era este o sentido de ir para o eremitério dos antigos: não era para descansar, mas para dispor-se inteiramente ao trabalho fundamental.
UMA CAVERNA PERTO DE ASSIS. O recolhimento na Caverna da Solidão é concentração de toda a energia para firmar a afeição, para deixar-se tomar inteiramente pela nova dimensão que tocou Francisco e está prestes a se revelar, para se desprender da realidade a que estava preso antes do toque e que sempre de novo e ainda o prende. A afeição se firma, cresce e se purifica; e na medida em que se firma. se transforma em grande desejo de busca. Esse desejo cresce e se purifica numa autodeterminação, numa decisão de busca.
Essa decisão se manifesta no:
a – nítido afastamento da realidade a que estava até então cativo, isto é, no desprezo de si mesmo e do mundo;
b – na necessidade de saber o quê, o conteúdo da realidade nova que o cativou. A feição se transformou assim e se dinamizou para a ação de investigação da verdade da nova realidade que o pegou.
A afeição transformada e dinamizada como ação da investigação da verdade (desvelamento do que é) busca o conteúdo, busca o quê da nova realidade, como quem ausculta, e em auscultando segue a exigência do que vem como o revelado, e em seguida faz o que é exigido, dócil, cordial e decididamente com precisão, e em fazendo ausculta com maior diligência.
A afeição inicial se transforma assim na decidida determinação, na vontade do Discipulado. A vontade do Discipulado se concretiza como disciplina (dinâmica do aprender) do seguimento e da imitação. As características do élan da disciplina do seguimento e da imitação são as características da vontade que move os passos do Itinerário de São Francisco; a saber: Imediatez cordial e simples do fazer: disposição. -> Repetição (repetição) cada vez nova e reassumida na disposição. -> O ânimo da positividade incondicional: sim inteiramente sadio. -> Finitude concreta cheia de gratidão pela graça de ser: a plenitude no fraco. -> Dinâmica de sempre se transcender, não pela carência e privação, mas sim na alegria de se abrir ao dom da gratuidade. -> Diligente atenção em recolhimento na Memória (recordação) do toque. -> Estar sempre acordado” na recepção do “inesperado”.
NOVO E SINGULAR ESPÍRITO. É ter descoberto um tesouro; é ter visto bem concretamente, através da visita aos leprosos e em todas as coisas que se a presentam aparentemente como negativas, um tesouro novo: a Senhora Pobreza.
ORAVA AO PAI NO ABSCÔNDITO. No fundo de si mesmo, no núcleo da sua identidade. Não é “às escondidas” ou escondido na caverna, como na tradução.
CUIDANDO QUE NINGUÉM SOUBESSE O QUE FAZIA INTERIORMENTE. O latim usa a palavra “inthus”, intus-ir, isto é, ir para dentro, no fundo de si mesmo. Isto é, deu uma iluminação na cara.
O INIMIGO DO GÊNERO HUMANO. É o primeiro texto em que aparece a tentação; é o momento decisivo: o caminho é este, o resto é resto. Aí o inimigo tem que jogar a sua cartada definitiva, se não, perde a jogada. As verdadeiras dificuldades aparecem somente quando há verdadeiras definições!
Inimigo do gênero humano” indica um grande problema da existência que a caminhada humana enfrenta de antemão. A existência ou não do diabo não é problemática da dimensão religiosa! A dimensão religiosa sempre sente algo que está nas origens, um inimigo fundamental, contra o qual é necessário lutar.
UMA MULHER DEFORMADAMENTE GIBOSA. “Giboso” é corcunda, mas cheia de carne, meio molenga. Isto é, qual é o fraco de Francisco? Porque o demônio foi inventar esta tentação para pegar Francisco? Não será porque ele era fundamentalmente um esteticista, e o demônio aproveita? Não poderia haver algo como a “busca da beleza espiritual”? O demônio é danado! Ele pegou Francisco no ponto nevrálgico: sua sensibilidade estética. Como Deus abriu caminho a Francisco aproveitando de sua ambição “natural” de ser cavalheiro, assim o diabo sensibiliza Francisco a partir do seu gosto “natural” estético. Usava roupas finas e delicadas, era festivo: se sacrificava todo para ser cavaleiro, porque ser cavaleiro era “bonito”, era sinônimo de nobreza. Agora é como se o demônio lhe dissesse: “Tudo isto que você está buscando e acha bonito, no fundo é feio; você está se matando todo e no fim você vai ficar mendigo, todo feio fisicamente; o que você chama de espiritual, isto também é um fracasso total. Se você continuar nessa vai ficar como aquela velha!”
O “inimigo” sabe que no gênero humano há uma beleza originária atrás da qual Francisco está, mas por ser inimigo. lhe apresenta a “opinião pública” para a qual a beleza que ele buscava era horrivelmente Corcunda. Quem lhe garante um desfecho positivo? Não é tudo isto esforço voluntarista dele? Ele está jogando fora toda uma escala de valores. mas o novo não mostrou ainda sua cara. Francisco é como grão caído no chão que está morrendo. Ai a corcundidade: um mundo se foi, o novo não vem, e se não existir? Francisco teria virado um monstro!
A mulher Corcunda no fundo é a minoridade, que no itinerário de Francisco começa a aparecer como a gibosidade da “pobreza material”. A tentação checa a ideia da perfeição como coisa bonita. Todo itinerário religioso chega a checar isso. Francisco, percebendo-o, pega um susto. E como se o Senhor dissesse ao seu cavalheiro: “Tenho um inimigo que só pode ser derrotado por um cavaleiro horrivelmente feio como aquela velha Corcunda. O inimigo vendo isso ficará tão atordoado que vai fugir. Você topa?”. Francisco topou; era como ficar reduzido a nada, contanto que Deus fosse tudo, assim que quanto mais ele fosse miserável, mais Deus pudesse ser grande com ele (= meu Deus e meu tudo!). Não que eu me realize, mas que Deus seja todo realizado. Desse jeito é que Francisco será cavalheiro do grande rei.
SUSTENTAVA, PORÉM, MÁXIMA PAIXÃO E ANSIEDADE DA MENTE. Francisco está inquieto. começa a sofrer; um esforço enorme. O texto descreve como lutava, como conseguia não perder sua positividade e manter-se na vontade de sempre escutar o seu Senhor. “sustentava” não é tolerar. não é aguentar, nas manter, como um pai sustenta a família ou um soldado sustenta a luta. Vários pensamentos se sucediam em sua mente um atrás do outro, e isso o deixava perturbado, isto é, confuso; ao mesmo tempo, porém, lhe dava mais animo de luta; mas continuava não sabendo o que fazer. Era uma luta muito dura para ele; e ele a sustentava.
NÃO PODENDO ACALMAR-SE SENÃO AO REALIZAR O QUE NA MENTE CONCEBERA. Francisco se esgotava de tanto planejar: o que será? como será? será que é isso? será que é aquilo? E quanto mais queria, com mais ânsia ficava. Essa ânsia, que é paixão ao mesmo tempo, ele a sustentava; estava envolvido pela busca, mas não conseguia realizar logo sua intuição porque ainda não sabia bem o que era, como era; mas continuava sustentando, preparando-se…
A luta aparece somente agora porque é o verdadeiro momento em que a criança está nascendo. Escondido nessa luta há um perigo: a postura “ética” pode endurecer, atrapalhar a escuta e acabar sendo somente intensa busca voluntariosa de si próprio. Se não entrar um novo elemento vai dar um mostro mesmo! Vem à tona aqui o risco típico da busca religiosa (e quanto mais há busca, mais risco há): a busca, ao endurecer-se, decai e ao invés de dar um “religioso”, dá o fanático, o nazista, o dogmático. Por isso na formação não se pode deixar que se faça qualquer coisa; não se trata de coibir; é que o caminho é perigoso. Na busca profissional do viver religioso é necessário examinar bem o que se busca, pois a busca religiosa não é só questão de boa vontade; é necessário escutar, pensar; é necessário tempo, pessoas mais experimentadas, é necessário que a comunidade confronte, que os outros nos provem. Isso tudo quando de fato se busca profissionalmente. Quando não há busca profissional, qualquer coisa serve.
PENSAMENTOS DIVERSOS SUCEDIAM-SE UNS AOS OUTROS CUJA IMPORTUNIDADE O A PERTURBAVA DURAMENTE. Este tormento pertence à dimensão religiosa. Toda essa ansiedade é sintoma de muito engajamento, de querer, de paixão. Mas é ao mesmo tempo muito desgastante. Mais tarde, quando ficou maduro, São Francisco trabalhava do mesmo jeito, mas não se saia tão arrebentado; talvez teria dito a si mesmo: “Trabalhe intensamente, mas mais calmamente; afinal, você está trabalhando para Deus ou no lugar dele? Não estás na mão dele?” No entanto este desafio à decisão do discípulo, que está na jogada não como obrigação, mas livremente, é momento necessário.
MALES PASSADOS OU PRESENTES: O texto vai mostrando dificuldades cada vez mais difíceis. Estes males são coisas ainda não integradas na nova caminhada e que Francisco sente terem uma raiz de mal, de maligno.
CAPACIDADE DE DOMINAR-SE EM RELAÇÃO ÀS COISAS FUTURAS. Ao praticar, ao experimentar doçura, ao repetir seus exercícios, Francisco pensava consigo: Consegui!” Chegou até a se sentir familiar com os leprosos! Ele, porém, como verdadeiro profissional, se pergunta se o sucesso tido não seria devido ao acaso ou ao momento; por isso se passa sempre novos exercícios, até ficar claro
E que naquela área caminhou. Duvida porém que conseguirá manter sempre esta decisão no futuro (nós, pelo contrário, pensamos: Deus é bom, não vai permitir que aconteça coisa ruim!); isto é, ainda não chegou ao: “Aconteça o que acontecer, eu vou permanecer na determinação para conseguir o que o meu Senhor me pede. Mesmo que fique tão feio como aquela mulher Corcunda, eu vou em frente”.
Francisco tinha começado a entender, mas não tinha ainda claro para o futuro que, Deus fizesse dele o que quisesse, ele, Francisco, conseguiria não abandonar a Deus.
AO SAIR DA CAVERNA. APARECIA AO SEU COMPANHEIRO TRANSFORMADO EM OUTRO HOMEM. Francisco saia da caverna todo desfigurado, arrebentado e ao mesmo tempo como alguém que tinha lutado um bom combate. A luta dele tem cara de muita finitude, mas de nenhum ressentimento, tipo: “Chega, não aguento mais esse negócio! Por que fui me meter nessa?”. Francisco saia todo cansado, mas o jeito dele era: “Vamos comer um pouco, para entrar de novo na luta”. Talvez tivesse até a Vontade de largar tudo, mas retomava o ânimo. Ter vontade de “largar tudo” pertence à busca. Francisco é corajoso, valente mas não valentão; está lá embaixo, mas levanta o ânimo; não sabe bem o que quer, mas busca. Na caminhada religiosa a valentia é necessária, senão a pessoa fica amargurada com as dificuldades. A existência religiosa exige pessoa que lute, não que goze, pois ela se caracteriza como o trabalho de um profissional, longe da ideia de um viver momentâneo-carismático-espontâneo.
No primeiro capítulo São Francisco ainda é jovem, cheio de vitalidade, de generosidade; tinha suas vaidades; mas tinha uma vida muito simpática, borbulhante; poderíamos chamá-la uma “vida jovem”. Imagine um Francisco cada vez mais dedicado a Deus, vibrante, mais ou menos como no filme “Irmão Sol e Irmã Lua”; é tudo muito bonito, muito romântico no sentido bom. Esse texto, porém, diz que na Vida Religiosa este nível somente pode ser o início; início precioso, mas somente início.
Kierkegaard, teólogo e pensador do século passado, cunhou três termos e para indicar três estágios fundamentais da vida humana: estético, ético e religioso. Estes estágios são explicados didaticamente separados, mas podem acontecer misturados. Isso corresponde à três vias clássicas da Espiritualidade. Esses estágios aparecem aqui na LTC.
Estágio ESTÉTICO. A palavra “estético” vem de “haystesis” que em grego significa sensibilidade, sensibilidade a “flor da pele”, como, por exemplo, ficar alisando um gatinho, olhar uma flor, ouvir música… O estagio estético é espontaneidade, gosto, vibração… Esta sensibilidade estética pode ser finíssima e pode estar também a nível de uma “Liturgia Beneditina”, de você ficar arrepiado de tão nobre e bonita que é. Este viver estético aparece em São Francisco no início de sua vida; ele, porém, começou logo a trabalha-lo, sem nunca rejeitá-lo, de modo que um toque estético, a partir de outro nível, perdurou ao longo de toda a sua vida. É possível viver toda a Vida Religiosa esteticamente. Se, porém, a Vida Religiosa ficar no estético somente, não pega certos níveis de busca, não amadurece, mas apodrece.
Uma certa corrente da espiritualidade moderna, que no fundo não é bem espiritualidade, porque é superficial, valoriza muito o estético, e não vê, por exemplo, que a espontaneidade de um artista pressupõe todo um trabalho de disciplina, de autonomia, de ser responsável consigo mesmo que não é em nada espontânea” e que, embora sendo muito dura, não é repressão, não é imposição para diminuir a pessoa.
Estágio ÉTICO. A palavra ético vem do grego “morada” e significa você se treinar. disciplinar, educar para “morar” na Terra dos homens. O ético é todo esforço humano de estabelecer-se, morar, cultivar, construir. Os cidadãos, ao ver uma paisagem bucólica, ficam encantados e dizem: “Como é bonito, como são felizes os que moram aqui!”. Mas o lavrador que trabalha na roça diz: “Bonito nada! É dureza!”, pois quem está morando tem que assumir todo o trabalho de disciplinar, de construir, de organizar…
Consciência, conscientização, finalização, projeto, planejamento, crítica, debates, trocas de ideias, oposições, política, todos esses fenômenos vem de um sistema que se chama “ético”. Pertence ao ético autoresponsabilizar-se não somente de si, mas de tudo. Também a Vida Religiosa tem que começar a ser vivida como opção, projeto, aquilo que você assumiu como trabalho seu com responsabilidade. Esta etapa da Vida Religiosa é para crescermos. Quando uma pessoa busca a Vida Religiosa intensamente e a busca como sua realização e se responsabiliza por isso, se alguém lhe disser: “Você está levando uma vida que nem ‘burro’; não sei como você é capaz de viver uma vida com tanto entusiasmo”. você lhe responde: “Foi minha escolha; eu quero isso, eu assumi; a vida é minha e eu a projetei assim”. Toda essa consciência de autoresponsabilidade, que o moderno chama de autonomia, isto é o ético. Uma pessoa que é estética, vê o ético como um trabalho muito duro e seco.
O viver ético é uma tradição muito antiga. Hoje, porém, na Vida Religiosa. é muitas vezes ignorado e rejeitado porque foi mal entendido e acabou virando uma espécie de nazismo dentro da Vida Religiosa. Isso aconteceu porque se esqueceu. perdeu-se a evidência originária e portanto não se entendeu mais o processo profundo de busca a que certos exercícios da Vida Religiosa estavam ligados; ficou só a carcaça do ético, isto é, uma disciplinação exterior, uma imposição autoritária de fora. sem sentido. A consequência disso foi que, por não se ter recuperado o sentido originário, pulou-se fora do ético; assim hoje nós queremos um ideal muito bonito, vivência muito bonita, mas na “hora H”. nos quebramos. Precisamos recuperar de novo o sentido originário do estágio ético. Principalmente para o futuro, mesmo porque nós queremos ser “cavaleiros” da construção de um modo novo e quem constrói não pode ter como ideal o gozar estético. Na vida se exige muito carisma, espontaneidade, vitalidade, generosidade, juventude, nas tudo isso tem que ser com o tempo. aos poucos, concentrado no exercício de autonomia do estágio ético, e com 0 mesmo entusiasmo ir até 0 religioso. Isso dá uma espontaneidade não subjetiva, uma espontaneidade que é vitalidade dinâmica, madura a serviço da humanidade.
É interessante observar isso na vida de São Francisco porque em seguida vai começar a luta, uma luta terrível com o pai. A nossa luta não precisa ser assim tão dura, pode ser mais cotidiana. Mas a estrutura, o processo, é sempre o mesmo. É para fazer como São Francisco: pegar todo o entusiasmo juvenil, toda a sensibilidade vital que se tem e não ter medo de disciplinar-se. Colocar essa espontaneidade, entusiasmo dentro da disciplinação.
Disciplinação significa: vontade de aprender, vontade de se exercitar no habilitar-se, não ter medo do confronto, não ter medo de ser checado, não ter medo de fazer exame, de testar-se, não ter medo de repetir vários exercícios para ser craque mesmo no dever ético. É colocar-se com todo entusiasmo estético, na disciplinação para levar longe os exercícios éticos. De repente na sua frente vai começar aparecer um enamoramento profundo, inteiro, mas simples e muito generoso, muito disposto, muito “expedito”. Se não se fizer isso, se envelhece cedo. Como seria envelhecer cedo assim, bem jovem? É ser subjetivo. E quando se é convocado para alguma coisa, a resposta é: “Ahl Mas eu não gosto; não consigo vibrar com isto”. Não se é capaz de dizer com toda a juventude: Vamos lá, vamos! Porque não?!?”
Por quê muitos rapazes ficam gamados pelas juvenistas, postulantes e vice-versa? Porque a turma vê um grupo de jovens sadios, explodindo de alegria, trabalhando todo mundo por uma causa; aquele entusiasmo parte do coração. Isto, levado à última consequência, dá um ético bonito. Isso é o cavaleiro. É ali que entra a doçura do Senhor. Nós religiosos hoje, precisamos nos conscientizar disso para que toda essa vitalidade que poderíamos ter não fique à meio caminho.
Estágio RELIGIOSO. Dentro da busca ética, de repente, começa surgir o Senhor como grande amor, como encontro. Aqui começa a terceira etapa, o estágio religioso. A passagem do ético para o religioso acontece com a “visita do Senhor”. No estágio religioso certos fenômenos são parecidos com aqueles do estágio estético. O Francisco que se manifesta a nós é religioso, mas por ser parecido, como fenômeno externo, ao estético nós pensamos que é estético. E ficamos equivocados.