Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução prática à leitura de textos na reflexão

22/04/2021

 

O que é refletir? Algumas opiniões correntes, ajuntadas por ocasião de um curso dizem:

– Reflexão não é apenas saber sobre uma determinada coisa que está ali posta na minha frente. Mas é um dobrar-se, um debruçar-se sobre a experiência de mim mesmo.

– Refletir é um silenciar interior, uma escuta, um deixar-se envolver pelo espírito do texto, no qual acolhemos o texto na raiz dele mesmo. É abrir-se ao novo, à novidade que vem da raiz do texto.

– Refletir é como instinto natural, por exemplo, de fome. Quando está com fome, busca-se, por necessidade instintiva, comida.

– Refletir é deixar ser, é deixar fluir o espírito, é deixar falar a espontaneidade interior, é escutar a voz interior.

Todas essas indicações apontam para uma realidade de profundidade “dentro” do homem, para além, ou melhor, para aquém de todo o nosso saber adquirido sobre as coisas e sobre nós mesmos, uma realidade natural e nasciva que é algo como o instinto natural próprio do homem. Por ser algo nascivo e originário, por ser a raiz do homem, a natureza do homem, é algo comum, natural e espontâneo a todos os homens, sem distinção de idade, raça, sexo, cultura, formação acadêmica etc. etc. Isto significaria que a reflexão é possível a todos.

Mas imediatamente a nossa mente dispara conclusões, como, por exemplo, a de que, se é possível naturalmente, é fácil e é automática. E dizemos: Então é só silenciar, é só auscultar o fundo de nós mesmos. É só fazer isso, que surge por si, espontaneamente, automaticamente, a verdade nasciva da realidade humana que somos nós mesmos, e a partir da qual constituímos todo um mundo de objetos, valores, significações e instituições.

E esquecemos, sim, ignoramos que aquilo que é natural e comum no homem, a possibilidade primordial, nasciva e fundamental do ser humano é a coisa mais difícil de se adquirir! Por ser essa possibilidade o que somos e devemos ser real – e livremente. Com outras palavras, esquecemos, sim, ignoramos que o natural, o nascivo, o vital espontâneo humano possui características próprias, específicas, que vem daquilo que denominamos liberdade, cuja compreensão se apresenta tão vaga, cheia de confusões e preconceitos.

O nosso natural, o nosso espontâneo não é o natural e espontâneo do fenômeno físico, biológico ou psíquico, mas sim o spons (= vontade, a disposição, o querer engajado) da busca, da conquista, do medir-se com, do trabalhar-se, do perfazer-se da e na dinâmica da transcendência, isto é, da liberdade. Daí, a necessidade de aprender, buscar, conquistar a duras penas o natural, o espontâneo que já sempre somos desde a nossa autoconstituição.

Assim, surge pois a pergunta: se agora, em concreto, abrirmos o livro, por exemplo, da espiritualidade primitiva franciscana, medieval, e começarmos a ler, o que significa em concreto tudo isso: auscultar o espírito, deixar ser espontaneamente a espontaneidade interior, silenciar para escutar o espírito que jaz na raiz do texto etc. etc.? Com outras palavras, quais são as dificuldades concretas e reais com que nos deparamos de imediato numa total leitura refletida, ou como alguns que gostam de chamar de espiritual?

Uma das dificuldades sempre de novo mencionadas é: nosso desconhecimento da terminologia, por exemplo, medieval, isto é, do uso medieval de certos termos, e também de nosso desconhecimento da história, da situação sociopolítica, cultural etc. tão diferente à da nossa época. Isto significaria que, para a leitura, é necessário antes estudar a ambiência historiográfica, na qual o texto foi escrito etc.

No entanto a dificuldade mencionada é uma dificuldade para a reflexão, não porque ela é uma dificuldade, mas sim porque é assim colocada. Quem quer iniciar a reflexão e se iniciar nela, condicionando a reflexão a um estudo prévio acadêmico e informativo, pelo fato de assim se condicionar, não está mais querendo enfrentar diretamente a dificuldade da reflexão. E se ilude, pensando que, se estiver melhor informado, aprende com mais facilidade a refletir. Quem assim opina está confundindo a reflexão com um saber informativo sobre. A dificuldade na reflexão é coisa altamente útil e necessária.

A reflexão, no fundo, é a decisão de busca do que já sempre somos, medindo-nos corpo a corpo com a dificuldade de refletir. Se eu penso que posso facilitar esse trabalho de medir-me comigo mesmo na dificuldade, substituindo esse trabalho por uma outra coisa que não seja esse próprio trabalho, iludo-me a mim mesmo e jogo fora a coisa mais preciosa e útil à reflexão, isto é, a própria dificuldade de refletir.

Aqui, se torna necessário refletir que função teria então a informação em referência à leitura de reflexão. Deixemos essa reflexão para uma outra vez. É necessário, porém, lembrar que, para se informar bem, é necessário já antes saber refletir, pois a pura informação ainda não me informa nada. É necessário fazer escolha na informação. E para escolher, antes, é necessário saber o que se quer. E para querer esta ou outra informação, eu devo já antes ter refletido. Examinar a diferença de interpretação na leitura do texto grego, por exemplo, de Aristóteles, feita na faculdade de filosofia e na faculdade de línguas clássicas…

Outra dificuldade mencionada é a de não sabermos bem distinguir quando é que no texto estamos ouvindo o espírito que está na raiz do texto e quando é que estamos ouvindo a nós mesmos, na nossa subjetividade. Pois muita coisa que nós achamos ser instintivo e natural espontâneo em nós, isto é, o nosso fundo o mais profundo pode não passar de uma “onda” da sociedade de consumo, introjetada de tal maneira que nem sequer mais percebemos que foi “importada”. E, além disso, uma coisa que nós chamamos de espontânea pode não passar do capricho do meu próprio “eu”, mal trabalhado.

E o que chamamos de espírito do texto, aquilo que está na raiz do texto, não é algo subjetivo, algo da interpretação de cada sujeito, algo que cada leitor a partir de si projeta para dentro do que lê, mas a realidade fundamental de toda e qualquer experiência humana de todos os tempos. Essa “realidade” de fundo, isto é, o fundamental, o pro-fundo, se chama espírito. Como tal, ele ali está, continuamente disposto, à nossa disposição. Só que nós não estamos dispostos por causa de nossos pré-conceitos e pré-ocupações.

É pois necessário nos esvaziar. No entanto, aqui é necessário ter muita precisão para entender bem o que é estar vazio. Estar vazio não é estar escancarado, armado, “desarmado” como alguém que “passivamente”, “cegamente” se entrega à sorte e ao acaso, dizendo: “deixo-me fazer de qualquer jeito”. Esse tipo de vazio, na realidade, é um afrouxamento, uma espécie de relax ou até mesmo uma preguiça e inércia espiritual. Esvaziar-se é uma formulação “negativa” de uma postura altamente positiva chamada estar disposto, na prontidão, no ponto do salto.

Estar disposto é presença de energia plena, sem divisão, sem dispersão, toda inteira: essa presença plena e una se chama simples. Uma tal profundidade de energia se esvazia de toda e qualquer dispersão. E o que cria a dispersão é o apego do eu a isso ou aquilo. Esse apego endurece e congela o eu, fixando-o naquilo a que se apega. Com isso o eu não chega a tornar-se aquilo para o qual ele foi chamado: a prontidão de doação e busca do que é grande, do que é bom, do que é infinito. Esvaziar-se é um lado da folha chamada estar na disposição, estar disposto. Portanto não tem nada a ver com a frouxidão ou escancaramento.

A dificuldade de quem busca um critério para ter certeza acerca do espírito, para poder discernir se é o espírito do texto ou é o projeto subjetivo, reside no fato de se buscar um critério. Em vez de buscar o critério, é necessário descobrir o que se deve fazer para não se apegar a isso ou aquilo, descobrir o que se deve fazer para estar na plena disposição. O problema ou a dificuldade não é, pois, saber como e quando é o espírito do texto e quando é o meu “espírito” subjetivo. A dificuldade é de se ter todo o ser disposto, na plenitude da energia para escutar, captar, acolher.

Mas para se estar assim disposto, em concreto e na prática, basta apenas ter a si mesmo sob a vigilância, para que o eu não se apegue, não dite as medidas etc., isto é, é apenas lutar contra o próprio eu, contra os projetos do eu, ou, com outras palavras: limar e purificar os próprios preconceitos, prejulgamentos, precompreensões. Pois todas essas pre-ocupações são concreções do apego do eu.

Assim, a reflexão apresenta dois momentos: um momento é a reflexão como silenciar, o outro momento é deixar o espírito do texto falar. Só que o espírito fala como e quando lhe apraz. Que ele fale, que ele venha a nós, essa parte do trabalho não é nossa. Que ele venha a nós e permaneça, que venha e se retire ou que nunca venha ou tarde em vir, esse trabalho não é nosso. O nosso trabalho é silenciar, isto é, tenaz e pacientemente limar, desgastar, confrontar os preconceitos e prejulgamentos e, assim, criar em nós o medium de fundo. Esse trabalho é exatamente o trabalho que fazemos na reflexão, isto é:

  1. a) Fazer aparecer os preconceitos, percebermos os pré-conceitos, sentirmos que o que sabemos são na sua totalidade conceitos dados, prontos, classificações e medidas que já possuímos para encaixar a realidade ali dentro;
  2. b) Examinar o que realmente estamos pensando com esses conceitos predeterminados, isto é, com os pré-conceitos. Com outras palavras, sovar os nossos preconceitos para tirar deles realmente o que estamos pensando;
  3. c) Esse trabalho corpo a corpo com as palavras, com os conceitos, com as representações que povoam a nossa mente é uma tarefa árdua, paciente, sempre de novo recomeçada na reflexão. É uma espécie de cogitação da nossa mente: a cogitatio;
  4. d) A sua função é de clarear a nossa mente. Clarear, percebendo realmente que o nosso saber não é saber, mas um não saber. E assim dar espaço a uma clareira de nova disposição para saber de um modo todo diferente: silenciar, deixar ser. Assim, no emaranhado do nosso saber abrimos uma clareira onde o espírito do texto pode começar a falar. Ele já está falando, mas é que estamos só ouvindo a nós mesmos e isso de tal maneira que nem sequer percebemos que só estamos ouvindo a nós mesmos.

Aqui surge um grande perigo na compreensão do nosso trabalho. Pois, se não ficarmos atentos, disparamos de novo uma conclusão e pensamos que esse trabalho de silenciar é eliminar os preconceitos, limpar a mente de preconceitos, como alguém que limpa a casa da sujeira. Não se trata pois de eliminar preconceitos para, no lugar deles, colocar conceitos limpos e novos. Para não cairmos nessa precipitação de conclusão, repitamos o pivô da questão.

Dissemos acima: refletir não é acionar um ou mais conhecimentos já sabidos e com eles disparar na aquisição de novos saberes. Reflexão não é informação. Nesse sentido, ela não serve para “formar” pessoas, se eu entendo por formar informar pessoas. Na informação, não compreender a explicação informativa impede a formação. Daí a necessidade de dar informações introdutórias, de se ter um bom método didático etc.

Na reflexão tudo é diferente da aquisição dos saberes. Pois a reflexão é luta corpo a corpo com os conhecimentos que se depositaram em nós mesmos como pré-conceitos, pré-juízos, pré-tensões, pré-sentimentos do saber instalado. Um corpo instalado, sem exercícios ou endurece ou apodrece na moleza. A mente dominada por saber instalado não consegue ser movida pelo sopro e pelo calor do espírito. É que ela ou é dura demais ou mole demais. O espírito é simples. Por isso, muito móvel, pluriforme diferenciado, sem perder a unidade. Escapa à mente dura ou mole no saber instalado.

No entanto, os saberes instalados, os preconceitos, são preciosos na reflexão. Pois reflexão não é eliminação dos preconceitos para substituí-los por novos e melhores saberes; mas sim, luta corpo a corpo com os preconceitos, um cordial e trabalhoso medir-se com os preconceitos. Reflexão é o ato de sova, amassar a argila endurecida ou mole demais chamada preconceito. As dificuldades de compreensão não são outra coisa do que esse próprio trabalho de amassar. Por isso não devem ser facilitadas, tirando as dificuldades através de recursos que não sejam o próprio trabalho de amassar.

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