Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução à metafísica – VI

19/04/2021

 

Determinação da metafísica como essência da filosofia

  1. A Metafísica é a disciplina principal, essencial da filosofia

Quando falamos da essência de uma coisa, falamos disso que é o cerne, o âmago, o próprio de uma coisa: a coisa ela mesma.

No ensino e na aprendizagem da matéria chamada filosofia, deparamo-nos com diversos cursos que possuem sua denominação como: História da filosofia; Filosofia da religião; Introdução à filosofia; Teoria do conhecimento; Lógica; Antropologia filosófica; Ética, Filosofia da linguagem; Filosofia da natureza; e entre todos esses cursos, curso da metafísica. Surge a pergunta: em todas essas filosofias, filosofia disso, filosofia daquilo, qual é aquela que contém em si a essência da filosofia? Há aqui também algo semelhante nas ciências positivas que dividem a disciplina em geral e especial? P. ex., psicologia geral, psicologia especializada em Jung, Freud etc.; na medicina, em clínica geral e especializada?

Exotericamente, na sua organização externa se classificam as disciplinas conforme a classificação no modo de ser das ciências positivas. Mas mesmo assim, a metafísica  é considerada como sendo essência da filosofia, pois ela tem por sua causa, está engajada na causa de nos mostrar o fundamento, a base, a coisa ela mesma, sobre a qual se erguem o edifício do ensino e da aprendizagem da filosofia.

  • Ler e comentar rapidamente o texto de Descartes: Descartes escreve ao Picot, o primeiro tradutor do livro Princípia Philosophiae, do latim ao francês: “Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a Physika e os galhos que saem desse tronco são todas as outras ciências”.
  1. A determinação da filosofia a partir dela mesma

Na apostila Metafísica 03 falamos que metafísica não pode ser entendida nela mesma, se a compararmos com outras ciências.  Assim, a diferençamos das ciências positivas; da arte e da religião; e que no enfoque da historiografia, não captamos o próprio do caráter histórico, ou melhor, historial da filosofia.

Tentemos rapidamente nessa aula apenas mencionar  dois pontos através dos quais a filosofia (leia-se metafísica) nos fala, revelando o que ela é na sua determinação toda própria, a partir dela mesma.

  1. a) O retraimento, o recuo do filosofar como uma ação humana toda própria para dentro do abismo, do intimo, do âmago da obscuridade da essência do homem: movimento de aprofundamento, escavação que a filosofia faz em diferenciado-se das ciências positivas para dentro das suas pré-suposições. Isso aparece numa tonalidade toda própria que nos dá a sonoridade da filosofia como a saudade do retorno à pátria, à sua terra natal (Cf. Novalis). Trata-se daquela determinação do fundo do ser humano de em toda parte, em tudo assentar-se, repousar no abismo do vigor do ser que perfaz sempre de novo o próprio, a identidade do homem. Esse próprio está implícito nas perguntas de aprofundamento do ser do homem que se expressam:
    • O que é isto – mundo?
    • O que é isto – finitude?
    • O que é isto – a singularização?
  2. b) A filosofia, a metafísica, i. é, o pensar metafísico vive e se movimenta no âmago do conceito que atinge a totalidade e em atingindo a totalidade atravessa total e plenamente a existência humana.

METAFÍSICA 04 A

Da metafísica a ontologia

(Ex-curso introdutório da 2da parte do Módulo I – Aulas do dia 20 de maio 08)

De hoje em diante, até o fim de junho, portanto nessa segunda parte do módulo I, vamos conhecer algumas formas em que a metafísica apareceu como filosofia de uma determinada época da história e que questões ela implica, como questão filosófica, principalmente como saber crítico referido aos fundamentos pressupostos de um saber sobre os entes. Sobre isso, falamos na primeira parte do módulo I, quando caracterizamos a metafísica como disciplina da ciência filosófica ou ontológica em contraste com as outras ciências como ciência positiva ou ôntica. Os passos que vamos dar são:

  1. Examinar como se deve entender a era pré-metafísica no seu pensar.
  2. Como do amor (philia) a esse modo de ser da pré-metafísica surgiu a metafísica, a saber, na sua face virada para a origem.
  3. Como dessa situação surge a necessidade de conservar o tesouro desvelado, e como, dessa preocupação de conservar, se passou a um modo de ser da fixação doutrinal do pensamento como uma disciplina passível de ser ensinada e aprendida por todo mundo.
  4. Como essa fixação foi entendida como evolução racional, saindo-se do irracionalismo para uma racionalização cada vez mais progressiva de um modo possível de ser e conhecer que se inaugurou mais tarde com o advento das ciências modernas, e seu desenvolvimento cada vez mais dominante.
  5. Que essas duas faces da metafísica, como pensamento originário e como doutrinas racionais acerca das causas primeiras e dos fundamentos do saber da vastidão e profundidade no saber sobre o ente, se sedimentou em diversos temas e problemas da Metafísica, na hipostatização dos seus elementos constitutivos da interpretação da Metafísica na sua diversidade dogmatizada.
  6. Tentativa de encaminhar uma interpretação, sugerida num gráfico que visa a questão a partir da consumação da Metafísica em direção ao início.
  7. Tabela do esquema das ciências positivas. A duplicidade de direção exotérica e esotérica existentes dentro da metafísica.
  8. Impostação desse problema num gráfico utilizado pelos artistas plásticos na doutrina das cores, luz e sombra.
  9. Mostrar como essa questão está implícita na seqüência da metafísica substancialista e metafísica subjetivista e seus autores (S. Tomás, Suarez, Wolf, Kant).
  10. Examinar o metafísico ainda existente no período a-metafísico da dominação das ciências positivas e sua tecnologia.

METAFÍSICA 04 B

Metafísica, no primeiro início

(29 de maio de 08)

  1. Na historiografia da filosofia, o início da disciplina filosófica chamada metafísica está colocado no fim do período chamado pré-socrático[1]. Se formos bons observadores, poderemos nessa denominação flagrar a historiografia, a sua impostação em seu ponto de vista prévio em referente a esse início. Pré-socrático significa antes de, anterior a Sócrates. Isto significa que o que vem antes de Sócrates é interpretado, medido a partir de Sócrates. Ora, na trindade Sócrates-Platão-Aristóteles (resumido, Sócrates, socrático), considerada como a iniciadora da metafísica ou da filosofia (philosophia), o que está antes do início da metafísica ou da filosofia é racionalmente mais primitivo, subdesenvolvido, animal e irracional. Com outras palavras, a sequência antes da metafísica, início da metafísica, desenvolvimento da metafísica, surgimento da ciência, evolução da ciência no seu pleno desenvolvimento racional, como ciências exatas com toda a sua racionalidade e tecnologia, foi traçada de antemão dentro da perspectiva da evolução progressiva vista a partir e dentro da impostação da historiografia moderna atual. Com isso, toda a história da filosofia se transforma em etapas progressivas da evolução da racionalidade humana, sob o ocular da historiografia que objetiva a história como quem a vê panoramicamente de fora, ali estendida num desenvolvimento linear progressivo.
  2. Essa situação é mais ou menos como se os olhos de uma árvore estivessem nas pontas dos galhos e que esses olhos só enxergassem por fora o todo da árvore, deitado no chão com raízes de fora, e como não se enxergam a partir de dentro, a partir do que os possibilita, acham que as raízes estão para trás, e que estão no nível de atraso do seu desenvolvimento etc. Com outras palavras, eles, os olhos nos galhos, só vêem o presente ali extenso, reduzindo o passado e o futuro em variantes chatos do presente. Assim, o panorama da historiografia da filosofia é visão exotérica da essência da filosofia e manifesta a etapa final da consumação da metafísica como esquecimento do ser, da essência da filosofia; portanto o fim da metafísica.
  3. Mas quanto mais nos aproximamos da situação, desse estado da nossa auto-compreensão da metafísica na sua consumação, e só conseguimos ver, ouvir e sentir historiograficamente, surge a necessidade da tentativa e tentação da recolocação da questão de investigar a metafísica e sua história de outro modo e num nível diferente que o da historiografia. Esta outra história da filosofia ou da metafísica é a tarefa da ontologia que ausculta continuamente e sempre de novo o sentido do ser do ente no seu todo.
  4. Isto significa que antes da metafísica, antes da filosofia, o que aparece já dentro da perspectiva da historiografia como pré-socrático, é a origem da questão do sentido do ser, da ontologia e é diante dela que eclode o taumázein grego, o espanto, que exclama: por que há simplesmente o ente e não antes o nada? (Leibniz): O início da filosofia ou da metafísica é admiração.
  5. Esse slogan, porém, pode ser entendido inadequadamente.

– Somente com a admiração, entendida como vivência psicológica se inicia a filosofia.

– Antes, tudo é cinzento, indiferente, um estar adormecido para o ser e sua ocorrência.

– Ad-miração é afeição e fascínio da ontologia, mas ao mesmo tempo no cuidado e no interesse da sua essência, início da metafísica ou filosofia.

– A mira, a aberta, como Logos da Physis, onde não ocorre o conhecimento como adequação do intelecto humano com o objeto, mas conhecimento é conascimento: ser e o pensar é o mesmo.

– A ausculta do sentido do ser do ente como conhecimento, como conascimento: pensar.

– Pensar como fio condutor e referencial da tecelagem; pensar com estar suspenso, pendente, ou espera do inesperado. Pensar como pensum, a quantidade de lã que deveria ser transformada em fio e tecido. Pensar como pensar a ferida. É o modo de ser da pré-sença.

– Antropologia não é descrição das propriedades do homem, mas sim a preparação do lugar, onde deve ser retomada a questão do sentido do ser.

  1. Reflitamos essas questões à mão de alguns textos tirados da conferência Que é isto, a filosofia[2].

– A questão: que é filosofia? não é uma questão que uma espécie de conhecimento se coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questão também não é de cunho histórico; não se interessa em resolver como começou e se desenvolveu aquilo que se chama “filosofia”. A questão está carregada de historicidade, e historial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso destino. Ainda mais: ela não é “uma”, ela é a questão historial de nossa existência ocidental-europeia (p. 26).

– A palavra grega philosophia remonta à palavra philosophos. Originariamente esta palavra é um adjetivo como philárgyros, o que ama a prata, como philótimos, o que ama a honra. A palavra philósophoi presumivelmente foi criada por Heráclito. Isto quer dizer que para Heráclito ainda não existe a philosophia. Um anér philósophos não é um homem “filosófico”. O adjetivo grego philósophos significa algo absolutamente diferente que os adjetivos filosófico, philosophique. Um anér philósophos é aquele hòz philei to sophón que ama o sophón; philein significa aqui, no sentido de Heráclito, homologein, falar assim como o Lógos fala, quer dizer, corresponder ao Lógos. Este corresponder está em acordo com o sophón. Acordo é harmonia. O elemento específico de philein, do amor, pensado por Heráclito, é a harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro.

– O aner philósophos ama o sophón. O que esta palavra diz para Heráclito é difícil traduzir. Podemos, porém,  elucidá-lo a partir da própria explicação de Heráclito. De acordo com isto tò sophón significa: Hèn Pánta “Um (é) Tudo”. Tudo quer dizer aqui: Pánta ta ónta, a totalidade, o todo do ente. Hén, o Um, designa: o que é um, o único, o que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophón significa: todo o ente no ser. Dito mais precisamente: o ser é o ente. Nessa locução o “é” traz uma carga transitiva e designa algo assim como “recolhe”. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente. O ser é recolhimento – Lógos (p. 21-22).

A grande dificuldade de entender o óbvio

Filosofia, da qual a metafísica se refere ao tema essencial da filosofia significa amor à Sofia, a sabedoria. No pensar principial, isto é, no princípio não havia filosofia, pois o seu início se dá com metafísica. A metafísica como disciplina filosófica aparece, digamos, “materializada” em doutrinas, sentenças, sistemas de diferentes tipos. Temos assim metafísica, ou filosofia grega, medieval, moderna, contemporânea. Todas elas falam do ente no seu todo. Falam de tudo que é. Fala do ser do que é. Assim começamos a falar do ser e ente. Ser no ente, e ente no ser.

Há algo mais óbvio do que o ente, o ser, o é? No Ser e tempo, bem no início, se fala dos três preconceitos acerca do conceito tradicional do ser. Se metafísica é grega no sentido historial, então nós que aqui estamos, mesmo que não tenhamos ouvido nada da metafísica, estamos, da cabeça aos pés, metidos na metafísica, na filosofia. O grande preconceito de que o conceito do ser é o mais óbvio, e que o óbvio é o evidente em e por si, e que não há explicação por ser ele autoevidente é o espaço e tempo em que estamos ao considerar o princípio, a origem, “anterior” ao início da filosofia como metafísica.

Assim, as palavras essenciais dos pré-socráticos como phýsis, lógos, ón, ónta, e agora no texto da conferência O que é isto, a filosofia?, de Martin Heidegger, as palavras como tò sophón, anér philósophos, homologein, hén:pánta, harmonia têm imensa dificuldade de ser entendidas como óbvias no sentido da obviedade da metafísica, da filosofia, desde o início até hoje na consumação da metafísica.

Na conferência, na formulação decisiva, se diz:

Tò sophón diz Hén pánta.

Pánta ta ónta diz o todo, o todo do ente.

Hén diz o um.

– O um diz o uno, o único, o que tudo une.

E então vem o dizer decisivo: Unido, porém, é todo o ente no ser. Dito com maior acuidade: o ser é o ente. (Das Sein ist das Seiende). Aqui bem junto, “é” fala transitivo e diz tanto quanto “recolhido”. O ser ajunta o ente nisso que ele é ente. O ser é recolhimento – Lógos”.

Esse recolhimento tem algo a ver com o que segue como a fala de Chuang-tzu?

– No princípio de tudo era o toque do silêncio, a serenidade, o sem nome. O sem nome era o Uno, sem corpo, sem forma. Este Uno — este Ser em quem todos acham a força para existir é o vivente. Do vivente vem o sem-forma, o indiviso. Do ato do sem-forma, vêm os existentes, cada qual segundo seu princípio interior. Isto é forma. Aqui  corpo abraça e acaricia o espírito. Os dois atuam juntos como um, unindo e manifestando seus caracteres. E isto é a natureza. Mas aquele que obedece à natureza retorna através da forma e do sem-forma ao vivente. E no vivente une o começo que-não-começou. A união é a igualdade. A igualdade é o toque do silêncio, a serenidade. A serenidade é in-finita.O pássaro abre o bico e canta seu trinado. E depois o bico retorna novamente ao silêncio. Assim, a natureza e o vivente encontram-se na serenidade. Como o fechar do bico do pássaro após o canto. O céu e a terra unem-se no não-iniciado, e tudo é tolice, tudo é desconhecido, tudo é igual às luzes de um idiota, tudo é sem mente! Obedecer quer dizer fechar o bico e cair no que-não-começou.

– Na época em que a vida na terra era plena, ninguém dava nenhuma atenção aos homens dignos, nem selecionavam os homens capazes. Os soberanos eram apenas os galhos mais altos das árvores, e o povo era como cervos na floresta. Eram honestos e corretos, sem imaginar que estavam cumprindo com o seu dever. Amavam-se mutuamente, e não sabiam que isto se chamava “amor ao próximo”. Não enganavam a ninguém, e, no entanto, não sabiam ser “homens de confiança”. Podia-se contar com eles, e  ignoravam que isto fosse a “boa fé”. Viviam juntos livremente, dando e recebendo, e não sabiam que eram homens de bom coração. Por esse motivo, seus  feitos não foram narrados. Não se constituíram em história.

Metafísica 04 d

Resumo

  1. Compreensão geral da metafísica na opinião usual:
  2. a) Na vida cotidiana; na vida científica, tanto das ciências naturais como humanas, quando os cientistas falam da filosofia; e também na filosofia, quando ela se interpreta a partir de instâncias fora da experiência da própria filosofia.
  3. b) Nessa compreensão geral se entrecruzam compreensões da metafísica imprecisas como doutrinas

– sobre coisas e sua realidade, que existem para além do mundo natural captável pelos cinco sentidos (mundo supra-sensível);

– sobre coisas e sua realidade captáveis e calculáveis como idealidades e funções da inteligibilidade lógico-matemática (mundo inteligível);

– sobre coisas e sua realidade para além das aparências imediatas dos fatos e ocorrências da nossa vida, como p. ex., vida depois da morte, sentido último da vida, moral, destino, mistério (mundo divino).

  1. c) Essas compreensões, implícitas na compreensão geral da metafísica, não estão erradas, mas se encontram achatadas e fixadas a modo do saber superficial, para o uso da vida cotidiana, e nesse achatamento se tornam defasadas de modo que não nos transmitem a vastidão, a profundidade e a criatividade que ali pulsam como busca de conhecimento da realização da realidade abissal e fundamental do ser de todas as coisas.
  2. d) Assim, torna-se necessário estudar a metafísica a partir dela e nela mesma, e não através de outras ciências positivas, mundividências e ideologias. Esse estudo da metafísica, a partir dela mesma e nela mesma, é o que a disciplina filosófica chamada Metafísica quer fazer. Mas para isso ela deve primeiro assumir o confronto com a ambigüidade de compreensão que ela mesma cria a respeito de si mesma, quando se interpreta a partir de um modo de ser e saber da impostação das ciências naturais e da historiografia. Nesse enfoque a metafísica é colocada dentro da perspectiva do desenvolvimento da capacidade de saber sobre a realidade do homem, que, no processo de evolução do seu estado primitivo selvagem-irracional até alcançar a plenitude da metafísica, da racionalidade e da consciência, passa por etapas de superstição, mito, religião, ou filosofia, até alcançar a ciência.
  3. Historicamente a palavra metafísica indica o lugar das apostilas redescobertas de Aristóteles (1 séc. a. C.) na ordem de sua catalogação depois das escritas sobre física (lógica, física <(metà tà physiká)>, ética. Esta catalogação se deu no 1 século antes de Cristo. Aristóteles viveu de 384/83 até 322. O que nesse entremeio do tempo a escola de Aristóteles sistematizou como aristotelismo, é interpretação dos textos de Aristóteles. E o que depois da redescoberta dos escritos de Aristóteles a humanidade fez com os conteúdos da apostila chamada metafísica e um problema à parte da historiografia. Em referência a esses conteúdos, atribuídos à metafísica de Aristóteles, estão aqueles temas acima mencionadas como sendo conteúdo da metafísica na acepção geral da nossa compreensão usual.
  4. Hoje, no terceiro milênio, bem distanciados cronologicamente de Aristóteles e da sua apostilha metà ta phyiká e do início da metafísica (leia-se filosofia), investigando esse início da metafísica podemos ver um pouco melhor e dizer o seguinte:
  5. a) Sócrates, Platão e Aristóteles estavam como que na encruzilhada, entre a origem do pensamento grego e o que dessa origem saltou, surgiu, cresceu e está se consumando constantemente como o ser e o modo de ser do que hoje denominamos de Destino, i. é, história do Ocidente-europeu, em cuja vigência todos nós estamos inseridos até ao pescoço, no estágio do desenvolvimento do progresso científico tecnológico.
  6. b) Essa origem é a plenitude de um ser e pensar. Plenitude qual a sonora entoação do toque de eclosão de uma grande possibilidade da abertura de um novo mundo na sua imensidão, profundidade e criatividade, quando cintila e se retrai, e se oculta, deixando ser a possibilidade como nascer, crescer e consumar-se de cada ente no seu todo, no seu ser. Sócrates, Platão e Aristóteles estavam colocados no in-stante desse eclodir do novo mundo, intuindo a maravilha da origem e ao mesmo tempo, sentindo a responsabilidade de não se deixar perder esse toque originário. Sócrates não escreveu, mas dedicou todo o seu tempo de vida a se expor corpo a corpo a essa maravilha da origem do ente no ser e a presença do ser no ente. Essa sua exposição de vida e morte à verdade, em grego, a-létheia, ao sentido do ser da origem, se manifestou na expressão grega ti estin, o que é isto?, modo de perguntar que atravessa toda a história do ocidente-europeu. Platão tenteou captar, verbalizar e fixar a intuição da origem na palavra eidos ou idéia, é, abrir-se inteiramente ao vislumbre de um toque (raio) que rasga a escuridão e faz por instante surgir a paisagem do ente no seu todo. Aristóteles tenta compreender esse movimento da abertura da possibilidade da totalidade do ente como toda uma paisagem do sentido do ser como tarefa de um trabalho essencial do perfazer-se humano como responsabilidade de ser cada vez na concreção da dýnamis para enérgeia e da enérgeia para entelécheia, como o perfazer-se de uma obra.
  7. c) Esse movimento se expressa na perplexidade de uma busca a ser retomada sob o título de Questão do sentido do ser, cuja necessidade da repetição é colocada como frontispício da passagem, da transformação da Metafísica em ontologia, mas agora num sentido bastante diferente da compreensão da ontologia usual, ainda sob a sombra da metafísica. Diz assim o início do Ser e tempo: dêlon gàr hos himêis mèn taûta (ti pote boúlesthe semaínein hapótan ón phthéggesthe) pálai gignóskete, hemêis dè prò toû mèn oómetha, nûn d’eporékamen… (Platão, O sofista, 244ª) “…pois é evidente que de há muito sabeis o que  propriamente quereis designar quando empregais a expressão ‘ente’. Outrora, também nós julgávamos saber, agora, porém, caímos em aporia”. Será que hoje temos uma resposta para a pergunta sobre o que queremos dizer com a palavra “ente”? De forma alguma. Assim sendo, trata-se de colocar novamente a questão sobre o sentido de ser. Será que hoje estamos em aporia por não compreendermos a expressão “ser”? De forma alguma. Assim, trata-se de despertar novamente uma compreensão para o sentido dessa questão. A elaboração concreta da questão sobre o sentido do “ser” é o propósito do presente tratado. A interpretação do tempo como o horizonte possível de toda e qualquer compreensão do ser em geral é sua meta provisória.
  8. Assim, da origem (pré-socráticos) e do início do que do seu toque originário saltou como possibilidade de ser, nasceu uma ambiguidade na compreensão do que no Ocidente europeu recebeu o nome de metafísica ou filosofia. Uma vez ela é entendida como o que restou da tentativa de Sócrates, Platão e Aristóteles como “luta de gigantes acerca do ser” i. é, a questão do sentido do ser do ente no seu todo, de um lado, e de outro lado como as tentativas de estabelecer em cada época um todo coeso e fechado em si do saber certo e confiável, como um saber sobre os entes de um mundo cada vez já estabelecido. Essas tentativas então se chamam metafísicas ou filosofias.
  9. a) metafísica ou filosofia é cada vez um todo e cada época possui a sua metafísica ou filosofia.
  10. b) Como um todo fechado em si como saber sobre o ente estabelecido, seguindo as classificações da historiografia, podem aparecer ora como superstição, mito, mundividência, religião, metafísica, filosofia e ciência.
  11. c) Considerada sob o enfoque da excelência do autoasseguramento de um sistema fechado e coerente na certeza do saber sobre o ente no todo já estabelecido, há critério do ranking da cientificidade. Hoje, o estado excelente desse tipo de saber se chama ciência natural.
  12. d) O momento “questão do sentido do ser do ente” não aparece como uma das possibilidades da filosofia ou metafísica, ao lado delas. Ele é antes a questão que está no fundo, no seio, no bojo de cada filosofia ou metafísica como sua essência. Ela é e deve ser colocada cada vez e sempre de novo em cada época, eu repetição.

Metafísica 04 e

Do Pensar originário à metafísica e à ontologia (resumo, continuação)

  1. Falamos na última aula da origem do pensamento grego antigo e o início da metafísica ou filosofia, sob o toque do pensamento grego antigo. Ao falarmos da origem, distinguimos origem ou princípio do começo ou início.
  2. a) Origem ou princípio: Na língua alemã, origem ou princípio se diz Ursprung (Ur + Sprung: Ur = originário, Sprung = salto). Origem é Com o termo salto indicamos todo o percurso do movimento, desde o primeiro trecho até o último trecho. O vigor do salto, a sua dinâmica, está presente todo inteiro, em cada momento do trecho saltado, desde o primeiro, e os momentos sequentes até o último. Portanto, o salto, a origem, o princípio é o lance do todo. Esse lance do todo diz respeito a uma determinada possibilidade que no e do toque de origem surge, cresce e se consuma. O todo da dinâmica simbolizado no gráfico <> é a possibilidade, deslanchada pelo toque do ser, como desvelamento, como realização de uma das possibilidades inesgotáveis e insondáveis de ser. Essa possibilidade cada vez determinada, sob o toque do ser se chama o ente. O seu modo de ser como determinada possibilidade se chama entidade. O que vem à fala, o que se desvela, o que aparece como ente na sua entidade como concreções da entidade se chama isto, aquilo, isto aqui, aquilo lá, coisa, objeto, troço, trem, algo, o quê.

A palavra grega para dizer a verdade é alétheia. Alétheia é composta de a + léthe. Léthe  vem do verbo létho (1ª pessoa do presente indicativo ativo; no latim láteo, cf. em português latente, latejar) que é uma forma épico-poética do jônio) do verbo lantháno que significa estar escondido, oculto, retraído, resguardado, velado. O prefixo a é denominado alpha privativo e usualmente é entendido como negação que priva disso ou daquilo a que ele precede, p. ex., abúlico, apático, ateu, asstenia etc. Aqui também na a-létheia pode se pensar que significa a negação do ocultamento, o não velamento, o não escondido, mas esse não (a) não tira o ocultamento, mas o conserva, o guarda, o resguarda no seu modo próprio do retraimento, ao fazer aparecer um momento claro, a saber um mundo, do todo da dinâmica e do mistério da revelação.

  1. b) Ilustração:
  • A physis como aparece no brilho contido da paisagem grega.
  • A face humana: A estória budista da vida de um dos seus patriarcas e santos na saga do Portal do Inferno: a princesa Kessa.
  • Cena da transfiguração.
  • São Fancisco de Chesterton, e a postura do pintor original.
  • Ice-berg.
  • O barqueiro de Tefé.
  • Problema e questão da sexualidade.
  1. c) Começo ou início: É o primeiro passo dentro de uma possibilidade determinada já lançada como o primeiro de uma série de passos, entendidos somativamente. Assim, o início ou o começo é logo deixado para trás como um dos outros passos da série. Esse tipo de sequência caminha no modo de ser do pro-gresso e re-gresso, e esse tipo de progresso pensa fazer aumentar o vigor do primeiro passo numa escalação até chegar ao cume e para então decrescer, caducar até o fim da picada, onde tudo desaparece. Esse modo de pensar o todo é o modo de ver o caminhar do ser como evolução e involução.
  • Esse começo ou início e a série de passos, desde o primeiro até o último, não levam em conta que o todo do ente na sua entidade, é uma determinada possibilidade de ser, em cujo desdobrar e implicar de tudo que se dá no seu percurso é possibilitado pelo toque da origem presente todo inteiro em cada passo da série dos passos sequenciais somativa. Assim, não percebe que cada passo é cada vez destinado a ser tudo, no ser próprio como instante cada vez diferente do toque da possibilidade chamada origem ou princípio. Esse esquecimento do toque da origem faz com que se crie padrão de medições onde a diferença é considerada dentro do esquema de indivíduo, espécie e gênero, onde no genérico, no geral surge o conceito do ser, o da abstração generalizante que hoje se transformou em critério e instância básica da certeza, certeza essa que aparece como ideal e medida das ciências exatas físico-matemáticas.
  • Essa impostação cria uma série de binômios discriminativos, cuja eliminação de um dos binômios nos leva à igualação e ao achatamento do ser numa unidimencionalidade coisal neutra e indiferente.
  • Ser e tempo: Preconceitos acerca do conceito do ser, pp. 27-30.
  1. Recondução à Origem é tarefa da ontologia, no sentido da Questão do sentido do ser. O lugar onde se realiza essa redução ou recondução, esse retorno é Metafísica, cada vez na sua fixação dentro da entidade do ente na sua determinação própria. Mas esse retorno à Origem não é voltar ao início, ao começo da série, mas à Origem do todo do lance (<>). Isto significa, aprofundar ou intuir (= intus ire = ir para dentro) do fundo de si mesmo da epocalidade de cada tempo.

Metafísica 04 ea

Excurso, ilustrando Metafísica 04 e

  1. Recordando a imagem da árvore de Descartes: Descartes escreve ao Picot, o primeiro tradutor do livro Princípia philosophiae, de latim ao francês: “Assim, toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, e o tronco é a physika e os galhos que saem desse tronco são todas as outras ciências”.
  2. a) Do que viemos refletindo acerca da relação entre Metafísica e Ontologia introduzamos nessa imagem da árvore a distinção. Nas raízes, Metafísica, se distinguem dois momentos: metafísica e ontologia.
  3. b) Posso considerar o conjunto todo (metafísica+ontologia) como ontológico.
  4. c) Posso considerar a metafísica como a parta mais profunda e fundamento da física.
  5. d) Posso considerar a ontologia como investigação acerca do contacto da Terra e de sua vigência com as raízes. Esse contacto e a sua dinâmica não aparece como uma parte da árvore, mas é essencial para o todo da árvore. “Aparece”, porém, como que reflexo da sua atuação na metafísica.

 

  1. Distingamos, portanto:
  • a) ciências: humanas e naturais.
  • b) Metafísicas especiais: cosmologia (universo), psicologia racional (homem), teodicéia (o divino).
  • c) Metafísica geral (o ente enquanto ente)
  • d) Ontologia: Questão do sentido do ser do ente.
  1. O que foi dito acima pode ser dito da maneira que se segue: a) ciências humanas e naturais
  • b) ontologias regionais: região universo; região homem e região divino.
  • c) ontologia.
  1. A filosofia (“metafísica”) é propriamente uma saudade da pátria, um impulso para se estar por toda a parte em casa (Novalis).

Metafísica 04 eb

Explicação dos itens dos assuntos tratados na apostila 04 e

Item 1. a): A descrição feita na aula passada para diferenciar origem e começo tinha por finalidade diferenciar o modo de ser e entender a história da metafísica (filosofia) a partir e dentro da explicação feita pela própria metafísica (filosofia) e a partir e dentro da explicação feita pela ciência positiva da historiografia[3]. A palavra origem e a descrição do seu modo de ser como salto originário pertencem e dizem respeito à explicação que a própria metafísica ou filosofia dá de seu surgir, crescer e consumar-se. Ao passo que a palavra começo, como o primeiro passo de uma série de passos que se sucedem, pertence e diz respeito à explicação que a historiografia se dá a si mesma do surgir, crescer e consumar-se sobre[4] a metafísica ou filosofia.

Metafísica ou filosofia explica o seu surgir, crescer e consumar-se como origem ou salto e como deslanche, lance da possibilidade, i.é, potência ou poder de ser. Então coloca o modo de ser da origem, grande, excelente, como ponto alto e o que segue, a saber, a metafísica (filosofia) como uma das realizações da origem (toque do ser). Assim, considera cada momento do que saltou como metafísica (filosofia) como repetição do salto, como o manter-se no pique do salto, em cada época, deste ou daquele modo, sendo impulsionado pelo lance, pelo toque do ser. Assim, as sucessões das épocas no destinar-se da metafísica ou filosofia não podem ser compreendidas adequadamente com precisão no esquema de evolução e desenvolvimento, ou involução e subdesenvolvimento etc., mas sim cada vez em re-petição, i. é, em retomada do mesmo, em petição do mesmo em diferentes modos[5]. Isto significa que cada vez de novo o que foi (passado), o que é (presente) e o que será (o futuro) deve ser decidido como origem, como lance, como possibilidade cada vez nova e plena do toque do ser. E isso por pior que possa parecer o momento da época. Deve ser assumido como possibilidade da origem. Como estando sob o impulso da origem.

Esse pro-ducto[6] então aparece como ente, como em sendo[7]. O ente como o que saltou da origem, no seu modo de ser como salto, não é uma coisa estática, parada, imóvel, mas é algo tinindo de dinâmica em si, pulsando da potência, da possibilidade de ser. É o concreto da dinâmica do surgir, crescer e se consumar, sintetizado num lance, de uma vez como o que nasceu (potência tinindo na dinâmica de crescer e se perfazer), redondinho, cheio, cada vez na plenitude do ser. Os primeiros gregos chamavam o on de phainómenon (fenômeno)[8]. Fenômeno é como o que se clareia ou se afogueia, se abrasa a partir de si, nele mesmo, de dentro de si: é incandescência. Exemplo: o clarear do luar; o carvão que se incandesce.

No assim se incandescer, há o momento abrasado e nesse abrasado mesmo aparece o que se retrai como o fundo abissal donde surge, nasce, se origina a claridade. Esse movimento de aparecer em se incandescendo, em se abrasando se chama em grego aletheúein. Cf., pois, a apostila Metafísica 04, onde fala da alétheia.

O nosso ver usual capta esse modo de ser do ser ente achatado. Congelado e coisificado como isso e aquilo. Pontualizado. Vê só as pontas dos galhos, como monte disso e daquilo, sem intuir, i.é, ir para dentro da dinâmica da origem, i. é, como dinâmica do surgir, do nascer, do phýein, da phýsis, i.é, como movimento do suco que através dos galhos principais, tronco e raízes sobe da terra para irrigar e vitalizar os galhos.

No princípio do salto da origem, os pais da metafísica (Sócrates, Platão e Aristóteles) viam ainda com espanto (taumázein, admirar) todas as coisas na unidade (hén pánta) do lance, no movimento do salto como nascer, crescer e consumar-se a cada instante.

Metafísica 04 ec

Metafísica grega e medieval da filosofia tradicional realista

O que nós conhecemos como metafísica grega e medieval (abstraindo-se das suas diferenças consideráveis) é considerado, num apanhado geral do que lhes é comum, como tradicional.  Realista porque tem por tese a existência em si do ente a modo de “coisa” (res) no sentido usual. O ser existente em si é o fundamento a priori e medida da certeza de todo o conhecimento. Em contraste com essa metafísica tradicional realista, a metafísica moderna (Descartes, Leibniz, Christian Wolf, Kant, Fichte, Schelling, Hegel) é considerada como “idealista ou subjetivista, por afirmar que o homem é o sujeito e o agente da realidade; é entendida como objetividade, a saber, o ser, existente em si não é mais a medida da certeza do conhecimento, mas sim o projeto da idéia, realizado pelo homem, portanto, idéia do homem como sujeito e agente da objetividade, enquanto fundamento a priori a certeza de todo o conhecimento.

Esse esquema de catalogação da metafísica em realista e idealista é uma tentativa de explicar a metafísica (filosofia) de modo simples e imediatamente compreensível. Ele, porém, é de pouquíssimo valor filosófico, pois a pré-compreensão do ser ali operante está afetada por fixação ingênua da concepção do ser, defasada e indevidamente abstrata do sentido do ser da realidade pré-científica.

Com outras palavras, a concepção do ser pressuposta nesse esquema ingênuo acima mencionado do realismo e do idealismo é a concepção defasada e indevidamente abstraída da metafísica inicial como o primeiro passo da filosofia a partir do lance da origem, a partir do salto originário, dentro do pensamento dos pré-socráticos.

À filosofia ou à metafísica como o início, como o começo, como o primeiro passo de uma série de passos realizados pela metafísica, denominamos de metafísica substancialista. Substancialista, porque o conceito fundamental dessa filosofia é a substância.

 

Metafísica substancialista é a metafísica dos gregos depois de Aristóteles (Sócrates e Platão) e a metafísica dos medievais. A palavra-chave dessa metafísica ou filosofia substancialista é SUBSTÂNCIA[9].

Em contraste com essa metafísica substancialista, a metafísica moderna se chama metafísica da subjetividade. A palavra-chave dessa metafísica ou filosofia moderna é SUJEITO (Descartes até Hegel).

Nós, modernos, no cotidiano, tanto na vida como na ciência, na dimensão assim chamada pré-científica nos movemos e somos na metafísica substancialista, ora ainda de alguma forma atinente ao seu modo de ser originário, ora já bastante defasada e congelada para não dizer bitolada, denominada de filosofia do realismo. E, quando falamos de idealismo, subjetivismo, como característico da metafísica moderna, não saímos da bitola da filosofia substancialista, entendida de modo já defasado e decadente. Por isso, foi dito acima que esse esquema explicativo da diferença entre a metafísica antiga e/ou medieval e metafísica moderna como realista e idealista tinha pouquíssimo valor filosófico e histórico.

Por isso, embora o assunto seja difícil e complicado, tentemos nessas últimas aulas do Semestre (Módulo I) ver em detalhes o modo de ser e pensar da metafísica da tradição, a saber, no que a filosofia dos gregos e dos medievais, mutatis mutandis tem de comum,

 

Metafísica grega e medieval, como metafísica da substância, na sua compreensão originária inicial

Há uma grande diferença na significação entre o que na Idade Média se entendia por subiectum (sujeito, subjetivo) e obiectum (objeto, objetivo) e o que, depois da transformação operada na compreensão do subiectum através de Descartes, se entende por obiectum.  Aquele pode-se chamar coisa-substância e este objeto-representação. Aqui, examinemos mais o obiectum medieval, a coisa-substância e o seu modo de ser, e deixemos para o semestre que vem ou para a disciplina história da filosofia moderna o exame do objeto-representação. Aqui, na disciplina filosófica chamada metafísica, basta ver o modo de ser da metafísica e seu aprofundamento dentro da ontologia, tematizando a diferença ontológica entre a metafísica antiga e moderna. Na metafísica e ontologia, quando distinguimos coisa-substância e o objeto-reresentação, como característicos diferentes da metafísica antiga-grego-medieval e metafísica moderna, não estamos colocando ser-coisa e o homem como duas entidades contrapostas, ou alinhadas uma ao lado da outra, e explicando a metafísica antiga e medieval de um lado como uma filosofia realista que acentua o ser, a coisa em si e de outro lado a metafísica moderna como filosofia idealista, subjetivista que acentua o homem. Nessa diferenciação entre duas metafísicas, na realidade, se trata de ver o sentido do ser a partir e dentro do qual os antigos viam e explicavam a coisa e o homem, e nós modernos vemos e explicamos a coisa e o homem.

Na Idade Média, uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego. Aqui, objeto significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. E correspondendo a essa compreensão do objeto, sujeito significava coisa-substância. A dinâmica de efetuação da coisa-substância, o subiectum medieval, com o correspondente obiectum medieval, a coisa, não poderia ser chamada propriamente de objetivação. Pois se reserva a palavra objetivação e objeto de preferência para a dinâmica de efetivação do subiectum do representar como sujeito e obiectum como o representado, na nossa época moderna. A efetivação coisa-substância tem como resultado coisa ou substância. A coisa é diferente do objeto. E o homem, enquanto “recepção”[10] dessa efetivação coisa-substância e sua coisa, é diferente do homem “sujeito e agente” da objetivação do objeto-representação. Desta última, se diz, portanto: objetivar “é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim representá-lo”.

Para nós, hoje, sujeito indica o ente humano. Na gíria, juntamente com “o cara”, sujeito significa um individuo humano determinado, mas numa denominação “neutra”. Na Idade Média sujeito, subiectum era equivalente à substantia, substância, à coisa, e significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex., as coisas.

O sujeito medieval, i. é, a substância, a saber, a coisa, quando lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar se chamava obiectum, objeto.

Coisa não é objeto

Nós temos dificuldade de entender de que se trata, quando o texto chama o subiectum, i. é, a substância de hypokeímenon. Pois, hoje, entendemos tanto o subiectum como também o obiectum medieval (substância-coisa) não a partir da substantia, da hypokeímenon, da pre-jacência, mas a partir da compreensão da substância como objeto da representação do homem como sujeito, no sentido da nossa época moderna.  Tentemos brevemente nos livrar desse pré-conceito moderno da compreensão da substância, pois compreender bem, com mais precisão de que se trata, quando o medieval dizia subiectum, substantia a modo do hypoleímenon, nos pode facilitar a ver a diferença entre o todo da metafísica antiga grego-medieval e a metafísica moderna.

A nossa compreensão usual da coisa como substância e acidente, mesmo em certos manuais de filosofia medieval, parece ser uma mistura de uma compreensão, bastante defasada, da substância medieval como hypokéimenon e da compreensão defasada do objeto-representação, no nível de “o contra-posto existente de experiência das ciências naturais”. Pois entendemos substância como um quê permanente, imutável, núcleo, cerne, que está sob (sub – stância), debaixo de um conjunto de acidentes, que vêm e vão, que são propriedades não essenciais, passageiras e mutáveis. Esse quê núcleo é algo como um ponto, duro, compacto, o atômico. Essa compreensão é o último resquício da compreensão da substância já deficiente como essa ou aquela coisa maciça, o bloco, algo espesso, denso, substancial.

Se, porém, tentarmos compreender o subiectum e o obiectum, a partir da substância medieval, sem a pré-conceituosa mistura do antigo e do moderno, ambos defasados, ouvindo o que a palavra grega hypokeímenon nos quer dizer, percebemos que coisas não são blocos, núcleos, isto, aquilo, ali, lá, acolá, mas sim prejacência.

A palavra prejacência não existe em português. O verbo jazer vem do latim iacere, e assim é possível formar o verbo prejazer, e dali prejacência. E significaria mais ou menos o que o verbo grego hypokeisthai significa, a saber, estar assentado, bem repousado, fundado e ajustado em si mesmo. Esse sentido ainda está vigente no adjetivo substancial em português. Exemplos de substância (hypokeímenon) nesse sentido seriam, por exemplo, montanha, imensidão que se estende como planície, um filhote de porco que nasceu redondinho, perfeito, uma obra bem acabada, perfeita, uma pessoa bem assentada em si, madura, confiável, justo e reto. Portanto indica o assentamento, a integração, o ajustamento bem feito dentro de um todo, como atinência e pertença à totalidade prejacente da realidade ali estendida, imensa, profunda e bem consumada. Substancial é, pois, contrário do avoado.

Mas em que sentido?  Quando uma imensa extensão se espraia e jaz diante e ao redor de nós, como p. ex. numa chapada, não somente temos a sensação da extensão horizontal, mas ao mesmo tempo a extensão possui peso, é como se o todo da imensidão subisse do fundo e se abrisse como vastidão bem assentada no profundo de si mesmo. Esse modo de ser de uma paisagem, onde percebemos a imensidão, profundidade e vigor do sereno estar assentado em si mesmo, para dentro do seu profundo é dito na palavra hypokeímenon, hypokeisthai, prejacência, substância. Esse “assentar-se no seu ser”, a prejacência não é isto ou aquilo, não é localizável aqui, ali, como um objeto, mas ele impregna o todo e cada momento, todas as articulações e partes do todo, está presente como vigência em todas as coisas que constituem a paisagem, perfazendo a cada qual, o seu “erguer-se”, o seu surgir, crescer, consumar-se a partir e para dentro dessa prejacência . São: os prejacentes a partir e dentro da imensidão, profundidade e vigor da prejacência de ser, de si, os presentes, a saber: as coisas”. Coisas de tal teor, se destacam no seu perfil, saltam aos olhos, de quem in-abita, mora na estância, bem assentado na imensidão, profundidade e vigor desse modo de ser da prejacência[11]. Isso porque, tanto as coisas, como o homem são entes prejacentes, presentes, cada qual a seu modo, junto, na cercania da pregnância do vigor da prejacência. Por isso, substância (hypokeímenon) se diz também essência, em grego ousia[12].

Esse modo de ser da prejacência, a substancialidade vige em todas as coisas para que cada coisa seja cada qual a seu modo substância. E o assentar-se no ser, de cada coisa, portanto a substancialidade de cada coisa, a seu modo, perfaz a identidade diferencial de cada coisa enquanto substância, i. é, prejacência do vigor, a tornar-se, em sendo, concreções, a saber, coisas ou entes, no seu todo, a saber, cada vez um mundo. A grande dificuldade de nos mantermos na precisão da compreensão do que seja tudo isso que estamos falando, consiste em sempre de novo objetivarmos à la representação no sentido nosso atual da metafísica da subjetividade, a prejacência, a substância como esta ou aquela coisa-bloco, mas também ao mesmo tempo, de representarmos a prejacência que impregna e integra todas as coisas e cada coisa, como algo espacial, extencional, a modo da extensão quantitativo-geométrica etc. Mas, então, como é possível ver, captar, se afetar, ou melhor, ser tocado sem representar, sem objetivar, sem nada de intermédio, assim direta e simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a não ser: em sendo simples e imediatamente ver, captar, se afetar, ser tocado. Pois aqui ver, captar, se afetar, ser tocado não é outra coisa do que de imediato e simplesmente ser presente, prejacente a seu modo, como ente denominado homem[13], na pregnância da imensidão, profundidade e vigência da prejacência. Esse ver simples e imediato é como abrir-se de uma paisagem, a “clareira” de fundo livre a partir e dentro da qual cada ente é deixado ser na propriedade do seu ser. Aqui compreender, conhecer não é entrar em contacto com o objeto contraposto como com algo posto a partir do projeto do interesse de um eu ou nós sujeito, mas é ser coisa junto de e com outras coisas, assentado com elas para dentro da pregnância e integração do todo da prejacência, portanto, conascer, e estar junto no ser  coisa-substância, cada coisa, no entanto, na diferença própria, que lhe cabe, que lhe cai bem conforme a intensidade da sua identidade no ser.

  1. a) Uma paisagem: coisa-substância-hypokeímenon

Há uma descrição da existência camponesa que nos pode ilustrar, de modo denso e solto ao mesmo tempo, a paisagem da acima mencionada prejacência no ser.

Ela é de Heidegger, na sua obra A Origem da obra de arte, quando nos mostra o sapato da camponesa de van Gogh.

Diz Heidegger: “Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos  e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito  na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[14]. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade[15]. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente”.

Metafísica 04 f

Conceitos fundamentais da metafísica

  1. O que são conceitos fundamentais
  2. Pensamento originário e questão do sentido do ser e metafísica
    1. Ser
  • Hén pánta
  • Phýsis
  • Logos
  • Tò sophón
  • Anér philósophos
  • Homologein
  • Harmonia
  • Alétheia
  1. Questão do sentido do ser
  2. a) Sócrates: tí estin
  3. b) Platão: eidos, ideia
  4. c) Aristóteles: dýnamis, enérgeia, entelécheia
  5. Conceitos metafísicos fundamentais do ser
  6. a) epístéme: logiké, physiké; ethiké
  7. b) Universo, homem, o divino
  8. c) Finitude … singularização
  9. d) Substância, sistema, estrutura
  10. Metafísica da substância:
  • Santo Tomás:
    • Creator, creatura, creatio
    • Analogia entis
    • Causa materialis, formalis, finalis, efficiens
    • Ars, -tis
    • Ens a se, ens ab alio
    • In se, in alio
    • Virtus
    • Essentia, existentia
  • Suarez
  • Christian Wolff
  1. Metafísica da subjetividade
  2. a) Certitudo: adaequatio rei et intellectus
  3. b) Teoria de conhecimento
  4. c) Eu-sujeito
  5. d) Objeto-objetivação

[1] Alguns autores o denominam também de pré-platônico ou mesmo pré-aristototélico.
[2] HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a Filosofia. Conferência pronunciada em Cerisy-la-Salle, Normandia em Agosto de 1955.
[3] Recordemos que já insistimos na primeira parte do Módulo I que a metafísica não pode ser compreendida adequadamente se a enfocamos a partir e dentro da perspectiva da historiografia; e que a metafísica só pode ser entendida a partir dela mesma. Assim a “história” da metafísica e a historiografia da metafísica explicam e vêem o relacionamento do surgir da metafísica do pensar originário dos gregos antigos (pré-socráticos) bem diferente da explicação e visão da  historiografia.
[4] Uma  coisa é você falar sobre um algo, e outra coisa bem diferente é falar a partir de. No falar sobre, eu estou de fora, por cima da coisa ela mesma, não entro nela, não sou tocado por ela. No falar a partir de, eu estou envolvido pela coisa ela mesma, eu mesmo sou a coisa ela mesma, estou inserido.
[5] Esta repetição é o que Nietzsche caracterizou como eterno retorno do igual. NB: distinguir entre circularidade monótona de um realejo e a dinâmica de espiral dos animais de Zarathustra.
[6] Producto: Pro = para frente; ducto = conduzido. Producto é o que é lançado, no nosso caso como metafísica (filosofia).
[7] Ente é particípio presente ativo. Vem do latim ens, entis, daí ente, do  verbo  esse, ser. Por isso, podemos dizer em português também em sendo. Em grego é on, ontos. Daí, as palavras ôntico e ontológico.
[8] Fenômeno aqui, no sentido grego e filosófico, não deve ser entendido como aquilo que está escondido atrás de uma fachada e então aparece. Esse tipo de a coisa aparecer se chama de aparência.
[9] Ao redor dessa palavra chave substância se encontram um conjunto de palavras a ela afins, também  básicas (as categorias) da metafísica substancialista como p. ex. acidentes (substância e seus acidentes); natureza (natureza humana, natureza vegetal etc.); essência, existência (ocorrência da coisa), ato e potência, forma e matéria, sujeito (subiectum) e objeto (obiectum) no sentido de dois modos concomitantes de ser substância, certeza (= verdade entendida como adequação do intelecto e da coisa) etc.
[10] Aqui a expressão “sujeito e agente” não é muito adequada, pois ela é reservada para o outro modo de objetivação do objeto-representação. Talvez “receptor” é mais viável, para a existência humana medieval.
[11] Por isso,  obiectum  para os medievais, i. é, para a ontologia substancialista é  o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”, i. é, o que salta aos olhos,
[12] Estância – parousia.
[13] Aqui o homem não é o sujeito no nosso sentido hodierno, mas é também substância. Mas substância de nível e intensidade mais pregnante e integrante no assentar-se no ser. Ao ser no nível de maior pregnância e intensidade de ser, é que compreende outras substâncias que não são ele.
[14] Insistência sugere substância, i. é, o in se da escolástica medieval. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokeímenon.
[15] Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade que em alemão é Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do “inteiramente confiável”, p. ex., num artefato que cumpre totalmente o que promete e deve ser  e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.
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