Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Imensidão e a subjetividade

22/04/2021

 

Márcia Sá Cavalcante Schuback

“Mas, então, como é possível ver, captar, afetar-ser, ou melhor, ser tocado sem representar, sem objetivar, sem nada de intermédio, assim direta e simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a não ser: em sendo simples e imediatamente ver, captar, afetar-se, ser tocado. Pois aqui ver, captar, afetar-se, ser tocado não é outra coisa do que de imediato e simplesmente ser presente, prejacente a seu modo, como ente denominado homem, na pregnância da imensidão, profundidade e vigência da prejacência”.

Fala-se hoje muito de “diferença”. Diferenças culturais, diferenças pessoais, diferença metafísica, diferença ontológica, diferenças de visão de mundo e, assim, por diante. A filosofia tem tematizado problemas de intersubjetividade, intercorporalidade e interculturalidade, discutindo mais e mais caminhos possíveis de diálogo entre o si-mesmo e o outro, entre diferentes tradições de pensamento, entre Ocidente e Oriente. Quanto mais se interroga sobre modos de acessar diferenças, mais descobre-se, porém, que as diferenças estão mais misturadas e identificadas com um padrão europeu-ocidental de ser do que se espera. A diferença entre experiências culturais misturadas (como nas culturas ocidentalizadas e colonizadas) indicam a complexidade dessas questões, pois em jogo estão mecanismos de identificação e desidentificação, de projeções e introjeções que colocam em dúvida a própria noção de diferença como diferença autônoma e separada, como diferença “em si”. Na bonita novela Kusamakura, Natsume Soseki, considerado o pai da moderna novela japonesa, faz aparecer a dificuldade de se pensar e trazer à palavra a questão da diferença, pois como ele diz “como uma coisa se mostra, isso depende de como se a vê”.

Como pensar a diferença permitindo que seja o que é: diferença, o que não se deixa reduzir a ou deduzir de um outro do que ela mesma? Com essa questão gostaria de esboçar e, assim ensaiar, minha homenagem a Frei Hermógenes e, com ela, expressar minha gratidão por tudo que com ele venho, sempre e de novo, aprendendo – a vida do pensamento.

Diferença aparece de início como o longe do nosso perto. Diferenças estão longe, no sentido de que não conseguimos reconhê-las como algo pertencente ao nosso campo de visão. O que pertence ao nosso campo de visão está perto de nós, existindo como meio e paisagem, um pano de fundo sempre presente e que não chama a nossa atenção. O que está perto de nós parece comum e habitual. É o que também chamamos de familiar e doméstico. Encontrar o que se acha distante de nosso campo de visão – ou bem nós – ou seja, quem vê – precisa movimentar-se ou bem o que se vê deve mover-se. Ou bem somos que nós que devemos nos deslocar ou bem a coisa longe de nós deve fazê-lo. Essas condições não são apenas físicas ou corpóreas, mas igualmente “espirituais”.

Quando nos deslocamos para um lugar e um tempo distantes, seja viajando no tempo da memória e da fantasia, seja no tempo real, levamos a nós mesmos nesse deslocamento. Levamos o nosso perto para esse longe. Levamos conosco o que somos. Somos nossas memórias e nossos sonhos, somos o nosso saber e o nosso não-saber, somos nosso passado e o nosso futuro – somos não apenas o que somos mas também o que não somos. Tudo isso levamos conosco quando nos movimentamos para além de nós mesmos rumo a um lugar e um tempo distantes. Movendo-nos para além de nós mesmos e alcançando esse longe, o que antes era longe aparece como perto, embora numa maneira nova e significantemente inesperada. Aparece como estranho. O estranho é o longe ficando perto de nós. O estranho é o longe adentrando nosso campo de visão. Nesse momento, o longe passa a referir-se ao que, antes, estava perto de nós, a ele relatando-se no modo de uma tendência a tornar-se um “como se” fosse perto de nós. Adentrando nosso campo de visão, o longe adentra a tendência de identificar-se com o nosso perto. Vemos então esse novo perto como um novo relacionado à antiga proximidade. Comparamos. Vemos esse perto como um duplo, como uma reduplicação. Viajar é fazer a experiência desse duplo no jogo de perto e longe, de proximidades e distâncias.

Viajar é uma experiência que não acontece apenas quando partimos para países e terras distantes. É, até um certo ponto, o que sempre acontece quando “vemos” algo diferente. Ver coisas diferentes é fazer a experiência de uma viagem tendo lugar na visão. É o que permite que também possamos ver coisas que sempre estiveram perto de nós como algo diferente. Isso acontece quando tomamos distância e o que antes era perto vira longe. Isso acontece, por exemplo, quando alguma coisa já sempre presente passa a nos chamar atenção. De repente, ela se torna estranha. Aqui, o que era perto aparece como o que já era distante sem que o percebéssemos como tal. Aparece então como proximidade, tornando-se heterogêneo relativamente ao que antes era presença não observada. O longe de nós pode tornar-se próximo e aparecer como se fosse nosso. Mesmo o mais próximo de nós pode tornar-se tão distante que aparece como nossa própria estranheza, como o estranho de nós mesmos. Essas experiências são muito simples e banais, sendo parte constante de todo viajar. Por serem simples e banais, delas nos esquecemos rapidamente não obstante permanecerem dentro de nós na estranha luz turva e no embaçamento iluminado que aderem aos nossos olhos ao chegarmos no lugar do longe, onde diferenças têm lugar. Quando diferenças têm lugar e nos vemos cativos do jogo entre perto e longe, nossa visão torna-se turva e embaçada.

Essas impressões tão corriqueiras, bem distantes de uma expressão e explicação técnicas da filosofia, referem-se à visão de coisas. Podemos transpor essas impressões banais para a visão de pedras e animais, de pessoas, culturas e mundos, ou seja, para a visão de qualquer coisa que se possa considerar coisa intramundana. A bem dizer, essas impressões cotidianas falam de um procedimento comparativo que opera quando identificamos algo como algo. Num certo sentido, toda identificação em jogo quando dizemos, por exemplo, “isso é uma flor” já sempre realizou um certo grau de comparação, pois traz algo distante para um certo grau de proximidade. No enunciado dêitico – “isso é a uma flor”, trazemos o “isso” para a proximidade da “flor”, dizemos sem dizer que isso é como flores. E se dizemos em seguida que “flor é planta”, fazemos também algo similar. Dizemos que a flor é como toda outra planta. É uma tal semelhança que nos torna capazes de dizer que essa flor é como uma outra e até mesmo que ela é mais ou menos como as outras flores ou como qualquer outra coisa. É até mesmo uma tal semelhança que nos torna possível dizer que essa flor é mais (flor ou bela) do que uma outra e ainda que ela é a mais (flor ou bela) do que qualquer outra.

O que assim descrevemos corresponde ao que podemos chamar, valendo-nos de uma expressão de Edmund Husserl, de “exame ou consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung) ao nível da senso-percepção. Numas notas de 1929, intituladas Experiência e julgamento (Erfahrung und Urteil)3, Husserl mostrou como essas considerações comparativas, tão comuns no nosso dia-a-dia e chegando mesmo a constituir nossas percepções mais imediatas das coisas, estão longe de serem neutras. Não comparamos coisas simplesmente porque uma se acha ao lado da outra. Comparação é um ato interessado, um ato que ocorre quando alguma coisa chama e provoca a nossa atenção. As coisas precisam dar-se para a consciência. Esse dar-se das coisas corresponde ao interesse, à “intenção”, ao afeto, como preferia dizer Nietzsche, que nos motiva a voltar nossa atenção para o que se dá à visão, à escuta, etc. Coisas não são, portanto, “dados”, mas doações, ou seja, o que aparece, o que se dà a ver, a ouvir, a sentir. São um aparecer. Com isso se diz que as coisas encontram-se inicialmente como que dissolvidas num fundo, ele mesmo “atemático”, ou seja, que ainda não nos chama a atenção, que ainda não se tornou um “tema”. Esse fundo é o mundo que, de início, aparece ele mesmo como um meio e paisagem “naturais”, ou seja, como o que não chama atenção por estar por demais próximo de nós. Excitação e interesse articulam a possibilidade de encavar ou extrair desse fundo mundano atemático, não enfocado e próximo, o que se dá. Passando de uma doação à outra e depois voltando à anterior, torna-se possível, com base nesse fundo atemático – o mundo – reconhecer uma igualdade ou semelhança, ou seja, comparar.

O verbo comparar, do latim comparo, significa literalmente trazer uma coisa para a proximidade da outra, para um conjunto enquanto um duplo ou um par. Passando de A para B, de flor para flor e depois voltando de B para a lembrança de A, o que é próprio a B parece perder sua força (passa) ao mesmo tempo em que o que é próprio a A parece tornar-se mais vivo. Quando os contornos de B se esvanecem ao voltar a atenção para A, os contornos de A parecem avivar-se, como se tivessem sido redesenhados, reforçados. Nesse reforço de um certo traço já presente no primeiro reconhecimento, dá-se uma duplicação que constitui uma unidade sem, no entanto, perder o fato de ser um duplo. Por isso dizemos isso é como aquilo. Esses contornos perdem as suas distâncias, tornando-se tão próximos que são quase como um e o mesmo. Em atos comparativos, onde aparece semelhança e não tanto igualdade, acontece o mesmo tipo de “operação” à exceção de que a distância entre as duas visões fica ela mesma mais visível. Nessa distância, os dois não formam um duplo, como no primeiro caso, mas um par. O contrário da semelhança é heterogeneidade, seguindo ainda a terminologia de Husserl. Heterogeneidade é uma dessemelhança que aparece ela mesma sob a forma de uma luta (Widerstreit) de opostos. Em suas análises do que seja uma consideração comparativa, Husserl insiste sobre dois aspectos significativos para a questão em aberto, que aqui nos orienta. O primeiro é de que, enquanto relação de identidade e diferença, atos comparativos formam sentido num movimento de distância para proximidade, ou seja, numa aproximação. O que traduzimos inicialmente por “consideração” deve ser entendido literalmente como uma aproximação comparativa. O segundo é que não comparamos coisas apenas por se encontrarem uma junto da outra mas porque nós, por assim dizer, buscamos um fundo comum, porque temos um interesse, uma motivação ou afeto que pede essa busca. O que aqui está sendo buscado é o comum das diferenças, o fundo comum, o termo de comparação, o parâmetro de unidade. Husserl não discute, todavia, como esse interesse por buscar o “comum”, essa tendência para identificar diferenças (reduplicando-as ou fazendo pares) está relacionado com o movimento da distância para a proximidade, ou seja, com o aproximar-se.

Essas análises da consideração (ou aproximação) comparativa referem-se a uma análise dos mecanismos da nossa senso-percepção que toma os olhos e a visão como parâmetro e base de todo perceber. Essa experiência visual-perceptiva das coisas é, de há muito e, ainda mais intensamente na fenomenologia de Husserl, um parâmetro central para a análise de como a subjetividade humana percebe a alteridade de outras subjetividades não como coisas diferentes mas como uma outra vida subjetiva e consciente. Admite-se, aqui, a diferença entre uma diferença percebida (diferença entre o sujeito da percepção e as coisas percebidas) e uma diferença vivida (em que o sujeito da percepção percebe outros sujeitos percebendo coisas e sujeitos) . Essas compartilham, porém, a estrutura comparativa pela qual o distante é trazido para uma proximidade, aparecendo como um duplo ou um par (Paarung). Aparecendo como duplo ou par, no sentido de ser como “eu”, o outro, a diferença vivida mostra sua alteridade em relação a mim, sem misturar sua alteridade com minha mesmidade ou subjetividade. Pensando assim, Husserl considera que o “outro”, no sentido de uma outra vida consciente, só se deixa perceber como outro mediante analogia, ou seja, comparativamente. A estrutura analógica ou comparativa da experiência da alteridade de uma outra vida humana permite, assim, tanto reconhecer a alteridade do outro (sua comparabilidade) como reconhecer a impossibilidade de uma vida colocar-se no lugar de uma outra (sua incomparabilidade). Isso significa que o outro nunca pode ser realmente conhecido mas somente re-conhecido mediante analogia, uma vez que uma vida não é capaz de “entrar” numa outra vida. O outro só se deixa conhecer empaticamente e, nesse sentido, re-conhecer. Esse (re)-conhecimento empático implica que tenhamos de primeiro “sentir” nosso movimento para o outro a fim de alcançar o outro na sua alteridade.

No mesmo ano em que Husserl desenvolve essas reflexões sobre o que chamou de “consideração (aproximação) comparativa” (vergleichende Betrachtung), Heidegger dá um curso sobre os Conceitos fundamentais da metafísica – mundo, finitude, solidão4. Nesses cursos, Heidegger discute as teses do homem como “formador de mundo”, do animal como “pobre de mundo” e da pedra como “sem mundo”. Essas teses são, como Heidegger bem as precisa, teses “provisórias”, cuja articulação estrutura o que também chamou de “consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung). A vida humana é, para Heidegger, antes de “consciente”, vida fáctica, uma vida que apenas vive e existe como vida formadora de mundo. Assim, compreender como uma vida humana pode compreender ou a si mesma ou outra vida e, a seguir, uma outra vida humana significa compreender como é possível compreensão de mundo. Compreender diferenças aparece aqui essencialmente relacionado com o modo de ser do homem, o modo em que existir humanamente é ser uma vida desde, dentro e para o mundo. Pois é somente desde mundo que a existência humana vem ao mundo e somente desde mundo que também pode sair do mundo.

A questão de como conhecer o outro e sua alteridade não se funda primeiramente no problema de como uma vida subjetiva e consciente conhece outra vida subjetiva e consciente. A questão que Heidegger formula é como a vida humana em sua facticidade de ser como formadora de mundo pode compreender a totalidade inteira do mundo, enquanto um ser e não ser de uma só vez. É a partir de uma compreensão da totalidade inteira de mundo que a existência humana pode relatar-se tanto ao que é como ao que não é, em si e para além de si e compreender-se a si mesma como formadora de mundo. Relatar-se à alteridade, a diferenças não é algo que a existência humana experiencie primeiramente em relação a outros seres mas primariamente como o que caracteriza o seu próprio ser. Existir significa ser em si mesmo fora e para além de si. Significa ek-sistir, ser como espaço e tempo ek-státicos à medida que, de uma só vez, é e não é a totalidade inteira do mundo. Existindo ek-staticamente, a existência humana – a presença – Da-sein – existe não como algo fechado em si mesmo tal uma cápsula, mas como abertura (= ser-no-mundo é compreensão de mundo). Aparecendo em sua vida fáctica como um desencobrindo-se (mais do que como desencobrimento), a existência humana possui uma outra acessibilidade a diferenças e alteridade do que algo que existiria fechada e inteiramente imanente em si mesmo. É a partir dessa disposição “existencial” que se pode questionar a estrutura analógica e comparativa da consciência da alteridade e diferença tal como entrevista por Husserl. É que para comparar é preciso partir da pressuposição de que alteridade ou diferença é imanente nela mesma. Discutir a possibilidade ou impossibilidade de um conhecimento de outra subjetividade definida como consciência no sentido da possibilidade ou impossibilidade de uma transposição para o espaço e o tempo do “outro” só é possível pressupondo-se que a vida humana fáctica é a vida de uma consciência subjetiva. Heidegger diz, no curso acima mencionado, que “o conceito de uma transposição de si mesmo […] contém um erro fundamental precisamente por negligenciar o momento mais decisivo numa autotransposição”.

Esquece o momento positivo de transpor a si mesmo, o momento positivo em que a existência humana torna-se capaz de transpor-se a si mesma não para um outro mas para um outro de si mesmo e só assim ver-se capaz de caminhar-ao-longo-com o outro, permanecendo outro com relação a ele”6. Em seu momento positivo, transportar a si mesmo (auto-transposição) é transportar-se a si mesmo, é o transpor-se de si e do si mesmo para um outro de si. É ir além do si-mesmo em si mesmo e, assim, “outrar-se”, como disse Fernando Pessoa, em caminhando ao longo com o outro. O que aqui se descreve não é um viajar para o longe a fim de se adentrar a distância do outro, mas o aproximar-se da distância, do “entre” constitutivo do si mesmo. Lendo com cuidado as obras de Heidegger, pode-se dizer que o próprio desse movimento é a transposição paradoxal de si mesmo para um si mesmo liberado do si mesmo, somente de onde torna-se possível um caminhar ao longo com o outro. Em lugar de comparação, no sentido de apreender o ser semelhante ou dessemelhante do outro fora de si mesmo, o que aqui se define é o modo humano demasiado humano de acesso ao outro desde a possibilidade de se caminhar-ao-longo-com-o-outro. Caminhando-ao-longo-com-o-outro, torna-se possível corresponder ao outro. Embora usando a mesma expressão de Husserl, “consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung), nesses parágrafos sobre o método discutidos no curso já citado (GA 29/30), Heidegger nos mostra uma compreensão muito distinta. Ele descreve a “consideração comparativa” como um poder-caminhar-ao-longo-com-o-outro, como um corresponder. Ele faz aparecer assim que a correspondência constitui o fundamento existencial dos atos comparativos.

O momento positivo de autotransposição, da transposição de si mesmo para além de si em si mesmo, que possibilita o caminhar ao longo com outros, funda-se no modo humano de ser existência, no modo de ek-sistir como formação de mundo. Sendo fáctica, ou seja, existindo como mundo, a existência humana existe espelhando o modo como mundo é mundo, o modo como mundo mundaniza em tudo que a existência humana é e não é. As discussões de Heidegger sobre “consideração comparativa” são significativas porque a apresentam como um outro método ou caminho para se conceber filosoficamente a mundanidade de mundo, o ser mundo de mundo. No sentido de poder-caminhar-ao-longo-com, ou seja, de corresponder, a consideração comparativa é um outro método do que o “modo histórico” e o “modo cotidiano”, que Heidegger seguiu por exemplo em Ser e tempo7. Para o propósito de nossa discussão, chamemos de “modo correspondente” o método de consideração comparativa. Heidegger não nega os métodos precedentes. Ele ainda sugere que devem haver outros métodos ou modos de consideração de como mundo é mundo, ou seja, o modo como “mundo mundaniza”8. O modo correspondente mostra, todavia, o modo espelhante-especulativo de ser-presença, Da-zu-sein, da estrutura da transcendência ek-stática que caracteriza a existência humana fáctica como ser-no-mundo. Heidegger mostra aqui, em que sentido, pre-sença, Da-sein, não pode ser entendida como a vida de uma consciência subjetiva mas como um desencobrindo (espelhante-especulativo). Pre-sença, Da-sein é fundamentalmente a-subjetiva por ser como mundo, por ser como espelhamento-especulativo da totalidade inteira de mundo. “… em todos os comportamentos e relações damo-nos conta de nos relatar a cada vez a partir do “como um todo inteiro”, por mais cotidiano e restrito que possa ser esse relatar-se”9. Da-sein é pro-jeção, Entwurf, não no sentido de um planejamento para ações futuras ou de um acolhimento do futuro em ações presentes ao relacioná-las ao passado.

É Entwurf , projeção entendida como “brilho da luz adentrando o possível possibilitador” [Lichtblick ins Mögliche-Ermöglichende] como Heidegger formula ao referir-se à concepção schelligniana da vida humana como Lichtblick des Seyns, como uma vida que é a luz de ser olhando-se para si mesma e, nesse reflexo, fazendo aparecer a vida do homem como o seu espelho. No final desse curso de 29/30, no § 76 da versão publicada, podemos seguir os pensamentos crípticos de Heidegger sobre a presença, Dasein, como projeção espelhante e espelho projetivo da luz de ser, onde pre-sença, Da-sein, define-se como sendo um “como a totalidade inteira de mundo” não sendo a totalidade do mundo. Aqui, o como correspondente de Dasein – como o todo do mundo – é compreendido como um “entre irruptivo”10, “ausente no sentido fundamental – de nunca ser simplesmente dado, sendo ausente em sua essência, sendo essencialmente um em indo embora (wegwest), removido para um ter sido e futuro essenciais –, ausentando-se por nunca ser dado, não obstante existindo nessa sua ausência essencial”11, como “transposição para o possível”. No sentido de projeção espelhante e de espelhamento projetivo, de ”entre irruptivo”, pre-sença, Da-sein significa o vir à luz irruptivo da asubjetividade da vida humana. Presença, Dasein é como clareado (gelichted) , uma concepção muito distinta do conceito de existência humana como vida de uma consciência subjetiva e de sua busca teleológica de esclarecimento (Aufklärung)12. É em termos de um pensamento da clareira, Lichtung, que Heidegger formula o seu distanciamento da fenomenologia transcendental de Husserl e propõe uma fenomenologia tautológica do inaparente13. Não subjetividade mas clareira (Lichtung) é o modo de Heidegger conceber ser como acontecimento e acontecer. Clareira, Lichtung, diz em termos asubjetivos o “dá-se”, Es gibt, de um há e não de um estar-aí “para mim”.

Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da totalidade inteira do mundo, ou seja, de como mundo mundaniza, pre-sença, Dasein é essencialmente a-subjetiva. Heidegger não usa o termo asubjetividade. Esse é um termo do fenomenólogo tcheco Jan Patŏcka. Gostaria, no entanto, de valer-me dessa expressão também relativamente a Heidegger como um modo possível de compreender o ser-como da pre-sença, de Da-sein enquanto um espelhamento-especulativo da totalidade inteira do mundo sobre o “entre”, essencialmente ausência, constitutivo da presença, Dasein. O termo “a-subjetivo” deve ser tomado no sentido de uma tensão com a subjetividade, de um entre ser e não-ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da totalidade inteira de mundo (de como mundo mundaniza), pre-sença, Da-sein é de, uma vez, ser e não-ser. Por isso pode ser também chamada, como Eugen Fink chegou a sugerir, crux ontologica, entrecruzamento de ser e não-ser, fragmento da luminosidade própria do ser. Mundo mundaniza, die Welt weltet, no modo a-subjetivo de um raio de trovão, raio de luz repentina. Mostra a si mesmo negativamente na projeção espelhante-especulativa da pre-sença humana. É por isso que, para Heidegger, o mundo enquanto acontecimento-raio da totalidade inteira pode apenas aparecer como o todo de ser enquanto mundo, concebido como totalidade de entes, retrai-se e encobre-se. A irrupção do sentido de mundo como totalidade inteira quando o mundo como totalidade de entes (ou coisas) perde seu sentido, espelha o nada pulsante do mundo. Na conferência O que é metafísica?, de 1929, Heidegger discute o nada pulsante do mundo como o modo em “Wenn Sie ’Bewusstsein’ auch noch als Titel für die Transzendentalphilosophie und den absoluten Idealismus nehmen, so it mit dem Titel ’Dasein’ eine andere Position bezogen worden. Diese andere Position wird oft übersehen oder nicht genügend beachtet. Wenn man von ”Sein und Zeit” spricht, denkt man zunächst an das ’Man’ oder an die ’Angst’. Beginnen wir bei dem Titel ’Bewusstsein’. Ist es nicht eigentlich ein merkwürdiges Wort? – Fink: Bewssutsein ist eigentlich auf die Sache bezogen. Sofern die Sache vorgestellt ist, ist sie ein bewusstes Sein und nicht ein wissendes Sein. Wir aber meinen mit Bewusstsein den Vollzug des Wissens…” que o mundo dá a si mesmo como totalidade que raia como luz repentina enquanto a existência perde o sentido de coisidade, des-encobrindo-se a si como “guardiã do nada” (Platzhalter des Nichts), que Heidegger também chamou de “pastor do ser” (Hirt des Seins).

Aparecer em desaparecendo é o modo como o mundo mundaniza. Esse modo é o modo da verdade, o modo aleteológico da mundanidade do mundo. Aparecer em desaparecendo é o modo como mundo é finitude e não infinitude. Finitude ou modo aleteológico do aparecer de mundo – dar-se em retraindo-se – define mundo como luta – Streit – com terra-natureza, com physis. Essa concepção da totalidade inteira de mundo é essencialmente distinta da concepção husserliana de mundo como horizonte infinito, no sentido de um mais e mais, além e além, característico das buscas de apreensibilidade que constituem a consciência. Enquanto Husserl compreende mundo como horizonte e horizonte como um mais e mais, adiante e adiante de um infinito matemático inerente aos movimentos da consciência apreensiva e definidora, Heidegger compreende mundo como finitude no sentido aleteológico de aparecer em desaparecendo. Finitude de mundo não significa um horizonte que possui um fim mas a experiência profunda de imensidão. Imensidão é, assim, a experiência que mais se opõe à idéia de infinito14. Se quisermos compreender o que Heidegger quer dizer ao definir Da-sein, pre-sença como “ser-no-mundo é compreensão de ser”, é preciso caminhar ao longo com Heidegger em suas discussões sobre a luta entre terra e mundo, entre physis (terra-natureza) e mundo. É com base nessas discussões que o sentido de uma fenomenologia a-subjetiva do inaparente pode ficar mais claro. A expressão mundo mundaniza, die Welt weltet, é em sua figura etimológica a estrutura aleteológica do aparecer de mundo como mundo, no desaparecer de mundo como conjunto de coisas – distanciando-se filosoficamente do sentido da totalidade de mundo enquanto correlato de uma subjetividade transcendental.

Em seu evento transcendental, pode-se então dizer que o mundo aparece mais como cósmico do que como secularizado, ou seja, como mundo para sujeitos humanos. O termo “cósmico” é um vestígio heraclítico que percorre todo o pensamento de Heidegger, explicitando-se sobremaneira em suas discussões sobre a luta aleteológica do mundo com a terra e sobre a quadratura de céu, terra, imortais e mortais. Cósmico é um termo heraclítico para nomear a imensidão do mundo. Em sua estrutura aleteológica de aparecer em desaparecendo, mundo é imensidão no sentido de jogo de luz e sombra, de céu e terra, de solo e abismo, de deuses e mortais. Como pre-sença, como um em si ek-stático, isto é, fora e além de si dentro de si, a vida humana fáctica espelha esse jogo da imensidão do mundo em seu modo de ser, de uma só vez, o mesmo e o contrário do mundo- raio de uma luz repentina. Pre-sença espelha o mundo como tensão de contrários, como entrecruzamento de ser e não-ser em tudo que é e não é, que pode ser e pode não ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da imensidão do mundo, pre-sença é co-incidência de ser e não-ser. Paul Valéry descreveu, certa vez, essa estranha coincidência de ser e não-ser na existência humana com as seguintes palavras: ”Dou um passo para a varanda…/ Entro no palco do meu olhar. Minha presença sente-se tanto o mesmo como o oposto da totalidade desse mundo raiante que quer convencer minha presença de que ele a envolve. Aqui pode-se ver todo o choque entre céu e terra”.

Pre-sença, Da-sein, significa o hífen claro-escuro, o “entre” em que ser e não-ser coincidem. O hífen claro-escuro ou “entre” é imagem da imensidão do mundo, do aparecer de si no próprio desaparecer. Esse pensamento claro-escuro à base de uma fenomenologia a-subjetiva do inaparente apresenta uma perspectiva cósmica desde a qual um pensamento do mundo descobre seu fundo. Como compreender, porém, que a imensidão do mundo espelha-se na presença humana, incidindo sobre o entre que lhe constitui da presença, sobre o entre que o homem ele mesmo é? Esse espelhamento-especulativo fica mais claro se considerarmos, seguindo uma inspiração de Eugen Fink, a presença humana como um entre a luz diurna e a obscuridade noturna, entre visões diurnas e compreensões noturnas. Nas visões diurnas da presença, coisas aparecem como não sendo a presença, como o que se encontra fora do homem para o homem. Sob a perspectiva da luz diurna, a presença conhece mediante um princípio de diferenciação, assumindo que coisas a serem conhecidas não são o ser que as conhece. Todavia, afirmando a si como não sendo o que está sendo visto, apreendido, pensado, a presença afirma a si mesma como não-sendo (isso ou aquilo). Presença é, no entanto, não somente existência à luz do dia mas igualmente existência na obscuridade da noite, existência na não-diferenciação. Presença é uma existência autodiferenciadora e, ao mesmo tempo, não-diferenciada, enquanto existência na natureza, na vida. É existência que conhece tanto através determinações diurnas como através de não-diferenciações noturnas, através da vigília e do sono. Como “entre”, presença é ambos de uma só vez, como as escadas de Paul Klee, descendo e subindo ao mesmo tempo e de uma só vez, como as raízes de suas árvores que descem para o fundo da terra ao mesmo tempo em que seus galhos elevam-se para a amplidão do céu. Isso significa que, em conhecendo comparativamente mediante autodiferenciação (sob a luz diurna da consciência que diz “eu não sou o que conheço”), a presença humana, paradoxalmente, corresponde, não conhecendo, à não-diferenciação noturna (fazendo a experiência que “eu sou o que não conheço” – o imenso do mundo e da vida). Separando a si mesma de cada coisa no mundo, presença, estranha e paradoxalmente, corresponde à não-diferenciação noturna da totalidade inteira do mundo. Nessa estranha tensão de contrários, presença não aparece nem como o mesmo e nem como o oposto da imensidão do mundo. Aparece como o seu não-outro, non-aliud, valendo-nos de uma expressão de Nicolau de Cusa. Como não-outro da imensidão do mundo, presença descobre um outro sentido de distância e proximidade, não limitado pelas fronteiras do si-mesmo. Nesse ponto, pode aparecer a possibilidade de dar tempo e lugar para a luz clara-obscura do “entre”, a partir de onde diferenças não aparecem nem como comparabilidade e nem como incomparabilidade mas como não-alteridade. Encontrar o outro como não-outro é possível num modo correspondente, num caminhar-ao-longo-com-outros que, mais do que ver e ouvir os outros, significa ver e ouvir a imensidão do fazer-se mundo no outro.

Nas suas discussões sobre as condições existenciais ou vivas para um acesso à alteridade do outro, Heidegger nos alerta com relação aos atos comparativos. Foi o que também fez Goethe quando disse, no Divã oeste-leste:

Comparando, todo mundo tece muito facilmente julgamentos. Todavia, quando levadas longe demais, as semelhanças desaparecem e os julgamentos comparativos, quanto mais cuidadosamente os examinamos, mais tornam-se inconvenientes.

[”Jedermann erleichtert sich durch Vergleichung das Urtheil, aber man erschwert sich’s auch: denn wenn ein Gleichniss, zu weit durchgeführt, hinkt, so wird ein vergleichendes Urtheil immer unpassender, je genauer man es betrachtet”].

Caminhando-ao-longo-com-o-modo-correspondente, esboçado por Heidegger para aceder à outridade enquanto outridade e, assim, seguindo ainda os conselhos de Goethe, podemos encontrar algumas aberturas para tornar possível um encontro e uma conversa entre tradições filosóficas diversas, como a fenomenologia no Ocidente e a filosofia japonesa e oriental. Esses caminhos não se confundem com a tentativa de, por exemplo, descobrir japonesismos no Ocidente e o ocidentalismo do Japão e nem com a proposta de tratar essas tradições como duas experiências paralelas que só podem ser examinadas comparativamente. Filosofia mostra-se hoje em cada mais e mais comparativa e menos e menos co-respondente e co-responsiva ao acontecer da imensidão do mundo na existência. No mais das vezes, o que fazemos em filosofia hoje é comparar filósofos diferentes, quer na mesma tradição quer em tradições diversas; comparamos diferentes períodos num mesmo filósofo, ocupando dias exaustivos com colóquios e simpósios, tornando-nos mais e mais historiadores ou turistas de idéias e conceitos. Embora esse tipo de exame e consideração comparativos possa ter um valor técnico para o estudo da filosofia, ele tem-se tornado mais e mais opressor e superficial. Isso se mostra ainda mais problemático quando distâncias e proximidades entre tradições de pensamentos mostram-se mais e mais undimensionalizadas e globalizadas, num mundo ditado por exigências tecnológicas de uso, consumo e vivências. Nunca falamos tanto de diferença como hoje. Ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes da possibilidade de experienciar diferenças em seu movimento diferenciador. Mas talvez seja justamente essa a hora certa para refletir sobre o que significa encontrar diferenças num mundo que se torna a cada instante mais e unidimensionalizado e nivelado. Deve ser essa a hora certa para questionar o modo comparativo como único acesso à alteridade de qualquer outro. Escutando o modo correspondente e co-responsivo entrevisto por Heidegger, podemos nos tornar atentos para a urgência de aprender a caminhar ao longo com a outridade. Nesse aprendizado, temos de deixar para trás tanto o que nos é mais próximo e o que está mais distante de nós, caminhando-ao-longo-com-o-“entre”de nós mesmos”, em que tanto somos como não somos nós mesmos. Esse é um momento de ser não ser. Porque esse entre é o que deve irromper durante o caminhar ao longo com o outro, ele exige uma paciente deconstrução de nossos preconceitos e expectativas, de nossa vontade de poder e de saber, ou seja, de nossa vontade de comparação. Isso exige um des-aprender as considerações comparativas, algo muito difícil de se realizar. Pois corresponder não é simplesmente negar, lógica e formalmente, a comparação mas des-aprender considerações comparativas encontrando, nesse des-aprendizado, a possibilidade de escutar a sublime não-alteridade da imensidão do mundo que constitui a outridade do outro. Des-aprendendo a comparar, pode-se descobrir o modo correspondente no seu significado essencialmente filosófico. Parece-me que a impressão causada em Daisetz Suzuki pela doutrina das correspondências do visionário sueco Emmanuel Swedenborg está relacionada a essa necessidade de des-aprender a comparar para se aprender a corresponder. Talvez por isso Suzuki tenha chamado Swedenborg o Buddha do Norte.17 Nesse sentido, ainda podemos repensar a poética das correspondências proposta por Baudelaire ao pensar o homem moderno como um exílio de si mesmo. Trata-se assim de insistir sobre a intuição de que encontrar e pensar diferenças, o outro em sua outridade, exige um caminhar ao longo com o entre diferenças como condição para o irromper da outridade no si mesmo. É o modo de ”ser simples”. Esse caminho ou modo correspondente, modo de ser simples e, em sendo simples, ver, captar, afetar e ser tocado, é aquele contado por Chuang Tzu na bonita estória A alegria dos Peixes18. Vendo a alegria dos peixes ao caminhar-ao-longo-com-o-entre-nós, talvez possamos descobrir como diferença, como outridade, espelha a imensidão do mundo aparecendo assim como o seu não-outro. Talvez assim possamos descobrir um modo de pensar junto com o que se nos dá a pensar. Talvez seja esse o modo em que a vida encontra formas de viver e morrer no esplendor da simplicidade de ser desde e para a imensidão do mundo.

Janeiro de 2009.

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