Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

I – Anotações espirituais em torno do masculino e feminino, uma questão

08/03/2021

 

Introdução

Usualmente não é possível falar do masculino e feminino sem se referir de algum modo à afetividade, ao sexo e à sexualidade. Na Espiritualidade, sexo e sexualidade se referem à união de corpo, alma e espírito, no amor do encontro entre dois seres humanos, entre homem e mulher, de cuja união podem e devem nascer e renascer três novos seres humanos, a saber pai, mãe e filho, enquanto vida humana a partir e dentro da existência cristã. Trata-se, portanto, de uma totalidade toda própria, com sua lógica própria, ou com a sua razão de ser, cuja imensidão, profundidade e originariedade abrange, toca e atinge o âmago da profundidade a mais íntima do ser humano, a pessoa[1], que na linguagem usual da Psicologia parece receber o nome de Self, Selbst (Jung). O que a mundividência cristã, usando indevidamente a Filosofia, explica como Deus transcendente da metafísica i. é, para além do ser humano, de alguma forma está referido, embora de um modo muito deficiente e defasado, à experiência de fundo do ser humano, onde homem e mulher, em sendo pessoa é acolhida e recepção cordial e grata do toque, da diligência e do cuidado de uma transcendência radicalmente outra, na ternura e vigor de um encontro também radicalmente outro. Radicalmente outro quer dizer tão inteiramente idêntico nele mesmo que não pode ser percebido, explicado, a não ser nele mesmo como ele mesmo A esse fundo do ser humano acima denominado Self, Selbst, na Psicologia, e na mundividência da Espiritualidade de pessoa, a Grande Tradição do Pensamento Ocidental chamou de Psiqué, Lógos, Espírito, Razão, Liberdade e Ser[2]. Nesse sentido falar do masculino e feminino é como tocar na ponta de um ice-berg, cujo fundo submerso na sua totalidade é o mistério da essência do Homem. A Espiritualidade da mundividência cristã pretende falar sobre o masculino e o feminino a partir e dentro da dimensão da pessoa acima insinuada.

Hoje, na formação da vida religiosa consagrada, nos seus cursos, usa-se muito a Psicologia. Psicologia pertence a uma totalidade de outro cunho denominada Ciências Positivas, quer na tendência das ciências naturais, quer na das ciências humanas. Um outro saber que a Espiritualidade, na sua formação usa e lida nos seus cursos é Filosofia (Teologia)[3] e nas Ciências, além da Psicologia, a Sociologia e Historiografia. O nosso encontro é encontro de pessoas aficionadas à Formação da Vida Religiosa Consagrada, à Psicologia, à Filosofia, na maioria, religiosos e religiosas, que fizeram votos religiosos do celibato; outras pessoas casadas ou que buscam mais tarde viver a vida do matrimônio. Todos, unidos no inter-esse de adentrar o tema afetividade e sexualidade. Mas cada qual a partir e dentro de um determinado âmbito próprio de abordagem e tematização do assunto afetividade e sexualidade. Que sentido tem esse encontro? O que ele quer? Encontro é sempre um entrechoque, confronto da sua própria identidade no toque da diferença do outro que é a própria identidade dele mesmo. Nesse encontro o que poderia e deveria vir aos poucos às claras é o fundo de cada identidade, a partir e dentro da qual Espiritualidade, Psicologia e Filosofia falam sobre, no nosso caso, afetividade e sexualidade. Assim, nesse nosso encontro, o que conduz a exposição, discussão e reflexões é a contínua e incansável preocupação e seu cuidado em ficar de olho, no fundo da própria posição, se escutar no seu fundo, e ao mesmos tempo escutar o outro para divisar tanto em si como no outro pressuposição fundamental da origem, donde abordamos um tema na questão, i.é, na busca da verdade.

O que segue sob o título de Anotações espirituais são pensamentos avulsos a partir da Espiritualidade cristã e no nosso caso franciscana, ao redor do tema masculino e feminino, considerado como tema de uma questão, i. é, de uma busca da verdade da compreensão do que seja sexualidade a partir e dentro da Espiritualidade. Embora o tempo do nosso encontro seja bem curto e determinado, e o tema de grande complexidade, esses pensamentos avulsos foram mobilizados ao redor de três considerações, que podem ampliar demais a questão: Primeiro, ao redor da consideração sobre o relacionamento entre Espiritualidade, Filosofia e Psicologia, assim num sentido geral; segundo, ao redor de alguns pensamentos, referidos ao papel do masculino no crescimento e na maturação da alma feminina, tirados e comentados do livro intitulado Alma Feminina, Maturação e Crescimento, da Psicóloga e Psicoterapeuta japonesa Tamatani Naomi[4], e por fim ao redor do masculino e feminino, concentrado na questão do celibato, e do matrimônio cristão.

I

Usualmente se distinguem os adjetivos feminino e masculino dos substantivos fêmea e macho. Correspondentemente se distingue sexual do genital. O adjetivo genital se refere ao aspecto físico-corporal de reprodução animal do ser humano e a suas implicações; sexual, ao aspecto psicofísico, anímico sensual, erótico do ser humano, que de alguma forma está relacionado com o aspecto genital. Pergunta-se: o sexual diz respeito, de alguma forma, também à dimensão chamada espiritual? Os medievais perguntariam pois: os espíritos (a saber, a alma, o espírito, o anjo e Deus) têm sexo? Se o tem, de que sexo é?

Essa questão, hoje ridicularizada, na realidade implica uma questão que nos aparece na questão atual, colocada acerca da Ciência Moderna no que se refere ao seu ser. Em que consiste a cientificidade das ciências naturais e a cientificidade das ciências humanas? O que significa o termo ciência, quando se refere às ciências modernas, naturais e humanas? O saber científico tem sexo? Certamente não?! Há geometria, aritmética ou matemática feminina, masculina, ou sensual e erótica, ou católica ou protestante ou budista, há matemática anciã, adulta, infante? Certamente o saber científico nada tem a ver com todos esses adjetivos, indicativos do ser humano. Mas há Psicologia feminina? O saber chamado psicológico, enquanto saber, é masculino, feminino ou neutro? Por que intuição é feminina? Raciocínio, masculino? O que significa intelecto é mais do masculino, o coração, mais do feminino?

Mas, não houve aqui uma troca de assunto? Começamos a falar da diferença do aspecto genital do aspecto sexual. Começamos falando portanto da realidade em si, denominado genital e sexual no ser humano. Agora, ao perguntar se o saber científico tem sexo, estamos falando não da dimensão objetiva denominada genital e sexual, mas do saber sobre o genital e sexual. O objeto de um saber pode ser o masculino e o feminino.O sujeito do saber  pode ser masculino ou feminino. Mas o saber, o ato de saber pode ser masculino e feminino? Mas, dizemos: o modo de abordar, o modo de compreender e explicar um objeto, no nosso caso o masculino e o feminino, pode ser masculino e feminino! Mas então podemos também ampliar o que foi dito e dizer: a abordagem, a compreensão de uma coisa, de um tema pode ser genital e sexual, sensorial e sensual, engajado e neutro,  católico, protestante e materialista, progressista e fundamentalista, pode ser material, psíquico e espiritual, historiográfico, estórico, estético e artístico, medicinal, terapêutico etc. Essa questão, hoje muito importante na teoria de conhecimento, esquecida em certos círculos científico-acadêmicos, no início do  século XX mobilizou o Ocidente, quando a Psicologia começou a aplicar para si o método científico experimental. E apareceu sob denominação corrente na época de: psicologismo, biologismo e naturalismo. Não entrando muito nessa questão, para ver mais ou menos de que se trata, em relação ao nosso tema masculino e feminino, vamos ouvir duas anedotas budistas que nos podem fazer ver a questão acima mencionada. São anedotas que mostram o modo de ser de dois homens a respeito de uma jovem mulher em apuros e de duas mulheres a respeito de um monge “exemplar” na busca da iluminação.

  • 1ª anedota: Dois monges budistas estavam à caminho na busca da iluminação. Um deles era mais idoso, outro bem novo. Depois de muito caminhar, chegaram a um rio, onde era necessário arregaçar as vestes quase até a cintura, para passar a vau. Uma moça viajante, muito bela, em quimono, estava em apuros, pois o encarregado de transportar as pessoas para a outra margem do rio, não viera trabalhar. O monge mais idoso se aproximou da jovem, disse-lhe “Com licença” e a carregou nos braços, atravessou o rio e a colocou na outra margem. E sem dizer nada prosseguiu o caminho com o seu companheiro mais jovem. Este, a caminhar atrás do outro monge mais idoso murmurava: “Onde se viu, no caminho da iluminação, abraçar uma moça, ele que deveria ser sóbrio e casto, já maduro na sua experiência da busca e realização?” Ao ouvir atrás de si a murmuração, disse o monge idoso: “A caminho da iluminação, há alguém que ainda está abraçado a uma bela e atraente jovem mulher”.
  • 2ª anedota: Era uma vez uma velha viúva rica, budista, leiga, muito piedosa, fervorosa na busca da iluminação. Desejava ter tido um filho monge, mas nenhum dos filhos seguiu o caminho da perfeita iluminação. Decidiu adotar um monge. Construiu um pequeno eremitério, num lugar silencioso e retirado, cercado de uma belíssima paisagem, longe dos burburinhos mundanos. Foi ao mosteiro mais próximo e ofereceu ao abade o eremitério, e lhe prometeu cuidar do sustento e do bem-estar do monge que quisesse doar-se full time à meditação, e assim aplicar todas as suas forças somente à aquisição da iluminação. E recebeu do abade um monge, de grande dedicação à contemplação, que meditava sem cessar, dia e noite, sem nenhum apego às coisas mundanas, sem nenhuma distração. A velha viúva estava satisfeita. Mas, depois de um ano, quis ver o progresso do seu monge de adoção. Chamou uma empregada, belíssima e ansiosa por encontrar um marido e lhe deu a seguinte tarefa: “Minha filha, o monge que mora naquele eremitério, seria um bom partido para ti. Ele é bom e belo, cheio de saúde, é um homem sério e reto. Vai seduzi-lo, usa de todos os teus recursos femininos para que ele se apaixone por ti. Se o conseguires, ele que é meu monge adotado, é teu”. A moça que já há muito tempo sentia uma grande atração e admiração pelo jovem monge, usou de todos os recursos para atraí-lo a si. Depois de uma semana de tentativa, achegou-se à velha mulher, em prantos, e sem nada dizer mostrou-lhe um pequeno bilhete, escrito pelo monge. Ali estava uma haikai, uma pequena poesia, escrita em belíssimas letras chinesas, mais ou menos de seguinte teor: Sou uma grande rocha, firme, impávida e fria, a pedra de iluminação. O que quer esse raquítico cipozinho a se enroscar em mim, com seus fiapos de tentáculos, carentes e sem consistência?” Ao ler essa poesia, a velha se encolerizou, e disse numa voz surda, baixinha, mas cheia de determinação: “Alimentei por um ano um charlatão preguiçoso, travestido de um monge!” Incendiou o eremitério, e expulsou o monge a golpe de caçarola.

Observemos: a) o modo de ser do monge mais velho que carregou uma moça muito bonita em apuros para transportá-la à outra margem do rio, podemos chamá-lo de modo coisal de abordar uma realidade. Aqui, o contacto do corpo e corpo, do monge e da jovem mulher é de coisa para coisa, de coisa e coisa. Aqui se dá o encosto, não porém, toque ou contato propriamente ditos. A relação não é propriamente relacionamento. Não há colorido. É neutro. Indiferente e indiferenciado em referência a aspectos que não sejam naquilo que diz respeito à lógica de um transporte de carga, do carregador de fardos. Aqui o ato humano é apenas ocorrência. b) O modo de ser do monge mais novo em referência ao ato de seu colega de ter carregado a moça, podemos chamá-lo de moral. Aqui não se trata apenas de um ato como ocorrência. Trata-se de um modo de ser que visa uma meta dentro de um projeto. Por isso diz: “Onde se viu, um monge, no caminho da iluminação…” Aqui a moça pode aparecer de imediato como impedimento, perda de tempo; mas também como tentação cedida de tocar no feminino como objeto de prazer etc. A relação aqui entre o monge mais novo e a moça sai da neutralidade do encosto de coisa e coisa e se torna um envolvimento colorido, onde a moça não é um simples peso de carga, mas um ‘objeto’ que toca o sujeito mais agudamente, como impedimento, tentação. Nesse toque surge uma dimensão que antes não havia na ocorrência de encosto coisa e coisa. Proibição e permissão, mandamento e submissão, apego e renúncia são termos que começam a ter um sentido dentro dessa dimensão moral. No entanto, no monge mais jovem essa dimensão parece ainda não estar na plenitude do seu ser, de modo que ele considera o modo de agir do monge mais velho como uma transgressão ou infidelidade ao projeto da busca da iluminação; ao passo que à primeira vista o  monge mais velho parece mover-se no modo de ser apenas coisal, pode ser que vive a plenitude da dimensão moral, que nele poderíamos chamar de ético, onde a meta da busca da iluminação impregna todos os seus atos, de tal sorte que tudo, a cada momento, todos os seus afazeres têm um único sentido e função, ser etapas e momentos de uma única busca que é a aquisição da iluminação. c) Na segunda anedota, a velha viúva e o monge parecem estar vivendo intensamente essa dimensão ética acima mencionada no b). E a moça empregada, na busca do seu marido, numa dimensão que é mais do que a dimensão coisal, intensamente sensível, sensual onde está em atividade de algum modo o modo genital e sexual, mas tudo isso a partir e dentro de um modo de ser impulsivo e instintivo, o qual denominamos de natural ou hedônico ou estético. Aqui a meta, o projeto de casamento é como que uma eclosão da realização natural do seu instinto. d) Voltando à atitude ética tanto da velha viúva como do monge, percebemos no fim da anedota uma diferença radical. No monge, na sua atitude ética, a meta da iluminação é buscada não como uma causa a que ele se entrega para ser transformado segundo o desígnio da iluminação. Em vez disso, a meta é usada, para engrandecer o poderio e a autosuficiência do próprio eu. Assim, em lugar de tornar-se um “corpo livre”, a saber, uma disposição bem concreta e finita, cada vez nova, aberta cordialmente ao frescor do inesperado, tornara-se endurecido qual uma “cabeça” de pedra, a ponto de desprezar a “possibilidade” da jovem mulher como “cipozinho” mirrado. Com outras palavras, a sua dimensão ética, tornara-se moralizante, ideológica, e não mais uma preparação incondicional para a liberdade da iluminação. A velha senhora percebe tudo isso, por estar ela na plenitude da dimensão ética. Temos assim nas anedotas mencionadas as seguintes dimensões de abordagem do que é masculino e feminino: 1. dimensão da abordagem material-coisal; 2. natural (ou estética, hedônica); 3. ética (ou moral ou moralizante); e como que insinuada na plenitude da dimensão ética, 4. a dimensão da abordagem religiosa.

A seguir sugerimos, apenas como proposta, examinar juntos as seguintes afirmações hipotéticas: a) As Ciências positivas naturais, na abordagem do que seja masculino e feminino, permanecem na dimensão 1, e reduzem e miram as dimensões seguintes a partir e dentro de si. b) As Ciências humanas ou permanecem na dimensão 2, reduzindo e mirando as outras a partir e dentro de si; c) As Ciências filosóficas questionam a partir e dentro da dimensão 3, a si e as outras, interrogando-as no sentido do ser, presente e dominante na impostação das suas pressuposições de fundo. d) A Espiritualidade, enquanto cristã e saber, tenta ser sabedoria, i. é, ao sabor do toque da gratuidade da alteridade radical de um radical outro ab-soluto, i. é, livre e solto na sua doação graciosa e grata, deixando-se criticar, i. é, limpar-se pelas ciências a, b, c em tudo quanto nela se aninhou como explicações, pressuposições, hipóteses, teorias e doutrinas que não vêm nem pertencem à dimensão e abordagem da graça, ternura e vigor da sua dimensão.

II

  1. a) A Fala sobre o ser humano na Psicologia

Citando várias vezes a Eric Neumann,[5] Tamatani coloca uma grande questão da maturação e do crescimento da alma feminina, a qual entendi mais ou menos da seguinte maneira: o ser feminino, no íntimo profundo do âmago do seu ser, por ser a mulher fonte receptora e curadora da vida, está intimamente exposta ao toque inominável do abismo da possibilidade insondável do ser. Assim, seu relacionamento tanto com a mãe como com o pai, possui uma força elementar que a impregna desde criança, principalmente com a força ctônica da Vida. Assim no processo da maturação e do crescimento da menina, para a adolescência e da adolescência para a mulher madura enquanto esposa e mãe, a figura masculina do pai é de grande importância, para que ela se levante da impregnância ctônica da mãe, enquanto criança-filha dócil e submissa a ela, e adentre o crescimento de uma autonomia assumida da sua feminidade como esposa e mãe. Pai aqui não está indicando o pai empírico, mas a grande experiência de fundo do Grande Pai, segundo a expressão de Neumann “a invasão do Uróboro[6] paterno”, a experiência abissal da imensidão e profundidade do vigor elementar que está no fundo de toda e qualquer paternidade. Nesse nível[7] da invasão urobórica do Grande Pai, o feminino é preso do masculino e experimenta[8] com todo corpo e toda alma, um abalo emocional profundo. E na experiência desse abalo emocional do fundo do seu ser, pode sair do envolvimento ensimesmado no abrigo ctônio da proteção materna elementar e se libertar para um outro nível da liberação de si mesma. Aqui o feminino se liga, é “aprisionado”[9] na amálgama, na união da divindade e alma no seu esplendor, fascínio e grandeza e assim experimentar no seu próprio ser a profundidade abissal do mistério do ser mulher. Poder-se-ia chamar uma tal experiência de experiência mística ou mítica. Por causa da ternura e vigor de uma tal experiência que vem do fundo do ser da mulher no toque do uróboro paterno, a mulher pode se transformar no feminino que pode assimilar as vicissitudes do ser esposa e mãe. Se não tiver uma tal experiência que sacuda a partir da base o corpo e a alma, o feminino não consegue sair da participação identificadora com a mãe protetora, que aprisiona a filha no aconchego alienante da prisão do feminino no ninho do ensimesmamento infantil.

No Mito, segundo Tamatani, esse nível é expresso p. ex. no relacionamento da virgem com a divindade, e é nesse nível que surge a concepção da virgem por uma divindade e do seu parto virginal. Essa experiência é uma experiência interior, do fundo do ser humano e não possui muita referência à realidade físico-empírico exterior. Não somente isso, essa experiência, como já foi dito anteriormente, nem sequer sobre à consciência da mulher. Precisamente por não subir à consciência, mas vivida sadiamente em sendo que se processa a grande transformação, maturação e crescimento do feminino. E segundo Tamatani, no momento em que essa experiência é conscientizada, se torna necessário um apoio, uma estrutura sustentadora da religião ou da arte. Se lhe falta uma tal sustentação, para o feminino parece não restar outra saída do que perturbação psíquica em neuroses e psicoses. Pois ter e manter-se sob a pressão elementar de uma tal invasão do vigor urobórico do Grande Pai sem nenhuma proteção de uma estruturação sacro-divina é ser engolido por essa força elementar do fundo do ser humano.

Comentemos brevemente esses pensamentos de Tamatani. Essa colocação ao redor do masculino e feminino é bem diferente à de uma colocação que a Psicologia de Behavior ou da Psicologia Freudinana poderia fazer. Pois Tamatani parece estar no círculo da Psicologia Analítica de Jung, Neumann, e da fenomenologia da religião de um Kerény etc. Não se trata aqui de perguntar quem está certo e quem errado. Antes em que nível da questão coloca a mira da abordagem do tema. Interessante observar que aqui ao falar da conceição e do parto virginal, logo nos vem à mente o dogma católico-cristão da Conceição e do Nascimento de Jesus Cristo, Filho de Deus, da Virgem Maria. Tamatani porém está somente falando da maturação e crescimento da alma feminina, na maneira como a Psicologia Analítica de Jung e aqui de Neumann visa, aborda o tema masculino e feminino. Ela não diz nem insinua que o dogma da mundividência cristã católica seja uma sublimação, uma racionalização, superstição, ou fato real físico-biológico. Ela permanece límpida no horizonte a partir e dentro do qual emposta a sua investigação. No entanto, a Espiritualidade da mundividência católico-cristã a partir da sua experiência percebe que a psicóloga, independentemente se é cristã, budista ou atéia coloca a questão do masculino e feminino num nível de questão em que a Espiritualidade também poderia ou deveria colocar, mas a partir e dentro do seu horizonte próprio. Se, porém, observarmos atentamente a colocação da psicóloga, podemos p. ex. observar que ao usar referência à religião e à arte, ou ela usa a compreensão corrente da religião e da arte, ou de alguma forma interpreta religião e arte a partir e dentro da sua Psicologia. P. ex. podemos observar que coloca na mesma classificação as religiões, também a mundividência cristã como religião; e coloca os resultados da fenomenologia das religiões de Kerény, relacionando-os com p. ex. os dogmas e os ensinamentos do cristianismo. Quem com acribia e rigor tenta distinguir e diferenciar esses aspectos todos, sondando as diferenças dos horizontes, a partir e dentro dos quais essas impostações miram e colocam as questões ao redor do masculino e feminino é a Filosofia. Sua tarefa é entre outras a de sondar o sentido do ser que opera no fundo de cada horizonte, a partir e dentro do qual as diferentes impostações colocam a questão, a saber, a sua busca.

  1. b) A fala sobre o ser humano, na Espiritualidade cristã católica.

No confronto entre Espiritualidade, Filosofia e Psicologia, a Espiritualidade teria pois a tarefa de aclarar cada vez mais no fundo, o mais profundo donde ela haure a claridade das suas pressuposições principais. Falando-se de modo  bastante exteriorizado, se pode dizer: essas pressuposições principais se chamam doutrinas que se baseiam em dogmas, que haurem sentido da sua colocação dos mistérios da Fé.[10] E os mistérios da Fé são o vir à fala da Revelação, feito por e sobre o Deus anunciado por Jesus Cristo, por esse Deus encarnado, Crucificado.

Falando-se de modo mais para dentro: a Espiritualidade cristã vive, i. é, sente, compreende, quer, sabe todas as vicissitudes da sua história, portanto o universo humano e o universo não-humano, a saber, o universo cósmico e o divino, em todas as escalações do modo de conhecer, amar e ser, nas suas excelências e decadências, a partir e dentro da Fé do e no Cristo Crucificado, Revelação do Pai de ternura e vigor de Misericórdia. Essa vida cristã se resume no Grande Mandamento do Amor e a sua consumação no Novo Mandamento da Última ceia. Vida aqui é existência sui generis, que recebe o nome de pessoa, cujo ser a Grande Tradição do Cristianismo chamou de humildade. O feminino e o masculino, sexo e sexualidade na Espiritualidade cristã devem ser compreendidos a partir e dentro do a priori dessa positividade. A a-prioridade aqui deve ser compreendida como o absoluto e como radical aposteridade do que se denomina o Mistério da Encarnação, onde toda e qualquer transcendentalidade é continuamente, sempre de novo e sempre nova, reconduzida à empiria da positividade de um Deus feito História como a existência finita do divino crucificado na humildade da Pobreza agraciada de e em Jesus Cristo. Dentro dessa paisagem, masculino, feminino, sexo e sexualidade se concretizam em dois modos de ser, não complementares, mas integral-diferenciais denominados matrimônio e celibato cristão. A essa totalidade histórico-existencial sui generis, a esse uni-verso cristão, o grande pensador e místico medieval Mestre Eckhart qualifica com o adjetivo abgeschieden, que usualmente se traduz como desprendido, no sentido de ab-soluto, i. é, livre e solto nele mesmo, na sua plena diferença, i. é, na solidão per-feita da sua identidade, na plenitude do a-priori concreto. Dito com outras palavras, esse mundo cristão só pode ser entendido e esclarecido nele mesmo a partir de si e nele mesmo, a tal ponto de não poder ser reduzido a outras perspectivas que não sejam perspectivas da sua própria paisagem, aberta à imensidão, profundidade e originariedade e originaridade abissal dele mesmo, para dentro de si. A plenitude dessa inserção para a interioridade de si mesmo, como fidelidade cordial e grata do mistério da Encarnação à Finitude do seu Deus Encarnado é a abertura de acolhida grata de tudo quanto parece não pertencer à identidade integral-diferencial do seu ser cristão, até mesmo, ou principalmente acolhida do Mistério da iniquidade: Cristo Crucificado.

Toda e qualquer explicação que não venha da Fé e nela permanece dá uma imagem distorcida, desfocada do masculino e feminino, do sexo e sexualidade humana.

Não é possível aprofundarmos essa positividade cristã, pois o nosso tempo é muito pouco, e desviaria do nosso tema.

Aqui apenas mencionaremos alguns pontos-chave, que no decurso do nosso encontro poderíamos sempre de novo aprofundar, a partir da Psicologia e Filosofia, pois os pontos a seguir mencionados são de grande interesse para a compreensão do a priori cristão:

  • Vida cristã é pessoal e deve ser entendida na direção da compreensão da vida como existência histórica.
  • Pessoa e pessoal não significam sujeito e subjetivo, mas sim uni-versal na singularidade da unicidade do Seguimento de Jesus Cristo Crucificado. Aqui não há nem o particular, nem o geral. Por isso não há classificação nem padronização.
  • Torna-se assim mais aguda e difícil, a questão do relacionamento entre Espiritualidade, Psicologia e Filosofia.
  • Mas, talvez, não seja eliminando a dificuldade dessa questão que nos abrimos à essa questão. Pois o confronto das diferenças une mais do que a igualdade das posições.
  • Mas se é assim como acima foi exposto, que sentido tem nos reunirmos nesse encontro para um confronto entre Espiritualidade, Psicologia e Filosofia? Aqui é bom observar que embora haja diferença bem profunda entre ciências positivas e a Filosofia, ciências e Filosofia pertencem juntas, num relacionamento da questão de fundamentação. Mas parece haver uma diferença intransponível entre Espiritualidade cristã e Filosofia-ciências. Que função teria Filosofia em relação à Espiritualidade?
  • Aqui surge a questão do relacionamento entre Filosofia e Fé (Teologia Þ Espiritualidade). Se surgirem debates aqui, deve-se tentar orientar na direção do texto de Martin Heidegger intitulado Fenomenologia e Teologia:

Como deve ser inter-relacionamento entre mundo e mundo. Cf. ecos na percussão e repercussão. Monadologia. O que significa no caso da Fé: Fé e Ser é o mesmo. Paralelo a isso: Pensar e Ser é o mesmo.

  • Preparar os dados como p.ex. humildade, submissão, culpa e pecado, obediência que vêm da mundividência “cristã” pouco transparente para consigo mesma, para poder interrogá-los na sua essência de fundo, e trazer à luz os existenciais do Da-sein cristão. E depois de tudo isso mostrar que na união corpo-alma-espírito entre masculino e feminino como a plenitude do sexo e sexualidade está implícito o aceno à compreensão conasciva do que seja Amor de Deus (genitivo subjetivo e objetivo): Cf. Cântico dos Cânticos.

III

Uma das categorias mais usadas para caracterizar o masculino e o feminino é a atividade e a passividade. O masculino é ativo, o feminino, passivo.

  1. dimensão da abordagem material-coisal; 2. natural (ou estética, hedônica); 3. ética (ou moral ou moralizante); e como que insinuada na plenitude da dimensão ética, a dimensão da abordagem religiosa.

[1] Pessoa é uma palavra chave da Espiritualidade. Não confundir, porém, aqui o conceito de sujeito com a pessoa. Pessoa só se torna compreensível na experiência do que na mundividência cristã, nem sempre muito transparente para dentro de si mesma até o fundo, é chamado de encontro de amor. De aqui entendido tanto como genitivo subjetivo como objetivo. Cf. O mistério da Santíssima Trindade: uma natureza em três pessoas.
[2] Todos esses termos significam coisas diversas, conforme são usados na Espiritualidade, Psicologia e Filosofia. Esses termos foram denominados por Blaise Pascal de mots primitifs, i. é, palavras originárias, e indicam não isso ou aquilo, nem conjunto disso ou daquilo, mas sim totalidade das totalidades, i. é, mundidade dos mundos, e nascem lá onde o ser humano se torna aquilo que é o próprio dele mesmo, a saber, existência, i. é, a aberta de todo um sentido do ser que inaugura uma nova paisagem do ser.
[3] Aqui surge a questão do relacionamento entre Filosofia e Teologia. Mas na maioria dos casos nos cursos da Espiritualidade cristã, quando se usa teologia, essa por sua vez dá a impressão de ser variante das ciências ou da Filosofia, por usar sem mais nem menos ciências e Filosofias como instrumentos de sua expressão, sem ter muito claro como está o relacionamento interdisciplinar na sua raiz mais profunda, de sorte que, em falando de Deus e de suas causas ou suas coisas, não fica claro se fala a partir da Revelação e da experiência da Fé, ou a partir do saber filosófico e científico que está travestido de expressões teológicas.
[4]  Os dados e os pensamentos desse livro, infelizmente vão permanecer nessa exposição bastante imprecisos e sujeitos ao que o expositor entendeu. A dificuldade provém da língua japonesa em que o livro está escrito e pela impossibilidade atual de conferir os textos de Eric Neumann, citado pela autora. Assim os pensamentos aqui expostos só servirão como início de uma troca de idéias e experiências.
[5] TAMATANI, Naomi. Jossei no kokoro no seijyuku. Ossaka: Editora Sôgetsu-sha, 1974, p. 42ss.  
[6] Símbolo da vida no seu estado originário e elementar, como uma realidade anterior a toda e qualquer evolução (linear), portanto uma totalidade originária simbolizada numa cobra que em mordendo a sua própria cauda forma um círculo.
[7] Não se trata nem de conhecimento, saber ou conscientização, mas experiência em sendo como participação, imersão, impregnância. A fenomenologia chama esse modo de conhecer, i.é, de conascer, de “saber” (cf. sabor) de operativo”, anterior a toda e qualquer tematização.
[8] Cf. nota 7:  trata-se do que na Psicologia se chama participation mystique?
[9] Cf. a experiência do “apprivoisé”, i. é, de ser “amarrado” em, anunciado pela raposa do Pequeno Príncipe de Saint Éxupéry.
[10]  Fé, Fides em latim, significa fidúcia, fidelidade. Fé Cristã não é crença, nem mundividência, nem propriamente confiança. Portanto não se trata dos atos do sujeito cristão, mas se refere à fidelidade de Deus, do Deus de Jesus Cristo, Crucificado. A nossa resposta à essa fidelidade é também fidelidade. Por isso os cristãos se chamam fiéis. Não se trata pois da crença no sentido de acreditar no que não se viu. Fé como crer no que não se viu, mas confiando naquele que viu é um saber ao lado do saber do testemunho ocular. É fonte do saber  usado na historiografia. Mas não se define a Fé, recorrendo a São Paulo, como sendo crer no que não se viu? Não disse Jesus a Tomé: Felizes os que não vêem, e crêem? Mas logo não diz Jesus a Tomé, não sejas incrédulo, mas fiel? Talvez aqui na Epístola de São Paulo e no Evangelho, o que garante o ver o invisível seja a fidelidade. Fidelidade é um conascer, um conhecer mais elementar e radical do que saber e compreender  no sentido usual. Não se usa na Sagrada Escritura o termo conhecer para a união entre homem e mulher: E Adão conheceu Eva?
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