Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fragmentos de reflexões fenomenológicas XI

05/02/2021

 

  1. No encontro [do dia 24 No encontro passado???] foi colocada uma questão que parece não ter ficado evidente. Foi perguntado se conseguimos diferenciar entre ver simples e imediato e ver o ver simples e imediato. Dito com outras palavras não é assim que nós identificamos o ver simples e imediato com tomar consciência do ver simples e imediato? Como entender isso?
  2. Se observarmos bem, ver o ver simples e imediato não é ver simples e imediato. Isto aparece quando perguntamos: quem vê o quê? E respondemos: eu vejo e vejo o eu que vê e o seu ver. Isto significa que o sujeito-eu se faz sujeito-objeto e somente quando o faz, o sujeito que vê simples e imediato vê realmente? O simples fato de ver não é ainda ver? Mas, para eu poder ver um filhote de jacaré comendo pé-de-moleque, os globos oculares dos meus olhos devem estar irrigados com sangue. No sangue se encontram os glóbulos vermelhos e brancos, correndo de cima para baixo, de baixo para cima. Tudo isso é um fato. Mas o fato de o sangue correr nas veias dos meus globos oculares não tem muito a ver com ver simples e imediato? Pois é um ato psíquico. Mas não é também uma atividade físico-corporal? Mas quando se trata de físico-corporal, o que eu vejo quando vejo simples e imediatamente? Meu olho? O meu corpo físico? Mas…, e ao corpo físico que eu vejo, só o vejo refletido no espelho… Mas eu sinto o meu corpo, dentro do qual lá em cima na cabeça está uma caveira, e dentro da caveira tem uma cavidade, onde está incrustado meu olho que vê o que? Vê o ato? O ato psíquico? A cabeça? A coisa se complica…, ou não será muito mais simples? Em que sentido? No sentido imediato e simples de eu me achar antes de tudo no mundo circundante. Esse achar-se, ou ser-no-mundo-circundante é o ver-simples-e-imediato: Da-sein, a ex-sistência, a facticidade. Dito com outras palavras, ver-simples-e-imediato é o fenômeno, o que aparece a partir de si nele mesmo como ele mesmo. Todo o resto (consciência, sujeito, objeto, ente e ser) já vem atrasado, sempre de novo já à mercê desse ver-simples-e-imediato.
  3. Não poderíamos arriscar dizer que o que na fenomenologia se denomina transcendental e mesmo ontológico, e mesmo também existencial, é ainda uma maneira de interpretar o ver-simples-e-imediato à la idealismo e não enquanto a coisa ela mesma, i. é, enquanto fenômeno que entre os gregos se identifica com o ente, o em sendo.

Essa colocação hipotética, que tem muito mais de chutação do que de uma hipótese, pode de alguma forma ser justificada da seguinte maneira:

Do que usualmente se diz do transcendental da subjetividade transcendental, percebemos que o aspecto transcendental jamais pode ser pego diretamente, pelo modo da percepção usual objetivada e objetivante, mas sim, indiretamente, por tabela com um objeto. Mas há vários modos de captação por tabela, p. ex., percepção da causa, pelo efeito; captação pelos sinais, pelo “símbolo” no simbolismo, pela aparência etc. Aqui, por mais variegados que sejam os modos de uma percepção por tabela, ela é sempre captação de um objeto, do qual se vai à percepção do outro, que por sua vez de alguma forma é captado como ou a modo de um objeto. E assim, da impossibilidade de captar o transcendental, a não ser por tabela com o objeto, tira-se precipitadamente a conclusão de que o aspecto jamais é perceptível direta e imediatamente. Assim, o que aparece à captação do aspecto transcendental, por tabela, indiretamente é chamado de aparência transcendental, der trasnzendentale Schein, em cujo aparecimento, o ser do aparecer recebe a conotação de aparência, que no fundo esconde atrás de si um algo mais. Aqui recordemos tudo quanto falamos do aparecer, na exposição do que constitui o evidenciar-se do fenômeno como aclaração. Assim, a aparência transcendental não significa aparência que é mediação de uma outra coisa que está para além da aparência, mas o imediato e direto vir às claras, portanto, a evidência, a clareação que no seu evidenciar-se é o mostrar-se imediato e concreto, o aberto, das Offene, a translucidez do luzir, a autopresença ela mesma que transcende toda e qualquer objetivação, não a modo de uma escalação para além da coisa chamada objetivação ou objeto, mas como “mediação”, i. é, como ação ou dinâmica do médium, a partir e no qual toda e qualquer modalidade de objetivação e objetos vem a si na aclaração da sua pressuposição, i. é, no positum da sua automostração. É o que denominamos captar ou ver simples e imediato. Como, porém, o termo trascendental de alguma forma conota uma transcendência a modo do movimento de trânsito para além, a modo meta-físico, enquanto clareação transcendental, a subjetividade transcendental pode-se chamar subjectividade, o lugar donde salta a analítica existencial e sua “ontologia fundamental”.

  1. Um dos exercícios mais importantes do ver simples e imediato é procurar perceber a mundidade de cada mundo. Num modo de falar ainda bastante impreciso podemos dizer, em vez de mundidade do mundo, a dimensão das coisas, o horizonte a partir e dentro do qual algo nos vem ao encontro, a tonância de uma situação.

De que se trata? A linguagem fenomenológica em língua alemã usa o termo Stimmung para indicar a mundidade do mundo. Como Stimmung usualmente é traduzido por humor, sentimento, torna-se difícil associar Stimmung ao mundo. A palavra Stimmung contém a palavra Stimme que significa voz. Usualmente entendemos voz a partir e dentro das representações ocorrentes na fonologia e fisiologia da formação das cordas vocais e seu desempenho na emissão do som, formado na garganta e emitido pela boca. E tudo isso como meio de expressão e comunicação da palavra pela vocalização. Voz, Stimme na compreensão fenomenológica da Stimmung deve ser captada no seu próprio como tonância. Embora de modo desengonçado, tentemos dizer de que se trata.

A voz de alguma forma parece estar intimamente ligada com o próprio do homem. Assim, eu digo “A voz do meu avô está um tanto fraca”, mas não digo: “A voz do nosso Pitt-Bull está hoje melancólica”. Isso é assim porque a voz diz respeito à linguagem. Mas atenção, linguagem aqui entendida não tanto como meio de comunicação ou expressão, mas como eclosão do mundo, como surgir, crescer e se consumar de um sentido do ser ou como historiar-se, destinar-se de um sentido do ser. A voz aqui se refere ao “tom”, ao “toque”, à “toada” que caracteriza o modo de ser, portanto, voz é modulação do todo, a “matiz” de fundo de toda uma paisagem. É nesse sentido que dizemos: “É o tom que faz a música”. Já que falamos da voz, poderíamos dizer que Stimmung é a afinação do todo na limpidez do seu ser, a vibração de fundo do próprio da coisa ela mesma. Nessa acepção é que em alemão usa-se o verbo stimmen para afinar, estar concorde, harmonizar. Ilustremos o que dissemos através de uma anedota piegas clerical sem muita graça: No interior de Goiás, numa cidade muito católica, na paróquia dos freis capuchinhos, o pároco era um frade siciliano enorme que mais parecia um armário do que um pobre mortal, cuja voz trovejava num barítono, fazendo vibrar as janelas da igreja. Na Semana Santa, na desobriga da confissão, igreja cheia de fiéis, esperando para confissão, o pároco pastor das almas, desejoso de arrancar delas um arrependimento profundo, subiu bem devagar ao púlpito, degrau por degrau, pesadamente. Olhou de cima para baixo os fiéis, demoradamente, num silêncio pesado e lúgubre. De repente, como que vindo das profundezas do abismo, gritou numa voz aterradora: “Inferno! Inferno! Inferno!”. E desceu do púlpito para sentar-se no confessionário. Foi um sucesso estrondoso. O jovem co-ajutor, mocinho, recém saído dos fornos do seminário, magrinho como top-model, achou o método fantástico. Resolveu adotá-lo. Numa celebração penitencial numa das capelas, fez o mesmo. Com passos apressados subiu ao púlpito, piscou os olhos sobre a multidão, e piou numa voz fina esganada: “inferno, inferno, inferno”. Foi uma gargalhada geral. É que o “povo” vê simples e imediatamente.

Essa anedota idiota diz o mesmo que aquela estória zen na qual se narra que um famoso mestre ao ser consultado pelas pessoas sobre um determinado problema da vida, levantava o dedo polegar em silêncio e se inclinava. E as pessoas voltavam satisfeitas. Um noviço achou o método interessante e começou a usá-lo também. E funcionava relativamente bem. Um dia no jardim do mosteiro, alguém que se aproximou do noviço por trás, o chamou. Era o mestre. E perguntou: Em que consiste a essência de Buda? O noviço, em silêncio, pressuroso levantou o dedo polegar. Deu um grito, saiu correndo em pânico. Num só golpe de navalha, o mestre lhe decepara o dedo. O mestre o chamou em voz firme: Oi! O noviço parou, virou-se e olhou para o mestre. Este calmamente levantou-lhe o dedo polegar! Nesse instante o noviço teve iluminação. Tornou-se mais tarde um grande mestre.

  1. O exercer e exercitar-se sempre de novo e cada vez sempre no ver simples e imediato é o estudo, i. é, o empenho e desempenho da fenomenologia. Para Heidegger esse exercício é mais importante do que ler Hegel. Muitas pessoas se escandalizam com essa afirmação de Heidegger. Não se anula com tal afirmação todos os nossos estudos acadêmicos? Sim e não? Mas em que sentido sim? E em que sentido não? Como explicar esse assunto por escrito leva muito tempo, e como fazê-lo não está nem muito claro nem sob a competência desse relatório, conversemos sobre esse assunto bem em concreto tendo como ilustração exercícios físico-corporais. Exemplo do relax.
  2. Já dissemos várias vezes que o simples fato de existir, o simples fato do ser-no-mundo é ver simples e imediato, ou numa outra maneira de falar pré-compreensão do ser. Isto significa que ver simples e imediato não é a consciência, o ato de um sujeito que verifica que o simples fato de existir é ver simples e imediato. Se chamarmos o ver simples e imediato de pensar, então ser e pensar são o mesmo, coincidem. Nesse sentido, dizer exercício do ver simples e imediato não é muito preciso, pois se o ser e o pensar são o mesmo, bastaria então apenas o simples fato de existir. Já vimos que exatamente voltar a essa situação do simples fato de existir exige de nós um grande trabalho de realmente vermos que essa simples factualidade não é um fato, uma coisa, por mais abrangente e nada que ela seja, mas facticidade, o ser-lançado-ali, o Da-sein. O exercício dessa volta se chama na fenomenologia redução, i. é, recondução à(s) pré-compreensão(ões). Uma das modalidades de se aviar à redução é o método socrático de indagar pelas pressuposições até se chegar ao não saber total. Esse não saber é suspensão, o pensar (pendo, pepensi, pensum, pendere). Desse não-saber, dessa suspensão fala Chuang-tzu:

A luz das estrelas perguntou ao não-ser: “Mestre, vós existis ou não?”. Como a luz das estrelas não obtivesse qualquer resposta, dispôs-se a vigiar o não-Ser. Esperou para ver se o não-ser aparecia. Manteve seu olhar fixo no profundo vácuo, esperando par tentar ver uma sombra do não-ser. Olhou durante todo o dia e nada viu. Ouvia, mas não escutava nada. Tentava pegar, mas nada pegava.

Então, a luz das estrelas exclamou, finalmente”. “É isto!” “Este é o mais distante! Quem poderá alcançá-lo? Posso compreender a ausência do ser. Mas quem pode compreender a ausência do nada? Se agora, acima de tudo isso, o Não-Ser é, quem será capaz de compreendê-lo? (XXII, 8) (Merton, T. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 10a. ed. 2002, p.186-7).

  1. Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sobra e tão mal-humorado com as próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra. Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sobra o acompanhava, sem a menor dificuldade. Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra. O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas ( XXXI) (ibidem, p. 229-30).
  2. Nieh Ch’ueh, que não tinha dentes, veio a P’i e pediu-lhe uma aula sobre o Tão. (Talvez pudesse mastigar isto!).

Então começou P’i: “Primeiro, obter o controle do corpo e de todos os órgãos. Depois controlar a mente. Atingir o ponto único. Depois, a harmonia celeste virá e habitará em você. Você estará radiante com a vida. Você repousará no Tão. Terá o olhar simples de um bezerro recém-nascido. Ah, feliz de você, nunca saberá a causa do seu estado…”.

Mas, antes que P’i houvesse chegado a este ponto de sua preleção, o desdentado adormecera. A sua mente não podia “mastigar” o cerne da doutrina. Mas P’i ficou satisfeito. Saiu cantando:

“Seu corpo é seco como o osso de uma perna velha, sua mente é morta como cinzas apagadas. Seu conhecimento é sólido, sua sabedoria, verdadeira! Na profunda escuridão da noite ele vagueia livremente, sem objetivos e sem planos: Quem é capaz de comparar-se a este homem desdentado?” (XXII,3) Ibidem, p. 180-1).

  1. Heráclito: phýsis krýptesthai fileî: a phýsis ama ocultar-se (123); aúe psychè sofotáte kaì aríste: alma seca, a mais sábia e a melhor (118).
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