- Estamos tentando compreender da melhor maneira possível o que devemos entender por método na fenomenologia. Para isso estamos tentando circundar o fenômeno “caminho”. Depois de examinar diferentes modos de ser do caminho, depois de distinguir caminho na senda, na trilha, e o modo deficiente do caminho no modo de ser da estrada e do highway, começamos a ler um texto de Heidegger que nos mostra de que se trata quando falamos ontologicamente de método como caminho na fenomenologia.
Acima foi usada a palavra ontologicamente, para considerarmos de alguma forma uma discussão, que é fruto de uma equivocação básica na compreensão da fenomenologia.
Formulemos a questão da seguinte maneira: Esse texto, O caminho do campo e outros que, supostamente, têm o caráter literário de poesia, considerados como obras da segunda etapa na evolução do pensamento de Heidegger, não são mais tidos como filosóficas. Nessas obras literárias poéticas, Heidegger teria abandonado o rigor filosófico para adentrar a área da poesia e da mística etc. Não vamos agora examinar essa questão. Só a mencionamos para que na nossa leitura de O caminho do campo desperte em nós um questionamento acerca de como devemos entender tudo quanto até agora falamos de método na fenomenologia. De que questão se trata?
- Em vez de dizer diretamente de que questão se trata, perguntamos a nós mesmos o que nos estranha ao lermos os primeiros parágrafos do texto. De modo geral estranhamos que o texto está impregnado de atribuições antropomórficas nas coisas que não tem o modo de ser humano, mesmo nas coisas inteiramente inanimadas, sem vida, coisas totalmente materiais: as velhas tílias o acompanham; o caminho deixa o portão; saúda um alto carvalho; o próprio carvalho afirmava: só este crescer pode fundar o que dura…
E justificamos esse antropomorfismo como sendo metáforas, gênero literário etc. Esse modo de considerar um texto como o nosso, que é fenomenológico, não é que esteja ele errado. É possível e é usualmente assim que o interpretamos. Com outras palavras, a fenomenologia é aquilo com a qual ou sem a qual tudo fica como antes tal e qual. Poder ver nesse modo de dizer e falar do caminho do campo e o próprio caminho do campo vindo à fala assim como é aqui no texto de Heidegger é o puro ver fenomenológico, o seu modo de caminhar: o met’hodós. O ser aqui, o ser assim, se chama fenomenológico, ou melhor, ontológico.
- Como tudo isso começou a ficar inteiramente incompreensível, vamos começar de novo e se possível, melhor. Mas antes, para que possamos sentir numa densidade maior esse modo de aparecer fenomenológico que se dá no Caminho do campo vamos ver uma fala semelhante à do Caminho do campo, numa outra obra que ao falar do quadro Sapato da camponesa de Vincent van Gogh, abre-nos uma paisagem do campo por dentro. O trecho aqui citado encontra-se na Origem da obra de arte de Heidegger. Diz o texto:
Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos “apenas” e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.
O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser a ele próprio.
Diante dessa exposição, quais seriam as qualificações que daríamos a ela? Que é poética, romântica, sociológica, existencialista, psicológica? Não é assim que todas essas qualificações soam estranhas, alienadas diante do que ali aparece na exposição de Heidegger como existência camponesa? É real? Impressões ou invenções subjetivas?
- A palavra existência aqui em uso na expressão existência camponesa é do uso na fenomenologia. O seu adjetivo é existencial. O que entendemos, quando dizermos e ouvimos o adjetivo existencial? Se o entendemos ou ouvimos ontológico ou fenomenológico (fenomenologia como sinônimo de ontologia fundamental), então talvez estejamos mais perto de uma compreensão quem sabe mais adequada da fenomenologia. Mas usualmente entendemos o existencial como existencialista. Existencialista vem do existencialismo. Existencialismo é uma denominação de moda que não diz respeito própria e primeiramente à filosofia mas antes à literatura da época pós-segunda guerra mundial. Onde se retrata a derrocada e se questiona o sistema dominante e dominador do humanismo ocidente-europeu da humanidade, alicerçado no ideal da cultura da razão do iluminismo que culminou na explosão da barbárie do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Isso que apareceu de modo dolorido, aterrador, no entanto era o vir a fala do que estava acontecendo há longo tempo no subterrâneo da nossa epocalidade, a saber, a dominação planetário de um determinado sentido do ser do ente na sua totalidade e o seu modo de ser que continua atuando, agora não mais na forma exacerbada e visível de um hecatombe, mas digamos pacificamente, criando um sistema que mais e mais se institucionaliza como globalização da racionalização do poder jurídico, científico tecnológico, de processamento do ente na sua totalidade, onde a vida, o humano, a dimensão pessoal e subjetiva começam a entrar em desolação de uma desertificação universal. Dentro dessa perspectiva o adjetivo existencial de novo é entendido talvez num âmbito mais vasto e talvez mais profundo, mas sempre referido de modo existencialista ao humanismo, ao antropológico, ao psicológico, de sorte que estranhamos que a fenomenologia use o termo existencial (e a existência) como ontológico. E perguntamos: “Ontológico não se refere ao ente, ao mundo real, existente em si, fora do sujeito, ao objeto? Ontológico não é o oposto do antropológico, do subjetivo?” Essa objeção que fazemos diante da afirmação de que o existencial é o mesmo que o ontológico – (p. ex. a fenomenologia de Heidegger é classificada por certos autores como filosofia da existência e é designada por próprio Heidegger de ontologia fundamental) – trai na pressuposição oculta atrás dela que entendemos por ente e ser o objeto-coisa diante e fora do sujeito, mas sem perceber ou sem desconfiar que é esse o sentido do ser que se tornou há muito tempo o sentido do ser dominante e totalitário, fixado como medida e critério da realidade. Aquilo que no último encontro foi exposto como o dogmatismo dominante de um determinado sentido do ser que aparece no que Husserl denominou de naturalismo, contra o qual ele dirigiu a mais intensa e aguda crítica no início da fenomenologia, e que sucessivamente recebeu o nome de psicologismo, biologismo e fisicismo, está impregnado desse acima mencionado sentido do ser, cuja dominação traz como última conseqüência a redução da realidade à pura quantificação extencional físico-matemática. Esse sentido do ser e o seu modo impregnam de tal modo o ente na sua totalidade que o próprio homem que no naturalismo propaga e fomenta uma tal explicação e compreensão da realidade é reduzido também à pura quantificação extencional físico-matemático como apenas uma determinada composição da quanta da energia material. Aqui o sujeito desaparece e se torna igual ao modo de ser do objeto. Ou melhor, aqui o ente na sua totalidade não é outra coisa do que essa coisa-mundo quantitativo. Mas não poderíamos antes aperceber que aqui o que denominamos o ente no seu todo, o mundo totalmente quantitativo é o sentido do ser constitutivo desse mundo, atuando e nesse atuar se ocultando, enquanto subiectum desse mencionado mundo? Subiectum aqui não é o sujeito-eu localizado como oposto do objeto, nem como algo do modo de ser de um ente constituído como isso ou aquilo, nem como plataforma ou fundamento que está debaixo do surgir do correlato sujeito-objeto, mas a aberta através, a partir e dentro da qual salta, vem à fala uma possibilidade de ser como eclodir, crescer e consumar-se do mundo, no caso de nosso exemplo, do mundo de desertificação do sentido do ser como mundo apenas quantitativo extensional: esse movimento, essa “ação” na sua estruturação dinâmica é o que se diz com ser-no-mundo, cujo fundo é nomeado como ex –sistência, a saber, sistir no ex: a aberta do ser. Ser a aberta do e para o sentido do ser como a passagem da possibilidade de ser para a realidade de ser é a essência do homem, portanto a essência do homem é existência. Nesse sentido, existencial significa ontológico ou fenomenológico, a saber, referido ao vir à luz, ao “phainómenon”.
- Ao lermos o caminho do campo fosse útil lembrarmo-nos sempre de novo que a paisagem que ali se descortina é existencial, i. é, fenomenóloga ou ontológica e não existencialista, poético-literária ou psicológica ou ecológica.
- O que segue pode não ter muito a ver com o que debatemos no último encontro do nosso círculo fenomenológico, mas pode ser útil para nos ajudar a exercitarmo-nos em revisar continuamente as nossas pressuposições escondidas na nossa pré-compreensão da filosofia e da fenomenologia e das ciências. O texto é tirado de uma preleção do fenomenólogo Heinrich Rombach, citado no texto examinado quando se falou do caminho. Trata-se de uma reportata de aulas ainda inéditas. Por ser reportata, pode haver certa imprecisão na formulação que deve ser atribuída a quem fez a reportata.
“O que se entende por filosofia? Perguntado com mais adequação e mais apropriadamente para a nossa finalidade: O que não entendemos por filosofia, o que não devemos esperar como se fosse filosofia, para onde não devemos ficar olhando na nossa reflexão? Tentarei caracterizar o que é filosofia por meio de uma rejeição, uma negação de dois quiproquós. O equívoco o mais geral que se encontra não somente entre os principiantes e estudantes mas também entre os especialistas e professores consiste em pensar que esta ciência chamada filosofia é caracterizada por uma área objetiva de problemas, portanto, como se um certo número ou um catálogo de questões constituísse o que a gente chama de filosofia. Assim, a gente quiçá fala de teoria de conhecimento como uma área dos problemas da filosofia, da lógica, da Ética, da metafísica etc. Tudo isso seria então determinados problemas, pelos quais cada um que lida com esses problemas, pode dizer que faz filosofia. Os problemas filosóficos nesse teor são como temas biológicos, pelos quais a biologia é definida como ciência e o biólogo como cientista. Mas não é assim com a filosofia. Questões como liberdade, conhecimento, verdade, imortalidade, mesmo tais questões e temas a gente os pode tratar de todo sem filosofar. Pode trata-los pensando que filosofa e no entanto, não o faz. As questões no entanto também não contradizem o filosofar. Lidando com todos eles é também possível que a gente filosofe. Mas essas questões e esses temas não bastam como critérios do processo da ação do filosofar. Assim, portanto, como determinadas matérias, tarefas, temas não caracterizam o filosofar, assim o filosofar não exige nenhum tema determinado a partir de si, e é possível por princípio filosofar com todos os objetos. Portanto, a gente não pode determinar a filosofia a partir da coisa, mas deve-se compreende-la a partir dela mesma, a partir do processo da sua ação.
Mas como é isso? O que a determina então? Quando podemos dizer que o filosofar acontece, em lida com o que? Tentemos uma primeira insinuação de uma resposta pela continuação do pensamento negativo. Portanto, não este ou aquele objeto, não um determinado catálogo de problemas perfazem o filosofar, pois todos esses objetos, problemas, tudo quanto podemos descrever e abordar, já estão de antemão colonizados, localizados num determinado chão da acessibilidade, da tematizabilidade, pré-compreensibilidade, pois se então eu quero começar a filosofar, pelo fato de eu remexer o problema da liberdade, devo já saber, o que é isso, a liberdade. Senão não poderia sequer me mover na direção à coisa no propósito de filosofar. Portanto, já o propósito de filosofar pressupõe uma situação de fundo, que atou a mim e o meu objeto numa comunidade. Quem, porém, funda essa comunidade, donde ela vem? O que a justifica? Como ela parece? Como está ele constituído, esse chão, sobre o qual eu já devo me achar com esses problemas que deveriam presumivelmente constituir a filosofia?
Essas perguntas todas, não são também elas uma pergunta e não seria esta pergunta mais radical, anterior e fundamental do que a outra que se dirige a um determinado problema, justamente a este problema preestabelecido? Quem coloca esta pergunta? Como e caracterizada essa pergunta? Vamos dar um exemplo: Nós temos um determinado grupo de objetos, caracterizados de tal modo que se destacam do outro grupo de outros objetos. Assim podemos aqui falar de filosofia, ali talvez de Psicologia, acolá de pedagogia e historiografia etc. Para que pudéssemos estabelecer diferenciação, necessitamos de uma base, um fundo de referência para comparação, que me abarca a mim e os objetos, para que eu possa me decidir na escolha. E agora a pergunta: e o que é isto? Não seria isto propriamente o tema ordenado à filosofia e a ela reservado? Se isto é o tema da filosofia, então se torna claro que não é nenhum tema que a gente pode trazer diante de si ou que possa ter diante de si; pois, ter diante de si significa justamente que está estabelecido: em contraposição a mim, i. é, portanto, colocado sobre esse fundo que justamente é tema propriamente da filosofia. Mas, se é assim que este fundo deve ser visto como o tema propriamente considerado filosófico, e ao mesmo tempo e é isto que não vem diante de nós, que de modo algum ocorre diante de mim como simplesmente dado, não deveríamos ali suspeitar que se trata do chão que deve ser criado? Portanto, eu não o acho de antemão. Como então? Como o encontro então? Não poderíamos supor, sim experimentar uma vez, experimentar em pensamento, se isto não é algo que ao mesmo tempo é criado; pois este chão não é propriamente algo, sobre o qual eu estou, mas este chão é o que me caracteriza o íntimo de mim mesmo. Se, porém, eu sou isto, que se coloca, pois, eu é sempre colocação de si mesmo, e este chão que é o mais íntimo, então ele é ao mesmo tempo o criado por mim.
Não estou seguro que tudo isso pode ter ficado evidente nessa série de argumentações, como elas se deram no momento. Eu parto disso que o eu é constituído por uma colocação de si mesmo. Isto é bem claro: é o que captamos em cada experiência de si mesmo sem mais. Isto não significa que a gente se criou em fim primeiro a si mesmo no sentido ôntico, mas se trata de uma colocação de si mesmo no sentido ontológico na forma de que, eu assim como eu me acho, posso existir de modo que eu me acho diante do outro, isto quer dizer exatamente, me contraponho de encontro ao outro. O ato da colocação é bem simplesmente isto que no entendimento usual chamamos de atenção. Postura de atenção, não simplesmente apenas boiar num acontecer, mas notar o que ali acontece, pressupõe um a-tender, e esse “a” não é outra coisa do que o momento de colocação de si mesmo. O exemplo, o mais nítido disso tudo é ouvir música: eu ouço música de lazer ou algo semelhante, sem que eu dela me aperceba realmente, embora eu escute todos os sons. Eu deles não me apercebo, mas eu deixo-me levar simplesmente como que boiando nesse suceder musical e p. ex somente me apercebo dela quando a música é interrompida, abruptamente. Durante a vivência musical eu posso ligar e desligar. Enquanto estou desligado escuto quiçá tudo, mas dele não me apercebo, ele não atua em mim, embora esteja ali dentro perfeitamente e ele em mim.
Justamente essa identidade dissolve (auflösen = Pode significar também desatar, libertar) a colocação do eu mesmo.
Vem então o ligar, que consiste nisso, que eu me coloco e somente então através desse colocar vou de encontro ao que ali está e a partir desse ir de encontro, eu me recolho para fora do acontecer, me coloco e desse colocar-me surge o “de-encontro-contraposto”, que então me permite aperceber a coisa como o que ela é. Esse colocar-se é um desempenho, uma efetivação do empenho. É interessante se observar quanto tempo consigo manter-me na atenção.
Jaz assim ao eu, no seu fundo, uma colocação de si, um posicionar-se, i. é, um criar. O que é propriamente criado, se eu me coloco? O que é isto que eu coloco? Eu não coloco um determinado conteúdo ôntico, mas sim, o que eu propriamente coloco é uma base de compreensão, i. é, ali-contra (Dawider), por-sobre-para-além algo pode me en-contrar, eu me coloco como o “ali-contra” de objeto e sujeito. Eu não sou o sujeito, que então se senta em contraposição de encontro a algo, mas eu sou o aberto “estar-ali-contra-posto” ele mesmo; e em me colocando como tal eu me torno sujeito. Portanto, este chão jamais é objeto, nem tão pouco algo que possa ser assinalado simplesmente como Sujeito, mas é o aberto que lança o um-com-outro-mutuamente ←☼→, um lance que se cria, se faz, que tem o caráter do colocar-se do eu. Fichte diz: agenciação efetiva (Tathandlung), ação operativa, a mais originante, que é mais originária do que um fato (Tatsache), pois todos os fatos pressupõem esta agenciação efetiva originária-originante, que faz saltar e ao mesmo tempo cria o chão, sobre o qual este e aquele fato pode achar o seu lugar.
Se, agora, a filosofia é isso que dissemos, se ela se ocupa com essa ação efetiva, então ela tem a ver e muito com a ação criativa, com o criar. Ela não é “contemplação”, “teoria”, mas poiesis: e-fectivar, trazer para fora, fazer surgir e quiçá fazer surgir um compreender. Essa compreensão de filosofia como ação criadora seria provisoriamente a primeira característica do conceito da filosofia, de cujas conseqüências não podemos agora ter supervisão, a saber, ela é fazer surgir o lance de fundo da base do compreender. Usualmente colocamos um chão, o qual não lançamos propriamente nem o temos lançado, pois por assim dizer, ele já estava ai por si. Por isso, a compreensão sobre a qual nos repousamos normalmente é a obviedade, a compreensão óbvia, ao passo que a compreensão da filosofia é absolutamente não-óbvia, isto que o criar, que está também na obviedade, própria e primeiramente deve efetuar, portanto criar o criar do criar, portanto criar realmente efetuado.
Esses pensamentos um tanto complicados foram expostos para justificar o que pretendemos nessa preleção de filosofia, a saber recorrer a dados e fatos, provenientes da arte, e da história da arte. Pois, se a filosofia é originariamente tão poética, de tal sorte que ela é mais caracterizada por esse comportamento originariamente poético, criativo e ponente do que pelo puro contemplar, puro receber o que vem de encontro, então deve haver no que chamamos de obras de arte conteúdos filosóficos. Mas não conteúdos acrescentados de alguma maneira a ela ou nela projetados, mas sim assim de tal maneira que precisamente perfazem a essência dessa obra e da arte. Assim, deve ser possível lidar com obras de arte e da história da arte como lidar com os textos da história da filosofia. É algo deprimente, observar que gerações inteiras de historiadores da filosofia, juntamente com bibliotecários, tenham deixado se prescrever a que eles devem se ater suas pesquisas. Tudo que está no setor da filosofia vale como texto da história da filosofia e o que ali não está, não pertence à filosofia. Isso acontece então, quando a gente determina a filosofia a partir de uma moldura temática, da qual são determinadas todas as ciências. No momento em que a gente observar que a filosofia não pode ser determinada a partir de padrões temáticos, mas a partir da dinâmica da criatividade, torna-se impossível distinguir e falar a modo de rubricas de objetos e fontes filosóficos, prescritos de antemão de modo bem determinado, mas pode-se incluir ali tudo, ao menos tudo isso que é caracterizado, não por uma compreensão preestabelecida, portanto pela obviedade, mas pela agenciação efetiva criativa da compreensão. Assim, portanto, pode-se entender por uma obra de arte, não o que veste simplesmente com certa configuração, de uma certa visibilidade, uma coisa já interpretada, mas que através do modo de configurar cria um modo de ver, que é ao mesmo tempo um modo do compreender. Assim considerada, a obra de arte não se diferencia do pensamento filosófico; deixa-se con-verter sem mais de um domínio para outro, o de filosofia, e vice-versa.