Cada vez que for possível será feita uma espécie de relatório das reuniões do nosso seminário sobre fenomenologia. Relatório que não é nenhum relatório, nenhum protocolo, resumo que de alguma forma reproduzam o que vivamente foi tratado no encontro, mas apenas alguns arrazoados avulsos mal feitos, ocasionados pelos pensamentos que surgiram e circularam entre nós, graças à colaboração e participação de todos.
Todos nós viemos para o seminário, cada qual com uma determinada expectativa da fenomenologia.
As expectativas que a gente tem da fenomenologia são boas se, se afinam à boa audição do que vai surgindo do/no círculo do seminário; menos boas se na sua exigência e excelência são mais altas do que “o quê” a fenomenologia na sua finitude consegue dar. Finitude aqui significa o modo de ser do que é finito. Representamos o finito como delimitado, o que está cercado, não totalmente livre ab-soluto, i. é, não solto como in-finito sem limites, sem limitação. Essa representação, se não é bem entendida, introduz dentro da compreensão do finito a ‘idéia’ da privação, da carência. Assim, ‘finito’ é o que é imperfeito, porque ainda não chegou a ser infinito. Nessa concepção de finito-infinito atua as nossas expectativas usuais de excelência na ciência e na vida. De tudo, esperamos, na ciência e na vida, o melhor, a excelência. A qualidade total, a melhor, sem limites, sem fim, infinito. E deslocamos o ponto de chegada da perfeição absoluta dessa excelência infinita para além, para a utopia assintótica. Olhamos, pois, para além com ânsia do infinito transcendental e passamos “por sobre acima do finito” que cai no esquecimento, se retrai como ausência, carência, falta da excelência do tipo in-finito.
A fenomenologia, pois, não se sente em casa na atmosfera da expectativa dessa excelência infinita da busca para além. Pois não se dá o ar de excelente, de infinito, porque respira na atmosfera do finito, do sempre e cada vez consumado, terminado, bom, naquele sentido que expressamos, quando, tocando de cheio mas de leve o lóbulo da orelha, ao degustar a primeira porção de uma pamonha, dizemos: está no ponto, é bom, demais. Esse demais não é para além, transcendental nem transcendente, não é falta do infinito, não sabe à inchação, inflação, não tona grandioso nem gigantesco, mas como plenitude, simples e imediata está ali con-creto e sóbrio como a “coisa ela mesma” que a fenomenologia chama de mundo. Em vez de mundo, na fenomenologia se diz também ser-no-mundo. Em geral, quem não se familiarizou com a fenomenologia entende essa “coisa ela mesma”, esse “estar ali concreto e sóbrio, pleno, simples e imediato”, esse mundo ou ser-no-mundo equivocadamente. Interpreta tudo isso dentro do horizonte do usualmente conhecido, como se todas essas ‘realidades’ fossem objetos: objeto-subjetivo aqui e objetos objetivos de vários tipos, diante e ao redor de mim.
Uma das inúmeras tentativas do trabalho da fenomenologia é reconduzir a nossa compreensão prefixada da ‘realidade’ padronizada dentro do esquema sujeito-objeto à compreensão da ‘realidade’ como mundo ou ser-no-mundo.
Como preparação para essa redução ou recondução, embora ainda permanecendo no esquema sujeito-objeto, tentemos ver a nós (objetos-subjetivos) e os entes ao redor de nós que não são sujeitos (objetos-objetivos) como ‘mundo’. Para isso uma comparação (embora ainda muito objetiva).
Sobre a mesa estão espalhadas gotas de água da chuva que pingaram de uma goteira do meu quarto. São 21 pingos d’água, uns menores, outros maiores, formando duas pequenas poças d’água. A superfície da mesa é chata, uniforme, lisa, sem muita diferença. As gotas e poças d’água também não se diferenciam muito entre si, a não ser pela quantidade e formas geométricas. Quanto mais me distancio da mesa e tenho uma visão longínquo-panorâmica, tanto mais neutra e indiferenciada se torna a paisagem: só alguns pontos sobre uma mesa de superfície lisa e homogênea.
Mas seria bem diferente a paisagem que se descortinaria se eu conseguisse, por exemplo, entrar através de um possante microscópio para dentro da paisagem interior de uma gota d’água. Ali se abriria todo um mundo habitado por diferentes tipos de seres estranhos, riquíssimos em detalhes de formas e constituições “fisiológicas” movimentando-se, relacionando-se, reproduzindo-se e devorando-se mutuamente, no meio de uma floresta de seres parecidos com plantas e fungos. Assim, em cada gota encontraríamos todo um mundo, e neste mundo, mundos e mundos; e em cada ente que os povoaria, por sua vez, toda uma estrutura que perfaria de novo todo um mundo de realidades.
E ainda, se focalizássemos uma pequena parcela da superfície da mesa, sobre a qual se espalham as gotas como se fossem pontos isolados entre si, descobriríamos com surpresa que também essa superfície, aparentemente tão lisa e homogênea, apresenta acidentes “geográficos” variados, vales e montanhas, sulcos profundos e abismos, também povoados por micróbios e bacilos de variados tipos e constituições.
A quem se abrem cada vez de modos diferentes e diferenciados ‘a realidade’ como mundos e mundos e mundo no mundo é o homem. Mas o homem enquanto visto como objeto se abre também a si como mundo. O que é, quem é, e como é a quem tanto o homem como os entes não-homem se abrem como mundo? Na fenomenologia essa pergunta é a aguilhão que sempre de novo e cada vez estimula o nosso saber a se perguntar e em assim se perguntando “ver”.
Por enquanto, deixemos no ar a suspeita e pergunta: esse a quem se abre os mundos, cada vez no seu modo, esse “quem”, que não é objeto subjetivo ou sujeito, portanto nem sujeito nem objeto é homem que em não sendo nenhum objeto (nem objeto subjetivo nem objeto objetivo) é exatamente esse modo de ser de cada ente aparecer como mundo? Se assim for, o homem apareceria entre outros entes não-humanos como objeto, mas ao mesmo tempo como modo de ser do aparecer de cada objeto, inclusive ele mesmo, como mundo. Ou melhor, ele propriamente não apareceria, mas haveria de se retrair como a aberta que ao fazer aparecer o mundo cada vez no seu modo de ser próprio, se oculta como a interioridade a mais íntima do mundo? Ele seria assim ser-no-mundo. Não dentro do mundo de objetos tanto subjetivos como objetivos qual um sapo dentro da lagoa, mas como o ponto de salto da eclosão do mundo, como olho d’água, como a aberta do mundo. Quando o objeto-sujeito é reconduzido assim para o próprio de si mesmo como ser-no-mundo, então ele deixa de ser a ânsia assintótica da carência do infinito, e volta a ser bem no ponto, bom de mais na sua finitude. Então é que o mundo finalmente se tornaria redondo, simples, concreto, a coisa ela mesma da fenomenologia.
As infindas discussões, troca de idéias, vai e vem das discussões do seminário acerca da fenomenologia nos podem enervar e impacientar na nossa ânsia do infinito da excelência objetiva. Elas são, porém, movimento circular, uma espécie de rodopios que pedem de cada um de nós muita paciência, plena atenção e principalmente muita cordialidade na valentia de pensar. Eles podem sovar o nosso saber e gastar seus cantos e o transformar do quadrado para redondo, conduzindo-o à ciência cordial, que para Nietzsche tem o modo de ser da arte.