Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia da Religião – VI

20/04/2021

 

3 O tempo da reflexão filosófica sobre religião

O possível não é propriamente o necessário. A questão expressa e temática da essência da religião e a sua elaboração sistemática não são propriamente uma necessidade, mas se mostrou como questão possível. A religião pode formar a sua vida, sem filosofia, e o faz e o fez principalmente lá onde a sua vida é e era intensa.

Onde, porém, a religião não mais possui a sua originária e inicial obviedade, e lá onde o pensar filosófico autônomo se desenvolveu de modo intenso e absoluto, talvez surja uma necessidade todo própria de pensar a religião de modo mais temático e responsável.

Essa necessidade de um confronto temático e responsável no pensar com o fenômeno religião se torna aguda e urgente, diante do que costumamos denominar  a “morte de Deus”. Falemos rapidamente da morte de Deus.

O que é a “morte de Deus”? A expressão vem de Nietzsche. A morte de Deus ou “Deus está morto” indica o âmago da filosofia de Nietzsche. Contem 4 momentos principais que receberam o nome de: O nihilismo europeu; a eversão de todos os valores; a vontade do poder e o eterno retorno do igual.

Na obra póstuma A vontade do poder, aforismo 2 (1887) Nietzsche pergunta: “O que significa nihilismo?” E responde: “Que os valores supremos se desvalorizaram”. E acrescenta: “Falta a meta; falta a resposta para ‘por quê?’” E no quarto livro da obra A gaia ciência, intitulado “Nós, os intrépidos”, Nietzsche assinala o aforismo 343 com as palavras:  “O que há com a nossa jovialidade”. E o texto inicia: “O novo evento máximo – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão perdeu a sua credibilidade -começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.

Usualmente entendemos o nihilismo como uma atitude e concepção particular e subjetiva, na qual se vê tudo a partir e na direção do negativo, do nada (nihil). É algo como rejeição pessimista e depressiva da vida. O nihilismo do qual fala Nietzsche se chama, no entanto, nihilismo europeu. Não se trata, pois, de atitudes ou concepções subjetivo-particulares. Mas tampouco se refere propriamente à mundivisão, muito espalhada na Europa do século XIX, ao positivismo, que afirma: somente o que é acessível pela apreensão sensível é real e verdadeiro. O adjetivo “europeu” do nihilismo de Nietzsche não se refere à Europa geográfica. Refere-se sim à história, ao destino do Ocidente. Nihilismo europeu é, portanto, o termo usado por Nietzsche para indicar o movimento que caracteriza e domina a história do Ocidente, ou melhor, o movimento que é a própria história do Ocidente, e isto, desde os seus primórdios, com os gregos, até os nossos dias do Ocidente-europeu. Trata-se, portanto, de um processo, cujo evento máximo, cuja consumação se expressa e se resume nas palavras “Deus está morto”.  Portanto, o nihilismo de Nietzsche não é opinião ou mundividência, doutrina de um sujeito chamado Friedrich Nietzsche ou de um grupo de pessoas. Não é apenas um fato histórico entre outros, uma corrente “espiritual”entre ou ao lado de outras, como p. ex., iluminismo, ateísmo, humanismo. É o próprio ser, o próprio destinar-se do Ocidente. É o movimento de fundo da história do Ocidente, um movimento subterrâneo que vem de longe, e que somente agora começa a lançar as suas primeiras sombras sobre a Europa.

Mas o que caracteriza esse evento? Diz Nietzsche: A morte de Deus, i. é, a perda da credibilidade no Deus cristão. Aqui a falta de credibilidade no Deus cristão não está apenas indicando a rejeição e a negação do Deus cristão, por parte dos ateus, anticlericais, livre-pensadores ou mesmo pelos “cristãos indiferentes”. Tal falta de credibilidade no Deus cristão, assim interpretada, seria um episódio inocente, particular e caseiro, diante do evento mencionado por Nietzsche. Uma vez que todos esses fenômenos negativos acima mencionados não são ainda o nihilismo europeu como evento-causa, mas apenas alguns dos seus efeitos.

Deus cristão em Nietzsche indica o sobre-natural (o metá físico), o mundo supra-sensível, o mundo de valores, de ideais e idéias que constituem a meta, o fim para o qual tende a vida.  Não é, portanto, apenas o fato e a situação de não se crer mais na revelação da Bíblia, no Deus e na Igreja do cristianismo. O fato de o cristianismo, com tudo que implica, não ter mais vez, de não mais atuar nem possuir a força de colocar uma possível meta para a humanidade, não altera essencialmente em nada o fato de a humanidade ocidental, desta ou daquela forma, viver a estrutura da opção preferencial pelo mundo sobre-natural, viver a estrutura da predominância do mundo de ideais e idéias, de metas, de princípios e fins, razão da existência do mundo natural, sensível e terrestre. Mesmo que o n. 1 do mundo sobre-natural, o Deus cristão, tenha sido ou seja destronado ou morra inane, o próprio trono vazio permanece. Assim, se tenta sempre de novo reintronizar os substitutos do Deus cristão, como p. ex., o estado, a consciência, a sociedade, a razão, a humanidade, o progresso, o mundo melhor e toda sorte de diferentes –ismos.

Essa tentativa de preencher, sempre de novo, o vazio deixado pelos diferentes valores supremos desvalorizáveis, por meio de valores substitutos do Deus cristão, é denominada por Nietzsche de nihilismo incompleto. Assim, diz Nietzsche em a Vontade do Poder, aforismo 28 (1887): “O nihilismo incompleto, suas formas: nós vivemos bem no meio dele. As tentativas de esquivar-se do nihilismo, sem everter os valores que eram válidos até agora: trazem o efeito contrário, tornam mais agudo o problema”.

O descrédito do Deus cristão quer dizer, portanto: a determinação do sentido do ser que tem sua mais consumada e absoluta manifestação no Ente Supremo (Deus), em todas as suas variantes e modalidades de interpretação, perdeu poder sobre o ente e suas determinações. Assim, “com o ‘Deus cristão’, caem do trono também, juntos, todos os ideais, normas, princípios, regras, fins, metas, valores que foram e ainda são por algum tempo estabelecidos sobre o ente, para lhe dar no seu todo um fim, uma ordem, um sentido. Por isso, diz Nietzsche: “…os valores supremos se desvalorizam”…”falta a meta, falta a resposta para “por quê?”.

Mas o que é necessário para que o nihilismo não fique a meio caminho, e sim que chegue à sua consumação? O nihilismo completo, consumado e pleno deve não somente constatar e considerar a desvalorização de todos os valores supremos, mas também vigiar atentamente que não se volte aos valores antigos, substituindo-os por valores novos, similares. E deve antes de tudo efetuar a eversão de todos os valores.

Eversão de todos os valores, aqui, não significa inverter, revirar ao contrário os valores que ocuparam ou ocupam os lugares da hierarquia de valores, estabelecida como o escalonamento dos entes no seu todo. Não se trata, pois, de por de cabeça para baixo a ordem do “sistema” de dois mundos, do mundo sensível: passageiro, relativo, provisório e ilusório, e do mundo supra-sensível: eterno, absoluto, definitivo e verdadeiro. Eversão significa estabelecer uma mudança total, não somente nos valores, mas sobretudo no ser da estrutura que aparece como o escalonamento do “sistema” de dois mundos. Isto significa revolver, revolucionar a totalidade da valência para colocar tudo novo, desde a raiz, buscar um novo princípio da própria valorização, fundar um “novo céu e uma nova terra”, onde o “céu e a terra” não são mais dois reinos hierarquizados como meta-físicos, mas como uma inteiramente nova pátria da Terra dos Homens, à qual Nietzsche dá o nome de Terra, Vida, Corpo. Somente quando se der essa eversão e a fundação da nova ordem da afirmação da Terra, da Vida, o nihilismo chega à sua consumação e se torna completo. Temos então o que Nietzsche chama de nihilismo clássico, o nihilismo europeu.

Frel14 – 1997

  1. Assim, estamos no tempo da reflexão filosófica da religião: tempo da indigência da “morte de Deus”.
  2. Aqui, negligenciar ou até deixar de lado a reflexão crítica filosófica acerca da religião, portanto, querer viver uma imediatez irrefletida da vida religiosa, se torna extremamente perigoso. Se deixarmos de lado a reflexão crítica filosófica, principalmente nesse tempo de diminuída força do salto originário da religião e da força de reflexão do pensar altamente exigente no seu rigor crítico, facilmente poderemos decair até uma situação na qual a religião irrefletida e incontrolada se torne de tal modo arbitrária que não corresponde mais à sua essência.
  3. Na filosofia da religião, a religião não é, pois, premissa; não é pressuposição da reflexão filosófica. A religião não pode, pois, entrar na reflexão filosófica como argumento ou razão de uma explicação. Ela é apenas para a mira filosófica um reino, uma região, um ente que é dado, não como pressuposição, mas sim como o ente que deve ser interrogado e aclarado no seu ser. Quando, porém, a religião é base, premissa, pressuposição para a autocompreensão de si mesma, não temos mais a filosofia da religião, mas sim a teologia.
  4. Isto significa que há uma reflexão esclarecedora da religião que brota e vem dela mesma, como o vir à luz, vir à fala da religião na sua “razão”, portanto, uma autoevidenciação da religião por e para ela, nela mesma.
  5. Surge, assim, a questão: o que quer a filosofia esclarecer ou dizer sobre a religião mais do que a própria religião pode esclarecer e dizer a partir da sua autoevidenciação?
  6. Trata-se aqui de ver, diante da religião, a legitimidade da filosofia como o pensar, no sentido da busca incondicional e autônoma do sentido do ser, por causa do seu desvelamento ele mesmo; trata-se, pois, da filosofia como a questão do ser, ou melhor, questão do sentido do ser; legitimidade da filosofia e seu questionamento em referência à autocompreensão, à autoreflexão, à autoevidenciação da religião como teologia. O que quer dizer: a filosofia busca o sentido do ser da religião, enquanto filosofia, e não ser a experiência fáctica ou existencial da religião como vivência crente da religião? Qual a diferença entre “como questão do sentido do ser, estar na abertura disposta de colher o sentido do ser da religião que se revela como ela se revela” e “viver a própria religião imediatamente como crente esclarecido”?
  7. No tempo do salto originário da religião, onde a religião é vivida na plenitude do seu ser, por estar na plenitude, não permite nem necessita da questão do ser da religião.
  8. No entanto, no tempo da indigência da religião, onde a religião perdeu a sua credibilidade, o que aparece como religião, sem ser o ser da religião na sua plenitude, é um ente que necessita ser colocado em questão e ser interrogado acerca do seu ser.
  9. Esse questionamento filosófico não pressupõe a religião como seu fundamento. Mas tampouco a questiona a partir e dentro de um determinado sentido do ser, o qual toma como medida e critério para julgar a religião.
  10. A filosofia, no seu vigor essencial de busca límpida e precisa do sentido do ser, ali está na sua autonomia, na disponibilidade da espera do vir à fala do sentido originário do ser da religião. Mas esse deixar ser o sentido do ser da religião, lá onde a religião não mais se acha na legitimidade pura do seu salto originário, lá onde se sobrecarregou de outras colocações que não vêm do seu ser, a filosofia pode e deve exercer o seu rigor crítico de destruição das pressuposições inadequadas, inanalisadas e prefixadas.
  11. Esse problema do relacionamento entre filosofia e religião, filosofia e fé, filosofia e teologia possui várias tentativas de solução. Uma dessas soluções, talvez a mais conhecida, é a solução pretensamente atribuída aos medievais, designada pela expressão: Fides quaerens intellectum (a fé procurando a compreensão).
  12. Dissemos acima, “solução pretensamente atribuída aos medievais”, pois a compreensão dessa expressão fides quaerens intellectum é usualmente interpretada a modo da explicação neoescolástica como uma tentativa de síntese entre fé e razão.
  13. Aqui, não interpretamos essa expressão como o faz a neoescolástica. Nós a entendemos como expressão da autoevidenciação da fé, a partir e dentro dela e nela mesma, portanto, é uma expressão teológica.
  14. Mas vamos conhecer, como informação, a maneira como a neoescolástica entende essa expressão. É que essa interpretação é muito conhecida e é aceita de modo geral entre nós, mas ela não satisfaz, no rigor e na precisão filosófica, as exigências do questionamento moderno acerca desse assunto. Segundo a neoescolástica, a filosofia que se caracteriza pela expressão fides quaerens intellectum se chama filosofia cristã.
  15. O que segue foi tirado do manual da história da filosofia medieval que se intitula Filosofia cristã, da autoria de Philotheus Böhner OFM e Étienne Gilson, tradução de frei Raimundo Vier OFM, livro da editora Vozes, Petrópolis. Damos apenas alguns tópicos:

> “É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais, e não obstante vê na revelação cristã um auxílio valioso, e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão”.

> “Uma filosofia cristã consta exclusivamente de proposições susceptíveis de demonstração natural. Não falamos, pois, em filosofia cristã, senão quando o assentimento às proposições por ela enunciadas se basear na experiência ou em reflexões de ordem racional. Em outros termos, seu ponto de partida lógico não deve situar-se no domínio das verdades reveladas, inacessíveis à razão. Há, pois, uma diferença essencial entre a filosofia cristã e a teologia cristã, que abrange principalmente as proposições direta ou indiretamente reveladas por Deus, e bem assim as que delas se derivam com a ajuda de verdades naturalmente conhecidas. Donde segue, que teremos de excluir desta exposição histórica todas as proposições de caráter estritamente teológico. Não quer isso dizer que devamos fugir a toda e qualquer referência à teologia, pois, como se sabe, existe um nexo íntimo entre  especulação filosófica e as doutrinas teológicas cristãs”.

> “Uma filosofia cristã deve originar-se sob a influência consciente da fé cristã. Mas esta influência não é de natureza sistemática, e sim psicológica. Manifesta-se, sobretudo, de quatro maneiras: a) A fé preserva a filosofia de muitos erros…..b) A fé propõe certas metas ao conhecimento racional….c) A fé determina a atitude cognitiva do filósofo cristão…d) A fé determina o sentido do labor filosófico.

> Notas características da filosofia cristã:…..1. Toda filosofia cristã norteia-se pela tradição, pois todo sistema cristão tem consciência de ser parte e parcela de uma empresa coletiva, para a qual deverá contribuir, levando adiante a obra dos predecessores. 2. A filosofia cristã tende, quase sempre, a fazer seleção entre os seus problemas. 3. A filosofia cristã manifesta, quase sempre, forte tendência sistematizadora.

Frel15 – 1997

A necessidade da reflexão filosófica no tempo de indigência da religião, indigência denominada “morte de Deus”, nos convida a conscientizar-nos bem da nossa situação de habitantes do nihilismo europeu e, a partir de uma clara consciência da nossa situação epocal, nos confrontarmos com a questão do sentido do ser da religião. A partir do que foi refletido acima, vamos resumir a nossa situação.

  1. Com o advento do nihilismo europeu, onde os valores supremos que sustentavam o homem ocidental se desvalorizaram, o ser do homem não lhe é mais pro-posto, i. é, colocado diante dele, digamos, como idéia a priori ou ideal. Não há mais, portanto, um ponto final, uma meta fixa, plena de significação, importância e fascínio, que mobilize o homem a doar-se na busca do ideal, deixando de lado todo o particular, o “pessoal”, o “subjetivo”. Nesse sentido, temos a pergunta e a resposta de Nietzsche, já mencionadas anteriormente: “O que significa nihilismo?”, e responde: “Que valores supremos se desvalorizaram”, e acrescenta “falta a meta; falta a resposta ao “por quê?”[1] Para onde vai então todo o élan vital do homem, se não há o “para onde”, o “por quê”, que lhe dê uma meta, que dê um ideal à humanidade? Seugue-se, portanto, para o nada, o nihil, o nihilismo?
  2. Na concepção antiga do sentido do ser humano, tanto grega como medieval cristã, o “por quê”, a meta, o ideal aparecia diante do homem como valores, i. é, como todo um conjunto de forças mobilizadoras da humanidade no seu viver, fazer, sentir e pensar. Essas forças estavam como que ordenadas numa hierarquia de potências, unificadas e sustentadas na sua dinâmica por um valor supremo (ou valores supremos). O valor supremo era pois o ideal do homem, a idéia, i. é, a prefiguração, o arquétipo que é colocado de antemão para ser buscado e seguido: o ideal. No Ocidente, o valor supremo recebeu diversos nomes: Espírito, Deus. Essa força mobilizadora, ainda plena, vigorosa, assentada em si, dominadora no sentido de possuir em si ainda o fascínio, o encanto, sim, a potência de se impor por si mesma, a partir de si, atraindo tudo a si, formava e estruturava a busca do homem por realização. O homem se submetia de boa mente a tal dominação, a procurava, nela crescia, se tornava cada vez mais perfeito na identificação total com o ideal que estava sempre para além dele (meta-física). Assim, o ser do homem, a essência do homem, o espírito do homem era substancioso e substancial, possuía dentro de si um élan que o lançava para fora de si, na busca desse valor supremo: o homem era ser; era essência; era espírito: era substancial. Aqui, tudo era firme, determinado, decidido, sólido, o que não significa fixo, imóvel, estático, bitolado, fanático; mas sim substancial, intenso na dinâmica da autoidentidade. Esse modo de ser na Idade Média se chamava: in se, i. é: substância. Com o advento do nihilismo europeu, toda essa autoidentidade começou a entrar num movimento de entropia do sentido do ser. Por isso, no livro A gaia ciência, Nietzsche intitula o aforismo 343 com as palavras: “O que há com a nossa jovialidade”, e continua: “O novo evento ‘máximo – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão perdeu a sua credibilidade – começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.
  3. Voltemos à pergunta acima colocada: para onde vai o élan vital do homem, quando o valor supremo e seus valores dele dependentes se esvaziam? Torna-se aqui tudo um nada vazio? Nessa nihilização podemos observar dois momentos de desenvolvimento: Um é o fenômeno da aparente entropia, i. é, da aniquilação gradual do élan vital, de tal sorte que ali nada mais resta do que a pura carcaça do que foi antes. Sobra assim o conjunto do arcabouço da construção, mas sem nenhuma vida, dinamismo ou élan dentro dele. Portanto, apenas um conjunto de esquemas mortos. Mas, enquanto próprios esquemas, ainda possuem certa vitalidade, enquanto unidade ou clarividência lógica; se os valores se esvaziam completamente, então nem sequer temos carcaça que seja como conjunto logicamente ordenado de formalidades, mas sim um caos, uma total indeterminação amorfa, de tal modo que aqui nem mesmo o próprio caos possui força de conter a promessa de uma ordenação. Esse estado de inanidade radical, a morte por dissolução total no nada nadificado, é o “ultimo homem” em Nietzsche.
  4. Essa total entropia da vigência interna no homem como espírito, essência e ser, no entanto, não é necessária e simplesmente um dado, uma ocorrência como ausência de vigor. É ou pode ser, se pode, ao mesmo tempo uma liberação de força que não encontra em nenhuma parte apoio, centro ou meta do seu dinamismo. Assim o élan vital se extravasa num rodopiar frenético ao redor da sua própria vitalidade, girando sempre mais intensamente no vazio de si. Deixemos por enquanto esse processo assim, para retomá-lo noutro lugar, pois esse rodopiar aparente num círculo de uma eterna roda morta do realejo, que gira no igual, pode ocultar a espiral de um modo de ser inteiramente novo. Antes, porém, de esse esvaziamento se tornar um extravasamento do élan vital, num rodopiar ao redor de si, ele passa pelo que Nietzsche chama de nihilismo incompleto, a saber, luta e trabalha na tentativa de recuperar a vigência do valor supremo que perdeu a sua dinâmica interna. E isto o homem faz de várias maneiras, p. ex., tenta voltar de novo ao valor antigo, buscando reativá-lo como o foi antes. Mas, como esse valor supremo não possui em si o seu vigor originário, essa volta ao antigo cai no vazio, só dando a ilusão por algum tempo de se ter recuperado o vigor originário.
  5. A tentativa mais freqüente é a de substituir o valor supremo antigo por valores novos, atuais e presentes, p. ex., nazismo, socialismo, capitalismo, catolicismo (= tradicionalismo ou progressismo), progresso, razão, ciência, “religiões”, humanidade global unificada e interligada pela Internet etc. Mas, aqui também, todas essas substituições são apenas “soluções” paliativas, de tal sorte que, de substituição em substituição, cresce a averiguação frustrante da inocuidade de tais tentativas de recuperação. Assim, apesar de toda e qualquer tentativa de retomada da dinâmica originária dos valores supremos do Ocidente europeu, inexoravelmente vai se processando uma lenta desertificação do sentido do ser, enquanto valores, estabelecendo-se sempre mais a entropia da energia do ser substancial.
  6. É dessa devastação interna essencial do vigor ocidental que fala Nietzsche: “O deserto cresce… Ai daquele que oculta os desertos”. Comentando essa frase de Nietzsche, diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca pensar:

“Isto quer dizer: a desertificação se espraia. Desertificação é mais do que destruição. Desertificação é mais sinistra do que aniquilação. A destruição elimina apenas o que até agora cresceu e foi construído. A desertificação, porém, impossibilita o crescimento futuro e impede todo o construir. A desertificação é mais sinistra do que a pura aniquilação. Também esta elimina e quiçá até também ainda o nada, enquanto que a desertificação exatamente estabelece a impossibilitação e espraia o impedimento. O Saara na África é apenas uma maneira do deserto. A desertificação da Terra pode ir junto com a consecução do mais alto Standard da vida, tanto como a organização de um estado de felicidade uniforme de todos os homens. A desertificação pode ser o mesmo com os dois e conviver com os dois, do modo o mais sinistro, a saber, pelo fato de se esconder. A desertificação não é apenas um escorrer em areias. A desertificação é expulsão da Mnemosyne, que gira em aceleração da mais alta rotação”[2].

  1. Essa desertificação, levada às últimas conseqüências, quando começa, não somente a atingir os valores supremos e todos os seus substitutos, mas também a própria estrutura do modo de ser da transcendência, i. é, meta-física da humanidade até hoje, se chama em Nietzsche: A eversão de todos os valores. E quando essa eversão é sustentada, se dá a transformação do élan vital que, em se extravasando na busca do para além, em direção à transcendência, não consegue se livrar do modo de ser da estrutura meta-física do seu extravasar. O élan vital que assim se transforma se chama a vontade do poder. E com isso se estabelece o retorno do igual, que constitui na filosofia de Nietzsche o ponto de consumação do seu pensar e prepara o ser do homem da antropologia filosófica estrutural.
  2. A compreensão moderna do homem, cuja palavra principal que caracteriza o homem é a subjetividade, só é compreensível plenamente quando abordada através da transformação operada pela desertificação descrita por Nietzsche. É que, usualmente, quando falamos do homem como subjetividade, nós o entendemos como sujeito no sentido do subjetivo, do individual-“pessoal”, do eu-egoista, digamos no sentido da nossa prática “devocional-espiritual” ou “caseiro-particular”. Assim, confundimos a categoria-chave da filosofia moderna, que se chama subjetividade, com o subjetivismo. Esse subjetivismo não tem nada a ver com a subjetividade da filosofia moderna. Mas sobre tudo isso, vamos refletir numa outra ocasião.

[1] Vontade do poder, aforismo 2, 1887.
[2] Was heisst Denken, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1961, p. 11.
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