Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia da Religião – IV

20/04/2021

 

Quem é isto propriamente, Deus?

Provocação do ateísmo de Jean Améry

Resumo dos pensamentos de Jean Améry: Ao ser convidado a participar do debate sob o título da série “Quem é isto propriamente, Deus?”, com um certo receio e intrigado me perguntava o que poderia um publicitário, não especialista em tais assuntos, dizer acerca de quem é Deus!?…E dizia comigo mesmo, quem é Deus propriamente?, isto sou eu quem gostaria de saber e há muito tempo! Por isso, peço que deixe passar a minha confissão, que pode talvez soar um tanto cínica. O que aqui confesso é pensado mais sério do que possa parecer, e é meu desejo de participar desse debate erudito, contribuindo com elemento mais ingênuo e pessoal. (Descreve como o debate está se perdendo para dentro de uma discussão demasiadamente fixa num emaranhado de conceitos filosóficos, de tal sorte que as questões fundamentais e existenciais não são mais colocadas, mas apenas jogadas ali como fórmulas em jargões  especializados, entregues aos assim chamados especialistas).

Antes, porém, ao receber o convite de participar no debate,  pensei comigo mesmo e disse que era eu quem gostaria de saber e há muito tempo quem é propriamente Deus, eu no fundo não tinha feito outra coisa do que repetir para mim apenas um clichê, tinha feito para mim mesmo uma pose. É que não era verdade que eu queria saber isto e há muito tempo. A minha verdadeira atitude era: Eu quero saber quem é Deus? Sinto muito: não! A pergunta, no fundo, não era nenhuma questão para mim. É que eu estou plenamente de acordo com Claude Lévi-Strauss, o fundador da escola estruturalista, que disse: “Pessoalmente eu não estou confrontado com esta pergunta. Eu acho completamente suportável, levar a minha vida,  sabendo que eu jamais poderei esclarecer a totalidade do universo”. Assim sendo, eu escrevo pois aqui como o que? como ateu? como agnóstico?  É conhecido que se faz essa distinção conceptual entre ateu e agnóstico.  Num artigo sobre a “Relevância social do ateísmo”, escreve o filósofo e teólogo Heinz Robert Schlette: “Eu entendo bem a modo antigo o conceito de ateísmo, como a explícita negação combativa da existência de um ser divino absoluto, i. é, para a nossa consciência histórica e religiosa em geral: a explícita negação de um princípio diferente de homem e mundo, o qual estamos acostumados a denominar de “Deus” e de representar, em geral, em analogia com a personalidade humana. A esse ateísmo definido, contrapõe Schlette o agnosticismo, modo de ser e pensar que, segundo o autor, já se infiltrou bastante no pensar cristão, em primeiro lugar no pensar protestante, mas também no católico. O agnosticismo não combate expressamente a existência de Deus; mas pensa que ele transcendente à experiência, seja ele religioso ou filosófico-metafísico não é conhecível. O autêntico agnosticismo chega necessariamente à coerência do positivismo lógico, para o qual a pergunta por Deus é apenas uma  questão aparente.

Eu tenho certa tendência, com ou sem razão, de ignorar a diferenciação conceptual entre o ateísmo e o agnosticismo, justamente naquele empenho da ingenuidade, de sair do acima mencionado emaranhado conceptual em que a discussão sobre o tema “Quem é isto propriamente Deus”, a meu ver, acabou caindo. Se, porém, uso a distinção de Schlette, entre o ateísmo e o agnosticismo, como instrumento de reflexão, então devo dizer que uma negação explícita, combativa de Deus é sob todos os aspectos uma posição insustentável. Entre  todas as possibilidades de negação de Deus estão também a negação da existência de um princípio diferente de homem e de mundo, sim até a negação de um ser divino nas suas formas fideístas, as mais simplórias. Devemos então abandonar o conceito de ateísmo em favor do conceito de agnosticismo, o qual é mais justificável filosoficamente? Certamente não. Pois, para o verdadeiro agnóstico, que como disse Lévi-Strauss simplesmente não se sente atingido por nenhum problema religioso ou metafísico, a possibilidade da existência de Deus já é uma possibilidade tão pálida, abstrata, existencialmente sem nenhum interesse, que admitir sua possibilidade não passa de uma concessão conceptual-crítica, algo como um gesto de cortesia: a pergunta por Deus jaz ao lado da negação de Deus, consequentemente, como um par de posições iguais, que não possuem mais o vigor de posicionamento, mas são apenas afazeres conduzidos sem zelo, com uma indiferença cortês, numa tolerância sem conteúdo. Nesse sentido eu me sinto ateu e agnóstico e, consequentemente, os dois conceitos serão usados como mutuamente cambiáveis.

No entanto, eu mencionei esse problema dos conceitos ateísmo e agnosticismo, não para expressar o meu sentimento particular e sem importância, mas sim para abordar uma questão fundamental, mais profunda. Se descobrirmos essa questão, nos acharemos no meio de um problema que para o moderno ateu ou agnóstico, no seu diálogo com o homem crente, é de decisiva importância. De que questão se trata?

É que um ateu ou agnóstico moderno, livre de uma crença, consegue com maior facilidade se achegar ao pensar do crente, que vive no mundo de representação primitivamente antropomorfo-religiosa e fideísta, do que do pensar do “crente agnóstico” moderno, treinado filosoficamente. Se o ateu se encontra com um cristão crente, que toma os ensinamentos do catecismo que lhe puseram na mão na escola primária, mais ou menos literalmente, então dirá com seus botões: O homem ali acredita em algo que a mim me parece em alto grau improvável,  a tal ponto que caracterizaria a sua fé quase como uma superstição; no entanto, seja como for, eu sei ao menos em que ele crê e posso me entender com ele sobre isso. Mas, quando lê os escritos dos teólogos modernos, progressistas, esclarecidos e tolerantes, a saber, aqueles que fazem da teoria da “morte de Deus” a sua própria, lhe assalta uma crescente perplexidade. “Sobre as estrelas mora um bom Pai” – quando o ateu ou agnóstico moderno ouve isso, ele diz para consigo: Eu não acredito nisso; não acredito nisso tão fundamentalmente que ouso dizer numa aproximativa certeza: Mas não, ele não mora lá. Mas quando lhe é esclarecido que talvez o maior teólogo do nosso tempo seja Ernst Bloch e que Deus se realiza na história, então pensa ele: Pois sim, mas perdão! Em nome de Deus, talvez sim, talvez não, isto tudo pode nada dizer; sobre tudo isso, a gente pode sacudir cortesmente a cabeça para os lados ou também seriamente sacudi-la para frente numa expressão de assentimento. A sentença é, como diz o positivista Topitsch: uma fórmula vazia. Como exemplar de tal uso da fórmula vazia temos um artigo de Dorotehee Sölle que se intitula “Crer em Deus ateisticamente”. Ali eu leio: “[Trata-se] de uma fé que talvez deva renunciar ao nome de Deus […] Fé aqui é entendida como um modo de vida que vive e se sai bem sem representação sobrenatural, supramundana de um ser celeste, sem a paz e o consolo que tal representação pode dar. […] Numa liturgia da missa católica foi dito que hoje uma liturgia da sexta-feira santa, na qual não ocorresse a palavra Vietnã, seria acristã. Isto significa que Cristo está presente em um mundo no sofrimento dos inocentes. Os derivados dos gases lacrimogêneos que sob circunstâncias climáticas desfavoráveis podem atuar mortalmente não são diferentes da coroa de espinhos de Cristo – vistos com olhos de Deus. Os padecimentos de um particular ou de todo um povo são continuações da história de Cristo no mundo […] [Cristo] ressuscitou por sobre a consciência de algumas pessoas e se tornou a pedra de provação da nossa história e ao mesmo tempo sua esperança”. Essa citação detalhada e longa do texto de Dorothee Sölle é para mostrar como é muito mais difícil para o ateu ou agnóstico moderno, livre de crença, confrontar-se com as especulações metafísicas da moderna teologia do que com afirmações apodícticas da fé ingênua, i. é, da fé rigorosamente dogmática. O ateu ou agnóstico, livre da crença, pode muito bem compreender o que é pensado com a ressurreição corporal da Mãe de Deus, quando ele mesmo naturalmente rejeita esse pensamento ou essa representação estranha e se pergunta espantado, como Pio XII pôde empreender uma coisa dessas, de anunciar este dogma ainda no meio do nosso século. Em todo caso, no entanto, aqui ele sabe de que se trata, de que estado de coisa se trata. Ele porém não sabe e não pode nem sequer no mínimo representar isto que sob a garantia dada por Dorothee Sölle é proposto, que Cristo por sobre a consciência de algumas pessoas ressuscitou na história de todas as pessoas; e ele está inclinado a deixar de lado esta especulação como vazia de conteúdo ou metafórica, portanto como literária.

Em referência às implicações políticas que existem nos textos de Dorothee Sölle, gostaria de confessar o seguinte: embora não a entenda no sentido acima exposto, sinto-me solidário com ela. Mas nisso tudo, a partir de outras razões, a colocação como esta de Dorothee Sölle me dá que pensar. Se enxergo bem, a  tentativa de uma radical reformulação do pensamento acerca de Deus constitui uma parte dos empenhos realizados em todos os níveis e áreas do cristianismo, de integrar a fé – ou algo que da fé ainda sobrou – no nosso século, tão inimigo do projeto religioso. Dito de outro modo: colocar em obra a autosecularização do cristianismo. A fé já impregnada agnosticamente empreende se estabelecer como pura metafísica, ética, filosofia da história, já que o entrechoque com o século coloca a religião na necessidade de buscar novas formas da sua autocompeensão. O ateu ou o agnóstico, livre da crença, não sabe o que fazer com essas formas que se configuram diante dele; ele sente que com isso a religião transmitida se abandona a si mesma. O ateu ou o agnóstico não triunfa por causa disso, ele vê com um espanto educado e gentil como ocorre um processo que a ele, ateu, parece supérfluo para levá-lo ao planejamento de um zelo livre-pensador. A maior provocação do ateísmo está nisso, que ele como tal de modo algum provoca e não quer provocar. Tão pouco os empenhos teológicos modernos desafiam o ateísmo ou agnosticismo, como também o ateísmo está inclinado a engajar-se com alegria de lutar, para provocar a teologia.

Mais uma vez, tomemos a sentença acima citada de Dorotee Sölle, para exemplificar essa reação agnóstico-ateia. Sölle diz: Cristo ressuscitou por sobre a consciência de algumas pessoas e se tornou a pedra de escândalo na história. Tal afirmação torna a argumentação muito difícil para o agnóstico moderno. Pois ele não capta bem o que isto propriamente significa. Tal afirmação, no entanto, torna também a argumentação supérflua, pela mesma razão. Tal asserção, no seu descopromisso metafísico-literário, soa ao agnóstico sem conteúdo, vazia de significação e assim como tal inofensiva. A tal asserção, o agnóstico pode ir de encontro com tolerância indiferente, como ele o faz com todas as outras metafísicas. São-lhe apresentadas sentenças que não são falsificáveis: ele pode por isso se poupar de combatê-las. Isto que eu aqui chamo de autosecularização do cristianismo coloca a fé e com isso também a descrença fora da batalha. Se não me engano, estamos num estágio da história do espírito, dentro da qual não se encontra mais lugar para discussão do ateísmo. O ateísmo agressivo pode despreocupadamente se aposentar, porque a fé ela mesma já se aposentou. Esta, a fé, teve que se sincronizar num esforço sincero coma época, e assim se desalojou e se dissolveu numa vaga metafísica; o ateísmo não consegue mais atingi-la com as armas tradicionais do racionalismo, e disso não tem mais necessidade.

Antes de abordarmos o relacionamento totalmente mudado entre cristãos e ateus no campo das tensões e cooperações sociais, abramos um parêntese e perguntemos como e por que se chegou a isso, que o cristianismo foi encurralado primeiro na defensiva e finalmente na posição da auto-secularização. Aqui, apenas algumas indicações. O nosso século hodierno é um século sem Deus. É inegável que no século XX o que de decisivo aconteceu no campo espiritual, social e político foi decidido sem Deus, quando não contra ele. Não somente nas regiões onde dominava o comunismo, mas também em muitas outras terras, as suas revoluções foram feitas contra Deus. O levante, como diz Ernst Bloch, para conquistar “o direito do homem de não ser cachorro”, a luta por fábricas, hospitais, campos, escolas e fontes de energias – ela correu tão estritamente paralela com a contestação contra as religiões tradicionais, que coincidiu por longos trechos da caminhada com o élan ateu. Como o crescimento político, também o crescimento espiritual desse nosso tempo foi um processo, se não contra a fé, então no entanto totalmente aquém ou ao lado da fé. Os grandes movimentos espirituais que deram o rosto ao nosso século eram livres da fé. As ciências naturais  (que numerosos pesquisadores tenham sido pessoalmente homens crentes, isto não pesou no trabalho que eles fizerem nem influenciou os resultados das suas investigações) estavam no seu compromisso de rigor científico atinentes ao controle empírico e à dedução lógica, portanto, per definitionem longe da religião. E bem tarde, sim demasiadamente tarde, o cristianismo se dignou a reconhecer os conhecimentos científicos das ciências naturais. O positivismo lógico, como um dos fenômenos intelectuais os mais importantes da época, como diz Wittgenstein, tratou a pergunta por Deus “como a gente trata uma doença”. A psicanálise destruiu o mito da alma, e no seu lugar colocou a psiché, que no seu enraizamento no substrato material se transformou num fenômeno físico, respectivamente num fenômeno fisical.

O marxismo, coluna espiritual do moderno, desmitologizou a escatologia e a esperança chiliástica e as mundanizou: não Deus, não o desconhecido, sobre o qual nada se pode falar, se realiza na história, porém o homem: a este conhecemos nós! Nós andamos os anos desse saeculum de lá para cá, de cá para lá, onde eclode sempre o novo e o essencial, e ali também já foi lançada a sorte da religião. Os grandes filósofos do tempo, de Husserl até Sartre, de Carnap até Heidegger, não tinham nada a fazer com Deus. Os escritores, dignos de serem mencionados, se Proust ou Joyce, Thomas Mann ou Samuel Beckett, renegaram a religião, seja num ateísmo combatente, seja numa indiferença tolerante-amigável. Os que se destacaram em filosofia ou literatura religiosas – e em particular eles não devem ser subestimados – não tiveram muita influência sobre o tempo. Não foi p. ex. Gabriel Marcel que se tornou a figura central do existencialismo filosófico francês, mas Jean-Paul Sartre. Honra seja dada a Eliot, Claudel, Julien Green, François Mauriac…! Eles não conseguem concorrer contra a imensa corrente de escritores livres da fé, que na Alemanha, na França, nos USA, na Inglaterra, representam aquilo que em conjunto se costuma denominar “a grande literatura deste tempo”. Os pensadores e escritores eram personalidades admiráveis, com dons extraordinários; no  entanto, eles agiram e atuaram por assim dizer à margem do tempo. Mesmo de um pensador e pesquisador do quilate de Teilhard de Chardin, que aliás já pertence àqueles que agenciaram a autosecularização do cristianismo, hoje a gente não sabe mais se ele por fim não tenha sido apenas uma interessante moda espiritual dos anos de 1950. Aqui fechemos o parente.

Voltemos ao problema que está no centro das nossas reflexões, a saber, as possibilidades e impossibilidades de um diálogo entre os crentes e os ateus, livres da fé. Recapitulando o que foi formulado acima, antes de abrimos o parêntese: o agnóstico tem dificuldade mais do que nunca de discutir as questões da fé com os crentes, porque, em grande parte, as formulações teológicas modernas para o agnóstico são formulas vazias, que não se deixam nem verificar, nem falsificar, e por isso caem  fora dos debates conduzidos por  métodos da razão analítica. Por outro lado, no entanto, ao agnóstico, e isto vale também ao crente, o relacionamento entre ambos se tornou mais fácil na discussão do que antes: a sua tolerância não é mais colocada à dura prova por afirmações que são tanto improváveis quanto, em seu conteúdo, indemonstráveis. Améry acha essa abertura mútua através da autosecularização do cristianismo um ponto importantíssimo e a chama de um fenômeno social de primeira ordem. Exemplos: engajamento contra a corrupção e a injustiça no mundo; o levante contra a tirania; cooperação nos sindicatos; luta pelos direitos humanos etc. O que começa a se tornar como o centro de referência é a humanidade, o homem.

Por isso, não há mais a provocação do ateísmo. Em vez disso, a provocação de um humanismo comum? Onde as crenças e ideologias não exercem nenhuma função real?

Jean Améry (1912), escritor e jornalista em Bruxelas; múltiplos engajamentos políticos; ensaios e livros sobre temas biográficos e filosófico-sociológicos.

frel.9

Prefácio de Wittgenstein do seu livro Investigações filosóficas

Na obra que segue, publico pensamentos, o sedimento de investigações filosóficas que me ocuparam nos últimos 16 anos. Eles se referem a muitos objetos: ao conceito da significação, do compreender, da sentença, da lógica, aos fundamentos da matemática, aos estados de consciência e outros assuntos. Eu escrevi todos esses pensamentos como observações, trechos curtos. Muitas vezes, em longas concatenações sobre o mesmo objeto, outras vezes, saltando em rápida troca de uma região à outra. – A minha intenção era, desde o início, ajuntar uma vez tudo isso num livro, sobre cuja forma eu me fazia, em diferentes épocas, diferentes representações. O essencial, porém, me parecia que, nisso, os pensamentos deveriam progredir de um objeto a outro  numa seqüência natural sem lacunas.

Depois de várias tentativas fracassadas, de fundir  meus pensamentos numa tal totalidade, se me tornou evidente que isto jamais me aconteceria. Que, o melhor que eu  poderia escrever, haveria sempre de permanecer apenas observações filosóficas; que meus pensamentos logo se cansavam, quando tentava  obrigá-los a avançar  numa direção contra sua inclinação natural. – E isto dependia certamente da natureza da própria investigação. Esta, a saber, nos obriga a viajar através de uma vasta região num entrecruzamento de lá para cá, de cá para lá, seguindo todas as direções. – As observações filosóficas deste livro são ao mesmo tempo um conjunto de esboços de paisagem, que surgiram nessas viagens longas e intrincadas.

Os pontos iguais, ou quase iguais, foram sempre de novo tocados de diferentes direções e foram projetados sempre novos quadros. Grande número desses quadros era mal traçado, ou traçado de modo não característico, com todas as falhas de um desenhista fraco. E, ao excluir estes quadros ruins, sobrou entrementes um certo número de quadros, que então ordenados, deviam ser muitas vezes tosquiados, para que pudessem dar ao observador um quadro da paisagem.  – Assim, portanto, este livro é propriamente apenas um álbum.

Até há pouco eu tinha propriamente desistido da idéia de uma publicação do meu trabalho, durante o meu tempo de vida. Ela, aliás, surgia excitada de tempo em tempo, e quiçá principalmente porque eu era obrigado a ver que meus pensamentos, que tinha transmitido em preleções, escritos e discussões, eram de diversos modos mal compreendidos, e andavam circulando mais ou menos aguados ou despedaçados. Com isso, a minha vaidade era instigada e eu tinha trabalho em acalmá-la.

Há 4 anos, porém, tive ocasião de ler de novo o meu primeiro livro (o “Tratado lógico-filosófico”) e esclarecer seus pensamentos. Então de repente me pareceu que deveria publicar aqueles pensamentos velhos juntamente com os novos: que estes últimos somente poderiam receber sua iluminação correta através de contraposição com e sobre o pano de fundo do meu modo de pensar antigo.

Desde há 16 anos, que comecei de novo a me ocupar com filosofia, tive que reconhecer graves erros naquilo que eu tinha escrito naquele primeiro livro. Intuir esses erros me ajudou – numa medida em que dificilmente eu mesmo poderia avaliar – a crítica, que as minhas idéias sofreram da parte de Frank Ramsey – com o qual através dos dois últimos anos de sua vida as tenho  examinado em inúmeros diálogos.   Ainda mais do que a esta crítica – sempre vigorosa e segura – devo gratidão àquela crítica que um professor desta Universidade, Sr. P. Sraffa, exerceu durante muitos anos sobre meus pensamentos. A este incentivo eu devo as mais fecundas das idéias desse escrito.

Por mais do que uma razão, isto que eu aqui publico se toca com aquilo que outros hoje escrevem. – E já que minhas observações não trazem nenhum carimbo em si que as caracterize como minhas – assim eu não as quero também reivindicar como minha propriedade.

Eu as entrego à publicidade com sentimento de dúvida. Que esse trabalho com a sua exiguidade devesse ser oferecido à escuridão desse tempo para lançar luz a um ou ao outro cérebro, isto não é impossível; mas certamente não é provável.

Eu não gostaria com o meu escrito poupar aos outros o pensar. Mas, se fosse possível, gostaria de mover a alguém para o próprio pensamento.

Gostaria muito de ter feito surgir um bom livro. Mas não aconteceu assim; o tempo, porém, no qual ele pudesse ser melhorado por mim já passou.

Cambridge, Janeiro de 1945.

  1. 23 (Investigações Filosóficas, p. 300):

“Quantas espécies de sentenças existem, porém? Quiçá afirmação, pergunta e comando? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras diferentes espécies do uso disso que nós chamamos de “sinal”, “palavra”, “sentença”. E essa diversidade não é nada de fixo, nada de dado de uma vez para sempre; mas surgem novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como nós poderíamos dizer; e outros envelhecem e são esquecidos (Uma imagem aproximada disso nos podem dar as transformações da matemática).

A palavra “jogo da linguagem”  deve aqui realçar, que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”.

A fé em Deus e o pensar científico

Heinrich Rombach (1923), Prof. Catedrático da cadeira de filosofia e Diretor do Seminário de filosofia n. II da Universidade de Würzburg; Diretor do Instituto Willmann, Freiburg i. Br./Viena; a conhecida editora Rombach de Freiburg i. Br. é da sua família; aluno de Martin Heidegger; depois de Max Müller,  Eugen Fink e Wilhelm Szilasi; um dos mais originais fenomenólogos atuais; obras: A Origem da Pergunta; Ontologia estrutural (Ontologia da Liberdade); Antropologia estrutural; Fenomenologia da Vida Social; Substância, Sistema, Estrutura I, II vols.; Mundo e Contra-Mundo; O Deus vindouro; A presença da Filosofia; A fenomenologia da Consciência atual; A Origem; coordenou e editou dois cadernos de estudo intitulados “Theoria das Ciências”, onde ele mesmo escreveu vários artigos. Foi Docente em Freiburg, 1955; Professor Ordinário (Catedrático) em Würzburg 1964; Recebeu o chamado do Ministério da Educação para ser professor em Munique 1972, mas não aceitou o chamado; preleções como professor visitante no Japão; viagens de pesquisas antropológicas na Índia e na África.

  1. 1. Constatação da divisão irredutível da nossa consciência atual: dum lado o pensar científico e do outro lado a fé religiosa.

– Nunca esteve tão dura e irreconciliável a luta das posições, uma a frente da outra.

– A oposição apareceu por primeiro na astronomia.

– NB: no seu surgir, a disputa não correspondia mais à autenticidade da consciência própria de ambos os lados.

– A ponta aguda da questão não estava na alternativa entre sistemas do universo, do geocentrismo e heliocentrismo.

– Já Copérnico sabia que no fundo era indiferente, qual a concepção do mundo que a gente tinha, se geocêntrica ou heliocêntrica. Para ele, como cientista, tratava-se apenas disso: os dados empíricos que se tinham das observações astronômicas deveriam poder ser colocados matematicamente e sem contradição lógica num conjunto coerente de uma totalidade homogênea transparente.

– Do mesmo modo, da parte da Igreja, não se estava interessado numa determinada imagem do universo. Este poderia ser deste ou daquele modo. Tratava-se de defender uma concepção do universo que permitisse que os fatos e os eventos relatados pela Bíblia pudessem ser ordenados para uma unidade coerente de relacionamentos do todo como manifestação de uma convicção da fé.

– O ponto de colisão do heliocentrismo, portanto, da ciência com a Bíblia, segundo a posição de então, estava no relato do cap. 10,12-15 de Josué, quando os israelitas obtiveram vitória sobre Gabeon: “Aí pararam o sol e a lua, até que o povo tivesse tirado vingança de seus inimigos” (cf. a carta de protesto de Martinho Lutero a Kepler).

– Mas o importante é observarmos que aqui: tanto a crença como a ciência, tanto a fé como o pensar científico não encontraram um relacionamento adequado consigo mesmos, de tal sorte que ambos se “desgarraram” de si mesmos. Ambos se emaranharam no processo de seus autoesclarecimentos, perdendo-se numa autoalienação da sua originária identidade.

  1. Um fenômeno análogo é, p. ex., o problema do caráter absoluto do espaço na ciência natural de Newton.

– Newton defende o espaço absoluto como sistema de fundo, sobre o qual se devem dar todos os dados de localização, movimento e tempo dos corpos no universo. Por quê?

– O espaço é para Newton um medium, no qual todas as particularidades do nosso mundo experimentável sensivelmente se encontram. Assim, o espaço é o meio através do qual todos os entes podem ser ao mesmo tempo tocados. Assim, o espaço é o modo de aproximação, o medium onde se dá o toque de Deus para com as coisas corporais, o modo e a maneira como Deus, o supra-sensível, o espiritual pode estar presente por toda parte na realidade sensível, corporal. O espaço absoluto é a onipresença do mundo, e por isso pode ser o médium através do qual a onipresença divina pode se mostrar no mundo.

– O fundo dessa teoria “científica” do espaço absoluto é um fundo teológico: Newton busca um mediador entre Deus e o mundo e encontrou o espaço.

– Por ter carregado assim teologicamente a ciência natural, Newton criou complicação científica, que bloqueou por longo tempo o progresso da física. Porque o espaço era colocado como absoluto, existia também uma medida absoluta do movimento. Com isso a ciência natural ficou pregada sobre a mecânica clássica, como a uma plataforma fixa, petrificada, impossibilitando de antemão uma colocação fundamentalmente nova.

– Como essa posição era inexorável e dura, podemos ainda ver na troca de cartas  de disputa entre Clarke e Leibniz. Nessa disputa, Leibniz defende a teoria do cálculo infinitesimal e o relacionarismo moderno, ao passo que Clarke é representante do dogmatismo e absolutismo de Newton.

– Quebrar essa posição foi mais duro e mais difícil do que a dissolução do geocentrismo.

– O dogmatismo nas ciências é muito mais duro e mais perigoso do que o dogmatismo na fé.

II

  1. Os nossos exemplos nos mostram: a invasão da teologia na região da ciência (caso Galileu); da ciência na região da teologia (caso Newton), portanto essa mediação misturada e trocada resulta em prejuízo para ambos os lados. A fé se deforma, se tenta reconhecer-se  ou encontrar-se nos resultados e nas experiências da ciência. O saber se deforma, quando segue os interesses da fé.

– O desenvolvimento autêntico somente poderia se orientar em direção à separação pura e total de ambos os reinos.

Desde então, o pensar científico e a fé religiosa somente podem subsistir, mantendo distância um do outro. Para o pensar científico de cunho tipicamente moderno não podem se dar objetos “do modo de Deus”. E isto simplesmente não, porque o tipo de consciência, que aqui jaz no fundo, per definitionem, não possa encontrar objetos com a propriedade de inteiridade e totalidade. O pensar científico in-tende para um sistema-ordem de conhecimento. Sistema-ordem significa: um fato se apoia no outro. Isto significa que sempre se chega de fato para fato, jamais porém para a totalidade de todos os fatos. O sistema-ordem, ele mesmo – porque não é nenhum fato entre os fatos – não pode ser apoiado imediatamente, i. é, ser demonstrado positivamente. Ele permanece hipótese, permanece aberto. Mesmo que uma hipótese-ordem seja confirmada através de experiências, sejam elas quão numerosas forem,  com isso ela ainda não foi confirmada como um todo. Se, porém, for desmentida por uma única experiência, ela é desmentida como um todo. Ciência se baseia portanto mais, como a gente hoje diz, sobre falsificação do que verificação.

  1. Ciência permanece por princípio aberta. Uma última conclusão não se pode alcançar pelo caminho científico. E isto, não porque a ciência ainda não avançou o bastante (um dia eu chego lá), mas porque ela, a partir do tipo de sua consciência e no modo do seu proceder, não pode captar algo como o todo. O todo de modo algum pertence ao âmbito do que para a ciência é real. Ciência não pode enunciar nem sentenças positivas nem negativas sobre o todo. “Sobre o que não pode ser falado, sobre isso a gente deve calar” (Wittgenstein).
  2. “Ciência permanece, portanto, lá, onde ela se coloca sobre o chão fixo da experiência, num criticismo fundamental. <…> A totalidade absoluta se retrai da competência científica, e quiçá de tal maneira que é impossível dizer que o todo seja, como é impossível dizer que o todo não seja. Deus não vem ao caso nesse modo de consciência, ele não ataca aqui em nenhum lugar. ‘Deus’ diz tudo. Mas ‘tudo’ não é nenhuma resposta a uma pergunta científica”.

III. 1. O mundo da fé e o mundo do saber estão separados infinitamente longe um do outro. No entanto, ambos deveriam poder entrar em ligação um com o outro. É que o mundo do saber surgiu do mundo da fé, isto é, a atitude da consciência  da moderna ciência somente pode ser aclarada a partir de determinados movimentos da teologia. Por isso, a ciência moderna se desenvolveu e foi levada a crescer no âmbito do cristianismo.

  1. Quem busca razões para esse parentesco interior e espantoso deve perceber que a teologia cristã exige um conceito de Deus de altíssima transcendência, o qual nenhum esforço do pensamento consegue realmente alcançar. O Deus do cristianismo, antes de tudo, não é parte do mundo. Ele deve ser pensado como incondicional e absoluto i. é, fora de toda conexão com o real e suas possibilidades. Ele é tão fora dessa conexão que Ele nem sequer está ou é “fora”; Ele é tão outro do que todo o real que nem sequer ou não mais é “o outro” (non-aliud de Cusanus).
  2. No percurso da tentativa de pensar radicalmente a absolutidade de Deus, surgiu uma nova concepção do mundo, a saber, a concepção “do mundo puramente natural”. Se Deus não é mais uma parte do mundo, então nenhum fato no mundo pode ser esclarecido através da recondução a Deus; a recondução do fato só pode ser uma recondução aos fatos. Nisso está o puro empirismo, o puro relacionalismo, o modo do puro esclarecimento imanente da ciência nova, que rejeita todos os argumentos metafísicos, todos os argumentos a partir de Deus ou de similares entidades eternas.
  3. Este processo da rejeição de Deus para fora do mundo acontece na teologia do nominalismo da Idade Média tardia.
  4. A rejeição do metafísico da conexão do mundo não aconteceu por inimizade contra o metafísico, mas justamente pelo contrário, no sentido do serviço à absoluta pureza e limpidez do pensamento metafísico de Deus e da essência. Para preservar o pensamento de Deus da contaminação com o mundo, o mundo deveria ser isolado. O processo portanto é mais o isolamento do mundo, de Deus, do que o isolamento de Deus, do mundo. O resultado de tudo isso, porém, para ambos os lados é o mesmo: surgem cada vez reinos de pensar próprio e de própria legitimidade e legalidade.
  5. Ciência nasce da fé. A partir da sua origem a ciência realiza um serviço essencial à teologia. Quanto mais límpida e iminentemente ela se desenvolve; quanto mais incondicionalmente ela renuncia a todo o metafísico; tanto mais claramente vem à fala aquele perfil reflexo como que no espelho, daquilo que deve ser entendido como o pensar cristão originariamente próprio, a saber, como o pensar do Deus absoluto. Isto é, no início do processo, muito claro de ambos os lados. Quanto mais porém a separação aumenta, tanto mais se vai perdendo a recordação ao sentido dessa separação. Vai se perdendo de vista o momento unitivo, i. é, o cuidado de fidelidade e atinência à concepção originária cristã de Deus.
  6. Apenas é visto o momento de separação. Quão rigorosamente a teologia rejeitou as ciências naturais, tão rigorosamente também as ciências naturais rejeitaram a teologia, sem que ambas pudessem ver que tudo isso era um processo de mútua purificação e perfeição, tendo como fundo o princípio e a concepção da unidade originária.
  7. É pois nossa tarefa, hoje, radicalizar cada vez mais esse processo e levá-lo à consumação, a tal ponto que venha à luz de novo a concepção originária do relacionamento entre o pensar científico e a fé.
  8. A questão é pois: onde está a ponte? Como e através de que se pode mostrar que ambos os mundos pertencem um ao outro justamente por causa da sua diferença?

A descoberta dessa ponte ou deste último laço de mútua pertença interessa a ambos os lados. Se, a seguir, nos aviamos na busca de tal contato, nos movemos no desconhecido. Por isso, não há mais recurso, daqui para frente, de remetermos o nosso pensar a fatos ou pensamentos conhecidos assim em geral. O que segue, por isso, não passa de opinião pessoal. Não é nada mais do que apenas suspeitas.

  1. 1. A pinguela de conexão começa junto disso que podemos denominar de doutrina das dimensões da teoria das ciências ou pluralismo do espírito. Isto significa que as experiências científicas jamais conseguem captar a realidade ela mesma, mas sempre apenas um aspecto dela. As experiências científicas são por princípio pluralísticas. Uma ciência não é nenhuma ciência. Ciência só se realiza, se consuma em ciências. Estas representam uma pluralidade de aspectos e dimensões, nas quais o ente pode ser visto e interpretado cada vez segundo uma legalidade unitária própria. Cada ente deixa-se apresentar em diferentes e variegados aspectos e desvela diferentes legalidades. Sobre o número de dimensões, nada sabemos. Ele se multiplica no correr da história das ciências. Se a gente no início somente viu uma dimensão,  já no século XVII e XVIII duas ou três, hoje estamos diante de um número de dimensões para o ente, que é tão infinito como o número do ente ele mesmo.
  2. Dentro de uma dimensão, valem leis rigorosas de esclarecimento, leis rigorosas da condução de demonstração e prova, leis rigorosas da aquisição da experiência. Essa legalidade conduz em parte às outras legalidades em outras dimensões, em parte as dimensões permanecem uma das outras tão distantes, que nem se quer há entre elas referência. Assim, p. ex., os aspectos das ciências humanas não são exigidos e necessitados a partir dos aspectos das ciências naturais. Os fenômenos do mundo corporal deixam-se interpretar de início até o fim natural-cientificamente, sem que a gente em certo lugar tope com algo como espírito ou liberdade. Isto já há muito tempo levou a (e em cientistas retrógrados ainda hoje leva) considerar as ciências humanas, em todo caso, enquanto elas trabalham com espírito e liberdade, como não científicas no sentido próprio. Mas isto é uma regressão, para a etapa anterior da ciência moderna, uma regressão para dentro daquele dogmatismo, que, porque a ciência se confirmava com uma experiência, com uma hipótese, já pensa ter descoberto tudo. A doutrina da dimensão nos livra desse dogmatismo e é o sentido próprio daquilo que Kant denominou de criticismo, e que hoje nós podemos chamar de teoria de método aberta.
  3. Se, portanto, no reino da realidade, se dão diferentes dimensões, e quiçá tais dimensões que somente a partir das suas próprias leis podem e devem ser interpretadas, então resulta dessa teoria das ciências um novo impulso inicial para o relacionamento de fé e saber. Não poderia ser que também a dimensão religiosa possui em si uma justificação dimensional e por isso lhe deve ser atribuída realidade própria ilimitada, sem que ela estivesse dependendo de uma confirmação ou averiguação da parte das dimensões científicas ou dependendo do dever de ter atuações e utilidades nessas mesmas dimensões científicas?
  4. Se há realmente tal dimensão teológica, então deve estar assinalada, caracterizada por um modo próprio de evidência, por um estilo próprio de experiência, por uma legislação própria, para totalização e ajuntamento lógico de seus fatos particulares, e deve receber, se tudo isso é assim, a sua imediata justificação e legitimidade diante da ciência como também esta diante dela.
  5. 1. Segundo Rombach, se analisarmos bem as experiências religiosas, podemos confirmar essa suspeita acima colocada.
  6. Só que, para ver que a experiência religiosa possui a sua legitimidade lógica própria, é necessário possuir ou adquirir um modo de ver próprio para isso, ordenado, e possuir uma forma de experiência com leis próprias. E diz: “De-monstrar (aufweisen) experiências é um negócio ingrato. Somente quem já possui as experiências de que se fala poderá aceitar a de-monstração, como demonstração de experiências. Lá onde as experiências de um determinado tipo de experiência não existem, nenhuma fala ajuda, por mais detalhada e exata que ela seja. O leitor há de ter tudo por puramente “subjetivo”. De experiências, não se deve falar a não ser a experientes. Assim, não se espera que, a seguir, alguém confirme as experiências ou nelas acredite; mas espera-se que a gente não as considere como “apenas subjetivas”, somente por que nem todos as possuem”.
  7. Uma experiência religiosa: Um homem que sofre injustiça. Injustiça que dura muito tempo. Digamos a injustiça dos oprimidos. A injustiça que, pela duração, apenas pela duração, se transforma em legalidade, é a pior das injustiças. Mas, quanto mais injustiça do mundo pesa sobre um homem, tanto mais justificado aparece ele no seu perfil interior. O nosso olho não consegue ver senão justificação no homem provado pelo sofrimento, portanto aqui, podemos ver um mundo de pura justiça, no qual “les miserables” são os preferidos, são os salvos. Cada homem conduz além da existência sobre o campo de jogo da história e da sociedade também ainda uma existência ante a face de um fundo puro e límpido, no qual seus atos, com precisão, valem o que valem, e seu sofrer pesa o que pesa. A partir daqui se deve compreender aquela frase que um homem experimentado falou: “Eu me encontro na absoluta segurança”.
  8. Aqui um pensante “crítico” pode perguntar: E donde ele sabe tudo isso? Onde estão as garantias e provas para tal segurança, para tal certeza? – Mas essa pergunta aqui está fora de lugar. Pois uma experiência é experiência. Ela a segurança e salvação do homem sofredor na guarda e no aconchego de uma proteção especialmente orientada para ele. Aqui, não há nada para saber, nada para crer; aqui há apenas para ver. Ernst Barlach viu os homens assim, e deixou ser forma pura esta figura da salvação para dentro da justiça da injustiça sofrida, e para dentro da riqueza da pobreza. A salvação é um perfil, um Gestalt fundamental do humano. Assim, sabia e mostrava isto, também um Tolstoi. E, antes já, muitos outros viram assim, pintores, escultores, poetas, adivinhos, que mostraram esse rosto da justiça; mostraram, não somente dela falaram. As paredes das antigas igrejas o deixam ver; as táboas votivas do povo; os documentos de KZ do passado próximo. De Jó até Ossietzki, ali estão as testemunhas. Em testemunho não falta. Já o que faz falta é ver.
  9. Não se trata aqui da questão, se a Bíblia tem razão e se os anúncios da salvação, sejam de que procedência forem, podem reivindicar o direito de verdade. Assim, abordar a coisa seria perguntar de fora. Assim, perguntar de fora, se interessa por saber. Aqui e para nós, trata-se de ver. De apenas ver. Trata-se pois disso que a gente veja num perfil ou na face da injustiça sofrida algo assim com uma qualidade, um quilate de nobreza; portanto inteiramente simples e preciso, conteúdos e valores, que não como se tivessem sobrado, apesar de tudo, para além de toda indigência, mas que foram criados, cunhados, cristalizados através da indigência e da injustiça. Lá onde tais coisas nos acontecem, nos são dadas, ali a própria salvação nos mira. Não a salvação que este homem agenciou e atuou em si e no seu destino, mas sim a salvação que justamente através do seu destino e como destino aconteceu.
  10. É de tal experiência que saltou originariamente ao homem a idéia da “vida eterna”. O pensamento da “vida eterna” não provém de algumas teorias, fábulas, mitologias, mas sim, salta da experiência da existência cada vez sua, seja ela definida depois como for, quer mitológica, quer teológica, quer eventualmente filosoficamente. Kant fala do “caráter inteligível”, que uma pessoa possui ao lado do seu “caráter empírico”, e no qual possivelmente se representa de modo todo diferente, e isto fora de todo o tempo, se representa, bem diferente do que pensava.
  11. Contra cada configuração mitológica, teológica, filosófica, se pode sempre contrapor isto ou aquilo. Contra a experiência da compaixão não se pode opor nada. Compaixão é resposta a um direito mais alto. Quem vê, vê justificação, um ser justificado eternamente, um ser justificado absoluto, no qual o atingido é guardado de modo inatingível. Tal ser guardado, ser acolhido pode se chamar “vida eterna”, mas isto é apenas um nome, lhe é permitido ser apenas um nome, nenhum conceito. Ela apenas perfaz uma realidade íntima, nenhuma realidade exterior, nenhum “além”. Um além não se pode ver; essa salvação, no entanto, acontece bem diante de nossos olhos.
  12. Quão delicadas são as coisas aqui, se mostra nisso que, aqui, é tão falso hipostatizar a “vida eterna” como também é falso negá-la. A realidade da vida eterna permanece aberta, o que não significa, no entanto, que a vida eterna seja duvidosa ou questionável. Quem pensa a vida eterna deve pensá-la dentro de um tal estilo de realidade, no qual a questionabilidade não tem nenhum sentido. A aceitação direta do além como a direta rejeição não acertam o caráter de realidade da “vida eterna”. É do mesmo modo tão falso não se engajar para a superação da injustiça, como é falso ter por direito e reto o que a gente tem feito para a superação da injustiça.

Frel12-97

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